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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

A 1ª manifestação dos funcionários públicos após 25 de Abril

07.07.22 | Manuel

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Em 8 de Julho de 1974, os funcionários públicos fizeram a primeira manifestação depois do 25 de Abril. Foi para exigir a revisão do decreto (aprovado pelo governo, mas ainda não promulgado) que estabelecia o aumento dos salários segundo uma percentagem que fixava maiores aumentos para os salários mais altos e aumentos menores para os salários mais baixos, fazendo com que o leque salarial alargasse ainda mais, por exemplo, a diferença entre o 1º e o 3º oficial passava de 2.300$00 para 2.800$00; atribuição do subsídio de férias, igual para todos os trabalhadores independentemente do escalão; e pela revogação do Estatuto do Funcionalismo Público, o estatuto fascista ainda vigor.

A greve foi desencadeada logo que se soube do teor do decreto, com os funcionários a desencadear greves de zelo em alguns sectores centrais do Estado, o governo foi apanhado de surpresa – segundo as palavras do ministro de Coordenação Económica, Vasco Vieira de Almeida –, sem pré-aviso de greve, houve mobilizações de funcionários de Aveiro, Porto e Coimbra. Foram mais de 10 mil funcionários concentrados junto ao palácio de S. Bento, na maioria mulheres, muitos dos manifestantes passaram a noite de 8 para 9 na rua, contando com a solidariedade dos moradores da zona que apoiaram com cobertores, comida e bebidas. Foi uma manifestação espontânea – segundo a imprensa da época, todos os jornais diários de 9 de Julho de 1974 destacam a manifestação – que desmobilizou após o governo satisfazer as reivindicações. As palavras de ordem que se liam nos cartazes eram: “O Governo não pode dizer que não tem dinheiro: deu muito a quem tinha muito e pouco a quem tem pouco”, “A injustiça continua – abaixo as percentagens”, “Igualdade com o sector privado”, “Trabalhadores do Estado em luta pelo Pão”, “Queremos pão para os nossos filhos”, entre outras semelhantes.

A luta foi liderada por uma Comissão Pró-Sindicato. O Secretariado da Intersindical apoiou a luta porque visava a revogação do chamado Estatuto do Funcionalismo Público e… pelo direito que assistia aos trabalhadores da Função Pública de criar as suas organizações de classe.

Passados 48 anos, parece que ninguém se lembra que os aumentos salariais – que os trabalhadores exigiram que fossem inversamente proporcionais aos salários, ficando os salários mais elevados sem aumentos – e a atribuição do subsídio de férias foram conquistas dos próprios trabalhadores que não olharam a sacrifícios, a organização sindical ainda embrionária foi a reboque; e não se arredou pé de S. Bento até que as exigências fossem satisfeitas. Durante o tempo que medeia entre esta luta heróica, e por isso também vitoriosa, e o tempo presente, as direcções sindicais passaram a fazer o contrário em questão de aumentos salariais, com percentagens constantes para todos os escalões e categorias, alargando o fosso salarial e económico entre trabalhadores.

Esta política, a que se juntou a negligência e, por vezes, a traição aberta, da defesa dos interesses dos trabalhadores mais explorados, explica a elevada taxa de dessindicalização e até de descrédito dos próprios sindicatos que agora se verifica. Como também explica que, em outros países, os trabalhadores enveredem pela greve prolongada e greve por tempo indeterminado para ver resolvidas as suas reivindicações, enquanto, em Portugal, os sindicatos ficam-se por manifestações e desfiles folclóricos para entregar abaixo-assinados dirigidos aos bons sentimentos dos altos dignatários do regime.

Durante os últimos seis anos de governação socialista foi notória a paz social com os sindicatos reverentes e temerosos de enfraquecer o governo com a argumentação falaciosa de “se o governo cai, vai para lá outro (PSD) pior”, não denunciando que a inflação irá substituir os cortes nominais dos salários e que o PS no governo é a direita a governar, como se pode constatar: a austeridade manteve-se, embora mais mitigada, os trabalhadores do estado jamais recuperaram o poder de compra perdido a partir de 2010, e nem a troika saiu do país, como bem ilustra o aconselhamento dado recentemente pelo FMI quanto à contenção da despesa pública, aumento da flexibilização do emprego, compressão de salários e pensões, estando em vista a futura privatização da Segurança Social – questão que já se encontra em debate na vizinha Espanha e sob a batuta do dito “socialista” PSOE.  

Com o agravamento imparável da crise do capitalismo a nível europeu e mundial, entra na ordem do dia a luta pela melhoria geral dos salários, quer na função pública quer no sector privado, de forma a anular a inflação e manter o poder de compra de todos os trabalhadores – luta que será cada vez mais internacionalista. Esta deverá ser, no entanto, o ponto de partida para lutas de maior envergadura que ponham em causa o sistema capitalista e a sociedade burguesa.

Yannis Ritsos

03.07.22 | Manuel

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 O ESPAÇO DO POETA

A escrivaninha negra com entalhes, os dois candelabros de prata,
o cachimbo vermelho. Está sentado, quase invisível, na poltrona,
com a janela sempre às suas costas. Por detrás dos óculos,
enormes e cautos, observa o interlocutor
luz intensa, ele próprio oculto dentro de suas palavras,
dentro da História, com personagens seus, distantes,
[invulneráveis,
capturando a atenção dos outros nos delicados revérberos
da safira que traz num dedo, e alerta sempre para saborear-lhes as expressões, nos momentos em que os tolos efebos
emudecem os lábios com a língua, admiravelmente. E ele,
astuto, sôfrego, sensual, o grande inocente,
entre o sim e o não, entre o desejo e o remorso,
qual balança na mão de um deus, ele oscila por inteiro,
enquanto a luz da janela atrás lhe põe na cabeça
uma coroa de absolvição e santidade.
"Se a poesia não for a remissão — murmura a sós consigo, —
não esperemos então misericórdia de ninguém".

*
PANELA SUJA DE FULIGEM (fragmento)

Perto de ti o aleijado antes de se ir deitar retira a perna.
Deixa-a num canto – uma perna oca de madeira
– É preciso que a enchas como se enche de terra um vaso para plantar flores
Como a escuridão se enche das estrelas
Como pouco a pouco enche-se a pobreza de pensamentos e de amor.

Decidimos que um dia os homens hão de ter as duas pernas
Uma ponte ditosa de um olhar a outro
De um coração a outro. Por isso onde estejas sentado
Entre os sacos no passadiço de partida para o exílio
Por trás das grades da seção de trânsito
Perto da morte que não diz “amanhã”

Entre milhares de muletas de anos amargamente aleijados
Dizes “amanhã” e ficas sentado tranquilo e seguro
Como um homem justo diante de outros homens.

Estas marcas rubras nas paredes podem ser de sangue
– tudo quanto seja rubro hoje e dia é sangue
pode ser também o sol batendo na parede fronteira.

A cada crepúsculo as coisas ficam rubras antes de apagar-se
e a morte mais perto. Do lado de fora da cerca
estão as vozes das crianças e o apito do trem.

(...)

Nessas horas apertas a mão do companheiro teu,
o silêncio se enche de árvores
o cigarro partido ao meio corre de boca em boca
como lanterna a perscrutar o bosque.
– Encontramos a veia
que leva ao coração da primavera. E sorrimos.
Então as celas se tornam mais estreitas
e é mister que sorriem às janelas
para achares um lugarzinho onde esticar as pernas.

Sorrimos para dentro. Este sorriso o escondemos agora.
Um sorriso ilegal – como ilegal tornou-se o sol
ilegal a verdade. Escondemos o sorriso
como se esconde no bolso a foto da mulher amada
como se esconde a idéia de liberdade nos refolhos do coração.
Aqui todos temos um céu e o mesmo sorriso.

Amanhã poderão matar-nos. Mas este sorriso
e este céu não nos poderão tomar.

(1966)

*

TRANSPARÊNCIA

Vidraças lavadas. Sol de inverno. Uma grande transparência.
Um cigarro aceso — fumega;

Ítaca, não; não mais aventura, mas um vazio bem ordenado

— e nenhuma recusa, nenhuma obediência, nenhuma pergunta.

Lá fora, passa o velho com a sacola às costas. Por entre as casas
vê-se a colina em frente com seus ciprestes, o pequeno pastor
por entre as cadeiras da casa (pois as casas são transparentes)

e a mulher que procura a vassoura que tem nas mãos.
Dentro do espelho uma janela virada ao contrário, somente céu.

*

SUÍTE PEQUENA EM VERMELHO MAIOR

Os dedos da mão
os dedos do pé
falos
entre os cinco dedos
quatro vulvas
- vinte e dezesseis -
antes de conseguires
fazer a soma
teu esperma jorra
nos lábios da estátua.

(Poemas eróticos, 1981)

*

Talvez o maior poeta grego do século XX:

Nasceu em Monemvassia, Grécia, no 1º dia de Maio de 1909, filho mais novo de família da pequena nobreza latifundiária, a sua juventude foi marcada por tragédias familiares: ruína económica, morte precoce da mãe e do irmão mais velho e internamento do pai por doença do foro mental. Ele próprio esteve quatro anos internado num sanatório para tratamento de tuberculose.

Estes funestos acontecimentos marcaram-no profundamente e estão presentes na sua obra, contribuíram também para se tornar poeta e revolucionário. A partir de 1933 torna-se membro do Partido Comunista Grego e adere ao círculo literário inspirado no futurismo de Maiakovski, publica Tractor (1934) e Pirâmides (1935). Em 1936 explora a poesia tradicional grega e, numa simples e clara linguagem, escreve o longo poema Epitáfio, uma mensagem de fraternidade que, musicado por Míkos Theodorákis, acabou por converter-se numa espécie de hino da esquerda grega e no detonador da revolução cultural na Grécia (1960). Entre seus livros, destaca-se o belíssimo Monovassiá (1983). Graças à sua obra poética que se torna alvo da repressão do regime ditatorial de Metaxas.

Durante a guerra civil grega, Ritsos envolve-se na luta contra os fascistas e passa alguns anos da sua vida na prisão e em campos tidos como de “reabilitação”. O seu livro Epitaphios foi queimado publicamente pela ditadura de Ioannis Metaxas. Em 1948, com o início de outra ditadura militar na Grécia, Yiannis Ritsos é preso, passando pelos campos de Limnos e o terrível Makronisos, onde escreve seus Diarios do Exílio. Em 1967, é preso novamente, desta vez pelo regime da Junta Militar de George Papadopoulos e Nikolaos Makarezos, e enviado para o campo de Gyaros. É proibido de publicar até 1972.

Apesar destas contrariedades, consegue uma extensa produção poética coligida em Vigil (1941-1953) e uma volumosa crónica dessa terrível década, Distritos do Mundo (1949-1951), tema para outra composição de Theodorákis. Está entre os grandes poetas gregos modernos, ao lado de Konstantinos Kavafis, Kostas Kariotakis, Giorgos Seferis e Odysseus Elytis. Morreu em Atenas, a 11 de novembro de 1990.

(Não conhecemos nenhum livro seu traduzido em português.)

Pedofilia, uma visão psiquiátrica

03.07.22 | Manuel

 

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Afonso de Albuquerque:

Este termo talvez tenha sido mal escolhido porque significa em grego «amante das crianças» e sabemos bem que estes parafílicos fazem algumas coisas às crianças que significam tudo menos amor.

De resto, este termo tem vindo a ser utilizado com sentidos muito variados. Na perspectiva sexológica, o pedófilo é um adulto (geralmente um homem) cujo interesse sexual por crianças pré-púberes (até aos 13 anos) excede claramente o seu interesse sexual pelos adultos. Alguma especificidade extra vem sugerida nos sistemas classificativos mais actuais (DSM -IV, CID-10), como a idade de pelo menos 16 anos para o perpetrador e a da vítima ter até 13 anos, e ser pelo menos cinco anos mais nova, de forma a excluir os casos de atracção sexual entre crianças e adolescentes com idades equivalentes.

O primeiro esclarecimento acerca da designação de pedófilo é o de não o confundir com um adulto abusador sexual de crianças, que é melhor descrito como «qualquer adulto que tenha contactos sexuais com crianças pré-púberes». Este «qualquer adulto» vai incluir pedófilos e não pedófilos, ou seja, há adultos que abusam sexualmente de crianças mas não o fazem porque sejam pedófilos mas sim por uma variedade de outros motivos (por exemplo, os violadores). Estas duas populações (pedófilos e abusadores sexuais de crianças) são em parte coincidentes.

Alguns pedófilos, ainda que sejam atraídos eroticamente por crianças pré-púberes, não têm relações sexuais com elas (por exemplo, por medo, por razões éticas ou religiosas) e alguns abusadores sexuais de crianças, não se sentindo atraídos sexualmente por crianças, abusam-nas por outros motivos (por exemplo, falta de parceiros mais velhos disponíveis, vingar-se da mãe da criança, embriaguez ou intoxicação por drogas, doença orgânica cerebral, abuso patriarcal e violento do poder, procura de estímulos sexuais diferentes, desprezo pelas regras sociais).

No entanto, há um número considerável que é simultaneamente pedófilo e abusador sexual infantil. Para os clínicos, tanto uns como outros necessitam ser avaliados e tratados, ainda que com objectivos diferentes, dada a sua psicopatologia ser diversa. Uma das formas de distinguir estes dois grupos são os exames falométricos (uma tecnologia que permite avaliar as preferências sexuais do homem, pela medição do diâmetro do pénis, perante estímulos eróticos específicos). Surgem ainda assim algumas dificuldades diagnósticas, mas a tendência mais recente na sexologia vai no sentido de haver cada vez mais abusadores sexuais infantis a serem diagnosticados como pedófilos ou ainda como portadores de uma perturbação mental, e portanto necessitando de acções terapêuticas administrativas e legais em conformidade. Restará ainda um número significativo de abusadores sexuais de crianças que não apresenta nenhuma doença mental, como, por exemplo, os que abusam ocasionalmente e por isso não apresentam o mesmo risco de recorrência do crime.

A questão de se considerar que a vítima só é pré-púbere até aos 13 anos também é discutível, ainda que a lei portuguesa considere haver abuso sexual infantil abaixo dos 14 (entre os 14 e os 16 é considerado violação). Alguns pedófilos são atraídos preferencialmente por adolescentes pós-pubescentes (13-17 anos) e algumas vezes este grupo é designado como «efebófilo» (efebo significa jovem).

A incidência e a prevalência desta parafilia são difíceis de determinar. Um inquérito americano de 1988 identificou uma incidência de 300 000 crianças abusadas sexualmente por ano, sendo 77% do sexo feminino (idade média 9,2 anos) e os perpetradores predominantemente do sexo masculino (82%).

Um terço dos abusadores cometeu o crime contra os seus próprios filhos, cerca de metade tinham uma relação com a vítima (amigo, conhecido ou familiar) e só 1 em 7 abusou de crianças desconhecidas.

Inquéritos internacionais sugerem que pelo menos 7% das mulheres e 3% dos homens experimentaram alguma forma de abuso sexual na infância. Estes números, vindos de vários países, deviam deixar-nos alarmados.

Este tipo de inquéritos têm limitações, pois há muitas pessoas abusadas que se recusam a colaborar, enquanto outras se sentem motivadas para afirmar abusos sexuais falsos. No entanto, a impressão geral que se obtém destes inquéritos é que o abuso sexual infantil é mais frequente do que se pensava, que muitas crianças e adolescentes são abusados e que poucos são os criminosos referenciados.

As consequências negativas para a criança vítima de abuso sexual são complexas, como nos poderemos aperceber pela leitura do seguinte quadro:

Modelo traumatogénico (vítimas de abuso sexual infantil)

  1. Traição: violação das expectativas de protecção e de confiança – «desvalorização penal».
  2. Impotência: coacção (psico e física), invasão do corpo, medo, desvalorização da criança.
  3. Estigmatização: pressão para o silêncio pelo receio de descoberta (estigmatização secundária pelos outros).
  4. Sexualização traumática: namoro e sedução, moral sexual distorcida, práticas sexuais inapropriadas (por exemplo, ciclo vítima ? perpetrador).

(Fonte: Adapt. Baker, 2002).

Sabemos que as consequências psicológicas negativas para as vítimas de abuso sexual podem ser graves e de longa duração, incluindo toxicodependência, perturbações do comportamento e da intimidade sexual, depressão, perturbação pós-traumática do stress, comportamento suicidário, delinquência e prostituição, somando-se às consequências negativas ao nível familiar, escolar e social.

Um estudo sobre a população adulta portuguesa realizado pelo autor (em co-autoria) e publicado em 2003 (Acta Médica Portuguesa, nº 5, vol. 16) indicava que o abuso sexual infantil e a violação são os cenários de violência que, numa lista de 11 situações traumáticas, mais perturbações psiquiátricas provocam a médio e longo prazo.

Desde 1996 que se assiste em Portugal ao aumento substancial dos indivíduos condenados por abuso sexual de crianças e adolescentes, não significando necessariamente um aumento desses crimes mas uma maior denúncia pelas vítimas, família e população. O «efeito Casa Pia» tem vindo a sentir-se a partir de 2002, como se pode verificar neste quadro:

Abuso sexual infantil («efeito Casa Pia»)

Ano 2002 – 363 inquéritos

Ano 2003 – 527 inquéritos

Ano 2004 – 1075 inquéritos

Nota: O Ministério Público pode ter-se mantido como titular de alguns inquéritos, pelo que o número real será tendencialmente superior.

Fonte: «Denúncias de pedofilia quase triplicam em dois anos», Público, 28-2-2005, a partir de dados da Polícia Judiciária.

Segundo a Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, nas prisões portuguesas encontravam-se detidos, em Novembro 2004, 189 reclusos condenados por abuso sexual de menores (sendo três por actos homossexuais com adolescentes). De acordo com estes dados, o Estabelecimento Prisional da Carregueira estaria especialmente vocacionado para acolher estes presos, estando prevista a criação de serviços de acompanhamento psicológico e médico, o que até agora não se verificou.

Tudo isto significa que o abuso sexual infantil é um grave problema social e humano, que vergonhosamente nunca foi enfrentado nas sociedades ocidentais de uma forma adequada. O enquadramento legal do crime de abuso sexual infantil, no nosso Código Penal, parece-nos adequado. Também pensamos haver um consenso geral acerca dos tipos de comportamento sexual julgados ofensivos na nossa sociedade.

A pornografia infantil tem vindo a aumentar de forma maciça nos últimos anos. Recentemente, uma associação italiana (Arcobaleno) que se dedica à defesa dos direitos das crianças, identificava, na Internet, 51 sites deste género em Portugal, o que nos colocava no 15º lugar dos países estudados.

No entanto, a lei portuguesa não pune quem tenha na sua posse imagens (fotografias ou filmes) pedofílicas, mas apenas quem as divulgue ou comercialize (com penas até três anos no primeiro caso e até cinco anos no segundo). A Polícia Judiciária investiga um número crescente destes crimes mas encontra algumas dificuldades legais para conseguir condenações em tribunal.

Outras características

O abuso sexual pode acontecer dentro da família (intrafamiliar ou incestuoso) com as suas próprias crianças (consanguíneas ou por afinidade) ou com crianças fora da família (extrafamiliar). Parece haver algumas diferenças entre estes dois tipos de abusadores, sendo os pedófilos menos frequentes no primeiro grupo (intrafamiliar), e portanto menos propícios a repetir a ofensa, do que os do segundo grupo, que mostra uma maior excitação sexual pelas crianças que os «incestuosos».

Estudos mais recentes, no entanto, apontam para diferenças menores do que se pensava.

De realçar que todos os estudos apontam para que o intrafamiliar seja mais frequente. Uma outra diferença entre estes dois grupos é que no intrafamiliar a maioria das vítimas são raparigas enquanto no extrafamiliar são rapazes e raparigas em números equivalentes. Isto significa que no conjunto geral a maioria das vítimas de abuso sexual são do sexo feminino.

Este facto levanta a questão da relação entre orientação sexual e a pedofilia. Uma hipótese é que o pedófilo seja atraído igualmente por ambos os sexos, dado que a sua preferência é serem crianças impúberes. Outra possibilidade é que haja pedófilos homossexuais (atraídos por rapazes) e heterossexuais (atraídos por raparigas) e que seja assim a orientação sexual a determinar a sua preferência. No estado actual do nosso conhecimento, é a segunda possibilidade que parece estar mais perto da verdade. Tem sido assim possível caracterizar melhor o pedófilo hetero e o pedófilo homo. Comparativamente, o pedófilo homossexual (preferência por rapazes) tende a ser mais promíscuo (contactos com mais crianças), contactar crianças não conhecidas ou não familiares e ter mais probabilidades de reincidência.

No entanto, os «verdadeiros» pedófilos, ou seja, os que se sentem primariamente atraídos por crianças pré-pubescentes, não distinguem muito entre rapazes e raparigas, o que faz sentido se pensarmos que rapazes e raparigas pré-pubescentes se assemelham fisicamente uns aos outros. Convém no entanto esclarecer, dado haver algumas ideias erradas em relação à questão da relação entre pedofilia e orientação sexual, que a grande maioria dos homossexuais não se sentem atraídos pelas crianças e portanto não as abusam, e muitos pedófilos que preferem rapazes, ainda que possam ser considerados homossexuais nesse sentido limitado, são casados e podem (ou não) ter orientação heterossexual predominante em relação aos adultos. Assim, o facto de sentirem mais atracção por meninos ou rapazes do que por meninas ou raparigas nada nos diz sobre a sua orientação em relação aos adultos. Os pedófilos homossexuais são menos numerosos do que os heterossexuais na proporção de 1 para 2 ou 3, o que, mesmo assim, é bastante superior à proporção de homens (2-4%) que são homossexuais exclusivos na população geral.

De referir ainda que há pedófilos exclusivos, que só se sentem atraídos sexualmente por crianças, e pedófilos não exclusivos, que também sentem atracção por adultos.

Caso clínico – Homem, 40 anos, solteiro, treinador de futebol juvenil vem pedir ajuda especializada para conseguir a mudança da sua actividade pedófila e porque suspeita que a polícia se preparava para o deter: Refere ter tido uma infância e adolescência marcadas pelo conflito permanente entre os pais, que se separaram quando ele já tinha 20 anos. Manteve sempre uma boa relação com a mãe. Descreve o pai como «mulherengo, alcoólico e violento», agredindo com frequência a mulher e os filhos. Desde que se lembra que tem duas «paixões»; o futebol e as crianças. Tirou um curso de Treinador; que exerceu com sucesso durante muitos anos, mas sempre com crianças (menos de 18 anos). Confirma que inicialmente a atracção por crianças não tinha conteúdo sexual e que só anos mais tarde, após ter visionado material pornográfico envolvendo crianças do sexo masculino, se sentiu atraído sexualmente, passando a masturbar-se preferencialmente com fantasias homossexuais pedofílicas. Continuou a consumir pornografia infantil chegando a juntar obsessivamente uma autêntica colecção desse material. Antes de essa preferência erótica se estabelecer, a masturbação, na adolescência, era associada a revistas eróticas que tirava ao pai. Este tentou sem sucesso que ele se iniciasse sexualmente com prostitutas, pois desde sempre se apercebeu da sua orientação homo-erótica. Afirma não ter sentido atracção nem ter tido relacionamento sexual com homens adultos nem com crianças impúberes. Recorda que teve as suas primeiras relações sexuais aos 37 anos, com adolescentes que ia procurar ao Parque Eduardo VII, passando desde aí a frequentá-lo regularmente. Quase sempre procurava estabelecer relações de amizade e até de convívio com eles, por vezes ao longo de anos, o que era ditado acima de tudo pela sua solidão e necessidade de afecto. Tem clara consciência dos seus actos e, após o caso «Casa Pia», apercebeu-se melhor de que a sua anterior convicção de ser o seu comportamento sexual «positivo» para os rapazes não estava certa, e que estes, pelo contrário, podiam sofrer consequências traumáticas e destrutivas. Foi preso alguns meses após ter feito o seu pedido de ajuda, já com a terapia médica e psicológica em curso, que continuou a fazer no período de prisão preventiva, enquanto aguarda o julgamento como arguido-confesso de vários crimes de abuso sexual com adolescentes. Foi feito o diagnóstico de pedofilia (efebófilo), do tipo homossexual exclusivo, não se encontrando sintomas de qualquer outra psicopatologia. Apresenta indicações para tratamento médico e psicológico (terapia cognitivo-comportamental), que deverá prosseguir durante o regime carcerário e após a libertação (prevenção de recidivas).

Factores de risco

Sabemos pouco sobre quais os factores que aumentam o risco de alguém se tornar num pedófilo. A única coisa de que estamos absolutamente certos é que os homens são muito mais numerosos que as mulheres. Em regra, a pedofilia inicia-se na adolescência e persiste toda a vida. Em adulto, o pedófilo escolhe de preferência actividades e profissões que o associem às crianças, sem em regra levantar suspeitas.

Naturalmente que nessas actividades alguns destes homens podem ter sido benéficos para algumas crianças, desde que não se envolvessem sexualmente com elas. Alguns pedófilos podem eventualmente canalizar os seus desejos sexuais para actividades lúdicas e recreativas, como parece ter sido o caso de Lewis Carrol, o escritor inglês do século XIX, autor de Alice no País das Maravilhas e outros livros infantis. No entanto, outros chegam a seduzir as mães de crianças impúberes para mais facilmente terem acesso a elas, como é descrito por Nabakov no seu romance Lolita . Existe sempre o risco de que o pedófilo cuja ocupação envolva contactos com crianças venha a tirar vantagens dessa associação e procure o contacto sexual com elas. Já este ano, a imprensa referiu a descoberta em Espanha de uma rede de pedofilia, integrada por vários homens que violavam e filmavam os abusos a crianças de tenra idade, algumas com menos de 1 ano, e que distribuíam as imagens pela Internet. Alguns ganhavam a confiança das famílias e eram contratados como baby-siters para tomar conta dos bebés, a quem depois vitimizavam.

Há profissões em que os pedófilos se podem mais facilmente aproveitar sexualmente das crianças, como, por exemplo, os sacerdotes, os professores, os treinadores de desportos juvenis, os assistentes sociais e os trabalhadores de instituições para crianças desprotegidas ou refugiadas. A semelhança dos outros países, também no nosso têm vindo a ser noticiados, com frequência crescente, casos de abuso sexual de crianças e adolescentes, ligados a redes pedófilas tanto nacionais como estrangeiras, ao turismo sexual e à prostituição infantil e à sua exploração pela indústria pornográfica. A Internet é hoje o meio mais privilegiado para contactos entre os pedófilos de todo o mundo.

O problema dos abusos sexuais de crianças por padres católicos assumiu foros de escândalo nos EUA, em 2002, tendo havido 218 padres que só nesse ano foram removidos do seu ministério por essa razão. Um comité de leigos criado pela conferência dos Bispos Católicos americanos divulgou relatórios em 2004 com conclusões devastadoras: entre 1950 e 2002 houve 11 000 queixas de abuso sexual contra 4392 padres, dos quais 60% foram considerados «com fundamento». De notar que 80% dos casos de abuso foram de natureza homossexual. O mais escandaloso terá sido o facto de que a maioria dos bispos que tiveram conhecimento atempado dos abusos se preocuparam mais em proteger os padres abusadores do que as crianças abusadas, transferindo-os para paróquias distantes. A Conferência dos Bispos viu-se assim obrigada a tomar uma posição pública nesta matéria e a promulgar directivas especiais para lidar com os sacerdotes que tivessem tido contactos sexuais com menores, mesmo que isso tivesse acontecido há muitos anos. Só a diocese católica de Boston decidiu pagar 85 milhões de dólares a 552 vítimas (em 2003) e a de Covington (Kentucky) desbloqueou 120 milhões de dólares para indemnizar as vítimas de abusos sexuais por parte do seu clero (Público, 6-5-2005).

Também recentemente na Irlanda cerca de 800 homens e mulheres vieram denunciar publicamente terem sido vítimas de abusos sexuais na infância cometidos por sacerdotes católicos, o que levou à criação, para esses casos, de uma unidade especial da Polícia Judiciária irlandesa, dado o melindre de uma investigação deste tipo num país maioritariamente católico. Há três anos, a Igreja Católica irlandesa concordou em pagar 128 milhões de euros como compensação a pessoas abusados sexualmente em crianças quando internadas em estabelecimentos da responsabilidade das Ordens Religiosas. Na Polónia, o arcebispo católico pediu a demissão após ser acusado por muitos padres católicos de os ter abusado sexualmente enquanto seminaristas.

E as notícias não param: este ano a arquidiocese católica de Birmingham, em Inglaterra, foi condenada pelo Supremo Tribunal a pagar cerca de 900 000 euros a um homem que foi abusado sexualmente em criança por um padre, em Coventry.

Em 2004, a Conferência Nacional dos Bispos Católicos (EUA) publicou um estudo que concluía que 4% do clero católico americano tinha sido acusado de abusos sobre crianças.

Alguns sectores da Igreja Católica americana, talvez mais independente do Vaticano, afirmam que muitos dos padres abusadores são pedófilos homossexuais que encontraram no sacerdócio católico um refúgio seguro, por requerer o celibato e ser uma cultura totalmente masculina, o que em contrapartida tem levado muitos padres heterossexuais a afastarem-se para poderem casar.

Há quem seja de opinião que a restauração da confiança na Igreja Católica, após a denúncia desta cadeia mundial de escândalos de abuso sexual de crianças, deverá tornar-se uma das tarefas prioritárias que o novo papa Bento XVI terá de enfrentar.

Convém no entanto não esquecer que as denúncias actuais se referem a factos ocorridos anos atrás, às vezes décadas, pelo que não há provas de que se esteja actualmente a assistir a qualquer aumento do abuso sexual infantil. Por outro lado, não se pode excluir que algumas destas alegações sejam falsas ou ainda que alguns dos ofendidos possam estar a exagerar as consequências negativas do abuso na esperança de conseguirem maiores compensações monetárias.

Outros factores de risco têm sido estudados. Assim, há estudos que mostram que menos de metade destes homens tinham fantasias eróticas pedofílicas já antes do início do comportamento de abusador sexual, sendo estas fantasias mais frequentes nos abusadores extrafamiliares que nos incestuosos. No entanto, pelo menos depois de cometerem o primeiro abuso, a grande maioria passa a ter fantasias eróticas com crianças, o que significa que nestes casos é maior o risco de voltarem a abusar do que naquela minoria que continua anão ter essas fantasias pedofílicas.

Outro factor de risco, encontrado em vários estudos, são as distorções cognitivas de que frequentemente são portadores.

(Afonso de Albuquerque, “Minorias Eróticas e Agressões Sexuais”. Edições Dom Quixote. Lisboa, 2006)

Nota do editor:

Texto a propósito atendendo às notícias mais recentes em Portugal: «A Comissão para o Estudo dos Abusos Sexuais a Crianças na Igreja Católica validou 338 depoimentos e enviou 17 casos para o Ministério Público – Os dados apurados revelam que 56,9% das vítimas que deram testemunho à comissão eram homens e 39,7% eram mulheres. Em relação aos abusadores, a maioria são homens, com predomínio de padres, mas há também mulheres, nomeadamente religiosas e catequistas… A maior parte das vítimas caracterizou os abusos sofridos como “toque de outras zonas erógenas do corpo ou beijos nas mesmas zonas” ou “manipulação de órgãos sexuais”, mas há também casos de sexo oral (15,6%), sexo anal (10,8%) ou cópula consumada (5,9%) … A Comissão acredita que o número de vítimas será muito maior do que os testemunhos que recebe». (SIC Notícias, 30 de Junho 2022).

Já em 06 de Maio de 2005, quando o tema da pedofilia na Igreja Católica passou para as primeiras páginas dos jornais, se ficou a saber que: «O problema dos abusos sexuais de crianças por padres católicos assumiu foros de escândalo nos EUA, em 2002, tendo havido 218 padres que só nesse ano foram removidos do seu ministério por essa razão. Um comité de leigos criado pela conferência dos Bispos Católicos americanos divulgou relatórios em 2004 com conclusões devastadoras: entre 1950 e 2002 houve 11 000 queixas de abuso sexual contra 4392 padres, dos quais 60% foram considerados «com fundamento». De notar que 80% dos casos de abuso foram de natureza homossexual. O mais escandaloso terá sido o facto de que a maioria dos bispos que tiveram conhecimento atempado dos abusos se preocuparam mais em proteger os padres abusadores do que as crianças abusadas, transferindo-os para paróquias distantes. A Conferência dos Bispos viu-se assim obrigada a tomar uma posição pública nesta matéria e a promulgar directivas especiais para lidar com os sacerdotes que tivessem tido contactos sexuais com menores, mesmo que isso tivesse acontecido há muitos anos. Só a diocese católica de Boston decidiu pagar 85 milhões de dólares a 552 vítimas (em 2003) e a de Covington (Kentucky) desbloqueou 120 milhões de dólares para indemnizar as vítimas de abusos sexuais por parte do seu clero».

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