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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

“Quem quer mudança de política tem de derrubar o Governo” – Costa dixit

31.08.22 | Manuel

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A silly season acabou, começou a época da caça ao ministro por parte da oposição e dos diversos lóbis que se encontram descontentes com a insuficiência da parte que lhes tem cabido no saque ao erário público e aos bolsos dos incautos cidadãos portugueses. E o momento que marca o fim da estação, que nem fui tão tola como isso, foi indubitavelmente a demissão, no início da noite, da ministra da Saúde, Marta Temido, que não esperou pelo raiar do dia para apresentar o pedido de desistência. Parece que o zelo e a fidelidade ao chefe não compensaram.

São azares da vida e da política e a reacção de Costa dá a entender que as razões ficarão, pelo menos para já, no limbo da dúvida e tudo o que se diga poderá passar por simples pretextos e especulação. Contudo, fica-se com a ideia de que a campanha, que começou em Junho, de ataque e de descredibilização do SNS já fez uma baixa, mas o objectivo não será só este. Praticamente todo o Verão foi atravessado pela feroz campanha onde os media corporativos, incluindo a estação televisiva pública, e a ordem dos médicos, com o seu inenarrável bastonário a assumir o papel de chefe da oposição ao governo, desempenharam (e ainda continuam na demonização da ministra) um papel relevante.

Ouvir as declarações dos diversos figurantes da trágico-comédia, desde o já referido bastonário/médico/acumula/público/privado, que chegou a ameaçar com a greve total e ilegal de "há risco de haver urgências sem médicos para trabalhar", ou a cavaquista bastonária dos enfermeiros, aos dirigentes dos sindicatos quer de médicos e enfermeiros, para além dos patrões directos do negócio, não há dúvidas de que existe unanimidade quanto à privatização da saúde no país, poderá haver alguma diferença apenas no que toca ao grau. E assim será, independentemente da figura de substituição, se o povo português não lutar contra o crime.

Torna-se claro que o cepo das marradas é o governo, acabar de vez com o SNS, com a entrada em força de todos os lóbis da indústria da doença no sector da saúde em Portugal, é uma parte da estratégia. Iremos ter um “sistema” em vez de um serviço, cujos lucros estão mais do que garantidos, a clientela é certa, a que acrescenta os clientes estrangeiros que virão para cá fazer turismo de saúde. Negócio mais lucrativo?, provavelmente só a indústria do armamento ou do tráfico de droga. Quanto ao governo a estratégia é clara, empurrá-lo para uma política abertamente neo-liberal, de capitalismo selvagem, à moda da troika; a seguir à privatização da saúde virá a privatização dos dinheiros da Segurança Social e o mote já foi dado: “Pensões de velhice sofrem dura penalização e valem apenas 38% do salário daqui a 48 anos”. Objectivo final, acabar com o próprio PS.

Este assalto ao SNS, sob o alto patrocínio de Marcelo o rei/presidente, deve ser visto no contexto da grave, profunda e arrastada crise económica que o país atravessa, juntamente com toda a União Europeia e o mundo global capitalista, sem meio de desaparecer ou sequer esbater, e à qual se encontra indissociável a guerra na Ucrânia e o confronto entre as diversas principais potências capitalistas. A dura realidade é incontornável: “A alimentação, habitação e energia, restaurantes e hotéis são os produtos e serviços cujos preços mais aumentaram entre Janeiro e Julho, variando, respetivamente, 11,47%, 12,92% e 13,08%, segundo o Índice de preços do INE”, ou “Material escolar está 16,5% mais caro este ano do que em 2021”. Aumentos, todos eles, na casa dos dois dígitos, falar em inflação desceu de 9,1% para 9% não deixa de ser irónico. E vamos lá ver como vão ser os aumentos do gás no próximo dia 1 de Outubro!

Mas o panorama torna-se dramático se olharmos para uma Alemanha, o país mais rico da UE, mas à custa do empobrecimento dos restantes e em particular dos mais periféricos: “A inflação na Alemanha subiu para o nível mais elevado em quase meio século, o que dá força para o Banco Central Europeu (BCE) anunciar um grande aumento das taxas de juro no próximo mês” – os países mais endividados que se acautelem. E o índice (harmonizado) de preços no consumidor aumentou para 8,8% em Agosto, depois a subida inesperada para 8,5% em Julho, de acordo com o gabinete de estatísticas alemão; ou seja, a pior situação em cerca de 50 anos. A crise é anterior à guerra e á pandemia, estas servem de justificação para as medidas austeritárias e para a própria crise, tiveram somente o condão de a expor mais ao vivo; no entanto: “PIB da Zona Euro perde 1,1% sem gás russo em 2023”. Será o descalabro.

Se passarmos para a velha e velhaca Albion, que saiu da União Europeia para levar a cabo as suas fantasias imperiais mas às costas dos EUA, então entrou-se em situação de fome declarada: “supermercados do Reino Unido estão a eliminar datas de validade dos alimentos”. E de revolta generalizada, com o regulador britânico a aumentar em 80% preço máximo da energia, desculpando-se com o boicote russo no fornecimento do gás e do petróleo, o que já provocou diversas e persistentes greves em diversos sectores, transportes, recolha do lixo, correios e portos, cujos trabalhadores exigem aumentos salariais que cubram a perda do poder de compra, que vai já em 10,1% no mês de Julho. E mais: surge o movimento "Don't Pay" ("Não Pagues") que pretende mobilizar no mínimo um milhão de pessoas a não pagarem as contas de energia (gás e eletricidade) a partir do dia 1 de Outubro.

Por cá os trabalhadores, manietados pelos sindicatos reformistas, vão olhando para o governo do PS/Costa como um paizinho que eventualmente andará distraído e que poderá salvar o país dos que trabalham da miséria e da fome. Só que será a “espera de Godot”, esperar pelo que nunca virá, nem prometeu. Se a miséria, por enquanto encoberta, vai aumentando com os pedidos de ajuda alimentar a subir – a Cáritas prevê maior pressão nos pedidos e diminuição da qualidade alimentar –, o estado/governo PS abdica de mais de 25% da receita fiscal: “em 2021, os benefícios fiscais atingiram um valor superior a 13 mil milhões de euros, cerca de 26,4% dos impostos cobrados”. Conclusão: o povo empobrece, os ricos não pagam impostos. E o chefe dos grandes patrões não come as palavras: “Caminhamos de facto para a recessão”. E o Saraiva presidente da CIP acrescenta ainda, quanto ao possível acordo salarial: "não pensem que as empresas são vacas leiteiras". Se os patrões não estão dispostos a abrir os cordões à bolsa para pagar melhor aos trabalhadores, contudo (os senhorios) regozijam com “rendas das casas vão aumentar 5,43% em Janeiro”.

Por parte dos partidos da “oposição” as posições são lastimáveis e Costa como que goza, na sua sobranceria, afirmando que “quem quer mudança de política tem de derrubar o Governo”, afastando uma remodelação alargada, mostra-lhes a sua incapacidade e até covardia política. É à direita e é à esquerda. Na direita nem vale a pena falar. Do outro lado, com uma Catarina Martins que se limita a repetir as palavras do funcionário da família Rothschild à frente do governo francês: "chegou o fim da época da abundância”, para justificar a miséria e a fome que serão impostas à classe operária e ao povo franceses ao mesmo tempo que se multiplicam os lucros das grandes corporações, com as do sector energético à cabeça (Total Energies quase triplica o lucro somando 70,4 mil milhões de dólares entre Abril e Junho, subida de 69% na comparação anual), ou com um PCP hesitante, virar-se contra o governo ou perder as benesses do regime, Costa poderá dormir descansado.

Se o governo de Herr Costa é forte com os fracos, por outro lado, é fraco e subserviente com os fortes. Foi vê-lo a joelhar-se perante os ditames da Nato no aniversário da “independência” da Ucrânia, assessorado pelo amorfo ministro dos Negócios Estrangeiros e coadjuvado pelo grande “patriota” Marcelo, que nem coragem teve para cumprir o serviço militar. É o que temos…. até um dia em que o governo Costa/PS seja descartado por Bruxelas por já imprestável… ou derrubado pelo povo, na rua.

Imagem: Um gigante judeu em casa com os pais no Bronx – Diane Arbus, 1970

TINHA 38 ANOS

29.08.22 | Manuel

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Tinha 38 anos
quando foi assassinada

Quando de bruços
caiu
por duas balas varada

Tinha 38 anos
quando foi assassinada

Um fardo sem importância
que ali ficou enroscado...
e nem um grito saiu do seu peito estilhaçado

Tinha 38 anos
quando foi assassinada

Pelas costas e a frio
com arma de morte
e caça

Tinha 38 anos
quando foi assassinada

Eram 3 horas da tarde
na varanda
em sua casa...

__

«Maria Odete Lopes Rodrigues, de 38 anos, morreu assim em sua própria casa, atingida a tiros de caçadeira pelo marido. Trabalhadores da Construção Civil que se encontravam num prédio fronteiro presenciaram o crime: a Maria Odete tentou fugir mas foi apanhada por duas descargas, vindo o corpo a tombar na varanda. Então o Silva encostou a espingarda à parede e acendeu um cigarro, sem se preocupar com o cadáver (...)

Muitas pessoas se encontram revoltadas com o silêncio que se fez à volta do crime, que nem sequer foi noticiado nos jornais, atribuindo tal crime ao facto de o Silva ser muito conhecido na vila, onde é activista do CDS.»

Diário de Lisboa
17-6-1977

*

FIM DE DIA DE UMA OPERÁRIA GRÁVIDA

Sente o peso do filho
na barriga
As costas leva curvadas

Nas pernas vê as varizes
Vê as mãos
que traz inchadas

(A casa! Chegar a casa!)

E vai andando apressada: empurrando o corpo
lento
devorado de cansaço
Com um desespero manso e firme a entrar-lhe
pelos braços

(A casa? Chegar a casa?)

E a cama desalinhada?
E a comida por fazer?
E a louça não lavada?

Na fábrica ficou a máquina
na oficina o ruído
a obra já acabada

Mas ainda falta a casa
Com a sua vida a cumprir: .
varrer
panelas
jantar

E a roupa do marido
toda ainda por lavar

(A casa... Chegar a casa…)

A que horas vai poder
deitar-se para dormir?
Num sono de se esquecer…

A que horas vai poder?
Sente o peso do filho
na barriga
As costas leva curvadas

Nas pernas vê as varizes
Vê as mãos
que traz inchadas

(A casa! Chegar a casa!)

E vai andando apressada: empurrando o corpo
lento
devorado de cansaço
Com um desespero manso e firme a entrar-lhe
pelos braços

(A casa? Chegar a casa?)

E a cama desalinhada?
E a comida por fazer?
E a louça não lavada?

Na fábrica ficou a máquina
na oficina o ruído
a obra já acabada

Mas ainda falta a casa
Com a sua vida a cumprir: .
varrer
panelas
jantar

E a roupa do marido
toda ainda por lavar

(A casa... Chegar a casa…)

A que horas vai poder
deitar-se para dormir?
Num sono de se esquecer…

A que horas vai poder?

(“Antologia Poética” de Maria Teresa Horta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1994)

A matança da noite de S. Bartolomeu

24.08.22 | Manuel

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Agosto de 1572 - A matança de São Bartolomeu foi um acontecimento sangrento na repressão dos protestantes em França pela monarquia católica, começou em 24 de Agosto de 1572, durou alguns meses, com o resultado de mais de 70 mil huguenotes assassinados. Prevaleceu a intolerância católica aliada aos interesses de Catarina de Médicis e de largo sector da aristocracia francesa. Quando a notícia do massacre chegou a Roma, a alegria do clero não teve limites, o cardeal de Lorena recompensou o mensageiro com mil coroas, o canhão de Santo Ângelo reboou em alegre salva, os sinos tocaram em todos os campanários e o Papa Gregório XIII foi em longa procissão à Igreja de S. Luís, onde o cardeal de Lorena cantou o Te Deum. Uma medalha foi cunhada em honra da ocasião e o papa encarregou o artista Ciorgio Vasari da pintura de um mural celebrando o massacre. (Maurício Lachatre, “História dos Papas”)

«Há uma perseguição injusta, que é aquela que os sem-Deus movem contra a Igreja de Cristo; e uma perseguição justa que é a que as Igrejas de Cristo movem contra os sem-Deus… A Igreja persegue por amor, os sem-Deus por crueldade.»

Santo Agostinho (354-430)

Guerra religiosa e nacionalismo

Até agora temos considerado a tolerância como o produto da heterodoxia da Reforma e da aceitação da separação entre a Igreja e o Estado. O aspecto radical e proletário do protestantismo desempenhou um papel importante neste processo. Mas o papel desempenhado pelo desenvolvimento do agressivo calvinismo não foi menos importante, porque foi como resultado do conflito armado provocado na Europa ocidental pela Igreja Reformada (como era geralmente denominado o calvinismo) que se conseguiu obter em vários países, e por necessidade política, um grau moderado de liberdade religiosa.

Não será necessário sublinhar que as chamadas guerras religiosas do fim do século XVI e do principio do século XVII não foram unicamente e muito menos substancialmente religiosas, pois elas foram causadas, por um lado, pelo aparecimento dos interesses das facções, e, por outro lado, pelos problemas políticos inerentes à formação de um forte Estado nacional. Nestas querelas a religião foi o laço essencial e vital da unidade, mas a maioria das vezes não passou de apenas um motivo secundário para a acção. Por consequência, quando se discutiam os acordos para a paz civil, a tonalidade da discussão era muitíssimo mais política que religiosa. Na França, na Alemanha e na Holanda, os adeptos da tolerância mútua como base para a paz começaram a discutir a partir da necessidade política, mudando assim o debate sobre a liberdade religiosa para um terreno mais secular. Isto poder-se-á talvez discutir melhor examinando cada país por sua vez.

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O conflito religioso na França

O primitivo movimento da Reforma na França foi luterano na influência e erasmista quanto às personalidades. Surgindo dum mal-estar semelhante ao que foi sentido na Alemanha, contou entre os seus primeiros simpatizantes com grandes humanistas como Lefèvre d'Étaples e a rainha Margarida de Navarra. Na segunda década do século XVI a relativa moderação das medidas tomadas contra o luteranismo podem ser atribuídas à influência de Margarida. Como aconteceu na Alemanha, havia em França um partido erasmista reformista que incluía os irmãos du Bellay e Guillaume Budé, proponentes duma política pacifista como solução para as provocações mútuas da esquerda e da direita. Graças a conselheiros como estes, Francisco I desejou abster-se de medidas extremas de repressão. A provocação pelos Luteranos no caso dos Placards em 1534, quando placards inflamatoriamente anticatólicos foram exibidos em público, levou ao início de uma aberta e sangrenta repressão.

Em 29 de Janeiro de 1535, foi publicado um decreto ordenando a exterminação dos hereges. Cinco anos mais tarde, em 1 de Julho de 1540, o Edicto de Fontainebleau iniciou o grande período de perseguição dos Protestantes, perseguição tanto mais repreensível quanto a jurisdição sobre a heresia estava largamente entregue aos tribunais laicos, os parlements . Entre aqueles que pereceram nesses anos selvagens conta-se o infeliz Vaudois da Provença: só no ano de 1545, pela acção de repressão das forças armadas, mais de mil foram chacinados e as suas casas destruídas.

Calvino aparecia agora em cena. Em 1536 a primeira edição da sua Institution foi publicada em Basileia. Em 1544 os seus livros foram queimados por ordem da Sorbonne. Um ano depois, o ano dos morticínios de Vaudois, testemunhou a abertura do Concílio de Trento. Encontravam-se agora em presença todos os elementos do vigoroso conflito. Henrique II, que sucedeu a Francisco I em 1547, tencionava não tolerar a existência da heresia na França católica. Foi então desencadeada a mais feroz perseguição, auxiliada pelo estabelecimento em 1547 da Câmara Ardente.

Apesar do derramamento de sangue, ou talvez por causa dele, a Reforma aumentou de força e o calvinismo começou a suplantar o luteranismo não só entre as classes inferiores, onde se encontravam os adeptos de Calvino e onde, afinal, a Câmara Ardente foi buscar a maioria das suas vítimas, mas também entre a mais alta nobreza, o mais eminente dos quais foi António de Bourbon, rei de Navarra. Quase imperceptivelmente, a Reforma em França tornou-se muito menos popular entre a gente comum, cujos adeptos quase todos tinham desaparecido pela fogueira, do que entre a burguesia e a nobreza, classes estas que eram as únicas capazes de conseguir para o calvinismo a protecção de que desesperadamente necessitava. Em 1559, no ano seguinte ao da conversão do Bourbon, Francisco II subiu ao trono. E pode dizer-se que é com ele que começam verdadeiramente as guerras religiosas.

Os conflitos sangrentos dos 40 anos seguintes só superficialmente podem ser considerados religiosos, mas o alinhamento dos partidos segundo linhas dinásticas com os Bourbons e os Châtillons pelo lado dos Huguenotes e os Guises pelo lado católico tornaram cada vez mais irrealistas as ligações de carácter confessional. A difícil posição da Coroa, em particular, que sob a notável influência da rainha mãe Catarina de Médicis tentou obter uma pacificação civil satisfatória que não permitiria a qualquer dos partidos supremacia sobre o outro, trouxe claramente o aspecto político das guerras para o primeiro plano que lhe competia. Já na década 60 do século XVI apareceu aquilo a que se chamou um terceiro partido que consistia de membros de ambas as religiões que acreditavam que o conflito entre as fés era de menor importância de que o perigo que adviria para o Estado resultante de uma guerra civil: colocando a estabilidade política à cabeça do seu programa, ganharam por isso o direito ao nome por que passaram a ser designados: politiques. (…)

A tragédia de S. Bartolomeu

Desde o princípio Catarina aceitara como base da sua política uma espécie de coexistência tolerante entre os católicos e protestantes, sendo, todavia, o seu objectivo não propriamente a manutenção da paz civil mas a da autoridade da Coroa. O moderado Edicto de Amboise (1560) constituiu o início dessa política, assim como o facto de ela ter nomeado L'Hospital chanceler. Em Setembro de 1561 realizou-se o famoso Colóquio de Poissy entre as duas religiões. Foi esta a tentativa de Catarina para um concílio nacional cujo objectivo fosse obter a concórdia. Mas passadas que eram apenas quatro semanas o colóquio acabava em malogro. Como aconteceu na Alemanha, os colóquios eram inspirados pelos humanistas e foram destruídos pelo surto do calvinismo.

Daí em diante, a rainha foi obrigada ou a lançar os partidos uns contra os outros ou a apoiar apenas um partido; a terceira alternativa, que seria a de conceder alguma autonomia aos príncipes protestantes, ameaçaria a unidade da França e a autoridade do rei. Infelizmente, a política de conciliação usada para com os Protestantes, adoptada por Catarina e animada por L 'Hospital conduziu a um aumento no poder do partido reformado. O édito da tolerância publicado em Janeiro de 1562 por Carlos IX deu mais força ao protestantismo e intensificou as guerras de religião. Um ano depois disto, o Governo introduziu uma pacificação temporária pelo 2º Edicto de Amboise (1563). Este garantia a liberdade de consciência, mas restringia o exercício do culto livre às principais famílias do país.

Como já tinha acontecido na Alemanha, a tolerância na França aceitava a divisão de classes e as classes inferiores eram excluídas dessa regalia. Ao aceitarem o compromisso em tais termos, a Reforma e os chefes aristocráticos começaram a perder o apoio das massas que lhes poderia ter garantido a conquista da França. Os Huguenotes também perderam a simpatia de Catarina em 1567 quando Condé tentou asperamente promover a causa reformada prendendo a rainha mãe e o seu filho Carlos IX. Condé falhou e assim se precipitou uma outra guerra. A partir deste momento Catarina parece ter desesperado: da sua política de reconciliação e, apesar da tolerância momentânea revelada pelo Edicto de S. Germain (1570), convenceu-se cada vez mais de que só a destruição dos chefes protestantes podia restaurar a paz e proteger a Coroa. O resultado inevitável foi a chacina de S. Bartolomeu em 1572.

O sangrento morticínio dos protestantes assinala o malogro da política de Catarina, tendo desde aí passado para outras mãos a iniciativa para um acordo. Claro que, entretanto, não haviam faltado apelos à tolerância, provenientes em particular do lado católico. Eminentes prelados como Carlos de Marilac, arcebispo de Vienne, avisou em 1560 o Conselho Real de que só os extremistas aproveitariam das divisões religiosas e que seriam necessárias reformas oportunas e a organização dum conselho nacional para restaurar a paz e a unidade. João de Montluc, bispo de Valence, afirmava que as perseguições só agravavam e não curavam a situação.

Depois das Cortes Gerais, realizadas em Orleães em 1560-9, o abade de Bois-Aubry falou a favor de se tolerar duas religiões num único reino, não por causa dos motivos que tinham sido apresentados pelos politiques , ou seja preservar a paz no Estado, mas pela razão humanista do respeito pelas consciências: «não faz qualquer sentido desejar usar-se a força em matéria de consciência e religião, porque a consciência é como a palma da mão, quanto mais pressão se exerce nela mais ela resiste». Adoptando uma posição francamente tolerante, o abade continuou dizendo que «é melhor que um homem seja cristão duma forma ou doutra, bom ou mau, do que ser ateu, isto é, um homem sem Deus, sem religião e sem consciência». Tal discurso é extremamente moderno nas suas premissas e nos seus argumentos, e honra aqueles membros da Igreja francesa que sentiam que as razões éticas, muito mais do que as políticas, exigiam a prática da tolerância como um requisito prévio para se conseguir a ordem no Estado.

Do lado protestante levantaram-se algumas vozes a favor duma política mais liberal. Nas Cortes de S. Germain de 1561 o orador do Terceiro Estado lago Bretagne, calvinista e presidente da Câmara de Autun, pediu aos seus correligionários que fossem tolerantes até que um conselho nacional pudesse decidir o estado da religião. Ainda que o pedido favorecesse a sua própria religião, o princípio que foi expresso por Bretagne poderia muito bem ter sido aplicado a todas as minorias: «O Eterno exige de todas as criaturas nacionais o coração e a afeição interna acima de tudo, o que ninguém pode oferecer quando se sente constrangido».

Imagem de destaque: Retirado de “O Amanhecer da Tolerância” de Henry Kamen. World University Library.

Imagem 2: Gravura de um manuscrito do século XV que mostra João Huss a ser justiçado pela fogueira no ano de 1415, em Constança. Huss, que foi reitor da Universidade de Praga, chefiou uma revolta simultaneamente nacional e religiosa. Não deixa de ser curioso que as autoridades de Constança que ordenaram a sua execução foram as mesmas que obtiveram o maior sucesso na reconciliação da dividida Cristandade ocidental.

(Retirado de “O Amanhecer da Tolerância” de Henry Kamen. World University Library.)

Os diabos do Diabo

19.08.22 | Manuel

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por Eduardo Galeano

Diabo é muçulmano

Que Maomé era terrorista já Dante sabia. Não foi por acaso que este o situou num dos círculos do inferno, condenado à pena da perpétua verruma. «Vi-o rachado», cantou o poeta na Divina Comédia, «desde as barbas até à parte inferior do ventre...».

Mais de um papa comprovou que as hordas muçulmanas atormentadoras da Cristandade não eram constituídas por seres de carne e osso, mas sim por um grande exército de demónios, que se multiplicavam à medida que as lanças, espadas e arcabuzes neles desferiam golpes.

Nos tempos actuais, os mísseis fabricam muitos mais inimigos do que os inimigos que estripam. Mas que seria de Deus se não tivesse inimigos? O medo comanda, as guerras nutrem-se com medo. Prova a experiência que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz do que a promessa do Céu. Bem-vindos sejam pois os inimigos. Na Idade Média, sempre que o trono estremecia, devido a bancarrotas ou à fúria popular, os reis cristãos denunciavam o perigo muçulmano, desencadeavam o pânico, lançavam uma nova Cruzada, e era remédio santo. Ainda há pouco, George W. Busb foi reeleito presidente do planeta graças à oportuna aparição de Bin Laden, o Grã-Satã do reino, o qual anunciou na televisão, em vésperas daquela eleição, que ia comer cruas todas as criancinhas.

Por volta de 1564, o demonólogo Johann Wier recenseou todos os diabos que operavam na Terra, a tempo inteiro, em prol da perdição das almas cristãs: eram em número de sete milhões, quatrocentos e nove mil cento e vinte e sete, e actuavam repartidos em setenta e nove legiões.

Desde aquele recenseamento já muitas águas ferventes passaram sob as pontes do inferno. Quantos serão hoje os emissários do reino das trevas? As artes da dissimulação dificultam a contagem. Mas estes embusteiros continuam a usar turbantes para ocultar os cornos, e amplas túnicas tapam-lhes as caudas de dragão, as asas de morcego e a bomba que levam debaixo do braço.

O Diabo é mulher

O livro Malleus Maleficarum, também chamado O Martelo das Bruxas, recomendava o exorcismo mais desapiedado contra o demónio que tem seios e cabelo comprido.

Escreveram-no dois inquisidores alemães, Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, a pedido do papa Inocêncio VIII, para se opor às conspirações demoníacas contra a Cristandade. Foi publicado pela primeira vez em 1486, e até finais do século XVIII constituiu em vários países o fundamento jurídico e teológico dos tribunais da Inquisição.

Sustentavam os seus autores que as bruxas, harém de Satã, representavam as mulheres em seu estado natural : «Toda a bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável.» E demonstravam que «esses seres de belo aspecto, contacto fétido e mortal companhia» encantavam os homens, atraindo-os, com seus silvos de serpente e caudas de escorpião, para os aniquilarem. Os autores advertiam pois os incautos : «A mulher é mais amarga do que a morte. É um ardil. Seu coração é uma rede, e seus braços são grilhetas.»

Esse tratado de Criminologia, que enviou milhares de mulheres para as fogueiras da Inquisição, dava como conselho que se pusessem a tormentos todas as suspeitas de bruxaria. Se confessassem, mereciam as chamas. Se não confessassem, igualmente, porque só uma bruxa, fortalecida pelo Diabo seu amante nos conciliábulos demoníacos, podia resistir a semelhante suplício sem que a língua a traísse.

O papa Honório III sentenciou que o sacerdócio era coisa de machos: «As mulheres não devem falar. Os seus lábios têm o estigma de Eva, que foi a perdição dos homens.»

Oito séculos mais tarde, a Igreja católica continua a negar o púlpito às filhas de Eva.

O mesmo pânico leva os muçulmanos fundamentalistas a mutilarem-lhes o sexo e a taparem-lhes a cara.

E o alívio perante o perigo conjurado leva os judeus muito ortodoxos a começar o dia sussurrando assim: «Graças, Senhor, por me não haverdes feito mulher.»

O Diabo é homossexual

Em Portugal, desde 1446, os homossexuais eram enviados para a fogueira. Em Espanha, desde 1497, queimavam-nos vivos. O fogo era o destino que mereciam estes filhos do inferno, que provinham do fogo.

Na América, em contrapartida, os conquistadores preferiam atirá-los aos cães. Vasco Nuñez de Balboa, que muitos condenou a tais tormentos, pensava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos mais tarde, ouvi o arcebispo de Montevideu dizer a mesma coisa.

Quando os conquistadores surgiram no horizonte, só os astecas e os incas, nos seus impérios teocráticos, castigavam a homossexualidade – com a pena de morte. Os restantes americanos toleravam-na, e em alguns lugares louvavam-na, sem proibição nem castigo.

Essa provocação insuportável tinha forçosamente de desencadear a cólera divina. Do ponto de vista dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam índios como moscas, não vinham da Europa, vinham do Céu. Desse modo castigava Deus a libertinagem dos índios, que com toda a naturalidade praticavam coisas anormais.

Nem na Europa, nem na América, nem em qualquer outro lugar do mundo se contaram os muitos homossexuais condenados ao suplício ou à morte pelo delito de o serem. Nada sabemos dos tempos longínquos, e dos tempos de agora pouco ou nada sabemos.

Na Alemanha nazi, estes «degenerados culpados do aberrante delito contra natura» eram obrigados a usar na roupa um triângulo cor-de-rosa. Quantos terão ido parar aos campos de concentração? Quantos lá terão morrido? Dez mil, cinquenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou, quase ninguém os mencionou. Tão-pouco se soube quantos foram os ciganos exterminados.

No dia 18 de Setembro de 2001, o governo alemão e os bancos suíços decidiram «rectificar a exclusão dos homossexuais de entre as vítimas do Holocausto». Levaram mais de meio século para corrigir essa omissão. A partir daquela data, os homossexuais que tenham sobrevivido em Auschwitz e noutros campos de concentração, no caso de algum ainda estar vivo, podem reclamar uma indemnização.

O Diabo é negro

Tal como a noite, tal como o pecado, o negro é inimigo da luz e da inocência.

No seu célebre livro de viagens, Marco Polo evocou a certa altura os habitantes de Zanzibar: «Tinham a boca muito grande, os beiços muito grossos e nariz de macaco. Andavam nus e eram totalmente negros, tomando-os por diabos quem os visse noutras partes do mundo.»

Três séculos mais tarde, em Espanha, Lúcifer, pintado de negro, entrava num carro de fogo nos cercados das comédias e nos palanques das feiras. Santa Teresa de Jesus, que passou a vida a combatê-lo, nunca conseguiu livrar-se dele. Uma vez parou ao lado dela, e era um « negrito muito abominável». De outra vez, quando ele se sentou em cima do seu livro de orações e lhe queimou as rezas, viu que do corpo negro lhe saía uma grande chama vermelha.

Breve história do intercâmbio entre a África e a Europa: durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a África vendeu escravos e comprou espingardas. Trocava trabalho por violência. As espingardas punham ordem no caos infernal e a escravidão dava início ao caminho da redenção. Antes de serem marcados, na cara ou no peito, com um ferro em brasa, todos os negros recebiam um bom salpico de água benta. O baptismo espantava o demónio e punha uma alma naqueles corpos vazios.

Depois, nos séculos XIX e XX, a África entregou ouro, diamantes, cobre, marfim, borracha e café e recebeu Bíblias. Trocava produtos por palavras. Pressupunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do Inferno para o Paraíso, mas a Europa esqueceu-se de os ensinar a ler.

O Diabo é estrangeiro

O culpómetro indica que o imigrante nos vem roubar o emprego e o perigosímetro assinala-o com uma luz vermelha.

O intruso, o que vem de fora, se for pobre, jovem e não branco, fica desde logo condenado por indigência, inclinação para a desordem ou cor da pele. De qualquer maneira, se não for pobre, nem jovem, nem escuro, não é bem-vindo, porque chega disposto a trabalhar o dobro em troca de metade.

O receio de se perder o emprego é um dos medos mais poderosos entre todos os medos que nestes tempos de medo nos governam, e o imigrante está sempre à mão quando se trata de acusar os responsáveis pelo desemprego, pela redução dos salários, pela insegurança pública e outras temíveis desgraças.

Dantes, a Europa espalhava pelo mundo soldados, prisioneiros e camponeses a morrer de fome. Esses protagonistas das aventuras coloniais passaram à história como agentes comerciais de Deus. Era a Civilização assim lançada para resgatar a barbárie.

Agora, a viagem ocorre às avessas. Os que chegam, ou tentam chegar, do Sul para o Norte, não vêm com uma faca entre os dentes nem trazem nenhuma espingarda ao ombro. Vêm de países que foram espremidos até à última gota e não tencionam conquistar coisa nenhuma, a não ser algum trabalho ou biscate. Mas estes protagonistas das desventuras coloniais mais parecem mensageiros do Diabo; é a barbárie ao assalto da Civilização.

(Ver texto completo em “Le Monde diplomatique”, Agosto de 2005)

História Maravilhosa da Intitulada Beata de Évora

16.08.22 | Manuel

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Bocage

Junto à porta de Alconchel, na cidade de Évora, vivia na companhia de seus pais uma beata, moça de vinte e dois anos, e de muitos bons bigodes, chamada Ana de Jesus Maria. Esta serva do Senhor fora por algum tempo confessada de fr. João de Santa Eufrásia, da ordem dos Carmelitas descalços, e morador no convento dos Remédios, da mesma cidade. Porém, morrendo este, tomou-a debaixo da sua direcção espiritual um fr. Félix, que passados tempos teve de ausentar-se da cidade e antes da sua partida trespassou a beata a outro masmorro da sua ordem. Este último, satisfeito em extremo de tão bela aquisição, dava a Deus contínuos louvores por tê-lo ali enfiado, afim (segundo ele dizia) de dirigir e encaminhar para a bem-aventurança aquela alma predestinada, cujas singulares virtudes apregoava por toda a parte à boca cheia.

Depois de terem ambos abusado por algum tempo da credulidade e fanatismo, não só do vulgo ignorante, mas até de indivíduos de mais elevada esfera, que por suas circunstâncias deveriam julgar-se fora do alcance de tão ridículas sugestões, entenderam o frade e a confessada que podiam levar a audácia mais longe, e concertaram entre si uma farsa de que esperavam colher um resultado maravilhoso. Começaram pois a assoalhar entre os seus conhecimentos que por divina revelação fora anunciado à beata que no dia de S. Miguel, 29 de Setembro de 1792, pelas nove horas e meia da noite havia de infalivelmente morrer, querendo Deus chamá-la a si no próprio instante em que completava os seus vinte e dois anos.

A notícia desta espécie de profecia espalhou-se velozmente por toda a cidade; isso era o mesmo que os interessados desejavam; e grande número de pessoas, preocupadas pela opinião de virtude da santinha, aguardavam ansiosamente o cumprimento da promessa divina. Chegado que foi o dia, em que devia realizar-se o vaticínio, o arcebispo D. Joaquim Xavier Botelho de Lima, que era, ou fingia ser, um dos que mais acreditavam nos embustes da beata e do seu director, quis autenticar o milagre, em modo que não ficasse lugar para as dúvidas dos incrédulos. Mandou portanto sair de casa da santa o padre confessor e o prior do convento, seu fiel companheiro, e ordenou a quatro clérigos da Sé que alternada mente assistissem dois a dois à beata, dia e noite, até chegar a hora profetizada do seu miraculoso trânsito.

Cumpriram os clérigos a determinação do prelado, e tudo correu na melhor ordem. Porém, vendo que o prazo prometido era passado, e que a santinha se conservava de perfeita saúde, sem que apresentasse o mais leve indício de uma morte próxima, entenderam que deviam retirar-se, despediram-se dela, e abalaram para suas casas. Ainda bem não tinham cruzado a porta, e já o pai da menina corria após eles, a anunciar-lhes que naquele mesmo instante dera a alma ao criador! Voltaram atónitos os bons clérigos, pesarosos sem dúvida de não terem presenciado o prodígio; acharam-na com efeito já amortalhada no hábito de Santa Teresa; e para ser mais cabal o milagre, tinha as mãos e pés estigmatizados com chagas semelhantes às do nosso divino redentor! Quem ousaria ainda duvidar da verdade, depois de tão claramente manifestada? Os clérigos prontamente se persuadiram e correram logo a levar ao arcebispo a notícia do sucesso.

Entretanto apareceu o padre confessor, declarando aos circunstantes, que começavam a afluir, ter sido ele o que mesmo do convento impusera preceito à santa para que morresse logo que os clérigos saíssem, porquanto sem permissão dele o não podia fazer. Apresentou-se em seguida a comunidade de cruz alçada, e começou a alterar com o pároco de Santo António acerca de quem levaria aquele bendito corpo para a sua igreja.

O povo amotinado corria em chusma para a casa da beata, todos pretendiam ver com os próprios olhos tão estupenda maravilha... Eis que o frade começa a pregar com grande ânsia, preconizando a defunta pela maior de todas nascidas em Portugal, narrou um milhão de suas virtudes e milagres, afirmou a todos que Deus estava nela, disse-lhes que a adorassem e finalmente, para mais entusiasmar os pios ouvintes, volta-se para a bisbilhoteira, que jazia amortalhada e diz-lhe: «Ana! Em virtude da santa obediência abre os olhos!» (E ela os abriu, tamanhos como duas cebolas). «Ana! Cruza os braços!» (E a defunta, que os tinha estendidos, os cruzou efectivamente). «Ana! Abençoa os que aqui estamos!» (E ela assim o fez.) Mandou-lhe que declarasse onde estava: ela respondeu que já tinha ido ao céu, e que lá encontrara fr. João de Santa Eufrásia, que estava dizendo missa, o qual lhe dera a chuchar metade do cálix! Finalmente satisfazia com certeza a tudo quanto o frade lhe ordenava. Os espectadores enternecidos à vista de tantos prodígios, e lavados em lágrimas, começaram humildes a beijar-lhe os pés, tocando lenços, contas e verónicas nas suas chagas. Repicaram-se os sinos por todos os campanários da cidade, começaram de afluir em tropel os coxos, os cegos e paralíticos, que vinham com muitas lágrimas implorar o remédio para seus males, mas, infelizmente para eles, saíam como entravam.

Crescia de ponto a devota multidão, e com ela a desordem, até que as autoridades trataram de providenciar, mandando vir tropa, que pôs fora a todos, com promessa de voltarem, ficando afinal sós na casa o pai e a mãe com a suposta defunta. O oficial que comandava a tropa, tendo-se retirado para baixo, chegou porém passado algum tempo casualmente à porta, e como ouvisse rumor de vozes no quarto onde jazia a santa amortalhada com tochas acesas, empurra a porta de repente, e acha-a sentada muito à vontade, conversando sem cerimónia com o pai e mãe! Ela mal que o viu, estendeu-se novamente, e deixou-se morrer outra vez querendo sustentar a impostura, e os pais com toda a presença de espírito contaram ao oficial que sua filha lhes estava declarando o lugar em que no convento dos Remédios queria ser sepultada. Aquele, que já desconfiava de tanta maranha, deu logo parte do facto ao Arcebispo. Vieram médicos, e acharam-na mais viva que o azougue!

Descoberta a impostura, o povo amotinou-se novamente, mas desta vez com o intento de dar cabo da beata, a quem não podiam perdoar a ilusão em que haviam caído. Por fim foi mandada presa para o recolhimento de Santa Marta. O reverendo padre confessor fugiu, e todos os seus confrades foram suspensos das ordens, e degradados para um convento do Algarve. Tudo porém ficou impune, porque passado algum tempo a beata saiu do recolhimento, e casou com um soldado, e os frades regressaram para o seu convento, não se falando mais em tal.

Se a devota pantomina tivesse ido para diante, é provável que mudariam a moça para alguma cela, e que desta saíssem para a roda netos de Santa Teresa; como o corpo havia necessariamente de desaparecer do lugar do depósito, os frades fariam crer à pobre gente que ela subira ao céu em corpo e alma. Que novo ramo de comércio tão lucrativo para a comunidade, e tão proveitoso para as beatas bonitas! E quantas destas se terão engolido no mundo!

I

De c'roa virginal a fonte ornada,
Em lúgubres mortalhas envolvida
A beata fatal jaz estendida,
De assistentes contritos rodeada:

Um se tem por já salvo em ter chegado
Ao lindo pé a boca comovida:
Outro protesta reformar a vida:
Porém ela respira, e está corada!

Que é santa, e que morreu, com juramentos
Afirma audaz o façanhudo frade,
E que prodígios são seus movimentos:

O devoto auditório se persuade:
Renovam-se os protestos, e os lamentos:
Triste religião! Pobre cidade!

II

Acredite, sentado aos quentes lares
Nas noites invernosas de Janeiro,
Lendo em Carlos Magno o sapateiro
As proezas cruéis dos doze Pares:

Creiam que vêm as bruxas pelos ares
A chupar as crianças no traseiro;
Comam quanto lhes diz o gazeteiro,
De casos, de sucessos singulares:

Porém que uma beata amortalhada,
Com a cara vermelha e corpo mole,
E santa por um frade apregoada;

Que respire, que os braços desenrole,
E seja por defunta acreditada,
Isto somente em Évora se engole!

NOTAS:

Voltando ao soneto de Bocage, digamos aqui alguma coisa com referência às distintas personagens nele comemoradas.

Herói da bola chata, etc. - Era o José da Costa, marechal de campo, e governador de Évora, que por morte de seu irmão mais velho veio a ser conde de Soure e tenente-general. Foi ele o primeiro que com sua filha bastarda D. Maria José tiveram a honra de ser abençoados pela santa beata, e de lhe beijarem os pés, tocando seus lenços nas chagas, que aí se ofereciam à veneração dos fiéis, feitas prodigiosamente por meio do nitrato de prata!

Falso pastor, etc . - O Arcebispo D. Joaquim Xavier Botelho de Lima, do qual acima falamos.

O respeitável Cunha, etc. - António da Cunha Souto-Maior, sargento-mor do regimento de cavalaria de Évora que, não obstante ser tido por homem instruído e desabusado, foi o segundo que teve a alta ventura de beijar o pé à santa!

("Poesias Eróticas, Burlescas & Satíricas com Nota Introdutória de Pinheiro Chagas sobre Bocage", M. M. Barbosa du Bocage. Editora Orfeu, 1985)

Nota: A publicidade deste livro na RTP foi proibida por Cavaco aquando primeiro-ministro.

Publicado em 2005, Ano de Bocage in osbarbaros.org 

Ruy Belo - Cidadão de longe e de ninguém

08.08.22 | Manuel

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O Poeta num eléctrico

De súbito ao cair de mais um ano
sou por instantes sinto-me ao cair da tarde
do sol que antes brilhante é luz lustrosa
e pegajosa agora à superfície da calçada
na humilhante morte de quem era alto eterno e dominante
sou ao cair da tarde de um ano que cai
eu o poeta o instalado o mais que muito aburguesado
um colectivo passageiro num eléctrico
mas só supostamente anónimo ou popular ou colectivo
pois posso dar-me ao luxo de evocar um livro lido há muito
num destes animais metálicos já hoje arcaicos deslocados
e amanhã vivos apenas nesse livro do zé gomes que os evoca
e eu me posso dar ao luxo de evocar agora após haver falado
nessa farmácia onde comprei há pouco antiasmático
do cão asmático das praias que primeiro ouvi tossir
num verso do o'neill e só depois num mês de maio em espinho
ao imprimir na areia graves passos de poeta nupcial
sinto-me alguém de súbito ao pagar o meu bilhete
bilhete de quem volta e de quem vive do trabalho
mas que pode exibir o seu sapato alto à moda
e alinhar uns versos no papel da embalagem do remédio
E eu que distraído e que perdido e que privado já
de mais alguma face da embalagem do remédio onde escrevia
eu que já não sabia como pôr ponto final em toda esta conversa mais do que fiada
dizer ao ver que continuo alheio lírico e sentado
oiço a voz grossa e neutra do sisudo guarda-freio
que chegámos ao fim fim da viagem para ele
e fim deste poema para mim

*

Peregrino e hóspede sobre a terra

Meu único país é sempre onde estou bem
é onde pago o bem com sofrimento
é onde num momento tudo tenho
O meu país agora são os mesmos campos verdes
que no outono vi tristes e desolados
e onde nem me pedem passaporte
pois neles nasci e morro a cada instante
que a paz não é palavra para mim
O malmequer a erva o pessegueiro em flor
asseguram o mínimo de dor indispensável
a quem na felicidade que tivesse
veria uma reforma e um insulto
A vida recomeça e o sol brilha
a tudo isto chamam primavera
mas nada disto cabe numa só palavra
abstrata quando tudo é tão concreto e vário
O meu país são todos os amigos
que conquisto e que perco a cada instante
Os meus amigos são os mais recentes
os dos demais países os que mal conheço e
tenho de abandonar porque me vou embora
pois eu nunca estou bem aonde estou
nem mesmo estou sequer aonde estou
Eu não sou muito grande nasci numa aldeia
mas o país que tinha já de si pequeno
fizeram-no pequeno para mim
os donos das pessoas e das terras
os vendilhões das almas no templo do mundo
Sou donde estou e só sou português
por ter em portugal olhado a luz pela primeira vez

TRANSPORTE NO TEMPO (1973)

*

Morte ao meio dia

No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

BOCA BILINGUE (1966)

*

Fala de um homem afogado ao largo da senhora da guia no dia 31 de Agosto de 1971

A mim morto no mar entre algas e corais
que notícias me dais aí da superfície
dessa única terra onde vivi
e foi minha ambição morrer pra nunca mais?
Ainda cheira a esteva por aí?
Que mundo de repente recupera
quem ao abrir um dado dicionário sente o cheiro
do jornal infantil folheado em criança
no pavimento térreo dessa adega
onde o verão intenso nem entrava
mas intensificava mesmo a humidade?
Ainda porventura a alguém
se lhe molham os olhos ao lembrar
quem à vontade meninice fora assim corria
como quem aí tem aquela única casa
afinal sua toda a sua longa vida?
Ao menos uma folha se moveu quando morri
à vista deste cerro aonde o vento dependura cantos
nas mais instáveis copas dos pinheiros
onde a névoa se adensa e cobre aquele castelo
ali erguido para humanizar o mar
e até perpetuar esse quebrar das ondas
contra esses rochedos um recurso secular
que aterra utilizou para se opor à sedução da água
instável envolvente e incapaz de conseguir a paz
como o chão que na pedra tem a máxima fixação?
Alguém notou acaso a minha falta
para além dum visível ponto de referência
um aceno do sono ou som do sino
gesto de mão sorriso silhueta?
Sentiram-se levados a exaltar-me
os que na destruição me vislumbravam
uma certa razão das suas vidas?
Alguém me aquecerá o coração ao fogo
quando o frio do fundo e das correntes
fender as minhas vísceras dispersas
por estes cinco mares onde espalho
a morte merecida pela minha condição de peixe?
Se alguém descer até estas profundidades
porventura será capaz de decifrar
o mistério reflectido nestes olhos
eternamente abertos sobre o meu amado mundo?
Alguém foi como eu profundamente vil
e muito mais o foi por conhecer que o era?
Onde dormem agora os que eu amei?
Como lhes foi possível perecer
se eu por os amar os tinha por eternos?
Seriam só eternos para mim?
Que paz lhe pesa agora sobre o peito?
O sol ainda nasce? Ouve subitamente alguma música
quem tão perdido estava que de súbito começa
e olha para tudo com os olhos limpos
de quem as coisas vê pela primeira vez?
Quem lá na minha aldeia sacrifica hoje
o porco semanal em troca dum grunhido
desfeito contra os montes circundantes?
Morto o miguel ainda fica a faca?
Ainda pelas ruas ao domingo
se tem de procurar não pôr os pés nos bêbados prostrados
convencidos talvez de vir a ter em tão precária posição
mera antecipação da humana condição definitiva
alguma solução para a sua indigna sujeição?
Ainda vem à quarta de Almoster o ferrador
Ferrar machos cavalos na barraca de madeira
Erguida ali à beira do caminho
que me levava a casa e devolvia à vida?
Porventura o barbeiro ainda se chama marcelino?
Compram cada semana os seus trabalhadores
Reunidos na praça após matar o bicho
os senhores dos pauis e vinhas e courelas?
Festeja-se na adega o termo da colheita
dessa azeitona vorazmente varejada da oliveira
sobre o espesso pano de serapilheira?
Alguém caiu de cima de uma árvore
por causa da geada de janeiro
e até da aguardente ingerida em jejum
em todos estes anos desde a morte do bizarro?
A cheia traz o sável pela primavera?
Há bailes na ribeira a dois quilómetros
passado o pinheiro-manso pelo carnaval?
Como se chama agora a dona da farmácia?
Há fogueira sem junho onde debaixo de aparente devoção
se exalta ávida e normaliza a natureza?!
Os noivos vão casar-se de carroça
e abrem de abalada as mãos cheias de confeitos sobre as testas dos miúdos
que se juntam à espera para os ver passar
e não sabem ainda como é triste a alegria?
A quem pertencem hoje as lavegadas
onde as mulheres mondavam as searas
e as folhas arrancavam às videiras
que vedavam às uvas o acesso ao sol?
Nestas núpcias eternas com a água
sobre sinos e ventos sibilantes
não se ouvirá soar a monocórdica
e harmónica música daquelas campainhas
das máquinas registadoras dessas lojas
desse porto e da vila onde dormi
os últimos dez anos de visitas começadas
num verão lembro-me bem num dia três de agosto
dentro da composição número mil e oito da cp
(alguém de letra irregular o deixou escrito num romance
comprado na estação do entroncamento
e por mim esquecido ao chegar a são bento)?
Existirá ainda o escuro casarão até talvez capaz de atenuar
a música do sino que ritmava a vida
nessa vila pequena aonde o homem
mais de frente enfrentava o frio olhar da morte?
Que é feito da pensão perto dos estaleiros
onde eu bebia com os pescadores e carpinteiros
e que deixei de vez para ir ao encontro
da musa mais discreta e silenciosa dos meus versos?
E eu que nos lençóis via a neve polar
que às vezes ao cheirá-los me sentia transportado
subitamente a sítios e a dias do passado
que só os soube na verdade apreciar
levado pela mão de camilo pessanha e dylan thomas
eu que em lençóis de linho ambicionava repousar
são de água os meus lençóis e à volta é o mar
Se me via cingido de cidade
se nem já mesmo o sol deixava entrar em casa
sem antes ele limpar os dois sapatos ao entrar
devo afinal a gestos artificiais
o meu regresso às coisas naturais
Não pense quem vier que estou sozinho
entre inúmeros peixes das profundidades
e os corpos de incontáveis pescadores
como o jovem lourenço são miguel
que aqui se despediu dessa vida de aí
a cinco salvo erro de janeiro de sessenta e cinco
Não reparam que olho com os olhos cheios de água
quem só mais do que eu pertence ao mar
por aqui habitar só aparentemente antes?
Moradores da terra fogo ou ar
sabei que o solo sólido da terra foi apenas para mim
insegurança oscilação vertigem
e que em verdade agora mais do que acabar
o que fiz foi voltar à minha origem

TODA A TERRA (1976)

Antologia Poética, Ruy Belo - Cidadão de longe e de ninguém. Círculo de Leitores, 1999.

Esboço de uma autobiografia

04.08.22 | Manuel

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Qualquer homem é particular e, em virtude da sua particularidade, chamado a agir, desde que tome gosto na sua particularidade. Na escola como em casa, tanto quanto tive experiência, trabalhava-se para delir a particularidade. Era tornar a educação mais fácil, mais fácil também a vida da criança; é verdade que lhe era necessário saborear em primeiro lugar a dor que provoca a sujeição. Não se fará nunca compreender a rapaz, à noite, quando está no melhor de uma história cativante, nunca se lhe fará compreender por uma demonstração limitada a ele próprio que lhe é necessário interromper a leitura e ir-se deitar. Diziam-me em semelhante caso que se fazia tarde, que estragava a vista, que o meu despertar na manhã seguinte seria penoso, que essa medíocre e estúpida leitura não valia a pena, o que não podia contradizer expressamente, porque, em suma, nada disso atingia sequer os confins do que merece reflexão. Tudo era infinito, tudo se perdia no indeterminado de tal modo que podíamos identificar este todo com o infinito.

O tempo era infinito, não podia portanto fazer-se tarde, o poder da minha vista era infinito, não podia portanto esgotá-lo, a própria noite era infinita, não havia portanto necessidade alguma de me inquietar com o levantar matinal; e quanto aos livros, não os distinguia de acordo com a estupidez ou a inteligência, mas conforme me cativavam ou não, ora este cativava-me. Tudo isso não o podia exprimir assim, mas sucedia que à força de suplicar que fizessem o favor de me permitir prolongar a leitura, me tornava importuno ou decidia prosseguir a leitura sem consentimento. Tal era a minha particularidade. Oprimiam essa particularidade, cortavam o gás, deixando-me sem luz. Davam-me sempre esta explicação: toda a gente vai dormir, tu deves portanto ir dormir também. Era realmente o que via e aquilo em que tinha de acreditar, ainda que me fosse incompreensível. Não há ninguém que deseje realizar tantas reformas como as crianças. Mas independentemente desta opressão, admissível acertos respeitos, havia aí, como em quase todas as coisas,  um dardo que nenhuma referência à generalidade podia amaciar. Perseverava com efeito na crença de que, precisamente nessa noite, ninguém no mundo teria lido com tanto gosto como eu. Eis o que, provisoriamente, nenhuma referência à generalidade era capaz de refutar e isso tanto menos quanto via bem que não se acreditava no irreprimível prazer que eu tinha com a leitura. Só pouco a pouco e muito mais tarde, talvez desde~ o enfraquecimento do prazer, nasceu em mim a espécie de crença de que muitos outros experimentavam o mesmo prazer e não o limitavam menos por isso. Mas outrora só sentia a injustiça que me infligiam, ia-me deitar muito triste e foi durante esse tempo que germinaram as primícias do ódio que devia determinar a minha vida no seio da família e, em certa medida, a minha vida inteira.

A proibição de ler não passa de um exemplo, mas um exemplo significativo, pois essa proibição actua profundamente. Não reconheciam a minha particularidade, era-me necessário – a este respeito era muito susceptível e estava sempre em guarda –, reconhecer uma condenação nessa atitude para comigo próprio. Mas se já condenavam uma particularidade que eu manifestava, quão mais graves deviam ser as particularidades que escondia por eu próprio reconhecer nelas uma pequena injustiça. Tinha lido à noite, se bem que não tivesse ainda estudado a minha lição do dia seguinte. Era talvez isso, como falta ao dever, qualquer coisa de muito grave, ora não se tratava de um juízo absoluto, para mim tratava-se apenas de um juízo comparativo. E diante desse juízo, a minha negligência não era sem dúvida mais grave do que o era em si o facto de ler a uma hora indevida, tanto mais que essa negligência se via limitada nas suas consequências pelo grande medo que tinha à escola e aos professores. O que teria podido omitir, devido à minha leitura, recuperava-o facilmente no dia seguinte na escola, graças à minha memória então muito boa. Mas o importante de tudo isto, é que a condenação que tinha sofrido a minha leitura exagerada, alargava-a desde então, alargava-a pelos meus próprios meios à falta, que continuava secreta, aos meus deveres e, por tal razão, chegava ao resultado mais deprimente. Assim qualquer um vendo-se tocado, a título de advertência, por uma verga que não deve magoar desfaz-lhe os liames, atrai para si todos os rebentos e começa deliberadamente a picar e a arranhar o seu íntimo, enquanto a mão estranha mantém, calma ainda, a extremidade da verga. Mas se em semelhante caso não me punia ainda gravemente, é certo que não tirava nunca das minhas particularidades o verdadeiro benefício que, no fim de contas, se exprime por uma duradoira confiança em nós. Resultava bem mais depressa da revelação de uma particularidade de que detestava o opressor, ou então que considerava esta particularidade como inexistente, duas consequências que podiam assim falazmente unir-se. Mas se passasse em silêncio uma das minhas particularidades, resultava então que me detestava e ao meu destino, que me considerava mau ou condenado. A relação entre dois grupos de particularidades mudou muito no decorrer dos anos. O número de particularidades declaradas não cessava de aumentar à medida que me aproximava da vida que me era acessível. Mas, de libertação, nenhuma; a quantidade dos segredos não diminuía nada, e uma observação mais penetrante ensinava-me que nunca poderia ser confessado tudo.

E mais tarde encontravam-se dentro de mim próprio as raízes das confissões, completas na aparência, dos primeiros tempos. Mas mesmo que tal não tivesse sucedido, em favor do relaxamento que sofrera sem interrupção decisiva a organização da minha alma, teria bastado uma particularidade oculta para me abalar a tal ponto que, a despeito da minha adaptação habitual, não encontraria apoio em parte nenhuma. Mesmo no caso de não ter guardado nenhum segredo, mesmo no caso de ter atirado tudo fora e para longe de mim, de maneira que ficasse inteiramente puro, no instante seguinte ter-me-ia sentido invadido pela antiga desordem, porque na minha opinião o segredo não teria sido completamente reconhecido e apreciado e, por consequência, ter-me-ia sido devolvido e imposto de novo pela generalidade. Não se tratava de uma ilusão, mas de uma maneira particular de reconhecer que, pelo menos entre os vivos, nenhum pode desembaraçar-se de si próprio. Quando por exemplo alguém confessa a um amigo que é avaro, libertou-se nesse instante aparentemente da avareza em face desse amigo, quer dizer em face de um juiz competente. Pouco importa então a maneira como o amigo acolhe essa confissão; que negue a existência ou que dê conselhos para se libertar, ou mesmo que tome a defesa da avareza. Muito mais decisivo é o facto de enquanto pecador não arrependido mas talvez sincero, ter confiado o segredo à generalidade e esperar com isso haver reconquistado a infância salutar e – o que mais importa –, a infância livre. Ora, não fez mais do que conquistar uma breve loucura e muita amargura ulterior. Porque em qualquer parte na mesa, entre a avareza e o amigo, se encontra o dinheiro que o avaro deve chamar a si e para o qual dirige cada vez mais rapidamente a mão. A meio caminho, a confissão, agindo cada vez mais fracamente, liberta ainda; para além disso, deixou de libertar, pelo contrário, não faz mais do que iluminar a mão que se adianta. As confissões eficazes só são possíveis antes ou depois do acto. O acto não deixa subsistir nada a seu lado, para a mão que recolhe o dinheiro não existe libertação pela palavra ou pelo arrependimento. É necessário ou que o acto, por consequência a mão, seja aniquilado, ou então que na avareza se...

Antologia de Páginas Íntimas, Franz Kafka. Guimarães Editores, 1961

ZECA AFONSO

01.08.22 | Manuel

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QUANDO OS INCÊNDIOS ALASTRAM

Quando os incêndios alastram
Está próximo o castigo
Por vezes a ilusão
Por vezes a morte.
adormecem os corpos junto à doca
Punhos cerrados
Em direcção à terra.
Irmãos de caqui outros virão
Mineiros, estivadores, seareiros da fome
Através dos mares da nafta.
Sinistras fortalezas da morte
Delicadas lianas da abastança
Impérios da agiotagem. Ó, lembrai-vos
Do ano de 29 e sobretudo,
Cagai, amontoai, engoli, triplicai
O ouro que atravanca as vossas streets triunfais.
Debaixo da terra
Olhos mortos aguardam
Um cavalo que afronta a madrugada.

*

EM VENDO A CORJA TOMAR O FREIO

Em vendo a corja tomar o freio
Vender o jogo, coitadinha
Sinto vontade de ir em passeio
Ir à vidinha
Não é cordato ser pessimista
Quem não se lembra dos galarós?
Esta tendência para ser fadista
Vem d'outros tempos, d'outros avós
Tu Nicolau Tolentino sabes
Quantos peraltas são já ministros?
Quantos mendigos chegam a frades?
Quantos são Cristos?
Isto do tempo de antena é moda
Que vem do fundo da tradição
Quando o tirano de Santa Comba
Fazia tudo pela Nação
E as calinadas do Pai Tomás
Dignificando o Pátrio idioma?
Meus rapazinhos, quem é capaz?
Quem faz a soma?
Este chulismo de quintarola
Esta viagem p'rà CÊÉÉ
E o populacho todo pachola
Olarilolé
Muitos mais chulos nos vão rondando
Vai sendo tempo qu'rido zarolho
Pega no arrocho de quando em quando
Prepara o molho

(Poesias retiradas de "José Afonso, Textos e Canções" de Elfriede Engelmayer, Lisboa 2000, Relógio D'Água Editores)

 

ZECA AFONSO, “Um homem de palavra e das palavras livres”

Era um homem de coragem. Mas também terno, frágil, de uma infinita tristeza. Falava da esperança, lutava pela liberdade e cantava tudo isto, falando em lealdade, em amizade e em amor.
Sempre.
Acreditava na solidariedade, no sonho e na poesia, como armas de paz. Porque Zeca Afonso era sobretudo isso: um homem de paz, que se insurgia contra a violência, contra a prepotência, contra as desigualdades e as hipocrisias, através daquilo que compunha, que criava.
Encarou o fascismo com uma firmeza e uma rebeldia muito própria, muito pessoal: com aque­le seu olhar distraído e espantado de criança; com aquela sua tranquilidade silenciosa, com aquela sua timidez-bonita, que todos testemunhámos.
Zeca Afonso deixou atrás de si uma obra importante na música portuguesa, mas para mim ele foi, sobreudo, um amigo especial, diferente, que recordo com saudade.
Um homem de palavra e das palavras livres.

Maria Teresa Horta, 2009