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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

O suicídio do dólar?   

31.03.22 | Manuel

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Estão sendo criadas condições para o crescimento de um bloco não-ocidental na economia global.

Em 26 de fevereiro, os Estados Unidos e seus aliados confiscaram as reservas de ouro e divisas do Banco Central da Rússia que possuía no Ocidente, cerca de metade de suas reservas totais, ou seja, cerca de 300 bilhões de dólares. Nem a Reserva Federal dos Estados Unidos (FED) nem o Banco Central Europeu (BCE) foram consultados a este respeito. Muitos observadores acreditam que a medida será autodestrutiva para a hegemonia global do dólar, sobre a qual repousa a estabilidade do déficit e a economia monumentalmente endividada dos Estados Unidos.

Desde 1971, quando os Estados Unidos abandonaram o padrão ouro na conversibilidade do dólar, o sistema de Bretton Woods, os bancos centrais organizaram suas reservas em dólares em vez de ouro. Ao fazê-lo, compraram títulos do Tesouro dos EUA e financiaram déficits orçamentários e de balanço de pagamentos dos EUA. A negociação de petróleo em dólares aumentou o poder do dólar como a moeda global indiscutível de referência.

Os Estados Unidos têm usado essa posição de poder para ordenar o mundo ao seu gosto e interesse. Você pode bloquear pagamentos, congelar bens e confiscar a qualquer momento. Agora, confiscando as reservas da Rússia, uma mensagem inequívoca foi enviada ao mundo inteiro. Nas palavras do ex-diplomata britânico Alastair Crooke, “se mesmo um grande país do G-20 pode ver suas ações confiscadas com o toque de um botão, para aqueles que ainda têm ações em Nova York a mensagem é clara: tire-as da lá enquanto possível.” ”.

A Rússia não é um caso isolado. As reservas do Irão já foram confiscadas no passado. Os 9 mil milhões de fundos do Afeganistão, que impediriam a catástrofe humana e a fome que estão ocorrendo lá, também foram confiscados por Biden como retaliação cruel pelo medo militar ocidental forçado pelo Taleban em agosto passado. No ano passado, a Inglaterra roubou da Venezuela o ouro que tinha no Banco da Inglaterra e que Caracas tentou usar para comprar recursos médicos contra a pandemia.

Com todas essas medidas, o que os Estados Unidos dizem ao mundo é que qualquer país que ali tenha suas reservas está exposto ao facto de que, se sua política não agradar a Washington, seja porque negoceia com países adversários, seja porque distribui o rendimento muito entre as classes populares em detrimento dos benefícios das multinacionais, ou simplesmente porque busca maior independência política ou económica do quadro controlado pelos Estados Unidos, suas reservas podem ser confiscadas.

“Tornamos os depósitos em euros e dólares um factor de risco”, diz Wolfgang Münchau, um conhecido analista de direita alemão e estrela do Financial Times . “Ao confiscar fundos do Afeganistão, Venezuela, Irão e agora da Rússia, politizar os pagamentos Swift e o mecanismo de transferência, a influência global dos Estados Unidos é diminuída”, diz o ex-embaixador americano Chas Freeman.

 O confisco das reservas russas “encorajará russos, chineses, BRICs, etc. buscar outras moedas e mecanismos mais seguros”, prevê Münchau, mas na realidade isso não é um horizonte, mas um processo já em andamento. Desde que as sanções foram impostas à Rússia há oito anos pela anexação da Crimeia, a participação do dólar nos pagamentos internacionais como um todo diminuiu 13,5 pontos: passou de 60,2% em 2014 para 46,7% em 2020. uma moeda tóxica", diz o economista russo e conselheiro de Putin, Sergei Glazyev. O que acontecerá a partir de agora com esta tendência?

A principal consequência é que estão sendo criadas as condições para o crescimento de um bloco não-ocidental na economia global que impactará negativamente os interesses do hegemonismo. Faz mais de uma década que o presidente Lula já entendeu que precisava sair conjuntamente do dólar e de seu arcabouço. Parece que Lula foi o primeiro a compartilhar com Vladimir Putin e Hu Jintao, o então presidente chinês, a ideia de avançar conjuntamente em uma política nesse sentido, algo que os chineses já tinham claro há muito tempo. O protagonismo de Lula nessa iniciativa pode até ter sido decisivo para a derrubada irregular do brasileiro e sua posterior prisão. Hoje as coisas mudaram e não só porque Lula pode voltar à presidência do Brasil.

Nenhum BRIC participou das sanções contra a Rússia: nem a Índia, nem o Brasil de Bolsonaro, nem a África do Sul, nem a Turquia atlanticista, nem os países do Golfo, nem, claro, a China...

Na quarta-feira, a conferência de ministros das Relações Exteriores da Organização da Conferência Islâmica (57 países membros) se recusou a aderir às sanções contra a Rússia. Nenhum país da África, nem da Ásia Ocidental e Central, com apenas Singapura e Japão no leste da Ásia, impôs sanções à Rússia, com China e Índia liderando o caminho.

Ainda mais significativamente, a Arábia Saudita está em negociações com a China para negociar yuan por seu petróleo. 25% do petróleo saudita vai para a China. Que o petróleo deixe de ser vendido em dólares, não equivale a uma falência da economia dos Estados Unidos?

Por Rafael Poch de Feliu - blog pessoal

https://rafaelpoch.com/2022/03/25/el-suicidio-del-dolar-ii/

A CASADA INFIEL

30.03.22 | Manuel

 

 

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Eu que a levei ao rio,
pensando que era donzela,
porém tinha marido.

Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Apagaram-se os lampiões
e acenderam-se os grilos.
Nas últimas esquinas
toquei seus peitos dormidos,
e se abriram prontamente
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
soava em meu ouvido
como uma peça de seda
rasgada por dez punhais.
Sem luz de prata em suas copas
as árvores estão crescidas,
e um horizonte de cães
ladra mui longe do rio.

Passadas as sarçamoras,
os juncos e os espinhos,
debaixo de seus cabelos
fiz uma cova sobre o limo.
Eu tirei a gravata.
Ela tirou o vestido.
Eu, o cinturão com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem nardos nem caracóis
têm uma cútis tão fina,
nem os cristais com lua
reluzem com esse brilho.
Suas coxas me escapavam
como peixes surpreendidos,
a metade cheias de lume,
a metade cheias de frio.
Aquela noite corri
o melhor dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Não quero dizer, por homem,
as coisas que ela me disse.
A luz do entendimento
me faz ser mui comedido.
Suja de beijos e areia,
eu a levei do rio.
Com o ar se batiam
as espadas dos lírios.

Portei-me como quem sou.
Como um cigano legítimo.
Dei-lhe um estojo de costura,
grande, de liso palhiço,
e não quis enamorar-me
porque tendo marido
me disse que era donzela
quando a levava ao rio.

Federico García Lorca

 ***

LA COGYDA Y LA MUERTE

"Un ataúd con ruedas es su cama
a las cinco de la tarde.
Huesos y flautas suenan en su oído
a las cinco de la tarde.
El toro ya mugía por su frente
a las cinco de la tarde.
El cuarto se irisaba de agonía

a las cinco de la tarde.
A lo lejos ya viene la gangrena
a las cinco de la tarde.
Trompa de lirio por las verdes ingles
a las cinco de la tarde.
Las heridas quemaban como soles
a las cinco de la tarde,
y el gentío rompía las ventanas
a las cinco de la tarde.
A las cinco de la tarde.
¡Ay qué terribles cinco de la tarde!
¡Eran las cinco en todos los relojes!
¡Eran las cinco en sombras de la tarde!"

( Do poema "La Cogida y la Muerte", em "Llanto por Ignacio Sánches Mejías")

 BIOGRAFIA:

Federico García Lorca, nasceu m Fuentevaqueros (Granada) em 5 de Junho de 1898 e morreu assassinado em Viznar (Granada), uma das primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola, em 19 de Agosto de 1936. Foi dotado de uma personalidade extraordinariamente voltada para a arte. Além de ser um grande poeta, teve também alguns pendores musicais, tendo feito, ainda, alguns desenhos. É Garcia Lorca, com certeza, o poeta espanhol mais conhecido universalmente, só perdendo para Cervantes no número de edições e traduções de suas obras.

Garcia Lorca iniciou os seus estudos de direito, filosofia e letras, em 1914, na Universidade de Granada, transferindo-se em 1919 para Madrid, onde conheceu pessoas como o cineasta Luis Buñuel. Em Madrid nascem suas primeiras obras literárias, o "Libro de Poemas" e sua primeira obra teatral "Mariana Pineda". É também nesse período que se aproxima do grande mestre do surrealismo, Salvador Dali.

Em 1928 Garcia Lorca publica o "Romancero Gitano", composto por dezoito poemas no qual se encontram os motivos andaluzes da sua origem.

Depois dos seus estudos na Espanha, vai para os Estados Unidos, como estudante da Universidade de Columbia, em Nova Iorque , onde também profere conferências. A seguir vai até Cuba. É dessa época as suas obras, reunidas no livro "Poeta en Nueva Iork", livro no qual se percebem técnicas surrealistas, provenientes de imagens alucinantes para expressar o desdém de Lorca com o tipo de civilização moderna dos Estados Unidos daquela época, desumanizadora e promotora de injustiças sociais.

Ao voltar à Espanha, Lorca cria o teatro universitário ambulante " La Barraca ", com o qual faz montagens de peças de autores espanhóis consagrados, como Lope de Veja e Cervantes. A seguir, em viagem pela América do Sul, em particular Argentina e Uruguai, faz um grande sucesso em Buenos Aires , em 1933.

A situação vigente na Europa, já nessa época, iria, contudo, fazer de Garcia Lorca uma espécie de símbolo das vítimas dos regimes autoritários de direita e da tirania fascista. Após a eclosão da Guerra Civil Espanhola, Lorca saiu de Madrid para Granada, onde, supostamente, estaria mais protegido. É que Lorca, como sempre são os intelectuais de vanguarda, era um inimigo natural dos regimes autoritários. Além disso, numa Espanha católica, as possíveis tendências homossexuais de Lorca também não eram bem vistas. Por essas razões, vítima de uma denúncia anónima, Lorca é preso e assassinado, tendo o seu corpo sido jogado em um canto qualquer da Sierra Nevada.

O fato de Garcia Lorca ter sido assassinado pelo regime de Franco, fez com que, durante longo tempo, seu trabalho fosse pouco divulgado e até mesmo censurado na Espanha. Por outro lado, conforme já mencionado, tornou-se uma figura simbólica da opressão, o que fez com que vários poetas e escritores viessem a se ocupar de sua figura.

***

Segundo notícia divulgada pela Agência EFE, Madrid, em 27 de Julho deste ano, o fuzilamento do poeta espanhol Federico García Lorca no começo da Guerra Civil espanhola (1936-1939) teve a influência de desavenças familiares e aconteceu não apenas pelas suas ideias republicanas e sua condição de homossexual, segundo o documentário "Lorca, el mar deja de moverse", exibido no dia anterior na capital espanhola. O filme, dirigido por Emilio Ruiz Barrachina, sustenta que os primos do escritor por parte da família Roldán foram quem instigaram a detenção e o assassinato de Lorca.

Entre as origens dos desentendimentos estão as distribuições de terras compradas em sociedade, a homofobia e as diferentes tendências e ambições políticas nos alvores da Guerra Civil espanhola (1936-1939), já que os Lorca eram republicanos e os Roldán partidários do movimento de extrema-direita Acção Popular. Tais circunstâncias se agravaram quando García Lorca publicou em 1936 "A casa de Bernarda Alba", obra na qual, segundo Barrachina, o poeta destila seu veneno contra as famílias brigadas em uma espécie de "vingança pessoal". Com o golpe militar de 1936 que deu o início à Guerra Civil espanhola, essas pessoas aproveitaram "para acertar contas pessoais", segundo Barrachina.

Todas essas revelações estão documentadas no filme, inclusive a de que José Luís Trescastro Medina, um dos autores materiais do assassinato, era o marido de uma prima distante do pai do poeta. "Foi quem, depois do assassinato, contou que havia introduzido duas balas no ânus de Lorca pela sua homossexualidade", disse Ian Gibson, um dos historiadores que investigou o episódio mais profundamente.

Segundo o filme, após o golpe de Estado de Franco, o governador militar de Granada encarregou os Roldán da formação de esquadras negras para dizimar a população da região, e os primos de García Lorca aproveitaram a circunstância para matar o poeta. O documentário também considera que a homofobia no ambiente político também foi uma "das causas da morte" do autor de "Poeta em Nova York ", segundo Ruiz Barrachina.

Cemitério (Europa, ditadura cultural)

29.03.22 | Manuel

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Iugoslávia, Iraque, Líbia, Síria, Afeganistão. São apenas os nomes das últimas vítimas dos EUA, cuja história de invasões, intervenções militares e golpes encheria várias páginas. O gigante americano vive da guerra desde sua fundação, e não se tornou exatamente mais escrupuloso quando a queda da União Soviética pôs fim ao mundo bipolar e inaugurou o unilateral, ou seja, a impunidade absoluta. Se tropeçou economicamente, inventou conflitos ou os enlouqueceu para conquistar mercados e prejudicar a concorrência; se ele tropeçasse ideologicamente, alguém puxaria a doutrina do choque e desviou a atenção dos cidadãos cada vez mais precários do Ocidente, que continua adicionando milhões de pobres aos milhares de milhões da conta global. Ninguém poderia detê-lo. A China não estava preparada e, quanto à Rússia, passava de humilhação em humilhação à medida que a OTAN se aproximava de suas fronteiras, rompendo o compromisso que havia alcançado com os liquidatários da URSS.

Esse é o contexto e, em grande medida, o processo da guerra na Ucrânia. Durante anos, Moscou se limitou a pedir que seu vizinho permaneça neutro, que os direitos das repúblicas do Donbass sejam respeitados e que a soberania russa sobre a Crimeia seja reconhecida. Nada que qualquer nação em circunstâncias semelhantes não peça; nada excessivo, em qualquer caso; nada aceitável para os EUA, que precisavam apertar a corda porque não está em jogo outra colônia no Leste de um continente estrangeiro, mas a manutenção de sua hegemonia. Desse ponto de vista, a reação final da Rússia não foi importante. As bombas não cairiam sobre Washington; mas os benefícios, sim e, quando for alcançado o inevitável acordo de qualquer confronto entre as potências nucleares, terá roubado mais terreno ao seu refém mais lucrativo, a UE. Felizmente, não estamos em 1914; ética e lei na boca, repetindo propaganda televisiva em defesa do que um certo Eisenhower definiu como "o complexo militar-industrial". Infelizmente, desta vez não há movimento revolucionário que possa aproveitar a brecha nos confrontos entre os blocos; a esquerda europeia cuidou disso.

Agora, quem atribui a impunidade dos EUA às armas esquece o fator principal: o controle dos media, responsáveis por justificar suas aventuras, impor a narrativa mais conveniente (armas de destruição em massa, direitos humanos etc.) eles têm o volume do milhão de mortes que causou no Iraque (a maioria, civis). Afinal, estamos em sociedades mediáticas, determinadas pela soma do espetáculo informativo e os 11 princípios de propaganda de Joseph Goebbels. Mas o grau de uniformidade que estamos vendo em relação à guerra na Ucrânia, e que já estava presente na reação fundamentalista à covid, seria inviável sem o que me levou a escrever estas linhas hoje: uma repressão contínua e crescente do pensamento crítico, que transformou a Europa numa ditadura cultural onde tudo o que discute o discurso sistémico é reprimido ou excluído. O mal não está apenas nos media. Mesmo contando com um aparato de propaganda tão formidável quanto os altos funcionários da imprensa e da televisão; mesmo com um sistema educacional destinado a formar viciados na máquina, é preciso algo mais para que uma população tão castigada invariavelmente se junte à onda de seus exploradores diretos.

Há alguns dias, brincou que, se Valle-Inclán estivesse vivo hoje, reverteria uma de suas frases mais famosas e a deixaria assim: “A Europa é uma deformação grotesca da civilização espanhola”, ou seja, do grotesco. O conflito na Ucrânia terminará, como todos eles; o poder fará outras armadilhas, e a maioria viverá cada dia pior, enganada com tudo o que toca, agarrada à doença da cultura pequeno-burguesa que nega a verdadeira guerra, a luta de classes; mas há caminhos que são abismos: quando você chega ao ponto de banir autores e cineastas russos (Dostoiévski, Tarkovski, em suma) de cinematecas e universidades, você vai além do ponto sem volta. O velho continente das artes e das letras quer ser um cemitério intelectual. Você terá ocasião de se arrepender.

por Jesus Gomez Gutierrez 

em https://liberacion.cl/2022/03/28/cementerio/

Ucrânia. Impunidade, violência de rua e violência institucional

29.03.22 | Manuel

 

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 Situações extremas, com a guerra como exemplo claro, apresentam a oportunidade para todos os tipos de abusos que, enterrados em notícias mais contundentes, passam despercebidos de uma forma que não passariam em tempos de paz. Essa ideia é aplicável tanto às autoridades oficiais quanto à vingança contra grupos demonizados que se encontram em uma posição ainda mais vulnerável. O caos associado à guerra facilita não apenas saques e outros tipos de criminalidade, mas também abusos contra pessoas que, em minoria, não podem enfrentar grupos de vigilantes.

No caso da Ucrânia após o início da intervenção russa, quando o governo entregou armas a quem as quisesse portar, acrescentando assim mais uma ameaça a um contexto já violento, vários casos de linchamento têm-se repetido nos últimos dias. Pessoas acusadas de saques, de "colaborar com o agressor" ou simplesmente de serem "pró-Rússia", rótulo válido para qualquer crime de pensamento, são amarradas a árvores ou placas de trânsito em todo o país em vídeos em que os próprios agressores se gabam de Abuso. Centenas de civis, às vezes até crianças, foram submetidos a esses abusos, muitas vezes seminus, por grupos paramilitares com absoluta impunidade.

Em declarações coletadas pelo meio de comunicação ucraniano Strana, o vice-ministro do Interior, Vadim Denisenko, disse na segunda-feira que não considera que "amarrar e expor um saqueador possa ser considerado selvagem em tempos de guerra". Denisenko também admitiu que a Polícia Nacional não tem capacidade para chegar a tudo. “Qualquer saqueador precisa entender que receberá o que merece de qualquer maneira. Ele será primeiro amarrado a um posto e depois preso por dez anos. Essas ações têm um efeito muito maior sobre os saqueadores do que a ameaça de punição criminal: eles entendem que a punição será aqui e agora”, explicou Denisenko, apoiando explicitamente a justiça vigilante, a punição aqui e agora de homens, mulheres e crianças sem capacidade ... alguns para se defender.

No nível estadual, a guerra proporcionou uma oportunidade inestimável para aprofundar as tendências que já existiam desde a vitória do Euromaidan. O golpe de estado significou o desaparecimento do Partido das Regiões, que foi reorganizado em um Bloco de Oposição que depois se dividiu novamente. Soma-se a isso a demonização imediata do Partido Comunista, que foi finalmente banido em 2015 sob o pretexto da chamada lei de descomunização, que supostamente pretendia criminalizar tanto o nazismo quanto o comunismo. Na prática, essa lei tem sido usada para criminalizar partidos de tendência comunista - não apenas o Partido Comunista, mas outros partidos comunistas menores, mas com implantação local como Borotba - e com eles todos os símbolos comunistas. Enquanto até a bandeira da Vitória teve que ser modificada para retirar o martelo e a foice e assim evitar as multas implicadas pela "propaganda do regime comunista totalitário", nem os partidos fascistas como o Svoboda, nem aqueles que carregam símbolos de inspiração nazistas como o regimento Azov foram prejudicados em suas atividades.

A guerra serviu para aprofundar um trabalho de demonização e proibição dos partidos de oposição e dos media. Ao contrário de Poroshenko, que não conseguiu forçar o estado de emergência por meio de uma provocação no Estreito de Kerch, Zelensky agora tem essa oportunidade. Em sua presidência antes do início da intervenção russa -embora com o país sempre em guerra-, Zelensky já havia abusado de seus poderes executivos e banido numerosos meios de comunicação de oposição ou ligados a grupos políticos opostos. Agora, escondido atrás da situação política e militar, o presidente ucraniano, forte candidato ao Prêmio Nobel da Paz e elogiado na imprensa mundial como o líder de uma democracia que luta contra uma autocracia, anunciou a "unificação da política de informação" através da "combinação de todos os canais de notícias da televisão nacional em uma única plataforma de informação para comunicação estratégica 24 horas por dia". Desde que Zelensky chegou ao poder, a frente de informação tem sido uma prioridade no mesmo nível da frente militar, uma importância que aumentará à medida que as dificuldades de abastecimento e a falta de reservas afetarem o Exército ucraniano.

Além disso, em um discurso em que Zelensky apelou às mães russas para que parassem a guerra e ao Estado suíço para requisitar as propriedades dos oligarcas russos, o presidente ucraniano também anunciou a proibição das atividades de onze partidos políticos devido a seus "vínculos" . com a Rússia”, real ou imaginário. “Todo mundo tem que cuidar dos interesses do Estado, os interesses da Ucrânia. Porque é para nós. Porque é para o bem da vida”, argumentou Zelensky. Entre os partidos cujas atividades estão suspensas enquanto o estado de emergência é prorrogado está a Plataforma de Oposição pela Vida, partido de Viktor Medvedchuk, que há meses lidera as pesquisas de intenção de voto e cujo líder está sendo acusado de traição em um caso politicamente fabricado. Também na lista estão o Bloco de Oposição, o Partido Sharii, Nashi, Solidariedade, Derjava, o Bloco Volodymyr Saldo, a União das Forças de Esquerda, a Oposição de Esquerda, o Partido Socialista da Ucrânia e o Partido Socialista Progressista da Ucrânia. A maioria dos partidos com representação institucional já havia suspendido suas atividades políticas e fechado com o Governo ou se dedicando à prestação de ajuda humanitária. Alguns deles estão ligados a meios de comunicação há muito banidos e outros são os poucos partidos de esquerda existentes, com pouca presença e que dificilmente podem ser uma ameaça em um país que baniu o principal partido dessa tendência, deixando uma parte do eleitorado sem representação política possível. A proibição tem o aval da União Europeia, que a justificou. Em 2015,

Às proibições devemos acrescentar as inúmeras prisões que ocorreram nestes dias. Nos primeiros dias da operação militar russa, os movimentos comunistas denunciaram a detenção pela SBU dos gêmeos Kononovich, membros de movimentos comunistas e antifascistas. Em 11 de março, Elena Vyacheslavova, filha de Mikhail Vyacheslavov, vítima do massacre de 2 de maio em Odessa, foi presa. No sábado, a prisão da conhecida defensora dos direitos humanos Olena Berezhnaya foi relatada na cidade de Kiev. No mesmo dia, o conhecido jornalista do jornal Timer foi preso em Odessa.Yuri Tkatchev. “Eles vieram por mim. Foi um prazer conversar com você”, publicou em seu canal no Telegram. Tkatchev foi despido durante a busca, na qual os agentes da SBU colocaram, segundo sua esposa, uma granada e explosivos que serviram de justificativa para sua prisão. Como foi apurado, o jornalista, uma das principais fontes de informação sobre o massacre de 2 de maio em Odessa, é acusado de traição e impedimento das atividades do Exército ucraniano.

Fonte: Slavyangrad 

https://www.resumenlatinoamericano.org/2022/03/27/ucrania-impunidad-violencia-callejera-y-violencia-institucional/

ARTE POÉTICA

29.03.22 | Manuel

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Entre sombra e espaço, guarnições e donzelas,
com um coração singular e fatídicos sonhos,
precipitadamente pálido, envelhecida a fronte
e com um luto de viúvo furioso por cada dia de vida,
para cada água invisível que sonolento bebo,
e de todo o ruído que recebo a tremel;
tenho a mesma sede ausente e a mesma febre fria,
um ouvido que nasce, uma angústia indirecta,
como se chegassem fantasmas ou ladrões,
e numa casca de extensão fixa e profunda,
como um servo humilhado, como um sino roufenho,
como um espelho velho, como um odor de casa solitária
onde os hóspedes entram de noite perdidamente bêbedos,
e há um odor de roupa atirada ao chão e uma ausência de flores
-possivelmente de outro modo ainda menos melancólico,
mas, na verdade, de súbito, o vento que me açoita o peito,
as noites de substância infinita caídas no meu quarto,
o rumor de um dia que arde com sacrifício,
pedem-me o profético que há em mim, com melancolia
e um golpe de objectos, que chamam sem ter resposta
há, e um movimento sem tréguas, e um nome confuso.
(1935)

*

PAZ, MAS NÃO A SUA

Paz no Vietname! Olha o que deixaste
dentro dessa paz de sepultura
cheia de mortos por ti calcinados !

Com um raio de eterna queimadura
perguntarão por ti os enterrados.
Nixon, encontrar-te-ão essas mãos duras

da revolução por sobre aterra
para humilhar tua pálida figura:

será o Vietname que te ganhou a guerra.

Nixon, não creio em tua imposta paz!
Tua invasão foi dizimada, foi vencida
quando já não podias perder mais.

E quando teus bombardeiros homicidas
caíam como moscas abatidas
pelo disparar da liberdade!

Esta não foi tua paz, Nixon sangrento!
Nixon, sanguinolento Presidente:
é tua medalha de remordimento !

É a paz dos povos inocentes
que tu entregaste ao fogo e ao tormento!
E do Vietname a paz desfigurada

pelos teus papéis e embaixadores.
É a paz de uma terra dessangrada
e que encheu o mundo com seus louros

que brotaram do sangue derramado!

É a vitória do Ho Chi Minh ausente
A que obrigou teu punho ensanguentado
A confirmar a paz desses valentes.
(1973)

Pablo Neruda

(“Antologia”. Relógio d'Água. 1998)

Nasceu a 12 de Julho de 1904 em Parral, no sul do Chile, com o nome de baptismo de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, tendo adoptado em 1920 como pseudónimo o nome do grande escritor checo Neruda. Pablo Neruda morre em 23 de Setembro de 1973 em Santiago. Matilde Urrutia, em entrevista concedida, disse que a causa da sua morte não foi o cancro de que sofria, mas o tremendo abalo que lhe causou o golpe perpetrado sobre o Governo de Unidade Popular e o povo do Chile.

 «A minha poesia e a minha vida decorreram como um rio americano, como uma torrente de águas do Chile, nascidas na profundidade secreta das montanhas austrais, dirigindo sem cessar o movimento das suas correntes para uma saída marinha. A minha poesia não repeliu nada do que pôde trazer no seu caudal; aceitou a paixão, explicou o mistério, e abriu passagem entre os corações do povo. Coube-me sofrer e lutar, amar e cantar; couberam-me, na partilha do mundo, o triunfo e a derrota, provei o gosto do pão e o do sangue. Que mais quer um poeta?»

«Confieso que he vivido»

O governo de “combate”, mas contra quem?

25.03.22 | Manuel

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O governo, diz Costa, é um governo de “combate” e com “forte núcleo político”, e é um governo “novo” e com “mais mulheres do que homens”. E antes de entrar em vigor, o actual governo ainda em funções, governando por decreto, prolongou a “situação de alerta” até 18 de Abril. Pelo histórico dos últimos dois anos, o governo foi sempre um governo de combate, menos de combate ao vírus e mais de combate às liberdades, direitos e garantias do povo português: no passado dia 18 fez dois anos em que foi instaurado o primeiro estado de excepção, foram 218 dias, que o PR Marcelo diz ter sido a “decisão mais difícil” que teve de tomar; se foi, não se notou muito. No início desta nova etapa, Costa ganha por 1-0 sobre Marcelo, tal como o corneado, este foi o último a saber os nomes propostos para o dito “novo” governo. Terá “registado” o facto, o quer dizer que a vingança não tardará – a coisa promete.

Pelos nomes dos ministros, fica-se com a ideia nítida de que este governo é mais do mesmo: as figuras de confiança absoluta do chefe ficaram, as que surgem são funcionários públicos que jamais deixarão de respeitar a hierarquia. Formam um núcleo político de fazer cumprir as ordens que venham de cima, seja do chefe directo ou seja de Bruxelas ou de outra entidade que impõe as regras no länder à beira mar plantado. A promoção do derrotado nas eleições para a Câmara de Lisboa a ministro das Finanças, não se lhe conhecendo qualquer competência específica na área, mostra bem que a figura irá simplesmente exercer as funções de escriturário ou de guarda-livros das contas nacionais segundo as regras ditadas pelo Banco Central Europeu e cuja sucursal no país é o Banco de Portugal, gerido pelo antigo “Ronaldo” das Finanças, que já disse que os salários não irão acompanhar a subida da inflação.

Outra figura, com tacho melhorado, é a funcionária pública e ex-diretora do Instituto da Defesa Nacional, a quem foi incumbida a tarefa da “defesa nacional” e que é referenciada como a primeira mulher no cargo, como tivesse alguma coisa a ver com a emancipação da mulher trabalhadora. A mulher, talvez numa de mostrar que não fica atrás de qualquer homem na manifestação da testosterona, chegara a afirmar, antes da indigitação, de que “é vital o processo de modernização das nossas forças armadas", para o país alinhar no belicismo já anunciado e posto em marcha pela União Europeia a toque de caixa da potência imperialista decadente do outro lado do Atlântico. Mais recentemente, já usando a linguagem dúplice própria da hipocrisia diplomática, fez a emenda para: a paz ″deve ser referencial último e inalienável de qualquer ação estratégica″. A guerra da Ucrânia irá substituir a pandemia para a justificação de toda e qualquer política lesiva dos interesses do povo português. Em breve, as verbas para o rearmamento duplicarão, chegando aos 2% do PIB impostos pela Nato/UE, a Saúde e a Educação irão sofrer.

Ainda se poderá falar dos ministros que ficaram e um deles, talvez o mais falado nos tempos recentes da pandemia, é a habilidosa e arrebitada ministra da Saúde que irá acabar a tarefa de que foi encarregue desde o primeiro minuto da primeira vez que assumiu o cargo: a privatização do SNS. A continuação desta comissária política, cuja cara não é de particular agrado de alguns médicos devido a arrogância manifestada, mostra bem que o lóbi da saúde privada é bem forte e continua bem representado no seio do governo. Aliás, os ajudantes da ministra parecem ser ainda piores, não vá a mulher deixar-se seduzir pelos benefícios de um forte sector público de saúde. O melhor indício de que a privatização será processo para finalizar é o facto de que no início do mandato da figura existiam 600 mil cidadãos sem médico de família e neste momento o número ter “apenas” duplicado. Mas há quem dê uma pequena ajuda: “Médicos querem continuar a apostar na telemedicina”. A covid-19 deu o mote e o vírus da gripe H3N2 já aí está, infectando toda a gente, incluindo os jovens – terão mudado o chip do teste! Dá jeito para manter o negócio e o medo.

Ainda poderíamos falar do ministro da Cultura, um serviçal que foi recompensado e por essa razão não poderá fugir da linha, ou do ministro da Educação que antes de o ser já o era, como a pescada, devido à inutilidade da triste figura que foi substituir. Em relação aos restantes, o perfil é de abanarem sempre a cabeça de cima para baixo e de alguns nem se notará a existência e, à semelhança dos que saíram, muitos portugueses nem chegarão a decorar o nome. A missão está há muito definida, Bruxelas irá dizer como é: novo "cheque" de 1,16 mil milhões foi aprovado, o guito chegará em Abril. Alguém o irá pagar e sabemos quem irá ser, os do costume e com língua de palmo.

Com a ameaça do alastramento da guerra e da continuação da pandemia, agora em baixo perfil, a política de intimidação sobre o povo português e os trabalhadores, em particular, irá manter-se e até intensificar-se. A razão é simples, a crise económica irá agravar-se de forma inaudita apesar de todos os que nos desgovernam a neguem diariamente. O endividamento da economia aumentou para 771,3 mil milhões de euros, dívida pública e privada e sem os bancos; os juros de nova dívida de Portugal duplicam com efeito BCE; o Banco de Portugal revê em baixa o crescimento económico, menos 0,9 pontos, e duplica a inflação, que irá ficar bem além dos 4% estimados. Claro que agora a guerra terá as costas largas, como se a crise não fosse bem anterior quer à guerra quer à pandemia. Os tempos que se avizinham serão sombrios; mais, serão de tempestade.

Em clima de pânico, a nossa inefável burguesia desde há muito e repetidamente que tem vindo a apresentar o caderno de encargos para a salvação: CIP quer regresso imediato do lay-off simplificado e desafia Estado a endividar-se. É transferência para o domínio público da dívida privada de muitas empresas, umas por má gestão, como aconteceu com a empresa do tão reivindicativo chefe da CIP, outras pela razão singela de que nunca conseguirão aguentar a competição com outras economias que, neste mercado aberto e sem leis (como é próprio do capitalismo), conseguem vender mais barato. E a situação irá piorar bastante atendendo somente ao facto de o gás russo ser substituído pelo americano, mais caro e produzido com custos ambientais elevadíssimos, o que não deixa de ser uma contradição neste tempo de “descarbonização” do planeta e de “transição energética”. É ver o corrupio de lóbis no acesso ao pote dos dinheiros do PRR e na chantagem do encerramento das empresas e do subsequente desemprego em massa, com a desculpa do já elevado preço da energia e dos combustíveis, não lhes passando pela cabeça o que está ainda para vir.

A nossa burguesia ou empresariado, o que lhe quiserem chamar, também não deixa de ser cauteloso, estando bem lembrado do que poderia ter acontecido no Verão de 1975: os diversos líderes associativos dos setores do comércio alertam, um garante que "não haverá rutura de produtos", não diz que a subida artificial dos preços já está a levar ao açambarcamento de alguns produtos, o outro abre a porta à "instabilidade social". E é para prevenir ou abafar, caso ela irrompa antes do tempo previsto, que o governo acentuou o discurso belicista que só na aparência é que é dirigido contra a Rússia e as ameaças contra a segurança ou a integridade dos países da União Europeia ou de toda ela no seu conjunto. A verdadeira ameaça vem dos trabalhadores e do povo e a existência de umas forças armadas mercenárias e bem equipadas será sempre uma garantia no caso do aparelho policial falhar. Aliás, a história da repressão em Portugal é a história do uso da tropa em serviço de polícia contra o povo. Há um livrinho interessante, cuja leitura aconselhamos vivamente, escrito pelo investigador universitário espanhol Diego Palacios Cerezales, “Portugal à coronhada – protesto popular e ordem pública nos séculos XIX e XX”, que bem nos relata a criação e evolução das polícias na consolidação do estado e da repressão do povo português.

Há quem conclame ao recrutamento obrigatório (conscrição) dos “nossos filhos têm de estar preparados para um dia combaterem pela UE”; o PR Marcelo, que nem sequer cumpriu o serviço militar por ser filho de uma das famílias mais poderosas da oligarquia fascista, considera que "agravamento da agressão" à Ucrânia terá "resposta correspondente da NATO”; Costa reitera que Portugal tem forças “em estado de prontidão” para intervir na força de reação rápida da NATO e que “não se defende a paz com manifestações”; militares portugueses partem para a Roménia em Abril em "missão de dissuasão"; GNR assume Comando de Força de Reserva Europeia no Kosovo; e até o Conselho de Estado condenou unanimemente a agressão da Federação Russa. Gente que se dispõe a subordinar-se ao império decadente, sob a alçada directa do general norte-americano Tod D. Wolters, o Comandante Supremo das forças da Nato. Querem fazer dos filhos do povo carne para canhão a troco da traição, dos louvores e das comissões.

O governo de maioria absoluta que já o era (de facto) antes de o ser (de jure) vai ser um governo de combate, mas contra o povo português. A resposta terá de ser a da guerra do povo contra a guerra inter-imperialista e contra os serviçais locais.

A crise académica de 1962 ou a revolta dos filhos-família contra o fascismo

23.03.22 | Manuel

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A autonomia universitária, atropelada com violência inaudita, surge agora como causa capaz de unificar a luta. A brutalidade da polícia contra os estudantes deixa as famílias traumatizadas. Tal como em 1956, são os meninos das classes altas quem sente a mão pesada do regime.
 
Na reunião fala-se em luto académico, mas não sobra tempo para grandes decisões. A polícia invade as instalações e obriga os alunos a dispersarem.
 
À noite, na associação de Económicas, no Quelhas, a RIA decide o luto académico, eufemismo para greve às aulas. Depois de uma consulta aos representantes das várias faculdades, parece haver força para avançar. Mesmo nos casos mais problemáticos, como a Faculdade de Letras, onde a presença maioritária de mulheres torna as coisas aparentemente mais difíceis.
 
O regresso às aulas marca a paralização da Universidade. Para tentar uma condenação unânime, decreta-se o luto académico com base na defesa dos valores corporativos da Universidade e da sua autonomia. Piquetes de estudantes, à porta das faculdades, explicam a situação aos colegas. Os que normalmente mostram total desinteresse pelas questões associativas sentem-se atingidos e solidarizam-se com o protesto. E lançado o comunicado zero que dá conta dos acontecimentos de sábado e apela à união: «Colega, o estudante está de luto. Protesta contra o vandalismo polícia até que se realize o Dia do Estudante. Até que seja reaberta a Cantina Universitária. Até que sejam libertos os estudantes presos. Continua ainda mais unido aos teus dirigentes.»
Nos jornais é divulgada uma nota oficiosa do Ministério da Educação: «Elementos de acção declaradamente subversiva tentaram desviar das actividades escolares alguns estudantes universitários, liceais e até das escolas do magistério primário e colégios particulares, com o pretexto de reuniões, colóquios e convívios a efectivar em Lisboa, nos dias 24, 25 e 26».
 
Não obstante as insinuações, o movimento junta aos estudantes alguns professores, como Lindley Cintra, Maria de Lurdes Belchior, Castro Mendes, Rui de Oliveira e Oliveira Marques. O próprio reitor não hostiliza os estudantes que, por sua vez, o apresentam como mais uma vítima dos ataques à autonomia universitária.
 
A grande proximidade entre três importantes faculdades – Letras, Medicina e Direito – resulta num pólo aglutinador das forças estudantis. Aberta a crise, as várias associações e o próprio movimento têm um comando unificado, a RIA, onde são geridas as diversas posições e conciliadas, a custo de longas horas de vigília, as diferentes tendências políticas. Outro aspecto inovador, em Lisboa, são os plenários. O Estádio Universitário é o cenário escolhido e o tempo primaveril convida à participação.
 
As águas continuam turvas na capital. No dia 27, a imprensa divulga nova nota do Ministério da Educação onde se apresentam as razões da proibição do Dia do Estudante. Por um lado, os estudantes solicitaram autorização para o evento apenas com uns dias de antecedência e sem apresentarem o programa. Por outro, a intervenção da polícia ficou a dever-se ao conhecimento antecipado de «planos perturbadores da vida escolar e da própria ordem pública».
 
Os estudantes contra-atacam. É o início da batalha dos comunicados. A equipa de redactores, liderada por Manuel Lucena em muitas noites de insónia forçada, não tem mãos a medir. Pesam-se as palavras e as estratégias, estudam-se ofensivas e respostas.
 
É através de um comunicado que os estudantes respondem às notas oficiosas do ministério: há 20 dias que as intenções de realizar o Dia do Estudante foram dadas a conhecer oficialmente e o ministro foi convidado a participar. Também se refutam as afirmações do programa radiofónico «Rádio Moscovo Não Fala Verdade» onde os estudantes são acusados de serem «arrastados por profissionais comunistas pagos por Moscovo».
 
A pressão causada pela paralização da universidade e pela indignação pública obriga Lopes de Almeida a receber os estudantes. José Vasconcelos Abreu, presidente da Associação de Direito, e Eurico de Figueiredo vão negociar com o ministro uma nova data para a realização do Dia do Estudante.
 
À noite, em virtude da aparente abertura ao diálogo manifestada pelo ministro, fica decidido levantar o luto académico. Tanto mais que acabam de ser libertados os estudantes presos no sábado e há jantar de confraternização na cantina, entretanto reaberta.
 
Os ânimos estão mais serenos, apesar de 28 de Março amanhece com a Cidade Universitária pejada de panfletos da organização da extrema-direita Movimento Jovem Portugal, acusando os dirigentes associativos de traição à pátria e comunismo.
 
Nova reunião com o ministro estabelece a realização do Dia do Estudante para 7 e 8 de Abril. Sem perdas de tempo, nessa tarde entregue aos reitores o programa das celebrações.
 
O último dia do mês é apaziguador. Marcello Caetano comparece perante Lopes de Almeida que lhe pede que permaneça no cargo de reitor. Aceite o pedido, reitor e ministro celebram juntos o décimo aniversário do CDUL.
 
O rescaldo do 24 de Março também não é pacífico em Coimbra. Depois da ida atribulada a Lisboa, os dirigentes da Associação Académica expõem ao reitor Braga da Cruz a sua indignação pelo sucedido. A recepção é pouco cordial. Alguns dos estudantes que distribuem o comunicado nº 0 das associações lisboetas são presos e, ainda que libertados logo a seguir, a manobra não passa despercebida. Está lançada a chama. Nessa noite um plenário participado por quase dois mil estudantes decide solidarizar-se com os colegas alfacinhas decretando o luto académico.
 
Dispostos a mostrar a sua força, os estudantes trocam o almoço do dia 27 por uma concentração em frente da reitoria. Braga da Cruz, não só aceita recebê-los nessa tarde como abranda um pouco os traços da sua autoridade férrea e pede desculpas pelo comportamento agressivo do dia anterior. E acena com a possibilidade de ficar sem efeito o processo mandado instaurar pelo Ministério à AAC em virtude do Encontro Nacional de Estudantes. Tal como em Lisboa, é levantado o luto, mas na manhã seguinte sabe-se que corre na Polícia Judiciária um processo contra a Académica por causa do Encontro Nacional de Estudantes. O reitor vestia afinal a pele do cordeiro.
 
Outro episódio tinha marcado o final de Março. O Via Latina, ex-líbris da imprensa universitária coimbrã, vê a sua publicação suspensa num folhetim rocambolesco. Afãs tado da direcção do jornal pela censura, que não aprova o seu nome, José Carlos Vasconcelos fora substituído por um bom aluno escolhido à pressa. António Avelãs Nunes é pois o director da equipa que quer fazer do Via Latina um semanário quando uma manobra atrevida acaba por lhe calar as notícias.
 
Esperando que a comissão de censura mantenha nas mesmas funções um coronel quase cego, José Carlos Vasconcelos convenceu os colegas a incluírem a notícia da realização do Dia do Estudante na secção da última página, dedicada a pequenos assuntos, a Tuna, o Orfeão e afins. Para o estratagema ter êxito, pedem ao gráfico de serviço, Eduardo Batarda, que pagine a secção «Via Férrea» com um corpo de letra ainda mais pequeno que o habitual. No fim de um arrazoado imenso de notícias são escondidas as palavras que anunciam o Dia do Estudante para 24 de Março. Posto o carimbo de «visado» na secção, os estudantes levam mais longe a ousadia e puxam para a primeira página a notícia que os olhos cansados do coronel velhinho não conseguiram ler. O golpe sai caro: a edição seguinte é ainda sujeita a provas, mas o jornal é encerrado.
 
(“Grandes Planos”, de Gabriela Lourenço, Jorge Costa e Paulo Pena. Âncora Editora/Associação 25 de Abril. Lisboa, 2001)

Ora até que enfim..., perfeitamente...

21.03.22 | Manuel

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Ora até que enfim..., perfeitamente...

Cá está ela!

Tenho a loucura exactamente na cabeça.

 

Meu coração estoirou como uma bomba de pataco,

E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...

 

Graças a Deus que estou doido!

Que tudo quanto dei me voltou em lixo,

E, como cuspo atirado ao vento,

Me dispersou pela cara livre!

Que tudo quanto fui se me atou aos pés,

Como a serapilheira para embrulhar coisa nenhuma!

Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta

E me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada!

Graças a Deus, porque, como na bebedeira,

Isto é uma solução.

Arre, encontrei uma solução, e foi preciso o estômago!

Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos!

 

Poesia transcendental, já a fiz também!

Grandes raptos líricos, também já por cá passaram!

A organização de poemas relativos à vastidão de cada assunto resolvido em vários —

Também não é novidade.

Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...

Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, [comia-o.

 

Com esforço, mas era para bom fim.

Ao menos era para um fim.

E assim como sou não tenho nem fim nem vida...

 

(Poesias de Álvaro de Campos)

Os falsos pacifistas e a guerra do povo à guerra inter-imperialista

21.03.22 | Manuel

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Em Portugal, é mais que patético é ver uma pequena-burguesia ciosa do seu modo de vida, sempre com a boca cheia de liberdade e de direitos dos cidadãos, mas que, quando foi da campanha da pandemia, enfileirou pela política do medo imposta pelos governos da burguesia e pelos interesses dos grande grupos económicos ligados à indústria farmacêutica. E, presentemente, na questão da guerra ou queda-se na posição do “nim”, “de todas as guerras são más e todos são responsáveis”, o que na prática significa a desculpabilização dos verdadeiros responsáveis da guerra; ou, então, coloca-se abertamente ao lado do imperialismo americano, o suserano da Europa, e principal opositor a uma Rússia capitalista e também imperialista; ou seja, a nossa pacifista classe média perde a vergonha (se alguma vez a teve!) e alinha pelo partido da guerra. Aliás, tem sido esta a posição que os partidos de cariz social-democrata assumem ao longo dos tempos, são mais patriotas (e papistas) que a sua burguesia. Claro, sempre com a boca cheia de “liberdade” e “democracia”, mas para eles que, agora assustados, vêem o seu mundo a desmoronar-se. É gente que tem mais medo da revolução que dos malefícios do capitalismo e da velha sociedade em desagregação. 

Com o desenrolar da guerra, iremos assistir a manifestações mais ou menos explícitas de nacionalismos burgueses, de chauvinismos por parte não só dos partidos de direita mas de igual modo de partidos ditos de “esquerda”, alguns deles apoiando abertamente a intervenção imperialista (o BE não se cansa de apoiar as agressões imperialistas na Líbia, na Venezuela com a tentativa de golpe de estado, e agora na Ucrânia), para além dos governos onde se assentam partidos social-democratas tipo PS ou PSOE. São partidos que defendem o capitalismo e a colaboração de classes sob a bandeira da luta dos “países democráticos e livres” contra as “ditaduras do leste e do oriente” e contra o “fascista Putin”, muito ao gosto de uma certa opinião pública, em parte imbecilizada pela televisão (90% dos portugueses vêm televisão e 60% não lêem um livro sequer, segundo inquérito recente), e se arvoram nos porta estandartes do pacifismo. Ao lado destes partidos, observam-se umas flores de lapela, ex-maoistas e ex-trotskistas, alguns fora da política activa, e que no seu ardor anti-guerra enfiam no mesmo saco os responsáveis pela guerra e as vítimas numa equidistância desarmante e paralisadora da luta dos trabalhadores. Alguns deles, talvez pela vaidade ou personalidade histriónica, nem se importam de ter abertas as páginas dos media do discurso único, com o intuito de vez em quando mostrarem que até há liberdade de expressão no aparelho de propaganda que são todos os media corporativos. Também não é por acaso que a burguesia tem encarregado alguns desses cristão novos da tarefa de escrever alguns trechos da história contemporânea, tipo cronistas do reino.

Ao contrário das posições desta pequena-burguesia geralmente bem instalada e beneficiando das delícias da democracia burguesa, a posição dos povos e dos trabalhadores é mover a guerra contra a guerra imperialista. É preciso romper com a legalidade burguesa, e não respeitá-la, a luta de classe deve ser intensificada e a questão da pátria deve ser entendida como a pátria de quem trabalha. A guerra imperialista tem o condão de mostrar que os operários não têm pátria e reforçar o espírito do internacionalismo, porque o inimigo é comum: o capitalismo e a burguesia em cada país. Tem-se assistido às tentativas por parte de Bruxelas de fomentar os regionalismos na Europa porque essa é uma via de melhor penetração do grande capital financeiro para entrar em cada um dos países.  Como tem sido clara e evidente a política imposta pela Alemanha de retirar soberania económica, monetária e até política dos diversos estados que ainda compõem a União Europeia, transformando-os em simples länders do IV Reich; mas, por outro lado, será meio caminho andado para a união dos povos contra o grande capital e as elites europeias, incluindo a alemã. O capitalismo na sua fase imperialista irá, como já está a acontecer, destruir a velha nação, entidade criada pela burguesia como forma de dar livres asas ao desenvolvimento do capitalismo. À semelhança da livre concorrência que, tendo sido necessária à evolução do capitalismo, é agora destruída pelo próprio nesta fase monopolistas e global. Perante a guerra imperialista – enfatizamos – todos os trabalhadoras e povos (incluindo o povo ucraniano) devem  erguer a bandeira da guerra civil revolucionária e acabar com o capitalismo e com a burguesia. 

Em Portugal devemos exigir a saída do país da Nato e dizer não à entrada de Portugal na guerra, apesar das forças armadas nacionais serem constituídas, por enquanto, por mercenários. 

Pelo o internacionalismo proletário e Não à guerra inter-imperialista!

NO PAÍS DOS SACANAS

21.03.22 | Manuel

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Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.

Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?

Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência,
a justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.

Jorge de Sena

10/10/1973

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