Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

José Régio

30.06.22 | Manuel

regio.jpg

Cântico Negro

 "Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

jose regio.jpg

A Jaula e as Feras

Vivem centos de doidos nesse hospício
(Quem no diria, olhando cá de fora...?!)
E o portão dança já no velho quício,
Dança, e faz entrar mais a toda a hora…

Trazem todos um sonho, um crime, um vício,
Foram imperadores longe, outrora…
E em seus rostos de espanto ou de flagício
Não sei que ausência atroz me comemora!

Faz medo e angústia olhá-los bem nos olhos;
E, lá por trás de grades e ferrolhos,
Estoiram de ansiedade desmedida.

- Meu corpo, ó meu hospício de alienados!
Abre-te aos meus desejos enjaulados,
Deixa-os despedaçar a minha vida!

*

Libertação

Menino doido, olhei em roda, e vi-me

Fechado e só na grande sala escura.

(Abrir a porta, além de ser um crime,

Era impossível para a minha altura…)

 

Como passar o tempo?... E diverti-me

Desta maneira trágica e segura:

Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,

Desfiz trapos, arames, serradura…

 

Ah, meu menino histérico e precoce!

Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,

E tens a inquietação da Descoberta!

 

O menino, por fim, tombou cansado;

O seu boneco aí jaz esfarelado…

E eu acho, nem sei como, a porta aberta!

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'. Portugália Editora, 1965.

Crime em Melilla como superação

30.06.22 | Manuel

thumb_340_fotonoticia_20220625002753_420_v2.jpg

As palavras crime e crise compartilham a mesma raiz etimológica. Ambos vêm da palavra grega “krisis”, que significa “julgamento, seleção, separação”. Podemos definir uma crise como uma situação em que as normas tradicionais deixaram de explicar a realidade, enquanto novas normas ainda não foram estabelecidas. Crise, portanto, denota uma situação em que a lei natural tem rédea solta e o crime é desenfreado.

Por Ramón Pedregal Casanova

Do livro intitulado Heróis. Assassinato em massa e suicídio. Autor: Franco "Bifo" Berardi. Editado por Akal.

As crises do capitalismo-imperialismo carregam consigo o crime como forma de sair de suas dificuldades sociais e políticas, e com o crime buscam subir um degrau para impor sua ordem com as novas características criminosas, para normalizá-la. É assim que a grande burguesia procura se impor: o crime, sempre o crime como raiz da relação entre trabalho e capital. A normalização do crime, vemos nas crises do sistema explorador, constantemente nos diz quem tem o poder.

O discurso de Pedro Sánchez sobre os crimes que, sob sua responsabilidade e do governante marroquino, foram cometidos em Melilla, identifica quem não deve ficar impune.

A cena dos mortos empilhados nos lembra os corpos de pessoas assassinadas jogados fora como lixo, também empilhados, nos campos de extermínio nazistas. Assusta a falta de consciência, a insensibilidade, o crime normalizado, assusta Pedro Sánchez e todos aqueles que repetem as mesmas palavras, o nazismo normalizado, assusta o mesmo personagem que se alia ao nazismo ucraniano para assassinar a população de Donbass e Lugansk, o mesmo personagem, o mesmos personagens, que envia centenas de milhões de euros em armas para continuar a guerra que a elite criminosa dos EUA, os empresários das multinacionais da guerra, aquela elite que tem Biden como gerente, tanto anseia, a quem seu servil Pedro Sánchez promete, sem contar com a população, "para aumentar a presença de navios ianques na base da Rota". 

Os crimes de Melilla apresentados por Pedro Sánchez trazem consigo o caminho para sair de suas dificuldades sociais e políticas, subir um degrau, normalizá-los, servir de alerta, deixar claro que suas mãos não tremerão se nos voltarmos contra a crise que vai piorar no final do verão. Eles nos lembrarão de Melilla quando disserem: "o trabalho extraordinário que as forças e órgãos de segurança do Estado estão fazendo". 

Repito as palavras do início, palavras que explicam o que foi cometido na cerca de Melilla, 37 assassinados e inúmeras vidas humanas feridas, inocentes, famintas, de quem tudo é roubado na África e lhes é negado o direito mais básico, o direito à ao vivo: 

As palavras crime e crise compartilham a mesma raiz etimológica. Ambos vêm da palavra grega “krisis”, que significa “julgamento, seleção, separação”. Podemos definir uma crise como uma situação em que as normas tradicionais deixaram de explicar a realidade, enquanto novas normas ainda não foram estabelecidas. Crise, portanto, denota uma situação em que a lei natural tem rédea solta e o crime é desenfreado. E acrescento, é normalizado com total impunidade, isso prova que o crime estabelece a saída, o crime em Melilla como superação da crise, … se o povo permitir.

https://osbarbarosnet.blogspot.com/2022/06/crime-em-melilla-como-superacao.html

“Os trabalhadores estão mais ricos”

26.06.22 | Manuel

Inflação.jpg

 Cada vez mais o governo de Costa/PS 3.0 se assemelha ao governo de má memória Passos&Portas quanto à duplicidade da política que é aplicada. O discurso é sempre a “bem do povo” (antigamente era “nação”) mas a prática nunca deixa de favorecer as elites, com marcado prejuízo para os que trabalham e fazem funcionar o “país” – conceito diverso conforme os diferentes interesses dos que ali residem. Quando Costa diz que o “salário médio subiu 23% nos últimos seis anos”, não percebendo a polémica desencadeada pela declaração de que os salários poderão crescer mais de 20% nos próximos quatros anos da legislatura, esta reacção faz-nos pensar em outras duas declarações do passado, uma de Luís Montenegro, actual líder eleito do PSD, "a vida das pessoas não está melhor mas o país está muito melhor", a outra de Bagão Félix, ex-ministro da Segurança Social e do Trabalho no governo de Durão Barroso/PSD e das Finanças no governo efémero de Santana Lopes/PSD, “Portugal está melhor, mas os portugueses estão pior”. Costa perante as câmaras de televisão não teve pejo em afirmar que “os trabalhadores estão mais ricos” desde que está à frente do governo, mas para seu azar os números estão constantemente a desmenti-lo, o que não deixa de ser trágico para o povo português:

- Dois terços dos portugueses cortam na alimentação devido à subida dos preços (segundo inquérito).

- Negociação coletiva deixou menos trabalhadores acima do salário mínimo. Percentagem de trabalhadores com remunerações mais baixas atualizadas acima do mínimo caiu de 40% para 16% - dados anuais relativos ao ano passado (da imprensa).

- Maioria de quem faz férias fica no país e contém gastos. Situação de crise força a poupança, 76% tenciona gastar o mesmo ou menos dinheiro do que no último período de descanso (segundo inquérito).

- Portugal é o terceiro país da Zona Euro onde o preço dos alimentos mais subiu. Bens alimentares em Portugal ficaram 7,6 pontos percentuais mais caros desde o início do ano. Subida é quase o dobro da registada na Zona Euro (da imprensa).

- O consumo interno diminuiu e terá sido este que fez crescer, anemicamente, o PIB no último trimestre: Portugal em contraciclo com a Europa no novo crédito ao consumo em 2022.

- O Endividamento da economia renova máximos – o endividamento do setor não financeiro (administrações públicas, empresas e particulares) aumentou 5,1 mil milhões de euros, para 782,5 mil milhões de euros em Abril (boletim do Banco de Portugal).

- Euribor em 1% agrava fatura da casa em 38 euros por mês (da imprensa).

- Os preços das habitações em Portugal subiram quase 13% no primeiro trimestre, período em que a venda de casas a cidadãos estrangeiros disparou quase 70%; ou seja, continua a especulação imobiliária, agravada pela reactivação dos vistos Gold (lavagem de dinheiro das mafias internacionais).

- Contudo, o Banco de Portugal está preocupado com o risco de queda nos preços das casas, porque poderá afetar a estabilidade financeira por levar ao aumento de imparidades (prejuízos) da banca ou redução do rendimento disponível, acrescentamos nós, dos especuladores.

E a lista dos dados que revelam o estado real da economia portuguesa, conhecidos nos últimos dias, poderia aumentar ainda mais, mostrando que Costa mente com todos os dentes que tem na boca.

Perante a mais que certa recessão económica que rapidamente se avizinha – a economia global tem 50% de probabilidade de entrar em recessão, estima Citigroup –, o governo de Costa decidiu alargar por mais três meses o apoio ao cabaz alimentar, 60 euros por mês, medida que irá abranger "cerca de um milhão de famílias"; o que por si bem revela que os portugueses estão piores, fazendo lembrar as palavras dos dois políticos de direita atrás citados. No mesmo sentido o governo espanhol, do congénere local do PS português, decidiu, para fazer face ao aumento dos preços, dar a cada família mais carenciada 200 euros por mês, descer o IVA da electricidade para 5%, aumentar as reformas mais baixas e outros apoios sociais, num montante global de 9 mil milhões de euros.

Por cá, Costa não se mostra favorável à reposição do IVA de 6%, anterior à vinda da Troika, nem ao aumento generalizado dos salários como ficou demonstrado pelo chumbo da proposta de aumento de 4% aquando da discussão do Orçamento de Estado para este ano. Mais recentemente, o Parlamento volta a chumbar, desta vez, as iniciativas para acabar com bloqueios à progressão da carreira docente; como também não deixa de ser paradigmático a declaração do jovem turco, apontado como possível sucessor de Costa, de que o governo “não pode aumentar os custos laborais” na TAP… porque “dá prejuízo”; como se o aumento dos salários não fosse um investimento, por exemplo, para melhorar a tão badalada “fraca produtividade” do trabalho em Portugal.

Quando o governo Costa/PS, juntamente com os governos dos outros estados membros da União Europeia, privilegia a atribuição de subsídios às famílias mais pobres em vez de subir os salários e tabelar os preços, ou eventualmente entrar directamente no mercado com a oferta de produtos de consumo a preços mais baixos a fim de fazer baixar a inflação, está simplesmente a facilitar o aumento dos lucros das empresas, nomeadamente os das grandes que dominam o mercado, e a mitigar a pobreza para evitar o conflito social. O estado/governo apenas se substitui aos bancos alimentares das Jonets para abafar a contestação dos trabalhadores mais pobres que poderão despoletar uma revolta social mais ampla. Esta política do governo dito “socialista” é a política já explicitada pelo FMI, que “diz aos países para aceitarem preços elevados, mas protegendo os mais pobres”; isto é, acarinhar a inflação e a especulação para que o grande capital financeiro e os grandes grupos económicos continuem a aumentar os lucros. Ora, como a riqueza flui como a água em sistema de vasos comunicantes, irá sempre dos mais pobres para os mais ricos. É a política seguida pelo BCE, espécie de sucursal europeia do FMI, directamente controlado pelo imperialismo americano, que, por sua vez, possui uma delegação no nosso país, o Banco de Portugal, que, sempre que surge a necessidade ou a ocasião, vem a público pela voz do seu presidente dar as directivas ao governo e o conselho ao populacho indígena.

Trata-se da dinâmica imparável do capitalismo – a essência, a alma – de acumulação e concentração, porque se parar o sistema implode. E nunca esteve tão perto como nos tempos de hoje, daí a guerra, sempre inevitável em capitalismo e domínio da burguesia. E os números vão demonstrando que a riqueza tem crescido em Portugal desde que Costa foi para o governo, mas essencialmente para o lado dos mais ricos e em detrimento dos mais pobres, e os referentes a 2021 são claros: a riqueza em Portugal cresceu 3,3% em 2021. A riqueza cresceu mas concentrou-se nos mais ricos, seguindo o que acontece a nível global: segundo a “Global Wealth 2022 – Standing Still Is Not an Option” e divulgada pela Boston Consulting Group (BCG), o património financeiro a nível mundial registou a "maior subida anual dos últimos 10 anos" (10,6%), valor recorde de 530 biliões de dólares em 2021, graças aos “ganhos nos mercados acionistas e a um aumento da procura de ativos tangíveis"; isto é, o capitalismo dito de “casino”, a especulação financeira, pura e dura, a funcionar em pleno. 

Esta especulação desenfreada mostra, por outro lado, que a crise actual é uma crise de superprodução, não compensando o investimento nos sectores produtivos, virando-se assim o capital mais para os investimentos especulativos e para a criação de dinheiro fictício. E quanto maior for o empreendimento neste sentido, maior será o rebentar da bolha que vier a seguir. Cada crise gera sempre uma crise ainda maior, ao mesmo tempo que o capitalismo esgota os seus expedientes para evitar as crises. Crises estas que o grande capital tenta reverter sempre a seu favor, assim se percebe que crises artificiais, como a da pandemia covid-19 e as que presentemente se estão a preparar, crise climática e outras pandemias, serão úteis para encobrir a verdadeira natureza da crise económica, que lhes é subjacente, e justificar as medidas, consideradas inevitáveis, por parte dos governos do grande capital, mesmo que disfarçando-se de “socialistas” ou de “social-democratas”, que não deixarão de se lamentar por não terem podido fazer mais e melhor para o cidadão comum. Entretanto, o cidadão mais rico estará cada vez mais rico.

Ao contrário dos desejos dos apologistas do regime, os factos não correspondem aos desejos e são incontornáveis: as importações sobem mais que exportações, o aumento do défice da balança de bens, para 1.975 milhões de euros, reflete um crescimento das importações superior ao das exportações (29% e 15,9%, respetivamente), sendo que o valor das exportações e o das importações ultrapassaram os registados em Abril de 2019, no pré-pandemia. Eis o resultado inevitável de uma moeda forte, o euro, como instrumento monetário de uma economia que pouco produz. Qual a admiração do fantasma da recessão já assustar as bolsas? Após uma década inédita, dinheiro vai voltar a ter custo e a inflação na Zona Euro foi confirmada nos 8,1% em Maio e a da União Europeia nos 8,8%. Perante o descalabro, Lagarde confirma subida de juros como estratégia anti-crise, mas subir os juros para “combater” a inflação é o mesmo que atirar gasolina para o fogo. Parece ser esta a medida mais eficaz para combater a crise, o que não deixa de ser verdade, mas para combater a crise dos lucros dos capitalistas e não a crise de sobrevivência de quem vive do produto da venda da sua força de trabalho.

Fazendo fé nos resultados do inquérito já referido, da Aximage quanto às quebras no rendimento nos últimos 12 meses por parte dos portugueses, 46% dos inquiridos consideram a gestão do governo para atenuar os efeitos da crise “muito má”, por oposição aos 14% que a avaliam de forma positiva. Estará alguma coisa a mudar? O governo de maioria absoluta do PS/Costa irá aguentar os quatro anos? Uma coisa é certa: a luta de classes irá inevitavelmente intensificar-se.

OS OSSOS DO IMPERADOR E DE OUTROS MAIS

25.06.22 | Manuel

D.-Pedro-IV-o-rei-que-teve-34-filhos.jpg

Jorge de Sena:

Dizia ele que deixara a vida

pelo mundo em pedaços repartida.

Há quatrocentos anos que isso foi.

Mas desde então e sempre o que no mundo

se repartiu para não voltar

é o que – a mais que um poeta e dos maiores –

poderia ter sido o povo português.

*

Solúvel e insolúvel este povo.

Na memória dos outros e na sua mesma.

*

Real, sub-real, super-real,

ou – como querem alguns – surrealista?

Que dizer de um povo cujo tempo

se dissolveu no espaço e cujo espaço

não teve nunca tempo para dissolver-se

em tempo?

*

Eterno era só Deus. Os povos não.

E não as línguas e as cidades. Mas

quem vive de alheamento e sobrevive

não é que eterno se ignora morto?

*

Salvador Correia

de Sá e Benevides

libertou o Brasil dos holandeses

e Angola deles pois que sem escravos

o mundo não se açucarava bem.

Um dia regressou a Portugal

à espera de ser visto como herói

(que era). Gastou os fundos dos calções,

as economias, as plumas do chapéu,

e os borzeguins comprados para a Corte,

nas antecâmaras reais e realengas.

E um dia exausto ele já de esperas e delongas,

a Majestade recebeu-o enfim.

O que é que ele queria? O que é que ele pedia?

Ah não pedia nada. Só licença

de voltar ao Brasil. Estava velho

e não havia

em Portugal espaço pra morrer-se.

*

Espaço no Brasil, pobre Correia!

Só reduzido a cinzas centenárias

é que D. Pedro para lá regressa

a pedido de várias famílias.

(Legitimistas riem-se nos túmulos,

e os liberais não choram, que os não há).

*

Está aberta a inscrição para poetas épicos

que celebrem em oitavas a vitória

de Alcácer-Quibir.

(15 mil réis de tença anual para o poeta

não nomeado por velho e demasiado grande).

*

Mas este povo: o povo: esse de séculos

em terra dura e curta vida imerso?

Que sonha ou pensa? Franças e Araganças?

Se lhe tiraram cama em que sonhar!

Se lhe não deram nunca o imaginar

mais que sardinha assada sem esperanças!

Não sonha ou pensa, apenas faz os filhos

que um dia houveram sido o povo se –

um se e sempre se de tantos séculos

e terra dura e curta vida e gente

que está em cima e há outros mais abaixo

danados só de não estarem em cima

do mesmo povo, o tal que todos amam

e lhes faz figas quando voltam costas.

Lisboa, Agosto de 1971.

Nota explicativa do autor:

“São Silvestre e a Língua Portuguesa”, de Dezembro de 1973, foi publicado, sem cortes da censura, no Diário Popular, de Lisboa, em 3 de Janeiro do ano seguinte, a tempo de celebrar o ilustre santo e papa (como do artigo se vê, ele era as três coisas, ou é). Neste conjunto, é sobremodo evidente que a ordenação tinha de começar por este estudo histórico-filológico, fundamental para a compreensão dos substratos mais íntimos da cultura portuguesa. A ele segue-se “Uma Descoberta que Falhou Duas Vezes aos Portugueses: Conta-se da Primeira”, escrito poucos dias antes de ser publicado naquele mesmo “Diário Popular”, em 3° de Agosto de 1973. Naquele tempo, quando, segundo o sentimento geral, as Descobertas Portuguesas estavam oficialmente em moda, como agora, com igual infelicidade, não têm estado, o artigo – histórico à fé da documentação referida –era muito a propósito. E tratando ele de descobertas que não houve ainda que algumas tenha havido, anteriores à Fundação do Jardim da Europa, claro que lhe cumpre vir logo depois do que trata da «silvestre» origem dos nomes dos dias da semana em português, e de outros milagres correlatos. Será perfeitamente consentâneo que, a seguir, se trate de “Os Ossos dos Nossos Monarcas”, que, por lapso meu de cópia saiu sem os “Nossos” no título, ao ser publicado no “Diário de Noticias”, de Lisboa, em 12 de Setembro de 1968, datado do Junho em que havia sido escrito e remetido (maneira discreta de indicar ao leitor que lutas houvera, por parte de Natércia Freire, que dirigia a página literária e me publicava no DN e a muitos outros oposicionistas ora esquecidos de quanto a ela deveram por anos, para que o artigo passasse...). É de notar que o artigo havia sido escrito e remetido imediatamente antes da minha partida dos Estados Unidos para a Europa, e, quando foi publicado, eu deambulava furiosamente pela Europa adiante, tendo chegado a Portugal só em Dezembro desse ano, para ser vitima ou objecto de um «equivoco de fronteira» que será, com a devida minúcia, contado noutra ocasião. Há que apontar que o artigo nada tinha de piada gratuita à veneração pelos monarcas lusos, muitos dos quais me merecem (Filipe II, inclusive) a maior consideração. Muito pelo contrário. Todos os leitores do tempo o entenderam perfeitamente: ele era uma sátira à solene transladação, para o Panteão dos Braganças, em São Vicente de Fora, de D. Miguel I, a que então se procedera, dando satisfação às tendências miguelistas e absolutistas mais que centenárias, mas que foram e ainda são parte do «complexo ideológico» do fascismo português (que, como é sabido, foi mais que nenhum outro um chorrilho de contradições direitistas). D. Miguel não era mencionado nunca, nem era necessário levar mais longe a provocação. Mas há que acrescentar que, quer a gente queira quer não queira, ele reinou “de facto” (reconhecido diplomaticamente, antes de mais, saborosa ironia, pelos Estados Unidos da América e pela Rússia) em Portugal, era um Bragança com direito de asilo no jazigo de família, e, para sermos completamente francos, correspondeu no seu tempo ao sentimento da maioria do povo português, muito mais do que o seu vitorioso e liberal irmão D. Pedro, ambos não só usados pelos políticos, mas exercendo físico e carismático fascínio sobre os seus partidários. Todavia, o trazer-se D. Miguel não era na verdade um acto de justiça prestado aos seus ossos: era uma ostensiva manifestação de esbofetear o liberalismo que o vencera. Por isso o artigo foi escrito (e quiçá, nas divisões que havia dentro de tudo, então como agora, publicado). Curiosamente, e provavelmente por simples lapso da revisão, foi cortado um parágrafo inteiramente inócuo ante o irónico veneno de tudo o mais: aquele que aqui começa «E assim todos os soberanos de Portugal...» e termina «velar pela memória e pelos ossos deles». A “nota final”, última volta do parafuso irónico, era do original e saiu também naquele “D.N.”. Uma vez que esta peça de sólida erudição histórica (uma das minhas frustrações, como será de calcular, é que tanto historiador português de reconhecida idoneidade use dela, sem me citar em nota ou bibliografia) seria necessariamente incluída nesta colectânea, a ela teria de ser «anexado» um poema de 1971, escrito durante uma estada em Portugal, durante a qual o então Presidente da República, Tomás e almirante, convocou o povo a ouvir uma importantíssima comunicação pela TV, e à hora da janta lá estava eu à espera de ouvir que o Prof. Caetano era demitido, ou que ia haver eleições, ou que se assinava a paz em África, ou que Portugal descobrira a bomba atómica. O país ardia de curiosidade. E ele, solenemente, informou o dito povo de que este mesmo povo unanimemente aprovara que, correspondendo à solicitação do Governo Brasileiro oficialmente apresentada pelos canais competentes, Portugal ofereceria ao Brasil os ossos de D. Pedro (o IV que os miguelistas nunca engoliram como rei em Portugal, e o I, que os brasileiros não descansaram enquanto não o correram do Brasil para fora, por muito que ele tivesse gritado aquela «Independência ou Morte» nos campos de Ipiranga nos subúrbios de São Paulo, se não me engano nesta topografia histórica que, no Brasil, só serve para retóricas como aquelas que a gente teve de suportar por décadas em Portugal, e que, diga-se de passagem, me pasmaram quando cheguei ao Brasil em 1959, por muito que de Brasil já soubesse e até lá tivesse estado em rapaz, uma vez que eu pensava que tal patrioteirismo barato era coisa de fascistas e afinal não era, e vejo melhor agora, pelo mundo, que não é, mas arma de todos os grupos dirigentes no seu oportunismo de manobrar as massas). O discurso, acima referido, gaguejado na TV, era de um incrível ridículo, e enquadrava-se, efeito que me causou, na indignação que eu sentia ante o fim da festa (e que era afinal, sem que muita gente soubesse, preparação do festival seguinte), que nojentamente era o exibicionismo de novo-riquismo da sociedade portuguesa. O que tudo deu os violentos poemas que foram publicados numa secção do meu livro “Exorcismos”, 1972, devo dizer que com escândalo de gente de todas as cores, que achou que eu ofendia neles a pátria (neles, quero dizer os poemas e essa gente delicada ou comprometida). Ele, Presidente Tomás, ele mesmo, levaria ao Brasil os ossos, e creio que efectivamente levou. O dar ao Brasil os ossos do seu primeiro Imperador e fundador como nação independente “não era só” uma homenagem ao Brasil: era, sim, o epilogozinho torpe da entrada dos ossos de D. Miguel. Entrava o “legitimo”, e era posto a andar o “traidor brasileiro”. No poema põe-se em contraste como, no século XVII, Salvador Correia de Sá dissera aquela tremenda frase de amargura a D. João IV ou lá quem foi que o ouviu nos Paços da Ribeira, quando afinal ter-se nascido português e viver no Brasil passou a ser um bico de obra, de que não sofrem tanto as outras raças migratórias, ainda que no primeiro impacto, os italianos de São Paulo soubessem que tinham de descer do passeio para a rua (a menos que desejassem arriscar facada dos capangas), quando nele passavam os grandes senhores paulistas e paulistanos (todos de quilométricos apelidos portugueses). Ainda quanto a ossos no Panteão de São Vicente, consta-me que a recentemente falecida Madame Lupescu, longamente amante mundial do Rei Carol da Roménia, ele insigne magnate dos pitróis toda a vida, e ela dele viúva morganática, acaba de dar entrada no dito Panteão brigantino de São Vicente. A que titulo? É isto uma “revolucionária” manifestação de desrespeito pela intimidade familiar dos Braganças, ou homenagem às companhias do petróleo, ou as duas coisas juntas? Porque homenagem à Roménia como país amigo por certo que não é. Fora com a Madama, e haja respeito por uma série de gente que, a comparar com a cabronada que, em tempo deles, governou as Europas, São modelos de inteligência e de virtude, em que pese à propaganda republicana de antes e depois de 1910.

Jorge de Sena, “Reino da estupidez-II”. Moraes Editores, 1978

Al-Mu'tamid: o rei-poeta

20.06.22 | Manuel

almutamid.jpg

A VIDEIRA
ao passar junto da vide
ela arrebatou-me o manto,
e logo lhe perguntei:
porque me detestas tanto?
eis que ela me respondeu:
porque é que passas, ó rei,
sem me dares a saudação?
não basta beberes-me o sangue
que te aquece o coração?

*

Poeta mouro, nascido em Beja, em Dezembro de 1040, célebre como rei, literato e homem. Começa por ser um notável poeta de amor, como documentam os nomes das concubinas a quem dedicou versos; a rainha ‘Itimad, porém, será sempre alguém muito especial que o acompanhará em todos transes da atribulada existência, até ao fim dos seus dias, no exílio.

O reinado de al-Mu'tamid é vivido num precário equilíbrio, dada a ameaça de Afonso VI de Castela, a quem se vê obrigado a pagar tributo. O alargamento que consegue das suas fronteiras é feito para sul e leste à custa do território de outros reinos de Taifas, chegando a englobar, além do Algarve e grande parte do Alentejo, cidades tão importantes como Córdova, Sevilha, Ronda, Huelva, Carmona, Algeciras, Niébla, Jaén, e Múrcia.

A desagregação do califado, provocada por diversos partidarismos, vence o cimento do Islão que se torna insuficiente para contrariar a degradação política e as tendências de secessão. Os pesados impostos não canónicos lançados sobre povo tornam-se impopulares e desmobilizam a defesa do território. Ameaçado pelos avanços do rei cirstão, al-Mu'tamid recorre por três vezes ao apoio de do rei almorávida, Ibn Tashfîn. Um apoio que se revelou fatal para al-Mu'tamid, o soberano berbere, apercebendo-se das riquezas do Alandalus, viu também as suas fraquezas, resolveu proceder à sua conquista. Al-Mu'tamid, depois de feroz resistência, é derrotado e feito prisioneiro.

Morre no exílio, em 14 de Outubro de 1095, em Aghmât, perto de Marraquexe. Fica na história como o “poeta do destino” e um dos maiores da língua árabe de todos os tempos e o mais notável do Alandalus ibérico da segunda metade do século XI. Este rei-poeta, filho e neto de poetas, educado numa corte de literatos, viveu numa época de grande agitação social e política, mas igualmente de tolerância e progresso artístico, filosófico e científico. Realidades que transparecem na poesia de al-Mu'tamid que “começa por ser o poeta dos prazeres da vida, das tertúlias báquicas, do amor e da sua fruição erótica e acaba cantando o sofrimento, enquanto instrumento do Destino para fazer brilhar a pedra oculta da grandeza humana”, segundo as palavras do grande arabista português, Adalberto Alves.

(ver em “Al-Mu'tamid – Poeta do Destino” de Adalberto Alves, da Assírio & Alvim. 2004)
 

SAUDAÇÃO A SILVES

viva Abû Bakr!
saúda por mim, asinha,
os queridos lugares de Silves
e diz-me se a saudade deles
é tão grande quanto a minha.

saúda o Palácio dos Balcões,
da parte de quem não esqueceu
a morada de gazelas e leões,
salas e sombras onde eu
doce refúgio encontrava
entre ancas que lá achava
e bem estreitas cinturas.

moças níveas ou escuras
atravessavam-me a alma
como brancas espadas
ou lanças aceradas.
ai quantas noites fiquei,
lá no remanso do rio.
nos jogos d'amor m'embaracei
com a da pulseira curva,
igual aos meandros da água,
sem ver o tempo passar…

bebia vinho, sem mágoa:
o vinho do seu olhar,
às vezes o do seu copo,
e outras vezes o da boca.

tangia-me o alaúde:
minh' alma ficava louca
como se ouvisse crispados
tendões de colos cortados.

e se retirava as vestes
mostrando encantos de amor,
era um salgueiro prestes
a abrir o seu botão
para me mostrar a flor.

 *

PARTIDA PARA A BATALHA

reencontrámo-nos ao romper do dia
e já soara a hora do adeus.

aos pendões agitados na frente do palácio
juntámos nobres montadas de fino pêlo.
soaram os tambores da separação.
chorámos sangue dos olhos feridos
pelas lágrimas caídas em torrente.

três dias após - quem sabe? - voltaríamos.
mas quanto durariam esses dias
e quem suportaria a sua sucessão?

*

O CAVALEIRO CATIVO

fina-se na bainha aquela espada,
com saudade de ser erguida pela mão
e a lança sofre por não ser usada
porque meu braço a não sacia então.

também o corcel susta a bocada
se, nervoso, escondida espera,
O cavaleiro é como ávido leão:
pastando com apresa está a fera

O rei dissoluto e o lupanar real do Convento de Odivelas

20.06.22 | Manuel

imagem_2022-06-20_164321446.png

«Passando sumariamente pelo reinado dos três Filipes e pelo de D. João IV nos quais a nossa resenha histórica muitos factos de feroz devassidão poderia respigar, porque nesses tempos ferozes e devassos o impudor e a prostituição devoravam o organismo social até à medula, paremos um momento nos primeiros tempos de intriga e torpeza do reinado de D. Afonso VI, o Vitorioso , como a História lhe chama, por irrisão decerto.

É conhecido o carácter imundo do filho e herdeiro de D. João IV as suas inclinações vis e os seus gostos obscenos, qualidades que muito justamente lhe atribui um historiador contemporâneo. Esse rei fraco e impotente, que se rodeava de uma malta de devassos, percorria de noite as ruas da cidade, praticando e deixando praticar as maiores torpezas. Raptos, adultérios, estupros, tudo se realizava impunemente. Os bons burgueses tremiam de medo, quando desfilava aquele tropel de dissolutos, capitaneados pelo rei Vitorioso , que, qual outro Calígula ou Nero, se prostituía nos braços dos seus validos, visto não poder de outro modo satisfazer a sua lubricidade!

E no entanto, a razão de Estado ligou os destinos deste monarca inepto e impotente aos de uma princesa francesa, educada nas torpezas da corte de Versalhes, de temperamento voluptuoso e sem escrúpulos, que bem cedo saciaria nos braços de seu cunhado, O. Pedro, as paixões que o inválido marido não podia saciar. Daqui, a torpíssima comédia que deu o trono a D. Pedro e atirou com o pobre rei impotente para o cativeiro, onde morreu.

Mas D. Maria Francisca Isabel de Sabóia passou à posteridade como o tipo completo da impudicícia no trono, e a história dos seus amores e maquinações com o seu cúmplice, o futuro rei de Portugal, constituem páginas vergonhosas e infames, que jamais se apagarão da memória do povo português.

Com estes predicados, o reinado de D. Pedro II foi um dos mais tristes na história da dissolução na sociedade portuguesa. Só o excedeu em torpezas outro reinado, o do seu filho e sucessor D. João V, o rei freirático. Dava matéria para um grosso volume a pintura da sociedade portuguesa nessa época desgraçada. No trono, o exemplo da devassidão e da torpeza, um arremedo grosseiro e brutal da corrupção na corte de Luís XIV Os fidalgos entregavam-se acorrerias nocturnas pela cidade. Havia bandos temíveis pelos seus excessos e torpezas, o do duque de Cadaval, dos marqueses de Marialva, dos condes de Aveiras e de Óbidos, que percorriam e amotinavam Lisboa, praticando toda a casta de violências e crimes. Os próprios príncipes entregavam-se a estes divertimentos sangrentos, violando as mulheres, raptando-as, corrompendo tudo com o exemplo e o desenfreamento feroz dos seus vícios. E não era só em Lisboa que se praticavam estas violências; noutras terras, em Coimbra, por exemplo, a vida dos cidadãos e o pudor das mulheres não estava mais ao abrigo dos devassos da época.

Era, como diz o sr. Oliveira Martins, «uma orgia sanguinária e lúbrica, fundando o fundo real do quadro da devoção idiota e da majestade burlesca. O conde de Távora, tão piedoso que dava ao papa autoridade para tirar um santo do Paraíso e mandá-lo para o Inferno, vivia amancebado com a Rocha, furtada por ele ao pai, e casada com um criado seu. A Rocha fugiu-lhe com o padre Soares.»

Um conde ia disfarçado de mulher, de manto e touca, falar à criada em Santa Clara, e dormia no convento com ela.

Bons tempos esses de luxúria infrene, bons tempos esses, que ainda agora os devotos nos citam como exemplo de uma santa compostura dos costumes, por isso que a orgia ao menos andava encabeçada em rezas e procissões devotas, por isso que se cometiam estupros, incestos e todas as devassidões, à sombra do manto protector da religião.

Era de ver como os reverendos padres sabiam levar a vida! O prior de São Jorge, aqui em Lisboa, ainda aos sessenta e cinco anos de idade tinha um serralho, abundantemente provido de odaliscas, suas confessadas. A Inquisição, por inveja decerto, processou o bom do padre e condenou-o ao degredo. Mas, que mal havia nessas fraquezas do santo homem, visto que, como ele próprio dizia, em sua defesa, não fazia senão seguir os ditames do Evangelho, já que passava o seu tempo a amar, e o amor é a caridade, resumo de toda a lei?

E as freirinhas, como elas gozavam o amor profano e o amor sagrado, entregando-se, rendidas de luxúria, nos braços dos seus sigisbéus galantes e nos dos frades das diversas comunidades! A excelente abadessa do convento de Sant'Ana, aqui na capital também, tomou-se de amores com um frade capucho e lá foi com o santo homem para a Holanda, trocar místicas e adoráveis carícias com o amável frade, que a enlouquecera com os seus amavios e cantigas.

Não havia nada como o amor devoto, que dava aos desejos um ardor inimitável. Quando a igreja celebrava as suas solenidades mais dramáticas, quando as decorações fúnebres e os cânticos plangentes davam aos espíritos um desvairamento místico, era de ver como se faziam conquistas e como as mulheres se rendiam depressa, cheias de lubricidade e paixão! Até o rei, o devasso D. João V se disfarçava em andrajos de pobre para, junto do andor do Senhor dos Paços da Graça, beliscar as damas da alta-roda, quando esse bando de mulheres levianas e formosas iam beijar o pé da votiva imagem.

E todos rezavam, ao passo que iam namorando e pecando, porque as rezas tudo desculpavam e tudo auxiliavam. Depois, circunstância favorável, havia os biocos protegendo contra as curiosidades indiscretas e favorecendo os sinaizinhos, os ternos olhares e os beijos dos galãs. Se do namoro resultavam complicações ou comprometimentos, lá estava a espingarda para resolver as questões a tiro, mesmo nas ruas da cidade e, como diz um historiador de são critério, a água-forte ministrada em bebida resolvia muita questão doméstica.

No topo desta sociedade corrompida, estava o rei, dando o exemplo de todas as devassidões e tendo em Odivelas o seu serralho devoto, onde se entregava a rezas e a lubricidades, passando do coro para as sumptuosas alcatifas, onde, em coxins orientais, refocilava os apetites de luxúria na esplêndida carnação de soror Paula. Ali comia âmbar e passava horas deliciosas.

«É verdade – diz o sr. Oliveira Martins – que D. João V perdia a cabeça por todas as mulheres; mas a sua verdadeira paixão estava em Odivelas, o ninho da madre Paula. Mandara fazer uma boceta preciosa para guardar os seus amores. Madre Paula e a irmã Maria da Luz viviam juntas nesse fofo recinto preparado para todas as voluptuosidades.

Todo o luxo da época se acumulara no palacete misterioso e maravilhoso: as talhas douradas, os mosaicos de Itália, os charões da Índia, os móveis de ébano embutidos de marfim, os espelhos de Veneza, os cristais, as cambraias, as rendas, as pratas e ouros, as franjas pesadas, os estofos de Melânia (fazenda da moda), as sedas adamascadas que revestiam as paredes. As duas irmãs dormiam no mesmo quarto e, entre as camas, tinham duas pias de prata com água benta para se persignarem. Da sala verde, onde havia um relógio de minuetes e um balcão de mármore envidraçado, abria-se uma tribuna carmesim e ouro sobre a igreja do convento, com os retábulos de Nossa Senhora da Graça, de São Bernardo e de São Bento, três protectores dos três beatos: o rei e as duas irmãs. A embriaguez devota não excedia, porém, os desvarios lúbricos, na sala cor de fogo, onde a mole odalisca, brevemente vestida de rendas, era servida pelas suas criadas mulatas, de arrecadas de ouro nas orelhas.

O rei entrava e saía, sem se esconder, sem recear que o vissem. Todo o convento o conhecia e lhe beijava reverentemente a mão. Perto do palácio, porém, rebuçava-se por decoro: era ao Arco dos Pregos, e o Cucolim, ao contar as idas para Odivelas, dizia: “Ali perde a vergonha!”»

Era um grande farsista, el-rei O. João V, e passava alegremente a vida no convento de Odivelas. Eis uma anedota engraçada que o sr. Bernardes Branco refere no livro a que pôs por título “As Minhas Queridas Freirinhas de Odivelas”:

«Havia tempos que madre Paula instava com o seu amante, el-rei O. João V, para que lhe levasse até Odivelas o famigerado Camões do Rossio. Estava – dizia ela – ansiosa por conhecer um homem de quem tinha ouvido dizer tantas maravilhas; e que tão falado era, não só por causa dos seus versos, como pelos ardis por ele inventados para apanhar ou fazer cair na rede os gatunos e meliantes.

“Olha, João, se eu não estivesse apaixonada por ti como estou e se no mundo não houvesse coisa alguma, como não há, que possa fazer com que eu te seja desleal, aquele livro de versos chamado “Martinhada”* seria para mim uma grave tentação! Que lindeza de versos! Que sublimidade de pensamento! Que assunto tão abrejeirado e tão pândego!”

D. João V descreveu à sua querida freirinha o Camões do Rossio como um homem grande trocista e disse-lhe que receava trazê-lo a Odivelas, por isso que soror Paula podia, como hoje dizemos, estender-se, dar raia, com os epigramas do vate, e assim ele rei fazer figura triste, ficando o Camões a julgar que a amante era uma insignificante, um espírito vulgar e tacanho.

Ao Camões, que do mesmo modo desejava conhecer soror Paula, dizia o gracejador monarca que receava apresentar-lha, para que ela, fina como era, não lhe fizesse alguma pergunta que o atrapalhasse. E então, sendo o poeta corregedor e quase valido do rei, era ainda o monarca quem faria figura triste para com a sagaz freirinha.

Continuaram por muito tempo os pedidos, tanto da madre como do Camões – prossegue o sr. Bernardes Branco. – Até que, afinal, quando lhe pareceu, o rei anuiu, pedindo à madre que tivesse muita presença de espírito, pois que o Camões parecia mais um diabo que um homem.

“Ou diabo ou homem, hei-de atrapalhá-lo. Hei-de, à queima-roupa, dirigir-lhe um cumprimento tal e tão fora do vulgar que o homem não abre a boca e fica embatucado.”

“Olha lá não se volte o feitiço contra o feiticeiro” – exclamou o rei.

Depois anuiu o rei também às solicitações do Camões, fazendo-lhe grandes recomendações, e que o melhor de tudo seria, quando ele chegasse à presença da freira, não a encarar, pois os olhares dela forçosamente o atarantariam: que o melhor de tudo seria representar o papel dos frades, os quais, quando passavam por uma mulher, fitavam os olhos no chão.

“Mas Vossa Majestade bem sabe que eu não sou frade” – resmungou o Camões.

“Hoje mesmo a veremos. Às oito horas da noite hás-de estar no meu palácio e vais comigo na sege.”

“Agradecido, real senhor!”

E o rei mandou logo participação à freira de que naquela noite ia o Camões em companhia dele, e que só uma coisa lhe pedia: que tivesse presença de espírito, ou então que não aparecesse e fingisse estar doente. Às oito horas da noite, eis o rei e o Camões dentro da sege, em direcção a Odivelas, e a mata-cavalos. Galgaram o caminho em menos de três quartos de hora. E o rei fingia-se assustado, e em todo o caminho só disse ao poeta:

“Camões, não me envergonhes. Retrocede, que ainda estás a tempo, se em ti não sentes coragem bastante! Aqueles olhos... aqueles olhos da madre Paula são o Diabo!...”

“Não retrocedo, não, real senhor. Hei-de acachapar a madre Paula.”

“Pouco falta para isso se ver” – exclamou o rei.

Ei-los junto do Arco de D. Dinis. Ei-los a entrarem no couto ou Arco de Odivelas. Apeiam-se, e o rei a dizer a Camões:

“Espera aqui um minuto à porta e eu te farei sinal para subires.”

Mas o que o rei queria era tomar posição conveniente para ver a cena à sua vontade. A sala do rei ficava no primeiro andar. D. João postou-se no meio da escada, encostado à parede, para poder ver bem à vontade a cena entre a madre Paula, que estava em cima, e o Camões em baixo.

A madre desceu dois ou três degraus, e fita o Camões, que também já tinha subido uns dois ou três degraus. A madre, encarando sempre o Camões, exclama com a máxima volubilidade:

“Como vem fáfio! Como vem féfio! Como vem fífio! Como vem fófio! Como vem fúfio!”

O rei, às gargalhadas, pela originalidade do cumprimento! O Camões, a responder também com o máximo de volubilidade:

“Como estais pata! Como estais peta! Como estais pita! Como estais pota! Como estais p...!”»

Tal era a pilhéria do tempo! É de crer que O. João V ficasse tendo no mais elevado conceito o espírito da freira e o do poeta. O sr. Bernardes Branco, grande admirador das graças freiráticas, exclama, depois de haver contado a anedota: «Ai que tempos, que tempos! Aonde te refugiaste, ó pilhéria, que em Portugal já te não vejo!»

Como os leitores estarão notando, o sr. Branco é demasiado modesto. Nos seus livros há pilhérias de sobra para fazer rir as próprias pedras!

Anotações:

1. É o Renascentismo (séculos XVI e XVII) que o autor passa em silêncio, não respigando desses séculos quaisquer manifestações de «feroz devassidão». Não diremos que o Renascimento foi exactamente isso: uma feroz devassidão. Mas foi de certeza uma época revolucionária, em que caiu muito do velho mundo, e em que o prazer ganhou direito de cidade, em que a curiosidade invadiu os espíritos, em que até a Virgem Maria recupera o valor de Vénus, em que o materialismo avança, trazendo consigo uma certa libertação sexual: o amor bissexual torna a fazer parte dos costumes, a mulher retoma às vezes a iniciativa amorosa. Portugal foi também atingido por este renascimento, e, se Amorim Pessoa não coligiu nada digno de antologia, ou foi porque o amor se tornou coisa demasiado vulgar, ou demasiado invulgar, para poder ser falado. Sabemos todavia que, na França, Luís XIV, contava entre os seus melhores generais com muitos «monstros» de homossexualidade. (Facto que junto a outros semelhantes, vem a ser o tema preferido do escritos revolucionário Sade.) Entre os mais célebres cardeais pederastas da época, avultam o de Guise e o de Bonzi, o de Bouillon e o de Coislin. A lésbica Catarina da Suécia nunca conseguiu amar senão quem usasse saias: foi, já no fim da vida, amante de um cardeal italiano. O seu contemporâneo, o nosso Afonso VI, deve ter sonhado com uma corte desse género em Portugal... mas, coitado, não levou o sonho avante, porque o sistema português, mais uma vez, não aguentou a desagregação e a crise da família real. E deu-se o que o autor conta no início deste trecho (…).

2. Com D. João V, o nosso autor dá por findas as histórias adúltero-prostitutas da nossa História. Em homenagem ao citado poeta Camões do Rossio (morto em 1739), damos aqui uma amostra da introdução à sua Martinhada, uns «Lusíadas» no género pornográfico:

Eu canto a Porra e o varão potente,
Esse que fez dos rins, no seminário,
A toda a carne humana guerra ardente
No excesso do apetite fornicário:
O Martinho, ou carneiro de semente,
Que sobre as putas tem membro arbitrário;
Eclesiástico anfíbio de maldade
Que, juntamente, foi clérigo e frade.

Este é o varão; o membro é aquele
Grão-senhor do comércio dos marzapos,
Por que a fama gentílica atropele
Da genital enxúndia dos Priapos:
O que ao vaso das moças tira a pele
E costuma fazer-lhe a crica em trapos,
-Quando vermelha e imodesta atura,
Da bimbalhada, a horrenda embocadura.
 
Não quero as nove irmãs que, por inuptas,
Me não hão-de influir, sendo donzelas;
Desejo um coro de noventa putas
Graduadas no exercício de michelas:
Mas se é preciso que, do Pindo, as grutas
Tenham parte da voz nas tangedelas,
Bastará que me assistam do Parnaso
Os colhões e a porra do Pegaso.
 
Tu, pai da geração burra, castiça,
Escuta do meu verso as rimas toscas;
Enquanto a burrical parda linguiça
Brandamente, à barriga, abana as moscas:
Inclina um pouco a orelha dobradiça,
Alargando e encolhendo ao membro as roscas;
Ouvirás, 'inda posto a barlavento,
As fodas do eclesiástico jumento.
[...]

3. São às dezenas também os poetas do século XIX, mal recebidos pelo sistema e impedidos de chegar à grande publicidade, tal era a «impureza» dos seus versos. É assim que Gomes Leal (1848-1921) fala da prostituta no poema «A uma Horizontal» (in “Fim de um Mundo”, Porto, Livraria Chardron, 1900; recompilado por Albino Forjaz de Sampaio e Bento Mântua na antologia “O Livro das Cortesãs”, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1917):

Mulher de tranças negras e compridas,
e de falas fingidas,
que, alta noite, ao ruído das orgias,
com casquinadas frias,
achincalhavas corações dolentes...
– com que prazer vejo que não tens dois dentes!
 
Ó sereia das tranças cetinosas,
e falas melodiosas, ...
toda cheirando a rosas...
Senhora do Deleite!
sempre em banhos de leite,
sempre inventando sensações estranhas...
– hoje estás boa para assar castanhas!

* Existe reedição moderna deste conjunto poético da autoria de Caetano José da Silva Sottomaior, juiz-do-crime na Mouraria e corregedor no Rossio, por alcunha «Camões do Rossio». Ver editora & etc, colecção Contramargem n.º 13, Lisboa, 1982; ou também, apenas algumas passagens do referido poema, na “Anlologia de Poesia Porluguesa Erótica e Satírica”, co-edição Antígona/renesi, Lisboa, 4.ª tiragem, 2005. ( NdE).»

(O torpe Afonso VI mai-la adúltera esposa. João V e o poeta Camões do Rossio in “Os Bons Velhos Tempos da Prostituição em Portugal”. Alfredo Amorim Pessoa. Antígona_Frenesi. Lisboa. 2006)

Imagem: D. Afonso VI

Adelino Veiga, o operário-poeta

20.06.22 | Manuel

adelino-veiga.jpg

AVÉ, LIBERDADE!...

Amei tudo quanto vi
Em liberdade viver;
Tomei ódio á tirania
Jurei guerra ao seu poder.

Pois se nem o mar quer peias,
Pois se é livre o rijo vento,
E livre é o pensamento,
Há-de um homem q'rer cadeias?!...
Oh! não!... que o sangue das veias
Também é livre por si! ...
Liberdade! ...eu conheci
Quanto o teu poder encanta!...
Por ver que és tão boa e santa
Amei tudo quanto vi!...

O mundo inteiro gemia
Debaixo de um jugo bravo,
Tu surgiste, e o povo escravo
Livre olhou a luz do dia!...
Na treva mais que sombria
A maldade foi morrer
E os negros dentes ranger
Blasfémias mandando aos céus,
Por ver os filhos de Deus
Em liberdade viver!...

A tirania é horrível,
Só quer luto, fogo e sangue;
Ceva na vítima exangue
A sua fúria terrível!
Oh! nada há mais temível
Nos males que o inferno cria,
Nem há fera mais bravia
Do que essa hidra feroz!...
Por ela ser mãe do algoz
Tomei ódio à tirania!...

Quando o assassino Caim
Matou seu irmão Abel,
Plantou na terra a cruel
Tirania tão ruim;
E herdeira cruel, assim
Soube ela o crime exercer
'Té no mundo aparecer
A Divina Liberdade,
Que lhe disse: Oh! impiedade!
Jurei guerra ao teu poder...

ADELINO VEIGA:

«Falar de Adelino Veiga, o operário-poeta, é prestar homenagem a um conimbricense que com dignidade representou uma plêiade de homens que a história citadina regista e jamais poderá esquecer.

Adelino Veiga mais do que a sua personalidade histórica é também uma figura simbólica; a figura do operário conimbricense, virtuoso, trabalhador honrado e inteligente, com notáveis aptidões literárias e artísticas.

Adelino Veiga nasceu em plena baixa de Coimbra, a 13 de Outubro de 1848, numa modesta casa da rua das Solas, o n.º. 19 (agora com o seu nome, rua Adelino Veiga).

Oriundo de família humilde, Adelino Veiga, era filho de Maximiano Bento da Veiga, natural da freguesia de Castelo Viegas, e de Maria das Dores, natural de Santa Justa, freguesia de Coimbra...

Cedo aprendeu com o pai a arte de barbeiro, consertador de chapéus de chuva, latoeiro de amarelos, chapeleiro e construtor de redes de arame, ajudando deste modo a subsistência da família.

Mais tarde residindo somente com a mãe e irmã Rosália Veiga (teve outro irmão - Maximiano Veiga) instalará a sua própria oficina de reparação de chapéus na Rua Nova da Rainha, actual Rua da Sota, onde está instalada a Agência do Banco de Portugal.

Devido a dificuldades económicas, Adelino Veiga, não teve um grande percurso nos seus estudos. Não chegou a concluir a instrução primária, o que sempre lamentou, mas a vontade de saber, a capacidade de destrinçar no seu explorado meio a realidade dos seus desejos, a consciência dos direitos de quem trabalha, enfim uma profunda sensibilidade de sentir e amar, tornaram-no num autodidacta. Testemunhos há que o encontram desde a tenra idade dos 15 anos, a versejar com facilidade e espontaneidade no "Café da Alexandrina", ao cimo da Praça Velha, hoje Praça do Comércio.

O operário-poeta não descurou, porém, a sua formação intelectual nem esqueceu a verdade da sua origem e as dificuldades que enfrentou, relacionando o seu passado e a sua vivência difícil, com a vida de problemas com que os operários se defrontavam ...

Sobre Adelino Veiga, poeta humilde, escreveu o escritor Campos de Figueiredo "nunca vi o seu nome nos compêndios escolares nem qualquer referência na história da nossa literatura onde figuram versejadores cuja obra nada tem a ver com a poesia. E Adelino Veiga bem merecia tornar-se conhecido pela sua qualidade de poeta que na realidade foi. Embora poeta menor, a verdade é que este operário de Coimbra viveu como poeta e deixou uma obra onde a poesia existe. Nem grande nem pequena: apenas poesia".

Adelino Veiga afirmou a sua extraordinária personalidade em vários campos da actividade cultural, a saber: na poesia, na oratória, no jornalismo, no associativismo, no teatro e no combate por reivindicações sociais.

(Do Livro “VIDA E OBRA DE ADELINO VEIGA – POETA-OPERÁRIO CONIMBRICENSE, António Gonçalves, GAAC – Coimbra, 1993)

*

AS TOUPEIRAS DA SACRISTIA

Nas trevas andam toupeiras,
Pois não podem ver o dia;
Assim são os missionários
Toupeiras da sacristia.

Contra a deusa liberdade
Jesuítas formam guerra,
Derramando pela terra
A tirania, a maldade;
Com fumos de santidade
E com pregações matreiras,
Muitas famílias inteiras
São por eles iludidas;
É uma guerra ás escondidas,
Nas trevas andam toupeiras.

N o escuro confessionário
Falam das penas do inferno
Insultando o Padre Eterno
E o Mártir do Calvário!
Com beatério falsário,
Com velhaca hipocrisia,
Aconselham tirania.
Fazem do povo um açoite!...
Eles são negros como a noite,
Pois não podem ver o dia.

Rojam-se como as serpentes,
E tão enganosos são,
Que fingem lamber a mão
P'ra mais ferrarem os dentes!...
Com rezas impertinentes,
Estes negros comissários
Inventam milagres vários
Insultando alei de Cristo!...
É este o bando sinistro! ...
Assim são os missionários! ...

Abusam da caridade
Da maneira a mais cruel;
Amam Carlos e Miguel,
Que eles são forca e maldade.
Junto ao trono da verdade
São a vil hipocrisia,
Nenhuma luz alumia
O antro de tais consciências!...
São filhos das violências,
Toupeiras da sacristia.

 

OS PECADOS DO MUNDO

N'este mundo tudo é vario,
Tudo é pantomineiro;
Só vence a torpe mentira,
Só dá leis o Deus Dinheiro.

Vendem a honra as donzelas,
Os homens o pundonor ,
Põe-se em mercado o amor
Ao tinir das amarelas;
'Scondem-se podres mazelas
Em pomposo vestuário,
Os pobres tem por calvário
A fome, a dor, a miséria;
Viva o crime!... o mais é léria!...
N'este mundo tudo é vario!...

Mente ao povo o deputado
Quando prega economias,
Pois come todos os dias
Á franca mesa do estado.
O Zé Povinho é roubado
Até no pão pelo padeiro,
E compra água ao vendeiro
Julgando que compra vinho;
Tudo engana o Zé Povinho,
Tudo é pantomineiro.

Uns pregam pátria e rei,
Os outros fraternidade,
Mas quase sempre a maldade
A uns e outros dá lei;
Na França a descrença achei
Ao ver que de irmãos saíra
A comuna, o crime, a ira,
O incêndio, a mortandade! ...
Em nome da liberdade
Só vence a torpe mentira! ...

Como o ministro a fazenda
Usando de manha e trica,
E o pobre sem real fica
P'ra sustentar a tal prenda.
Dá-se a um parvo uma comenda,
Ou tit'lo de conselheiro,
Embora ele seja tendeiro,
Ou galego o mais boçal,
Pois n'este mundo venal
Só dá leis o Deus Dinheiro.

A Guerra da Restauração

15.06.22 | Manuel

D.-Joao-IV-o-rei-condenado-a-morte-depois-de-morto

Subsistia (e irá subsistir até ao final da guerra) a ideia de que muitos dos que rodeavam o rei (D. João IV) continuavam a ser, de modo sub-reptício, partidários de Filipe IV: A propaganda não deixaria de explorar exaustivamente esta ideia, pondo a correr, por diversas vezes, que para reganhar Portugal não seriam necessárias armas, bastando a acção dos seus adeptos na Corte de Lisboa.

Fernando Dores Costa

*

Pouco depois de ser feito rei, D. João IV escolhera D. Afonso de Portugal, conde de Vimioso, conselheiro de Estado, para capitão-general de todo o reino, mas pouco depois, aconselhado pelo secretário de Estado Francisco de Lucena, emendará essa decisão. Diz Meneses que "não era justo antepor com diferença tão desigual um vassalo a tantos a quem devia iguais finezas". Tratara-se pois de um primeiro erro do novo rei. Desde esta primeira nomeação se evidenciavam de imediato as dificuldades presentes na escolha dos dirigentes, antevendo-se a tensão – que sempre se encontrará presente – entre a pressão que se exerce pela procura dos postos máximos como sinais distintivos dos indivíduos assim agraciados – sinais portanto de uma autoridade social genérica – e uma escolha fundada sobre a capacidade propriamente militar. O posto de capitão-general, embora reclamado, não voltará a ser dado a nenhum outro vassalo, reservando-se tal distinção para o príncipe herdeiro D. Teodósio. Não haverá de futuro um cabo de guerra com autoridade sobre as forças à escala do reino, sinal de preeminência que se julgava destacar excessivamente um fidalgo sobre os outros. Para mais, o nomeado conde de Vimioso não tinha experiência militar, "defeito dos mais daquele tempo, por não haverem visto guerra alguma", nas palavras de Meneses, e encontrará rapidamente a sua desgraça. Recebendo ordem para regressar à Corte, deixará o governo entregue a Matias de Albuquerque, segunda figura do exército da província. Este teria sido (ainda nas palavras de Meneses) um dos que "fulminara a ruína do Conde". Além das rivalidades pessoais e entre "partidos" que dominarão os mecanismos de acesso ao governo das armas, este é um primeiro exemplo de um conflito complementar entre as primeiras figuras do exército, os fidalgos, e os indivíduos de nascimento menos ilustre que, atribuindo-se a si mesmos grande experiência e saber militares, chocam-se com os primeiros. Curiosamente, pouco depois, o próprio Matias de Albuquerque será preso, por suspeita (sem fundamento) de envolvimento na conspiração fidalga de 1641 contra o novo rei, e o comando do Alentejo passou a Martim Afonso de Mello. Evidencia-se deste modo um dos primeiros traços que dominará a organização dos exércitos da Restauração: a grande instabilidade na ocupação dos governos militares. Os dirigentes sucedem-se. Esta constante mobilidade relaciona-se com o afastamento pelo rei daqueles que não obtiveram os desejados sucessos bélicos, mas também por causa do descontentamento dos próprios, resultado da percepção de que os seus feitos foram insuficientemente reconhecidos pelo rei, não tendo obtido as remunerações desejadas, num ambiente que está obsessivamente tomado pela preocupação com as acções dos "inimigos", esta palavra designando aqui – tal como ocorre na época – aqueles que se movimentam noutras redes de protecção, adversas, naquilo que são os antagonismos da intriga cortesã. Os cabos de guerra que assumem responsabilidades receiam que estes seus inimigos os impeçam, na retaguarda, por todos os meios, de alcançarem o caminho do acrescentamento da honra. Importa realçar a visibilidade que a inimizade tem na sociedade da época: é corrente a explicitação da inimizade como fundamento para as atitudes dos indivíduos ou para a formulação de certas acusações. De tal modo que esse estado se encontrava consagrado (até pouco antes de 1640) através de cartas de inimizade, previstas do regimento do Desembargo do Paço, até que um alvará de 10 de Março de 1608, afirmando a inconveniência de os vassalos se darem e haverem como "por inimigos uns dos outros, com cartas minhas", proibia os desembargadores de passá-las e revogava esse ponto o respectivo regimento. [Andrade e Silva, vol. 1603-1612, 1854, p. 218].

Tudo isto numa Corte cujo vértice, D. João IV; tendo mudado de vida, fazia, inesperadamente, a aprendizagem deste seu novo papel de rei, mergulhando num "labirinto de ideias muito diferentes daquelas que placidamente tantos anos cultivara", como diz D. Luís de Meneses (Meneses, 1, 293). Mas um tal adestramento do rei acontecia num ambiente de geral desconfiança: "Era-lhe necessário não se fiar de todos, nem mostrar que desconfiava de alguns dos seus vassalos", escreve o mesmo autor. Porque interiormente desconfiava de todos e era pouca a experiência, "confundiam-se as resoluções e desencaminhavam-se os negócios". Subsistia (e irá subsistir até ao final da guerra) a ideia de que muitos dos que rodeavam o rei continuavam a ser, de modo sub-reptício, partidários de Filipe IV: A propaganda não deixaria de explorar exaustivamente esta ideia, pondo a correr, por diversas vezes, que para reganhar Portugal não seriam necessárias armas, bastando a acção dos seus adeptos na Corte de Lisboa. Também por isso, um autor como Valenzuela, no seu Portugal Unido y Separado, de 1659, avançava com o argumento de que a condição da nobreza portuguesa se degradara acentuadamente após 1640, alegando que, entre outras desvantagens, uma parte dela havia trocado a quietude em que anteriormente estava pelo receio da guerra e uma outra parte, aquela que não participava nas acções bélicas, trocara esse sossego pelo temor de se ver caluniada por inconfidente, toda a nobreza vivendo por isso mesmo escrava dos seus receios.

A conspiração de 1641, envolvendo elementos de primeiro plano da fidalguia (Meneses; 1, 297-322), tendo sido o mais sério risco para D. João IV; revelava que o golpe do 1.º de Dezembro, aparentemente unânime e, com espanto dos próprios, facilmente vitorioso, era na verdade um acto que fracturava dramaticamente a "nação portuguesa". Tal fractura pode ser ilustrada pelos casos daqueles que permanecem na Corte de Madrid e pelos movimentos de outros fidalgos e nobres que se deslocam em ambos os sentidos. De Portugal para Castela passam homens cuja fidelidade a Filipe IV será premiada com títulos ou com acrescentamentos, como é o caso de Pedro Gomes de Abreu, senhor de Regalados, feito conde, que passara a Madrid com todos os seus filhos, um dos quais, mestre de campo, viria a morrer das feridas recebidas na batalha de Ameixial, ou o conde de Tarouca, feito marquês, e D. Lopo da Cunha e D. João Soares, respectivamente senhor de Assentar e alcaide-mor de Torres Vedras, feitos condes, D. Jerónimo Mascarenhas, feito conde de Castelo Novo, Luís da Silva, feito conde de Vagos, ou D. Luís de Meneses, filho do conde de Tarouca, que serviria contra Portugal e seria general da cavalaria na Galiza, feito marquês de Penalva. Ou ainda D. Francisco de Alarcão que foi aprisionado no Ameixial e se recusou a agradecer ao príncipe regente D. Pedro, quando libertado, após a paz de 1668.

Outros portugueses aí estavam e aí permaneceriam como disso são exemplo o marquês de Castelo Rodrigo, D. Manuel de Moura, que estava embaixador em Roma; o seu filho foi governador na Flandres e em Castela; o conde de Linhares, que foi general das galés e morreu em Castela; dois dos seus filhos passaram a Portugal e o filho herdeiro foi feito duque de Linhares e casou com uma filha do marquês de Gouveia, D. Manrique; o marquês de Porto Seguro permaneceu com toda a família; o seu filho D. Agostinho foi feito duque de Abrantes. D. Francisco Manoel, que havia sido governador da Sicília, governou depois a Flandres, sucedendo ao cardeal infante com os mesmos poderes; e (diz-se na época) "foi o Fidalgo de Capa, e Espada, que mais montou em Castela; mas tudo por seus merecimentos. Lá ficou sua Casa". O conde de Miranda, Diogo Lopes de Sousa, que tinha sido membro do Conselho de Portugal na Corte de Madrid e aí estava com toda a sua família. De lá fugiram para Portugal seus filhos Henrique de Sousa, depois marquês de Abrantes na Corte de Lisboa, e Luís de Sousa, capelão-mor e arcebispo de Lisboa.

Constatamos por estes casos que a política filipina de criação de uma nobreza de Corte supra-"nacional" não deixara de ter tido resultados entre uma fracção dos portugueses. Na verdade, o vínculo de qualquer fidalguia com o seu rei não era um vínculo "territorial", não integrava cada um dos seus elementos num grupo "nacional", era um laço de "fidelidade pessoal", um elo particular e específico que sustentava o estatuto de cada casa. Isso não invalidava que os chefes destas casas tivessem o sentimento de perda de uma origem, de uma matriz material e simbólica dos seus antepassados no reino de Portugal. Mas o serviço do rei não criava, no essencial, laços horizontais, de agregação, mas fracturas verticais, de conflito. Aqueles que continuaram no campo de Filipe IV invocariam a seu favor precisamente esse laço da lealdade. Nalguns casos verificou-se que pais e filhos seguiram caminhos divergentes. O caso porventura mais visível foi o do filho do marquês de Montalvão. Causando graves problemas a seu pai, já que essa atitude era o melhor combustível para a intriga movida pelos que queriam eliminar a influência do marquês. Nas cartas do filho encontramos uma confluência dessa legitimidade, a da fidelidade pessoal, com uma extrema ambição: o serviço de fazer retornar Portugal aos seus domínios poderia fazer da casa de Montalvão a maior da Corte de Filipe IV.

Mas enquanto alguns permaneciam em Madrid, verificava-se ao mesmo tempo um movimento em sentido contrário, o dos portugueses que encontrando-se fora de Portugal regressavam depois da aclamação de D. João IV. Importante para a formação do exército de Portugal pois se dirá que uma parte dele se fará com homens que teriam a experiência dos exércitos anteriores.

Permaneceram ao longo da guerra os sinais de uma grande intimidade entre os dois lados em contenda. A informação continua a circular entre Madrid e Lisboa e com ela a propaganda. A zona mais tenebrosa era aquela em que as facções inimigas no interior da fidalguia portuguesa faziam uso nas suas lutas desta desconfiança e dos efeitos da propaganda. A desgraça e execução do secretário de Estado Francisco de Lucena ilustra essa possibilidade de conflitos fundados em razões puramente "internas" evoluírem dramaticamente para a formulação de uma acusação de traição. Com efeito, teria ficado "no juízo dos que o sentenciavam à morte muito duvidosa a sua culpa" [Meneses, 2, 33]. A morte ritual do secretário de Estado terá servido então como um aviso para todos os que pudessem ter intenções de construir um modelo de governo que fosse menos respeitoso da fidalguia. Haveria talvez um traço de continuidade no modo de proceder entre o passado de Lucena como colaborador que fora de Olivares e de Miguel de Vasconcelos e o seu presente como braço direito do novo rei. As acusações que se levantam contra Lucena em Cortes ganhavam cumplicidades fora delas nos homens comuns, mas, paradoxalmente, conta-se que a fúria popular iniciada depois de supostamente provocada a sua culpa, prolongar-se-ia contra a nobreza, sendo necessário do rei “grande diligência” para aplacar o povo [Idem, 30].

Ainda antes da sua desgraça, Lucena teria favorecido junto do rei as acusações de aspereza, pouca prática da guerra e confusão nas ordens formuladas pelos inimigos de Martim Afonso de Melo, conde de S. Lourenço, enquanto governador das armas do Alentejo, levando ao seu afastamento. Com efeito, logo neste ano de 1642 se constataram as dificuldades de formação de um exército: o Conselho de Guerra debatia a ineficácia dos meios até então empregues para manter os oficiais e os soldados nos seus terços e companhias e o memorial de D. João da Costa [publicado no Portugal Restaurado – Meneses, 1,396-400], indicando que nas várias províncias se não encontravam as forças previstas, encaminhava-se para a proposta de fazer passar o rei à província do Alentejo, para ver o seu exército e para animar os seus soldados. Tal projecto desencadeou um debate sobre o uso militar da figura do rei, opondo-se a esta perspectiva, a identificação dos riscos de envolvimento directo do rei, feita pelo marquês de Montalvão. Podemos encontrar nesta ocasião uma primeira versão da clivagem de "partidos" na proximidade de D. João IV.

Em pano de fundo está a efectiva ausência de uma força permanente levantada nas fronteiras, concluindo-se deste diagnóstico de 1642 que as dificuldades que se vão encontrar constantemente ao longo de todo o período da guerra se não podem atribuir a um desgaste provocado pelo inesperado prolongamento da acção bélica potencial, mas a causas que somos levados a considerar como inerentes ao modo de formação do exército e ao estatuto do serviço militar para as várias forças sociais.

A Guerra da Restauração 1641-1668, Fernando Dores Costa. Livros Horizonte, 2004

Álvaro de Campos

13.06.22 | Manuel

fpessoa.jpg

(Nascido em dia de Santo António)

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Faltar é positivamente estar no campo!

Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!

Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.

Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,

Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.

 

Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.

Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.

É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,

 

Deliberadamente à mesma hora...

Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.

É tão engraçada esta parte assistente da vida!

Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,

Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

 

*

 

Cruz na porta da tabacaria!

 

Cruz na porta da tabacaria!

Quem morreu? O próprio Alves? Dou

Ao diabo o bem-estar que trazia.

Desde ontem a cidade mudou.

 

Quem era? Ora, era quem eu via.

Todos os dias o via. Estou

Agora sem essa monotonia.

Desde ontem a cidade mudou.

 

Ele era o dono da tabacaria.

Um ponto de referência de quem sou

Eu passava ali de noite e de dia.

Desde ontem a cidade mudou.

 

Meu coração tem pouca alegria,

E isto diz que é morte aquilo onde estou.

Horror fechado da tabacaria!

Desde ontem a cidade mudou.

 

Mas ao menos a ele alguém o via,

Ele era fixo, eu, o que vou,

Se morrer, não falto, e ninguém diria.

Desde ontem a cidade mudou.

 

*

 

O tumulto concentrado da minha imaginação intelectual...

 

Fazer filhos à razão prática, como os crentes enérgicos...

 

Minha juventude perpétua

De viver as coisas pelo lado das sensações e não das responsabilidades.

 

(Álvaro de Campos, nascido no Algarve, educado por um tio-avô,

padre, que lhe instilou um certo amor às coisas clássicas). (Veio

para Lisboa muito novo...)

 

A capacidade de pensar o que sinto que me distingue do homem vulgar

 

Mais do que ele se distingue do macaco.

(Sim, amanhã o homem vulgar talvez me leia e compreenda a substância do meu ser.

 

Sim, admito-o,

Mas o macaco já hoje sabe ler o homem vulgar e lhe compreende a substância do ser).

 

Se alguma coisa foi porque é que não é?

Ser não é ser?

 

As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente,

Em outra maneira de ser?

Perderei para sempre os afectos que tive, e até os afectos que pensei ter?

 

Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta,

E me possa abrir com razões a inteligência do mundo?

 

Poesias de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa. Lisboa, Edições Ática.

 

10 de Junho, dia para todos os gostos

11.06.22 | Manuel

Captura de ecrã 2022-06-11 193318.jpg

Devemos considerar no mínimo estranho que no dia de 10 de Junho de cada ano se comemore o “Dia” de “Portugal” – anteriormente era da “Raça”, este ano terá sido das “Forças Armadas” e da “arraia-miúda” –, aproveitando o dia em que morreu, segundo consta porque não se sabe ao certo, o poeta Luís de Camões, homem incompreendido e abandonado pelas elites de então em situação de doença e na mais absoluta miséria. Comemorar o dia de um país, independentemente do conceito que se tem de “país”, num dia em que houve um óbito não augura nada de bom para o futuro de quem quer que seja, muito menos de um país ou de um povo. Parece que o agoiro continua presente e bem para além das profecias do sapateiro ou do padre missionário, fazendo fé no que se passa no país.

 

Este ano de 2022 e em governo de maioria absoluta do partido socialista – fundado em 1973 com o dinheiro da social-democracia alemã – as comemorações não tiveram a honra da presença do primeiro-ministro, há seis anos no poder sem oposição, por se encontrar retido em casa, presumimos, devido a “doença”; pela informação do presidente Marcelo, não terá sido nada de grave, já foi anunciada para amanhã a sua ida a Londres, ao que consta, para assinar com o seu homólogo britânico um “acordo político global para regular as relações bilaterais luso-britânicas” após o Brexit. Marcelo esteve assim à vontade para explanar livremente as suas ideias quanto ao país, ao povo, denominado “arraia-miúda”, e quanto ao governo; mas quanto a este último de forma velada, coisa que parece ter escapado a alguns jornalistas e paineleiros televisivos, e, em particular, mandar umas indirectas ao Costa.

 

O presidente/rei começou pela “graxa”, no seu melhor estilo de sedução: “A nossa pátria é o povo”. Foi um longo elogio ao povo português, como referem os media mainstream, numa mistura de populismo e de adulteração da História de Portugal, bem retratados em "sem o povo, sem a arraia miúda, não teria havido Portugal". Sabemos que a história da humanidade é a história da luta de classes, como também se sabe que, desde o início da nacionalidade e ao longo dos séculos da existência de Portugal, a luta foi dirigida pelas diversas elites que se sucederam no poder, utilizando como meio a dita arraia-miúda que, quando se sentia prejudicava, não deixava de lutar pelos seus interesses, fazendo frustrar parcialmente algumas das pretensões da elite em ascensão. E a demagogia presidencial não se fez poupada quando refere às lutas liberais e, nomeadamente, evoca a Constituição de 1822 e a independência do Brasil, dois acontecimentos ainda abominados por boa parte da nossa elite saudosa do império colonial e do antigo regime autoritário – Salazar era um monárquico, à semelhança de Marcelo, que se regia pelo Código de Direito Canónico –, assim como o estudo do período do Liberalismo sempre foi desprezado antes e depois do 25 de Abril no ensino público.

 

Marcelo esteve à vontade para encher a boca com o povo, o que não deixa de ser irónico conhecendo-se a origem social da criatura e o facto de, graças a essa situação, não ter cumprido o serviço militar obrigatório, como aconteceu com todos os homens saudáveis da sua idade e geração, e para, fazendo jus à palavra de ordem da sua oligarquia, “defender a Pátria” no antigo Ultramar. A técnica é mais do que evidente, dar graxa ao povo, envolver-se num mar de multidão, mostrar que a sua popularidade não é inferior à do governo e, principalmente, à do seu rival político Costa. Se o governo possui a maioria absoluta através do voto, ele, Marcelo, tem o apoio entusiasta e incondicional do povo na rua; uma espécie de CGTP em modo plural em termos sociais, uma espécie de selecção nacional de futebol, é transversal. Marcelo seguiu a intervenção do caquético Jorge Miranda, o considerado “Pai” da Constituição da República mesmo depois das inúmeras revisões que já sofreu, no que concerne à formação do Portugal Liberal de 1820 e, contrariando os avisos deste último quanto ao perigo dos “populismos nacional-radicais”, entrou numa de populismo nacional em modo moderado. A arte da representação e da hipocrisia não ficou por mãos alheias e Costa que se cuide.

 

Em ambos os discursos, Marcelo e Miranda, reclamou-se “melhor democracia” e “melhor patriotismo”. Foi uma das tónicas dominantes, ficando-se com a sensação de que neste reino à beira-mar plantado tanto uma coisa como a outra não andarão lá muito bem; caso contrário, nem sequer seriam referidas ou seriam referidas com menos enfâse. A primeira é abertamente um recado dirigido ao governo e a Costa para não abusarem da maioria absoluta; Marcelo lá estará a marcar posição com o veto, que será quase de certeza de novo utilizado na Lei da Eutanásia recentemente aprovada pela Assembleia da República. Quanto a patriotismo, há muito que estamos conversados quanto à veracidade ou solidez deste sentimento. Bastará olhar para o comportamento das nossas elites ou parte significativa delas ao longo da História de Portugal quando este foi invadido por forças estrangeiras: ou viraram-se para o inimigo, fim da primeira dinastia e da perda da independência, ou fugiram, invasões napoleónicas, abandonando o povo e deixando o país entregue aos ingleses, tornando-se Portugal a partir desse momento num mero protectorado britânico. No tempo presente ouvir da boca de um Marcelo, o dignatário máximo do país e chefe supremo das forças armadas (que fugiu à tropa!) palavras como “patriotismo” é simplesmente caricato; ou provocatório se atendermos que se trata de um país que pertence à Nato e faz parte da União Europeia, sinónimo de falta de soberania monetária, económica e de segurança e, em suma, política (OE-22 depois de aprovado ainda vai ao aval de Bruxelas!)

 

O presidente da República, bem como o presidente da comissão organizadora das comemorações, colocou na agenda política/económica o mar como prioridade, justificando com o passado glorioso do povo português que se espalhou pelo mundo, escamoteando que a dita “epopeia marítima” foi um projecto da elite – colonial e que deu origem à actual globalização e agora em fim de vida – e não do povo; e se este quase despovoou o país – no final do século XVI terá emigrado cerca de um terço da população que existia no início – foi devido à miséria em que esse povo, agora tão glorificado, vivia. Exactamente à semelhança do que aconteceu no século passado, especialmente nas décadas de sessenta e setenta, e ainda no momento presente. Portugal é, juntamente com a Irlanda, o país europeu de onde mais se saiu para fugir à fome; ao contrário do País Basco, por exemplo, onde a luta contra as arbitrariedades políticas, as injustiças sociais e a adversidades da vida sempre esteve presente e constitui quase uma tradição; entre nós, é o individualismo que impera e o resultado está bem à vista. E se referirmos os indicadores económicos e sociais mais recentes, fica-se com a nítida sensação – e se persistirmos neste caminho, que mais não é que uma corrida cega para o precipício – de que Portugal como país não tem qualquer futuro. Esquecem-se de uma questão: na União Europeia, o mar já não é nosso.

 

Vale pelo simbolismo o acontecimento, noticiado ainda há pouco tempo, do roubo do canhão do reinado de D. João V da fortaleza de Valença. Não é somente a incúria pelo nosso património – património histórico que atesta a luta do povo pela independência do país – mas o saque de que o povo é vítima, constantemente e na maioria das impunidades, e do qual a nossa seráfica elite cobra sempre a devida percentagem. 10 de Junho será mais o dia dos finados.

Imagem: Cartoon Henrique Monteiro (captura de ecran)

Pág. 1/2