O 1º de Maio foi instituído em 1889, pelo Congresso Socialista realizado em Paris. A data foi escolhida em homenagem à greve geral que aconteceu no dia 1 de Maio de 1886, em Chicago, o principal centro industrial dos Estados Unidos naquela época.
Milhares de trabalhadores foram às ruas para protestar contra as condições de trabalho desumanas a que eram submetidos e exigir a redução da jornada de trabalho de 13 para 8 horas diárias. Naquele dia, manifestações, meetings , piquetes e discursos movimentaram a cidade. Mas a repressão foi violenta: prisões, feridos e mesmo mortos nos confrontos entre os operários e a polícia.
Em memória dos mártires de Chicago, das reivindicações operárias que nesta cidade se desenvolveram em 1886 e por tudo o que esse dia significou na luta dos trabalhadores pelos seus direitos, servindo de exemplo para o mundo todo, o dia 1º de Maio foi instituído como o Dia Internacional do Trabalho.
Chicago, Maio de 1886
O retrocesso vivido nestes primórdios do século XXI remete-nos directamente aos piores momentos dos primórdios do modo de produção capitalista, quando ainda eram comuns práticas ainda mais selvagens. Não apenas se procurava a extracção da mais-valia através de baixos salários, mas até mesmo a saúde física e mental dos trabalhadores estava comprometida por jornadas que se estendiam até 17 horas diárias, prática comum nas indústrias da Europa e dos Estados Unidos no final do século XVIII e durante o século XIX. Férias, descanso semanal e reformas não existiam. Para se protegerem em momentos difíceis, os trabalhadores inventavam vários tipos de organização – como as caixas de auxílio mútuo, precursoras dos primeiros sindicatos.
Com as primeiras organizações, surgiram também as campanhas e mobilizações reivindicando maiores salários e redução da jornada de trabalho. Greves, nem sempre pacíficas, explodiam por todo o mundo industrializado. Chicago, um dos principais pólos industriais norte-americanos, também era um dos grandes centros sindicais. Duas importantes organizações lideravam os trabalhadores e dirigiam as manifestações em todo o país: a AFL (Federação Americana de Trabalho) e a “Knights of Labor” (Cavaleiros do Trabalho). As organizações, sindicatos e associações que surgiam eram formadas principalmente por trabalhadores de tendências políticas socialistas, anarquistas e social-democratas (comunistas). Em 1886, Chicago foi palco de uma intensa greve operária. À época, Chicago não era apenas o centro da máfia e do crime organizado era também o centro do anarquismo na América do Norte, com importantes jornais operários como o Arbeiter Zeitung e o Verboten , dirigidos respectivamente por August Spies e Michel Schwab.
Como já se tornou praxe, os jornais patronais chamavam os líderes operários de preguiçosos e canalhas que apenas procuravam criar desordens. Um desfile pacífico, constituído por trabalhadores, desempregados e familiares silenciou momentaneamente tais críticas, embora com resultados trágicos a curto prazo. No alto dos edifícios e nas esquinas estava posicionada a repressão policial. A manifestação terminou com um ardente comício.
Manifestações do Primeiro de Maio de 1886
No dia 3, a greve continuava em muitas fábricas. Diante da fábrica McCormick Harvester, a policia disparou contra um grupo de operários, matando seis, deixando 50 feridos e centenas presos, Spies convocou os trabalhadores para uma concentração na tarde do dia 4. O ambiente era de revolta apesar dos líderes pedirem calma.
Os oradores se revezavam: Spies, Parsons e Sam Fieldem, pediram a união e a continuidade do movimento. No final da manifestação um grupo de 180 policiais atacou os manifestantes, espancando-os e espezinhando-os com os cavalos. Uma bomba estourou no meio dos guardas, uns 60 foram feridos e vários morreram. Reforços chegaram e começaram a atirar em todas as direcções. Centenas de pessoas de todas as idades morreram.
A repressão foi aumentando num crescendo sem fim: decretou-se o “estado de sítio” e proibição de sair às ruas. Milhares de trabalhadores foram presos, muitas sedes de sindicatos incendiadas, criminosos e gangsters pagos pelos patrões invadiram casas de trabalhadores, espancando-os e destruindo os seus pertences.
A justiça burguesa levou a julgamento os líderes do movimento, August Spies, Sam Fieldem, Oscar Neeb, Adolph Fischer, Michel Shwab, Louis Lingg e Georg Engel. O julgamento começou dia 21 de Junho e desenrolou-se rapidamente. Provas e testemunhas foram inventadas. A sentença foi lida dia 9 de Outubro, no qual Parsons, Engel, Fischer, Lingg, Spies foram condenados à morte na forca; Fieldem e Schwab, à prisão perpétua e Neeb a quinze anos de prisão.
Spies fez a sua última defesa:
"Se com o nosso enforcamento vocês pensam em destruir o movimento operário – este movimento de milhões de seres humilhados, que sofrem na pobreza e na miséria, esperam a redenção – se esta é sua opinião, enforquem-nos. Aqui terão apagado uma faísca, mas ali e acolá, atrás e na frente de vocês, em todas as partes, as chamas crescerão. É um fogo subterrâneo e vocês não poderão apagá-lo!"
Parsons também fez um discurso:
“Estoira com a tua necessidade e o teu medo de ser escravo; o pão é a liberdade, a liberdade é o pão” (…) “A propriedade das máquinas como privilégio de uns poucos é o que combatemos, o monopólio das mesmas, eis aquilo contra o que lutamos. Nós desejamos que todas as forças da natureza, que todas as forças sociais, que essa força gigantesca, produto do trabalho e da inteligência das gerações passadas, sejam postas à disposição do homem, submetidas ao homem para sempre. Este e não outro é o objectivo do socialismo”.
No dia 11 de Novembro, Spies, Engel, Fischer e Parsons foram levados para o pátio da prisão e executados. Lingg não estava entre eles, pois suicidou-se. Seis anos depois, o governo de Illinois, pressionado pelas ondas de protesto contra a iniquidade do processo, anulou a sentença e libertou os três sobreviventes.
Em 1888 quando a AFL realizou o seu congresso, surgiu a proposta para realizar nova greve geral em 1º de Maio de 1890, a fim de se estender a jornada de 8 horas às zonas que ainda não haviam conquistado.
No centenário do início da Revolução Francesa, em 14 de Julho de 1889, reuniu-se em Paris um congresso operário comunista. Os delegados representavam três milhões de trabalhadores. Esse congresso marca a fundação da Segunda Internacional. Aí, Marx expulsou os anarquistas, acusando-os de ignorantes e de sabotadores do movimento operário.
No Congresso Operário de 1890, o belga Raymond Lavigne apresentou uma proposta de organizar uma grande manifestação internacional, ao mesmo tempo, com data fixa, em todos os países e cidades pela redução da jornada de trabalho para 8 horas e aplicação de outras resoluções do Congresso Internacional. Como nos Estados Unidos já havia sido marcada para o dia 1º de Maio de 1890 uma manifestação similar, manteve-se o dia para todos os países.
No segundo Congresso da Segunda Internacional em Bruxelas, de 16 a 23 de Setembro de 1891, foi feito um balanço do movimento de 1890 e no final desse encontro foi aprovada a resolução histórica: tornar o 1º de Maio como "um dia de festa dos trabalhadores de todos os países, durante o qual os trabalhadores devem manifestar os objectivos comuns de suas reivindicações, bem como sua solidariedade".
O incipiente movimento operário que nascera com a revolução industrial, começava a atentar para a importância da internacionalização da luta dos trabalhadores. O próprio massacre ao movimento grevista de Chicago não foi o primeiro, mas passou a simbolizar a luta pela igualdade, pelo fim da exploração e das injustiças.
Muitos foram os que tombaram na luta por mundo melhor, do massacre de Chicago aos dias de hoje, um longo caminho de lutas históricas foi percorrido. Os tempos actuais são difíceis para os trabalhadores, a nova revolução tecnológica criou uma instabilidade maior, jornadas mais longas com salários mais baixos, cresceu o número de seres humanos capazes de trabalhar, porém para a nova ordem eles são descartáveis. Essa é a modernidade neoliberal, a realidade do século que iniciamos, a distância parece pequena em comparação com a infância do capitalismo, parecemos muito mais próximos dela do que da pseudo racionalidade neoliberal, que muitos ideólogos querem fazer crer.
A realidade nos mostra a face cruel do capital, a produção capitalista continua a fazer apelo ao trabalho infantil, somente na Ásia, seriam 146 milhões nas fábricas, e segundo as Nações Unidas, um milhão de crianças são lançadas no comércio sexual a cada ano!
A situação da classe trabalhadora não é fácil; nesse período houve avanços, mas a nova revolução tecnológica do final do século XX trouxe à tona novamente questões que pareciam adormecidas. Tal qual no final do século XIX, a redução da jornada de trabalho é a principal bandeira do movimento sindical: 35 horas semanais.
*
"Meu Maio"
de Vladimir Maiakovski
A todos
Que saíram às ruas
De corpo-máquina cansado,
A todos
Que imploram feriado
Às costas que a terra extenua
– Primeiro de Maio!
Meu mundo, em primaveras,
Derrete a neve com sol gaio.
Sou operário
– Este é o meu Maio!
Sou camponês – Este é o meu mês.
Sou ferro
– Eis o Maio que eu quero!
Sou terra –
O Maio é minha era!
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Figura: Mártires de Chicago: Parsons, Engel, Spies e Fischer foram enforcados, Lingg (ao centro) suicidou-se na prisão
O fascismo matou nas manifestações e greves de Maio de 1962, a democracia burguesa matou vinte anos depois, em Maio de 1982; ou seja, naquela data em que os operários celebram o seu Dia de Luta Internacionalista pela emancipação do jugo do capital.
José Queirós no JN: «Participei, como cidadão, em várias manifestações do 1º de Maio no centro do Porto nos últimos anos da ditadura. Eram concentrações ilegais, que a Polícia dispersava à força e que a PIDE aproveitava para deter os suspeitos do costume. Os jornais clandestinos queixavam-se depois, e com verdade, da violência da repressão policial. Mas aquilo que testemunhei como jornalista, no mesmo local, oito anos depois do 25 de Abril, na madrugada sangrenta de 30 de Abril para 1 de Maio de 1982, ultrapassou largamente, em violência gratuita e chocante, tudo o que podia recordar da era pré-democrática. A falta de senso político com que as autoridades da época enfrentaram o clima de tensão criado por dirigentes sindicais em competição cega pela representação dos trabalhadores teve o seu corolário numa acção policial totalmente desproporcionada, que se abateu de forma selvagem sobre manifestantes, simples transeuntes (há 25 anos, a Baixa portuense ainda estava viva à noite) e moradores do centro histórico, deixando atrás de si o balanço sangrento de dois jovens mortos a tiro e dezenas de feridos.
As responsabilidades morais pela tragédia não foram difíceis de apontar, à época, por quem olhasse sem preconceitos a disputa em que a UGT e a CGTP se envolveram pelo “território sagrado” da Baixa portuense e podem repartir-se, ainda que em proporções desiguais, por dirigentes das duas centrais e autoridades políticas e administrativas incapazes de fazer prevalecer o diálogo sobre a aposta no confronto. Quanto às responsabilidades directas, elas vão inteiramente para os comandos policiais, com destaque para a cega brutalidade da actuação da Polícia de Intervenção vinda de Lisboa, cujos responsáveis se mostraram indignos da função que exerciam, como terá comprovado, pelo menos em parte, o inquérito feito aos acontecimentos.
Só posso, por isso, repetir o que escrevi na altura: “Aquilo a que assisti (…) foi uma vasta exibição de violência (…) gratuita, em que os muitos actos de pura selvajaria contra gente indefesa e inadvertida marcaram o tom geral de uma operação policial realizada em condições tais, de desprezo pelo direito de cada um à integridade física e à vida, que ficaram a classificar um conceito absurdo de polícia”.
A lição terá sido aprendida. Nunca mais as tensões entre sindicatos rivais tiveram expressão semelhante (logo no dia seguinte, aliás, adeptos das duas centrais se manifestavam pacificamente no mesmo território disputado na véspera). E temos hoje certamente, polícias mais civilizados e um clima social mais adequado à convivência democrática. Mas convém, ainda assim, não esquecer o 1º de Maio sangrento de 1982. Para termos sempre presente aonde podem levar o fanatismo político e a cultura da violência.» (30/04/2007)
O que devemos comentar: Simpatizantes das duas centrais sindicais entraram em luta entre si para disputa do local que, tradicionalmente, era utilizada pela CGTP para comemorar o 1º de Maio, a Avenida dos Aliados, em plena baixa portuense. Teria havido assim, nas palavras do comentarista político do JN, “fanatismo político” dos dirigentes das duas centrais sindicais que teriam podido evitar a violência e o desfecho trágico que teve. No entanto, haverá que ter em conta os factos, e estes são principalmente dois: o protelar por cerca de um ano da resposta ao pedido da CGTP para utilização do local tradicional por parte do coronel que exercia as funções de governador civil, o que evidencia que uma provocação estava a ser preparada; segundo, a UGT estava no momento a ser promovida por PS e PSD, partido este que estava no governo da AD, e que se encontrava em diligente processo de reprimir os operários a fim de os fazer aceitar a política de austeridade reclamada pela burguesia, um pouco à semelhança do que acontece hoje; lembremo-nos que foi mais ou menos por esta altura que foram levadas a cabo, e com êxito assinalável, duas greves gerais.
Ao reler os factos que ocorreram na noite de 30 de Abril de 1982, algumas impressões ficam claras na nossa mente:
Que houve uma provocação montada por autoridades políticas e policiais, em estreita colaboração; que o governo de Pinto de Balsemão foi o principal responsável político pelos assassínios e ferimentos resultantes da carga policial.
Que a nível sindical, os responsáveis pela repressão policial e consequências nefastas foram os dirigentes da UGT que se preparavam, como veio a verificar-se, para sabotar a greve geral que iria ter lugar no dia 11 de Maio, situação parecida com a que se passa presentemente em que a UGT é contra a greve geral do próximo dia 30.
Que os dirigentes da CGTP também não estão isentos de responsabilidade, porque a sua contra-manifestação em véspera do 1º de Maio teria o previsível desfecho de suscitar a violência policial e respectivas trágicas consequências, que esta atitude pode ser explicada pelo receio de perder influência no seio do movimento sindical, o que poderia dificultar a vida do PCP, partido hegemónico na sua direcção e cioso em continuar a comer à mesa do orçamento do estado burguês e não perdendo a esperança, cada vez mais ilusória, de algum dia vir ainda a participar na própria governação.
Que terá havido algum revanchismo policial, o ardor revolucionário dos trabalhadores estava em nítida queda, então houve que aproveitar a ocasião em espancar a torto e a direito e em atirar indiscriminadamente sobre trabalhadores e cidadãos indefesos; a polícia fez o que durante oito anos andou a auto-reprimir. As zonas do corpo em que as pessoas foram atingidas, cabeça, tronco e abdómen, demonstra bem que a intenção era matar e não apenas dispersar um ajuntamento considerado “ilegal”.
Que a carga policial estava premeditada, garantida que era a impunidade; ao que parece, os comandantes da polícia, mais directamente responsáveis pela carga, não foram responsabilizados criminalmente, e as pessoas que foram feridas receberam ridículas indemnizações e após muitas démarches judiciais.
Que a polícia está agora, passados mais 25 anos de democracia, mais “civilizada”, estão aí as cargas contra os trabalhadores da Pereira da Costa e da manifestação dos tristes e inofensivos anarquistas, no dia 25 de Abril transacto, que facilmente são infiltrados pela própria polícia que, por sua vez, aproveitou a ocasião para treinar e deixar o aviso.
O resultado da carga policial, oito anos após a instauração do regime democrático burguês, foi de dois mortos e de 58 feridos, destes 6 foram por disparos de balas de 7,5 mm e 9 mm, calibres usados pela polícia, fazendo lembrar a repressão exercida habitualmente nas democracias corruptas da América Latina actual. O fascismo matou nas manifestações e greves de 1962, a democracia burguesa matou na mesma data, ou seja, naquela em que os operários celebram o seu Dia de Luta Internacionalista pela emancipação do jugo do capital. O mesmo ódio à classe operária e ao povo une fascistas (antigos e actuais) aos novéis democratas. Os Queirós estão aí para pôr água na fervura da luta de classe e lançar a confusão de molde a obnubilar a consciência dos trabalhadores.
Os cidadãos que foram assassinados pela polícia, e para que a memória não se apague, eram: Pedro Vieira, operário têxtil e delegado sindical, e Mário Emílio Gonçalves, vendedor ambulante; eram jovens, tinham 25 e 17 anos.
PS: A "era pré-democrática" chama-se fascismo, uma palavra que parece incomodar ainda muita gente nos actuais tempos de revisionismo da História.
Foto in JN (30/04/2007)
Texto de 02 de Maio de 2007 – publicado em “Os Bárbaros”
A preparação do 1º de Maio de 1974 mostrou que o povo estava a lutar e antes que o regime caísse na rua… deu-se o 25 de Abril.
Salgueiro Maia não conseguiu esconder, pouco tempo antes de falecer, as razões que levaram a que o golpe tivesse sido antecipado para a data de 25 de Abril – não era esta a data prevista para o seu desencadeamento - que era o “desconforto” existente no seio dos oficiais das Forças Armadas devido às consequências imprevisíveis da realização do 1.º de Maio Vermelho, cujo amplo trabalho de convocação era realizado desde o princípio do mês, situação confirmada pelo próprio Otelo em outra ocasião.
Por todo o lado se mobilizava os operários para o dia de luta do proletariado internacional, sendo visíveis de norte a sul do país as inscrições nos muros realizadas por comunistas revolucionários e da CDE sobre a libertação dos presos ou sobre a carestia de vida, mas cuja propaganda era feita em ruelas esconsas ou comunicados deixados aos montes nas casas de banho e corredores do Metro, sendo facilmente apanhados na sua quase totalidade pela polícia, como refere o relatório (página 2-4)
É o “Ultimo relatório sobre a situação geral do país do Ministério do Interior para a PIDE-DGS” (“Perintrep” do Comando-Geral da P.S.P, nº15/74, respeitante ao período de 6 a 13 de Abril), que diz.
A folha 2-1, ponto 1, Situação Geral e na alínea a), pode ler-se o seguinte: «Continuam a aparecer panfletos (LISBOA, AVEIRO, LEIRIA, SANTARÉM E VIANA DO CASTELO) e pichagens (LISBOA, COIMBRA E BRAGA), relativos ao próprio dia 1 de Maio. O panfleto referente a Viana do Castelo era já conhecido e os restantes não tinham sido ainda detectados. Os seus autores são: “MRPP”, “CLAC” e “RPA-C”. Este último tem a finalidade de pretender induzir o pessoal das Forças Armadas a manifestar-se no 1º. de Maio».
Páginas 2-3 e 2-4 do mesmo documento, faz-se referência a comunicados contra a guerra colonial distribuídos porta a porta pelos CLA-C's e pela RPA-C e a “inscrições murais com o desenho da foice e do martelo: “VIVA O 1º DE MAIO / VIVA A DITADURA DO PROLETARIADO / TODOS AO ROSSIO ÀS 19H30 / O 1º DE MAIO É VERMELHO / TODOS AO ROSSIO ÀS 19H30 MRPP”».
E a página 2-5 (só para citar algumas referências), pode ler-se igualmente: «Data: 29 Mar 74. Editado: “Comité Amílcar Cabral – Comité Directivo da RPA-C. Súmula: Procura arrastar soldados e marinheiros para a anunciada manifestação do dia 1 de Maio no ROSSIO pelas 19h30, ao lado da classe operária e do povo contra a ditadura da burguesia colonial-fascista, contra a exploração capitalista, etc., indicando ter-se registado já no Regimento de Engenharia nº1 um caso de indisciplina».
Coimbra, 8 de Abril «detectadas na Rua Rego do Bonfim e na Fábrica de Cortumes, as inscrições murais: “VIVA A CLASSE OPERÁRIA, ABAIXO A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA, O.C.M.L.P. / O GRITO DO POVO EM FRENTE PELA REVOLUÇÃO POPULAR / VIVA O 1-º DE MAIO”» (pág. 2-10).
Em Barcelos, «em 10 de Abril, são «detectadas em vários locais as inscrições murais: “VIVA O 1.º DE MAIO – GREVE / MANIFESTEMO-NOS CONTRA A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA / ABAIXO O CAPITALISMO / ABAIXO O CUSTO DE VIDA / MAIS DINHEIRO /JUNTOS NO 1.º DE MAIO DIA DO OPERÁRO / LUTA”, seguidas das iniciais A.C.M.L.P. e do desenho da foice e martelo» (a folha 2-12).
Em Viana do Castelo, «11 de Abril, foram encontrados no Bairro Jardim, 26 exemplares do panfleto: “CAMARADAS: VIVA O DIA DOS TRABALHADORES – VIVA O 1º DE MAIO, editado pela Organização Marxista-Leninista Portuguesa (O Grito do Povo)”» (pág. 2-22).
Aveiro, 11 de Abril «foram encontrados em Espinho, exemplares dos panfletos com o título: FERIADO NO 1.º DE MAIO! UMA LUTA DE TODOS OS TRABALHADORES. Assinado por “Um Grupo de Trabalhadores” (pág. 2-11).
Outras indicações sobre a agitação e propaganda para a convocação do 1º de Maio, realizadas em Braga, na Marinha Grande ou em Torres Novas, se podem encontrar do mesmo documento (páginas 2-17 e 2-20), o que prova que a Pide e as outras forças repressivas tinham os olhos postos sobre a actividade de quem se oponha com firmeza à guerra colonial e ao regime.
O PADRE QUE PREGAVA CONTRA A GUERRA E OS ESPECULADORES
Sem dúvida que uma das referências mais interessantes encontradas no “ÚLTIMO RELATÓRIO sobre a situação geral do país do ex-ministro do Interior para a ex-pide/dgs” é aquela que diz respeito à prédica do padre de Maximinos, em 6 de Abril, que passamos a transcrever: «Aspecto religioso: chegou ao conhecimento do CD que o padre LIRA, pároco da freguesia de Maximinos desta cidade, nas meditações que fez durante a Via Sacra, enquadrada no programa das solenidades da Semana Santa em Braga, que teve lugar naquele dia, tendo por intenção especial os emigrantes, junto dos respectivos calvários, entre o mais, pronunciou: “Ó Jesus Cristo auxiliei o povo do século XX, ajudai o clero, as Instituições, os Bombeiros, os Educadores e os que fazem greves para aumentares os seus salários;
Ó Jesus Cristo castigai os do século XX que exploram os pobres, açambarcando os géneros e marcando-os por um preço mais elevado, aqueles que compram por cinco e vendem por trinta e cinco, aqueles que têm os presos a morrerem nas cadeias, aqueles que como Judas atraiçoam toda a gente e estão agora colocados em grandes pedestais;
Ó Santa Mãe que recebeste uma medalha do teu filho como exemplo de honra, mas não é como estas mães que agora recebem medalhas e condecorações a título póstumo por os filhos que morrem na guerra”» (pág. 2-13).
Enroscam-se-lhe ao trono as serpentes doiradas Que, César, mandei vir dos meus viveiros de África. Mima a luxúria a nua — Salomé asiática... Em volta, carne a arder — virgens supliciadas...
Mitrado de oiro e lua, em meu trono de esfinges — Dentes rangendo, olhos de insónia e maldição — Os teus coleios vis, nas infâmias que finges, Alastram-se-me em febre e em garras de leão.
Sibilam os répteis... Rojas-te de joelhos... Sangue e escorre já da boca profanada... Como bailas o vício, ó torpe, ó debochada — Densos sabbats de cio teus frenesis vermelhos...
Mas ergues-te num espasmo — e às serpentes domas Dando-lhes a trincar teu sexo nu, aberto... As tranças desprendeste... O teu cabelo, incerto, Inflama agora um halo a crispações e aromas...
Embalde mando arder as mirras consagradas: O ar apodreceu da tua perversão... Tenho medo de ti num calafrio de espadas — A minha carne soa a bronzes de prisão...
Arqueia-me o delírio — e sufoco, esbracejo... A luz enrijeceu zebrada em planos de aço... A sangue se virgula e se desdobra o espaço... Tudo é loucura já quanto em redor alvejo!...
Traço o manto e, num salto, entre uma luz que corta, Caio sobre a maldita... Apunhalo-a em estertor..
.................................................
— Não sei quem tenho aos pés: se a dançarina morta, Ou a minha Alma só que me explodiu de cor..
Caranguejola
Ah, que me metam entre cobertores, E não me façam mais nada!… Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada, Que não se abra mesmo para ti se lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado… Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira… Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos. Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar… Que querem fazer de mim com estes enleios e medos? Não fui feito pra festas. larguem-me! Deixem-me sossegar!…
Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas, E eu aninhado a dormir, bem quentinho – que amor!… Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor - Plo menos era o sossego completo… História! era a melhor das vidas…
Se me doem os pés e não sei andar direito, Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord? - Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito…
De que me vale sair, se me constipo logo? E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?… Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo - E não penses no resto. É já bastante, com franqueza…
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará. Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria? Tenham dó de mim. Co’a breca! levem-me prà enfermaria! - Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.
Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda… De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda; E depois, estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo…
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras, Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou. Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneira:
Nada a fazer, minha rica. o menino dorme. Tudo o mais acabou.
Poesia, Mário de Sá-Carneiro. Círculo de Leitores, 1990
A decisão de um tribunal de Londres de honrar o pedido do governo dos Estados Unidos para a extradição de Julian Assange, denunciante e fundador do famoso site Wikileaks, que revelou as acções criminosas dos militares dos Estados Unidos ao mundo, é certamente de importância histórica.
Se o governo britânico der a aprovação final para esta extradição para os Estados Unidos, Assange será provavelmente sujeito a julgamento em que será acusado de crimes capitais sob a Lei de Espionagem raramente aplicada e constitucionalmente falhada.
Nesse julgamento, testemunharemos o colapso do governo dos Estados Unidos da América num pântano semelhante ao governo imperial decadente do Império Romano sob os imperadores Calígula e Nero.
As 18 acusações criminais apresentadas contra Assange por divulgar telegramas diplomáticos confidenciais, que documentavam as ações criminosas e imorais dos militares dos Estados Unidos, estão sendo consideradas como base para que ele passe 175 anos na prisão. Reconhecido o declínio da sua saúde, como resultado da prisão, é improvável que ele cumpra a pena.
Essa acusação é uma caricatura transparente que seria cómica se não fosse tão profundamente trágica.
Mas há mais neste caso do que aparenta. Assange tornou-se o rosto popular da resistência ao tecnofascismo e à ascensão do governo totalitário. Está tudo bem, mas há perguntas que precisam de ser feitas sobre por que razão Assange tem esse status especial, perguntas que poucos ou nenhum se atrevem a fazer.
Por que Assange está constantemente no noticiário enquanto numerosos americanos, europeus e outros, que foram demitidos de seus empregos, expulsos do país ou sofreram destinos ainda piores, nem existem nos media alternativos?
Será que Assange, apesar de toda a tragédia de seu caso, veio servir como um ponto de encontro limitado para intelectuais, um meio para os cidadãos se elogiarem sem abordar a ascensão mais ampla da governança totalitária em todo o mundo, em todos os níveis, sem considerar a milhares de vítimas de perseguição semelhante?
Além disso, por que aceitamos a narrativa de uma disputa entre Estados-nação, Estados Unidos, Grã-Bretanha ou Suécia, que estão engajados num processo de negociações? Por que atribuímos essa tragédia à ganância, à crueldade e à tolice dos políticos?
Essa narrativa está cada vez mais distante da realidade. Na verdade, os Estados Unidos e o Reino Unido deixaram de servir como repúblicas funcionais e são administrados diretamente por private equity, empresas de lobby dos super-ricos, empresas privadas de inteligência e uma ampla gama de operações de consultoria pay-to-play cuja maquilhagem, cuja estrutura nos é ocultada até mesmo nos relatos dos buscadores da verdade.
Falar sobre a tragédia de Assange sem abordar a transformação da governança e sem pintar um quadro detalhado de quem realmente toma as decisões é um desserviço ao público, que engana e nos impede de focar na verdadeira fonte do problema na decadência institucional, e a verdadeira solução revolucionária.
Depois, há o problema da reportagem selectiva de Assange. Entendo e simpatizo com seu desejo de divulgar a sua história e evitar o destino de outros. Mas a suposição de que ele foi uma vítima única da perseguição dos contadores da verdade é questionável.
Assange evitou cuidadosamente perguntas difíceis sobre o incidente do 11 de Setembro e ficou longe de uma discussão sobre os detalhes de como elementos privatizados nas forças armadas e de inteligência dos EUA, cooperando com agentes de Israel (e de outros lugares) desempenharam um papel na destruição do governo dos Estados Unidos e na sua redução, e também de Israel, a marionetes de aluguel dos poderosos.
Sem uma análise das mudanças estruturais nos Estados Unidos que resultaram no rescaldo dos ataques de 11 de Setembro (e que também estão ligados aos atentados de Oklahoma), sem uma consideração de como operações como o 11 de Setembro são planeadas e realizadas numa terra do limbo, habitada por empreiteiros militares, que fica entre Washington e Tel Aviv, a documentação de crimes específicos é de valor limitado.
Além disso, Assange não se envolve numa análise de questões de classe. Ele parece alérgico à consideração séria da possibilidade de estarmos olhando para algo além de um estado-nação em particular (admitindo que alguns sejam mais profundos do que outros), mas sim o esforço de uma classe de super-ricos, ao usar novas tecnologias para nos imbecilizar a todos, a fim de consolidar o controle de todos os recursos e controlar o mundo inteiro.
Que os Estados Unidos vão desempenhar o papel de bandido no julgamento de Assange é, sem dúvida, verdade. Mas duvido seriamente que o senil Joe Biden ou o seu gabinete de figuras políticas, criado por corporações multinacionais através da WestExec, Palm Island Capital Partners e Asia Group, sejam os que estão por detrás da cortina que puxam as cordas.
A libertação de Julian Assange é absolutamente essencial para restaurar o Estado de direito e defender a liberdade de imprensa. É lamentável que Assange tenha falado tão pouco sobre os milhares de outros que sofreram destinos semelhantes - mas isso agora é passado.
Devemos entender que o fim do jornalismo e o fim da justiça são produtos da concentração massiva de riqueza, um processo que produziu novos actores políticos que raramente são mencionados nos media.
Ou seja, aqueles que mais querem punir Assange não estão em julgamento, e em muitos casos seus nomes são desconhecidos do público.
O povo da Ucrânia verá a atual solidariedade ocidental diluir-se e terá que pagar ao gaiteiro. Enquanto isso, as grandes empresas de armas, que já fizeram uma matança com lucros fabulosos, procurarão outra Ucrânia para repetir a operação
Na guerra na Ucrânia é agora possível apontar algumas características importantes que nos permitem compreender este processo bélico como expressão do conflito mundial entre as potências tradicionais do capitalismo ocidental e as novas, entre as quais se destacam a Rússia, a Índia e a China, ambos os lados com seus aliados e amigos correspondentes em todo o planeta.
Um dos elementos notáveis é a deterioração do dólar como moeda mundial de referência obrigatória, reflectindo bem a perda de hegemonia mundial dos Estados Unidos. Já não tem que competir apenas com o euro de seus parceiros europeus, mas sobretudo com o yuan chinês e o rublo russo, além de impotentemente registar práticas de permuta, dispensando o dólar. A China possui uma enorme quantidade de dívida pública dos EUA (a maior do mundo), o que é uma vantagem incomparável. Se a China decidir recuperar o seu investimento, os danos à economia de Washington (e do mundo) seriam de consequências incalculáveis. As medidas agora tomadas contra a Rússia sobre a guerra na Ucrânia afectaram inicialmente o rublo, mas Moscovo respondeu com medidas eficazes que anulam fundamentalmente o movimento ocidental.
O bloqueio às exportações russas também não parece ter alcançado seu objectivo, ao mesmo tempo em que mostra as diferenças entre os aliados europeus e entre eles e Washington. Apesar das novíssimas declarações de alguns governos europeus a favor das medidas de bloqueio, as matérias-primas russas continuam a fluir para a Europa e países-chave, como a Alemanha, e que, na prática, expressam a sua oposição devido à dependência do gás russo para a actividade económica normal. Dependência que é enorme e não pode ser superada imediatamente. E não é apenas um problema para a Alemanha. O aumento global dos preços do petróleo e do gás tem um impacto muito negativo na economia mundial, começando pelos Estados Unidos.
Tampouco podem ser ocultadas as fraquezas da própria OTAN, que ela regista de forma impotente, pois as suas ameaças não conseguem impedir o avanço russo na Ucrânia. Parece certo que parte da solução do conflito é renunciar à inclusão da Ucrânia na OTAN (Kyev aceitará). Também é problemático para a OTAN adicionar países neutros como Suécia e Finlândia, pois aumentaria a instabilidade na região e criaria as condições para um futuro conflito semelhante ao atual. Esses dois países realmente querem se expor para serem as Ucrânias do futuro? A Rússia não aceita bases militares em torno de seu território com a mesma lógica que Washington não aceitaria se Moscovo instalasse bases semelhantes no Caribe, como ficou claro pela crise dos mísseis cubanos. Moscovo retirou essas bases da ilha em troca de uma retirada semelhante das americanas instaladas na Turquia. A confiança muito relativa de alguns países europeus na OTAN não é nova, e não faltam aqueles que estão empenhados em criar a sua própria aliança militar (ou paralela) para não se envolverem em conflitos como o actual Ucrânia, que basicamente foi promovida por Washington e basicamente obedece aos seus interesses estratégicos, na sua luta com a Rússia (e com a China).
Igualmente notória é a atitude de muitos países da Ásia, África e América Latina que representam a grande maioria da população mundial. As condenações não qualificadas da invasão russa vêm apenas de governos rudemente subservientes a Washington, a da Colômbia, por exemplo, mas em geral não coincidem em forma ou substância com as declarações das potências ocidentais. A grande maioria desses países lamenta os duros acontecimentos na Ucrânia e propõe uma solução diplomática como solução.
Na realidade, Washington e seus aliados são deixados sozinhos na sua guerra contra a Rússia e recebem apenas manifestações formais, mas nenhum apoio óbvio da periferia pobre do planeta que é seriamente afetada na sua economia, como resultado de uma guerra que não é deles. Parece que o conflito é percebido principalmente como resultado das contradições entre as potências e que ninguém em sã consciência quer se envolver em guerras em que as grandes potências, como nas guerras coloniais de outrora, colocam países da periferia sem envolver mesmos diretamente.
Na realidade e aderindo aos factos reais, Moscovo não iniciou esta guerra. O Ocidente esteve envolvido durante anos em várias formas de agressão contra o que foi a URSS, um conflito que então e além da questão ideológica (a luta contra o comunismo) tinha o objetivo de impedir que a Rússia retrocedesse e se tornasse concorrente efetiva do West, como aconteceu na realidade. Não é diferente o que acontece em relação à China. Na opinião dos ocidentais, a Rússia e a China deveriam se limitar a ser simples fornecedores de matérias-primas, e pouco mais. Por isso, todos os acordos assinados entre Washington e Moscovo após o fim do socialismo, que exigia o desmantelamento das muitas bases militares que os americanos - com a inegável ajuda dos governos europeus - haviam instalado em torno da URSS, foram violados. Nenhuma foi desmontada; pelo contrário, a OTAN e outras formas imperialistas multiplicaram a presença agressiva, cercando a Rússia ainda mais do que nos tempos da Guerra Fria. As tentativas de adicionar a Ucrânia a esta estratégia estão, sem dúvida, na raiz do conflito atual. É o mesmo com a China, literalmente cercada por bases americanas. Será que uma provocação contra a China, orquestrada pelos Estados Unidos e usando Taiwan, poderia dar origem a um cenário de guerra semelhante ao da Ucrânia? ao contrário, a OTAN e outras formas imperialistas multiplicaram sua presença agressiva, cercando a Rússia ainda mais do que nos tempos da Guerra Fria. As tentativas de adicionar a Ucrânia a esta estratégia estão, sem dúvida, na raiz do conflito atual. É o mesmo com a China, literalmente cercada por bases americanas. Será que uma provocação contra a China, orquestrada pelos Estados Unidos, e usando Taiwan, poderia dar origem a um cenário de guerra semelhante ao da Ucrânia?
Se o curso dos acontecimentos não mudar, a guerra na Ucrânia será resolvida impedindo este país de aderir à OTAN e será um alerta para outros países da região que assim o desejarem. Certamente, algum acordo será alcançado para a independência das regiões de Donbas que o exigem. No caso da Crimeia, é preciso lembrar que nunca foi ucraniana. Era um pequeno reino eslavo que se juntou ao império czarista séculos atrás e foi cedido a Kiev por Estaline pouco antes de sua morte. Sua população fala russo e é de cultura russa e por uma grande maioria decidiu aceitar seu retorno à Rússia após o golpe organizado por Washington contra o governo de Kiev, então próximo a Moscovo. Sem levar em conta esse pano de fundo, é fácil cair na manipulação dos meios de informação (embora às vezes tão desajeitados e óbvios). Moscovo controlará a costa, directamente ou por meio de aliados, e a Ucrânia ficará sem litoral. O povo deste país verá a atual solidariedade ocidental a diluir-se e terá que pagar ao gaiteiro. Enquanto isso, as grandes empresas de armas, que já fizeram uma matança com lucros fabulosos, vão procurar outra Ucrânia para repetir a operação.
Como foi feito na Primeira Guerra Mundial – um confronto entre potências capitalistas para dividir o mundo – o correto para a esquerda é apostar na paz (e na revolução proletária), como fizeram Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Lenine ou Jean Jaurés.
Por Juan Diego García, La Pluma / Resumo da América Latina
Mal vai ao regime que se quer estruturar com as hierarquias do sistema que combateu e confiar nos fiéis servidores de quem, durante meio século, se não importou com os direitos humanos ou cívicos dos portugueses. Um Estado democrático tem de criar estruturas democráticas e confiar em quantos aspirem à igualdade entre os homens e os respeitem.
Longa e acre tem sido a polémica em torno de funcionários afastados, de instituições banidas, de homens postos à margem. A verdade é que os saneamentos selvagens existiram e alguns bem injustos foram. Outras demissões, reclassificações ou aposentações, realizadas nos momentos de euforia, com laivos de vingança algumas, têm sido revistas. E o "Diário da República" tem publicado longo rol de funcionários afastados e que vêem modificada a situação para que haviam sido relegados.
Com a Comissão de Análise de Recursos de Saneamento e Reclassificação está a acontecer o mesmo que com a contestada Comissão de Extinção da Ex-PIDE/DGS.
Parece-nos que uma e outra deveriam ter em mente fazer justiça, reparar ofensas feitas a quem as não merecia; mas, antes do mais, não deveriam perder de vista a defesa do regime democrático e a necessidade de os servidores deste não poderem ser nunca as mentalidades eivadas de totalitarismo e que foram instrumento de perseguição, condenação, numa palavra quantos contribuíram para o arbítrio inteiro na sociedade portuguesa.
Temos falado várias vezes no caso dos ex-pides. Não o fazemos com ódio, mas não pode o actual regime ser complacente para com quantos mostraram procurar a todo o transe perpetuar a ditadura em Portugal.
Houve saneamentos de militares, de funcionários a todos os níveis, de professores, até de magistrados. Muitos foram injustos e há que repará-los; mas não se esqueça que cada regime tem de ter a sua hierarquia, a sua mentalidade, seja nas forças armadas, no professorado, na magistratura. Não são os pilares da Universidade velha, nem os sustentáculos armados do totalitarismo, nem os juízes lacaios da Pide, que podem servir a Democracia em Portugal. A Primeira República, que não tocou nas hierarquias do exército, da diplomacia, da Universidade, da magistratura, pereceu às mãos dos seus inimigos. É da lei da história.
Queremos ainda chamar a atenção para alguns casos verificados recentemente e que são motivo de reflexão para quantos querem que o futuro democrático do País seja um facto, e que a Justiça, entre nós, corresponda ao respeito pela Lei e pelo cidadão. É que não são de molde a deixar tranquilos os homens, que querem um Portugal renovado, certos despachos da Comissão de Análise de Recursos de Saneamento e Reclassificação.
Analisemos três casos:
Primeiro caso: Bento Garcia Domingues, que foi da Polícia Judiciária, professor da Escola da PIDE, subdirector da Censura à Imprensa, vê anulada a pena de demissão e, com seis meses de suspensão de vencimentos, volta para a Polícia Judiciária, onde foi nomeado depois subdirector da zona de Lisboa. Perguntamos: vai ele servir a Justiça ou os senhores que serviu até 25 de Abril de 1974?
Segundo caso: o Procurador-Geral da República em 25 de Abril de 1974, dr. António Furtado dos Santos, que fora aposentado compulsivamente pelo ministro da Justiça do Primeiro Governo Provisório, vê anulada essa medida e é reintegrado na sua categoria de juiz do Supremo Tribunal de Justiça "e efeitos, a partir da data da aposentação, com todas as consequências legais". Assim reza o despacho de 9 de Dezembro de 1976, publicado no Diário da República", de 5 de Janeiro.
Estranha atitude a da Comissão ao fazer reentrar no Supremo Tribunal de Justiça da República que queremos democrática um magistrado da confiança inteira do regime do Salazar e Caetano.
Onde estará a consciência da justiça em quem foi procurador junto do Tribunal Plenário Criminal, deputado da União Nacional, e defendeu a PIDE, em discursos de propaganda politica? Homem de tanta confiança do velho regime que, quando este foi derrubado, em 25 de Abril de 1974, era Procurador-Geral da República e membro do Conselho de Estado.
Teremos nós confiança nos mesmos que a mereciam a Salazar e Caetano? Será com as pessoas com que eles fizeram a divisão e a perseguição que nós vamos construir um autêntico Estado de Direito
Democrático?
É como se as pedras do fascismo as quiséssemos aproveitar para construir o socialismo!
Terceiro caso: o magistrado que foi presidente do Tribunal Plenário de Lisboa, dr. Arelo Manso, é também colocado como juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
É como se estivéssemos com um pesadelo. Mas quem fala é o "Diário da República" e a Comissão de Análise de Recursos de Saneamento e Reclassificação. Juízes que presidem a tribunais onde a Pide espancava presos e se mostravam complacentes a todas essas barbaridades, vamos nós consenti-los no topo da magistratura portuguesa?
Podemos interrogar-nos se a referida Comissão, por muito respeito que nos mereçam as pessoas que a compõem, querem realmente uma magistratura democrática ou dignificar as barbaridades da Polícia e dos Tribunais Plenários?
A pergunta fica no ar e não me parece que os democratas se possam alhear de tais procedimentos. Além disso, nos termos da Constituição (artº 308, nº 3), semelhantes pessoas não podem ser magistrados judiciais, dado que se encontram feridos por indignidade cívica. De uma magistratura digna não podem fazer parte juízes indignos.
Por isso nos parece que são contrários à Constituição os despachos referidos da Comissão de Análise de Recursos de Saneamento e Reclassificação.
Que ventos correm nesta Comissão que faz também regressar à magistratura dois professores da antiga PIDE, nas pessoas dos drs. Duarte Soares e Lucas Ferreira?
As apreensões manifestadas há tempos pelo Primeiro-ministro sobre a escalada reaccionária justificam-se bem, não apenas pelos órgãos de infirmação, mas também pelas atitudes de comissões como a que temos referido. Não pensemos que pode haver um Estado democrático com uma magistratura totalitária.
Diz-se que a Natureza imita a Arte. Ou que a realidade copia o imaginado, o que vem a dar no mesmo. Imagina-se, confabula-se, e, sem que alguém se aperceba, está-se a antecipar o real. Mais, eu penso que a melhor narrativa de ficção é feita de hipóteses do homem e não de confirmações, e que, quanto mais inventiva, mais contribui para concretizar o mundo.
Foi no Outono à noite, tinha eu vinte anos. As árvores da Avenida da Liberdade desfolhavam-se na ventania e logo ali no Cinema São Jorge, no Tivoli e no Politeama, grupos de jovens lançaram sobre a plateia uma chuva de outras folhas a outros ventos. Mal as luzes do intervalo quebraram a escuridão das salas, centenas de cidadãos estremunhados viram surgir no espaço bandos de mensagens voadoras que adejaram, até lhes caírem aos pés, com brados de revolta contra a ditadura do Dinossauro Salazar.
Foi um golpe de surpresa e de medo. Os moscardos da Polícia Política desataram a zumbir por todos os cantos e em menos de nada davam entrada no purgatório da PIDE da Rua António Maria Cardoso alguns dos panfletários em causa, entre os quais este aqui que se subscreve.
Mas eis que, dezenas de anos sobre isto, revejo na televisão o genial “Sentimento”, de Visconti, a abrir com uma sala de ópera invadida por nuvens de panfletos revolucionários sobre um fundo da “La Traviata”. E diante do ecrã recordo a noite salazarenta dos cinemas de Lisboa em alvoroço.
Sei que não foi na história vivida que Visconti recolheu esse apontamento mas na ficção dum escritor oitocentista, Camillo Boito, por isso digo para mim que, afinal, naquela aventura da minha juventude, tínhamos repetido não a experiência real doutros rebeldes, mas a imaginação duma escrita nunca lida por Nós.
Diz-se que a Natureza imita a Arte. Ou que a realidade copia o imaginado, o que vem dar no mesmo. Imagina-se, confabula-se, e, sem que alguém se aperceba, está-se a antecipar o real.
Aconteceu-me isso Há dois anos, quando, de regresso dos estados Unidos, peguei com a mão de Deus num apóstolo do Diabo que tinha visto a orar na praça pública em Filadélfia e fui pô-lo à entrada do World Trade Center, de Nova Iorque. Refi-lo, inventei-o. Chamei-lhe, por conta própria, Golden Menphisto e mandei-o declamar excomunhões fundamentalistas contra o imperialismo ocidental que o pobre-diabo nunca sonhara em todas as suas cruzadas. Depois passei-o à prosa em modelo de crónica livre, pus-lhe à cabeça o título de "O Diabo em Nova Iorque".
Meses depois, no mesmo PÚBLICO onde o tinha exposto a ameaçar o World Trade Center com um arsenal de profecias macabras, deparo com a notícia a todas as colunas do célebre atentado ao mesmo World Trade Center pelos terroristas do fundamentalismo islâmico. Como toda a gente, quase ceguei de indignação, mas lá muito no fundo, por entre os destroços, ainda me pareceu vislumbrar o Diabo que eu tinha trazido de Filadélfia para minha recreação.
Abordo estes acasos de quem escreve e, quase sem querer, vou mais longe. Londres, 1968. Num quarto de South Kensington invento uma morte excelente para o Salazar que então vivia em absoluto e prometia. Publiquei-a, está em livro ilustrado por João Abel Manta. É a fábula dum Dinossauro patriarcal que cai do trono abaixo e acaba sufocado pelas mentiras com que montou as suas máscaras.
A outra, a morte real do Ditador, veio depois e, se formos a ver bem, coincide com a da fábula por artes de bruxaria. Começa com o precalço doméstico da queda duma cadeira e acaba em mentira final com o Excelentíssimo, já à beira de defunto e sem coroa nem poder, a dar uma falsa entrevista, rodeado de ministros a fingir.
Por estas e por outras é que eu penso que a melhor narrativa de ficção é feita de hipóteses do homem e não e confirmações, e que, quanto mais inventiva, mais contribui para concretizar o mundo.
Por isso, recordo Júlio Verne como inventor de Cousteau e dos astronautas do nosso deslumbramento; leio o Drácula como uma personagem premonitória dos canibais que de tempos a tempos surgem nas páginas de crime da civilização contemporânea; leio e escrevo à procura de felicidade e também o mundo me aparece às vezes em momentos felizes para grande espanto meu.
E os escritores? Não se inventarão a eles mesmos para escrever?
Passados 48 anos após o derrube do regime fascista português, que alguns revisionistas da história defendem que não é fascismo por diferenças formais com a ditadura italiana, como as diferenças entre o actual regime português e o espanhol onde há uma monarquia, por exemplo, fossem de fundo e não o mesmo domínio e das mesmas elites capitalistas enfeudadas ao grande capital internacional (União Europeia), pouco haverá a comemorar relacionado com liberdades, direitos e garantias do cidadão.
Há dois anos, depois do governo Costa/PS versão 2.0 ter decretado o primeiro estado de emergência a pretexto do putativo combate à pandemia covid-19, já tínhamos denunciado o fim, de facto, da democracia parlamentar burguesa, embora esta se mantenha de jure; ou, em outra forma de descrever, a musculação deste regime democrático parlamentar burguês, cujo propósito é, como sempre foi historicamente, reprimir os trabalhadores e o povo em caso de ousarem lutar contra as medidas económicas de cada vez maior austeridade no sentido de fazer face à crise do sistema económico capitalista. Por detrás de tudo está a economia, ou melhor dizendo, os lucros dos capitalistas.
Neste quadro de fascização, cada vez menos disfarçado, agora com o governo PS/Costa versão 3.0, de maioria absoluta, coisa que na prática jamais precisou para governar por decreto, nestes dois anos de dita “pandemia”, como uma Assembleia da República inútil e ineficaz, dando esta sempre o aval cego a tudo o que o governo decidiu apesar de este ainda não ter maioria absoluta formal, veio agora cereja no topo do bolo. Já não será simplesmente um órgão inútil, mas apologista do fascismo, por enquanto em soft mode, fazendo-nos lembrar a antiga Assembleia Nacional de Salazar e de Caetano.
Na putativa “Casa da Democracia”, com um presidente, e segunda figura do estado, reaccionário e trauliteiro que sempre alinhou pelos interesses e ditames de Bruxelas e de Washington (lembremo-nos do apoio que deu ao Guaidó, agente da CIA na Venezuela, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros!), com a presença de uma dúzia de arruaceiros da extrema-direita, um deles ex-bombista do tempo do PREC, assistiu-se ao aplaudir por parte de todos os elementos presentes, de pé e em pleno êxtase quase orgástico, de um chefe neonazi estrangeiro que, em nome do Ocidente e do Império, vai perseguindo os seus cidadãos que sejam do contra, ilegaliza partidos de oposição de esquerda, incluindo o partido comunista local com a prisão e o desaparecimento (assassinato) dos seus dirigentes, e, sem prurido e remorso, lançou o seu país numa guerra, cujo resultado será inevitavelmente catastrófico para todos os povos ucranianos. Um peão de brega do imperialismo e do capitalismo ocidental foi elevado a herói.
Para além dos encómios que a figura sinistra e tragicamente ridícula tem recebido de toda a imprensa mainstream nacional, bem como o nazi “batalhão” Azov que, pela mesma imprensa, foi elevado ao maior defensor das liberdades e democracia do mundo ocidental (de “todos nós”), apesar da ideologia francamente nazi e de se escudar atrás de crianças e de mulheres e assim evitar o seu rápido aniquilamento, mas que, pela mesmíssima e abjecta manobra de manipulação da opinião pública, estará a defender os civis. Exactamente o mesmo processo de inverter a realidade em relação a toda a guerra e à função e natureza do actual regime de Kiev, apresentado como soberano e independente e não como lacaio dos EUA e da UE. Os presentes apoiantes, na sessão referida da Assembleia da República, parecem ser uma cópia, embora mais esbatida, da camarilha actualmente reinante na Ucrânia, na justa medida em que defendem os interesses imperiais e a guerra.
O PR monárquico Marcelo não se cansa de assegurar ao neonazi trasvestido de democrata que Portugal apoiará a “luta do povo ucraniano” e Costa ainda vai mais longe: “cada dia de guerra é mais um dia de dor insuportável”. Imagine-se o homem a contorcer-se com dores pela infelicidade do povo ucraniano e tanto um como o outro, na prática, a defenderem a guerra; apesar de Marcelo ter fugido à tropa e nem ter ido sequer, como era sua obrigação como filho família do fascismo, para a dita “Guerra do Ultramar”. O belicismo esteve bem evidente em todos os deputados e membros do governo presentes na audição do agente da guerra e alguns deles, que se dizem democratas, ainda foram mais longe que os jagunços do Chega.
A paz para esta gente é defender o alargamento da União Europeia a regimes corruptos, dar armamento pesado e mais dinheiro para continuar e intensificar a guerra, e no tempo em que o povo português está a entrar numa espiral de inflação de miséria dificilmente de prever: dívida das famílias, empresas e Estado subiu para os 777,4 mil milhões de euros em Fevereiro; preço das casas subiu 14% até Dezembro; FMI prevê retoma mais fraca e défice maior em Portugal; salários da função pública podem subir abaixo da inflação em 2023; Estado autorizado a endividar-se até 16,2 mil milhões de euros (OE2022). E o mais que ainda está para vir.
O deputado do Livre, mais papista que o papa, chega ao ponto de defender um "mecanismo de retenção dos pagamentos" à Rússia pelos combustíveis fósseis. Todos defendem mais armas e mais dinheiro para a guerra, o chefe do IL manifestou-se como o mais entusiasta na ideia, mas tanto os dirigentes do PSD com do BE, do Chega ou do PAN não ficaram atrás; e até o CDS quis dar prova de vida demonstrando o mesmo zelo belicista. Pode-se constatar que estes democratas da treta são unânimes em aplaudir o nazismo, agora disfarçado de defensor das liberdades, numa situação semelhante à de Portugal antes do 25 de Abril, talvez uma espécie de “Primavera” marcelista.
O deputado do Livre, já referido, sintetizou o sentimento de todos os presentes: “os valores que a Ucrânia defende na Europa são os valores de Abril”. Seria também interessante saber quem é que soprou aos ouvidos da sonsa deputada do PAN a ideia de convidar um retinto neonazi, promovido a democrata, aliás, como foram todos os fascista e pides nacionais, e, com a sua voz esganiçada e enganosa, não se cansa de defender o perdão da dívida do estado ucraniano, não se percebendo, então, porque não defende o mesmo em relação à dívida portuguesa. Seres mais lacaios do imperialismo e defensores da guerra será difícil de encontrar. Em resumo, o discursante foi ouvido como muito “prazer” e “honra” por todos os presentes. Foi um estranho “momento de se lutar pela paz”!
A par dos elogios ao agente ianque, um Guaidó escandinavo “democraticamente eleito”, todo o tempo foi para estigmatizar o PCP (partido pelo qual não nutrimos particular simpatia por há muito ter abandonado a bandeira do comunismo e da ditadura do proletariado, isto se alguma vez a empunhou), com a imprensa a ajudar à festa, considerado um quase fóssil ou moribundo em fase terminal, mas que, na questão em causa, ainda foi o que teve uma posição digna por anti-imperialista, embora muitas das vezes pouco consequente, como se constata pela posição em relação à União Europeia, a vassala por excelência dos EUA, e ao euro. Estes ataques poderão preparar outros mais bem graves, que poderão passar pela ideia que foi pensada no 25 de Novembro de 1975.
As posições de todos os partidos com assento no Parlamento, uns mais abertamente e outros mais disfarçadamente, é de quererem ilegalizar o PCP ou, no mínimo e para já, relegá-lo para uma posição de marginalidade ou de semi-clandestinidade. A seguir irão todos os partidos que possuam a sigla da aliança entre o proletariado e o campesinato ou que se oponham ao actual regime pelo lado do povo, assim como todas as opiniões que perfilharem as mesmas ideias da revolução proletária ou anti-imperialistas e anti-capitalistas; em suma, quem seja contra as guerras impostas pelo Império decadente. Estamos a assistir a um histerismo a favor da guerra que nos faz lembrar o período que antecedeu a I Guerra Mundial. Parece que esta gente quer a guerra, só que a guerra será agora nuclear.
Não o dizem abertamente, mas insinuam insistentemente: o que era bom era o antes do 25 de Abril, sem comunistas nem esquerdistas; à semelhança do que o corrupto (Pandora Papers) agente americano fez na Ucrânia. Como a república de Weimar, na Alemanha, ou a I República, em Portugal, nos ensinaram: a democracia parlamentar burguesa conduz sempre ao fascismo. Bertolt Brecht lembra-nos que: “Não há nada mais parecido a um fascista do que um burguês assustado”. E a nossa burguesia, em particular, está mesmo assustada. No próximo dia 25, com mais tempo de democracia do que fascismo (ao que dizem), não haverá nada a comemorar, a não ser o regresso subreptício do fascismo.
O 25 de Abril foi recebido em Moçambique com um sentimento mesclado de alegria e apreensão. Houve várias e diferentes alegrias. Primeiro, houve a alegria genuína dos que sofreram a dupla carga do fascismo e do colonialismo. Mas houve outras alegrias. Mesmo organizações coloniais de direita emitiram comunicados saudando a chamada Revolução dos Cravos. Cinco meses depois, esses colonos de extrema-direita ensaiavam em Lourenço Marques (que depois se converteu em Maputo) um golpe contra o Acordo de Paz assinado entre Portugal e Moçambique e rubricados por Mário Soares e Samora Machel. Os extremistas tomaram a estação radiofónica ao som da canção «Grândola Vila Morena» de José Afonso, a mesma melodia que se convertera no símbolo do 25 de Abril.
Que condição histórica tomava a alegria tão elástica, manta que cobria interesses tão diversos e divergentes? O regime colonial-fascista tinha-se transformado num empecilho histórico para quase todos os quadrantes políticos, da esquerda à extrema-direita. A Revolução dos Cravos era, no entanto, como um ovo de crocodilo: poderia vir a ser macho ou fêmea de acordo com a temperatura exterior.
Tal como a alegria, a apreensão também foi múltipla. Em primeiro lugar, alguns dos militares da Junta de Salvação Nacional eram rostos bem conhecidos de generais que tinham lutado contra os movimentos de libertação em Africa. Não compunham, a bem dizer, os melhores cartões de visita. Alguns eram mesmo figuras sinistras da guerra, falcões da máquina militar colonial como Galvão de Meio. Outros, como o general António Spínola, eram adeptos de uma política colonial reformada e estavam em desacordo não com a essência do regime mas com as tácticas de perpetuação da presença portuguesa.
Os primeiros pronunciamentos dos militares da chamada Junta de Salvação Nacional revelavam uma notável ambiguidade no que respeita à guerra colonial. O general Spínola anuncia em conferência de imprensa, a 29 de Abril: «o que temos em mente é acelerar o processo ultramarino que permita aos povos africanos auto-determinarem-se sob a bandeira portuguesa». Mesmo o general Costa Gomes, claramente mais à esquerda que Spínola, afirma que «é nossa intenção lutar contra os guerrilheiros e essa posição manter-se-á até que eles guerrilheiros aceitem a nossa oferta de depor as armas e se apresentem como partido político». Foi preciso uma luta sem tréguas do povo português e dos militares revolucionários do MFA para que as propostas de continuidade da política colonial fossem derrotadas. E isso levou tempo.
Nas cidades de Portugal desfilavam milhares de pessoas clamando: «Nem mais um só soldado para as colónias!». Em Moçambique, centenas de jovens moviam-se no sentido oposto: atravessavam clandestinamente a fronteira para ingressarem no exército guerrilheiro. Uns não queriam ser soldados. Outros sonhavam ser guerrilheiros.
Durante os meses que se seguiram ao 25 de Abril, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) decidiu prosseguir com os combates em todas as frentes militares. «Lutamos não apenas para derrubar o fascismo em Portugal mas, sobretudo, para acabar com o colonialismo em Moçambique» – esta era a posição da guerrilha nacionalista.
Apesar destas reservas, a queda do regime colonial-fascista não podia senão ser recebida com contentamento pela Frente de Libertação de Moçambique. E por todos os outros movimentos de libertação das então colónias portuguesas. Afinal, o derrube do fascismo resultava também do seu combate abnegado. Não se pode dizer que a FRELIMO tenha sido apanhada de surpresa. Conforme escreve Fernando Amado Couto, os dirigentes da FRELIMO sabiam de movimentações golpistas no exército colonial através de militantes seus na clandestinidade em Portugal. Um deles, o escritor e jornalista Leite de Vasconcelos, é o locutor radiofónico de serviço que coloca no ar a canção de Zeca Afonso «Grândola Vila Morena». A canção é uma senha para os capitães de Abril assaltarem o Poder. O actual presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, era, em 1974, responsável pelos serviços de segurança da Frente de Libertação. Num depoimento gravado em 2003, Chissano relembra: «Nós já sabíamos do Movimento dos Capitães e acompanhávamos a situação de descontentamento que crescia no seio da tropa portuguesa. Tínhamos contactos com informadores a partir do próprio exército português».
De todos os movimentos de libertação das colónias portuguesas, a FRELIMO é o primeiro e o único a pronunciar-se sobre o golpe de Estado em Portugal. A 27 de Abril, o Comité Executivo da Frente de Libertação divulga uma declaração sobre «os últimos acontecimentos em Portugal». De forma clara e conclusiva o movimento de libertação recusa avia sugerida de «democracia na metrópole e colonialismo democrático nos estados ultramarinos». Pode-se ler na referida declaração: «...Do mesmo modo que o povo português tem direito à independência e à democracia, não se pode negar ao povo moçambicano os mesmos direitos. É por esses direitos elementares mas essenciais que nos batemos. Os objectivos da FRELIMO são bem claros: a independência total e completa do povo moçambicano, a liquidação do colonialismo português».
No caso de Moçambique, porém, uma preocupação estratégica somava-se às apreensões imediatas a que já fiz referência. Em 1974, a FRELIMO tinha implantação confirmada nas regiões rurais de quase metade do país, sobretudo no Norte e Centro de Moçambique.
Contudo, o movimento necessitava de tempo para se organizar nos centros urbanos. Pequenos núcleos clandestinos haviam sido desmantelados pela PIDE-DGS logo durante toda a década de 60. A FRELIMO já tinha a simpatia dos intelectuais mas necessitava de uma inserção orgânica mais activa e organizada. O 25 de Abril surpreendeu esta estratégia de sedução nos meios urbanos. Não se seguiu um vazio. Jovens urbanos assaltaram a imprensa e a rádio e criaram um clima propício para derrotar as propostas de vias alternativas que sugeriam uma transição reformista e neo-colonial.
Entre os estudantes universitários de Lourenço Marques (e eu era um deles) reinava desde 1970 um forte clima de contestação. Mas essa confrontação revelava bem as ambiguidades dos filhos dos colonos e dos assimilados. Uns questionavam apenas o fascismo português. Tratava-se, para eles, de introduzir mudanças democráticas em Portugal que, depois, se reflectissem nos chamados territórios do Ultramar. E por via dessa mudança pôr cobro àquilo que na sua linguagem se chamava «guerra colonial». Para outros, porém, a questão central era o fim do colonialismo. Para estes, o termo «guerra colonial» não existia. O que acontecia era uma luta armada de libertação nacional.
Em Março de 1974, eu era um jornalista trabalhando como estagiário num vespertino em Maputo. Eu militava em grupos clandestinos de apoio à Frente de Libertação e foi-me pedido que abandonasse os meus estudos universitários para trabalhar num jornal da capital. Era preciso «infiltrar» (assim se dizia) com quadros moçambicanos os órgãos de informação que estavam nas mãos dos portugueses. Um mês depois de iniciar o meu estágio sucede o 25 de Abril.
No dia 26 de Abril os cabeçalhos dos principais jornais de Moçambique espelham a condição colonizada desses órgãos de comunicação. Nenhum deles fala de Revolução ou de golpe de Estado. O Notícias abre a primeira página com o título «General Spínola – Chefe da Nação Portuguesa». Marcelo Caetano e Américo Tomás já haviam sido detidos mas o jornal diz ainda que «embora não se disponha de informação oficial, teria assumido o poder uma Junta Militar». No vespertino A Tribuna a mensagem da Junta de Salvação é reproduzida mas escolhendo-se para destaque a seguinte passagem «A Junta quer garantir a sobrevivência da Nação como pátria soberana no seu todo pluricontinental».
Nas ruas de Maputo (então Lourenço Marques) as pessoas festejam com alegria e, sobretudo, com perplexidade e algumas reservas. Aquela não era ainda a festa dos moçambicanos. Era a festa do povo português. Nós éramos apenas convidados em casa alheia. A nossa festa, o nosso 25, estava ainda por vir. E veio, um ano mais tarde, com a proclamação da Independência, a 25 de Junho de 1975.
O período que se seguiu ao golpe de Estado em Portugal foi marcado por conflitos de enevoados contornos. É preciso dizer que a tenebrosa polícia secreta portuguesa, a PIDE-DGS, não foi logo dissolvida em Moçambique. Os agentes mais repressivos do regime continuavam no activo, mesmo após o golpe em Portugal. As tropas coloniais mantinham a sua presença em todo Moçambique. Se houve desarmamento foi por iniciativas isoladas das próprias companhias. A Paz foi acontecendo por decisão directa dos soldados e oficiais que negociavam com os guerrilheiros e abriam bolsas libertas da irracionalidade da guerra. Estas ilhas de negação da violência militar representam um duro golpe nos que pretendiam uma solução de continuidade. Moçambique tinha-se convertido no centro de preocupação e ocupação da guerra colonial. Mais de metade do contingente total das tropas portuguesas (65 por cento) estava combatendo em Moçambique. E dessas tropas 53 por cento são moçambicanos de raça negra. Muito poucos desses moçambicanos e portugueses querem morrer numa guerra que não lhes pertence. A guerra estava já perdida no coração dos que afaziam.
Para além das apreensões mais directas existem ainda outras menos imediatas e mais refinadas. Estrategas da FRELIMO receiam não apenas os aproveitamentos que a direita portuguesa podia fazer do novo clima político em Portugal mas também recuperações mais subtis que pudessem inverter a relação de causa e efeito entre a queda do regime e a libertação dos povos africanos. Para um largo sector de opinião em Portugal (incluindo parte das forças de esquerda) as independências de Moçambique, Angola, São Tomé, Cabo Verde e Guiné-Bissau foram o resultado do 25 de Abril. Não foi a luta armada dos movimentos de libertação que, junto com a luta do povo português, fez acontecer o 25 de Abril. Não, o que aconteceu, para essa leitura da História, foi que os portugueses libertaram os africanos. Essa interpretação sedimentou-se naquilo que hoje é designado em Portugal por «descolonização». A palavra esconde uma briga em volta da definição do sujeito: quem descoloniza quem? Os africanos resolveram o assunto cirurgicamente: expulsaram a palavra do vocabulário.
Foi apenas em Setembro de 1974 que tomou posse um governo de transição com presença maioritária moçambicana. A grande maioria dos 250 mil portugueses que viviam em Moçambique tinha sido profundamente alienada do sentimento da História e da inevitabilidade das mudanças. Por isso, para eles
o que se passou foi uma «traição». Nos meses que se seguiram essa incompreensão eclodiu em movimentos sociais violentos, revoltas que só por milagre não redundaram em banhos de sangue.
A maior parte desses portugueses dirigiu a sua revolta contra os progressistas e revolucionários que, em Portugal, lideravam o movimento anti-fascista e anti-colonial. Mário Soares e Almeida Santos foram alvos preferidos desses ódios. «Esses traidores estão-nos a vender aos pretos» - era assim que esse grupo de colonos explicava o processo de negociação que conduziu ao fim da guerra. O acordo de Paz, deve ser dito, só aconteceu formalmente no dia 7 de Setembro de 1974. O fim da guerra colonial só ocorria, assim, cerca de 5 meses depois da chamada Revolução dos Cravos. Foi uma espera sofrida, de ambos lados. Em tempo de guerra, cada dia conta como uma vida inteira.
Em 1994, a minha editora em Portugal quis comemorar os vinte anos do 25 de Abril. Pediram-me um texto para um livro. Eu resisti. E expliquei-me: o nosso 25 era outro, a nossa festa maior era outra. E tive que repetir a explicação para vários órgãos de informação portugueses. Nem sempre fui bem entendido. Havia aqueles que ficavam magoados e levavam a peito. Acreditavam que havia no meu relativo distanciamento uma ponta de ressentimento. Mas não. Não se pode pretender que os povos africanos reajam da mesma maneira que os portugueses face à celebração do 25 de Abril. Aquela festa também é nossa, é verdade. E celebramo-la. Mas com o respeito de quem não é dono da festa mas convidado. Também nós não esperamos que os portugueses celebrem a festa da Independência do mesmo modo como nós o fazemos.
De qualquer forma, escrevi o romance e chamei-o de Vinte e Zinco . O jogo de palavras marca o distanciamento de dois universos que olham de forma diversa uma mesma efeméride. Os que viviam nos bairros de zinco (os subúrbios pobres) fizeram festa total no 25 de Junho de 1975, data da Independência Nacional. Sorriram no 25 de Abril de 1974 mas cantaram e dançaram no 25 de Junho de 1975. Mesmo que na altura lhes pesasse a leve suspeita que a libertação da miséria é um processo que demora ainda várias gerações.
(Texto publicado a propósito dos 30 anos do 25 de Abril, saído na edição de Abril de 2004 do jornal “Le Monde diplomatique”)
* Poeta e romancista; autor, entre outras obras, de Vinte e Zinco, Caminho, Lisboa, 1995: Acaba de publicar O Fio das Missangas , Caminho, Lisboa, 2004.