O dirigente espiritual de cerca de um quinto da população do mundo detém um imenso poder: mas se alguém pouco informado observasse Albino Luciani no começo do seu reinado como papa João Paulo I teria dificuldade em acreditar que aquele homem encarnasse realmente tal poder. A timidez e humildade que emanavam daquele italiano de 65 anos, pequeno e tranquilo, levava muita gente a concluir que este papado não seria particularmente digno de registo. Contudo os bem informados tinham uma opinião diferente: Albino Luciani embarcara para uma revolução.
A 28 de Setembro de 1978 fazia trinta e três dias que era papa. Em pouco mais de um mês dera início a várias acções que, se levadas a cabo, haveriam de ter um efeito directo e dinâmico sobre todos nós. A maioria das pessoas deste mundo aplaudiriam as suas decisões, uma minoria ficaria abalada. O homem a quem tinham rapidamente dado a alcunha de «papa sorridente» tencionava arrancar os sorrisos a um certo número de caras no dia seguinte.
Nessa noite Luciani instalou-se para jantar na sala do terceiro andar do Palácio Apostólico dentro da Cidade do Vaticano. Com ele encontravam-se os seus dois secretários, o padre Diego Lorenzi, que trabalhara com ele durante mais de dois anos quando Luciani fora cardeal-patriarca de Veneza, e o padre John Magee, que entrara recentemente em funções, após a eleição do papa. Enquanto as freiras que trabalhavam nos apartamentos papais se atarefavam ansiosamente, Albino Luciani comeu uma refeição frugal de canja, vitela, feijão verde e um pouco de salada. Bebia de quando em quando um golinho de água e meditava nos acontecimentos do dia e nas decisões que tinha tomado. Nunca quisera aquele lugar. Nunca procurara ser papa, nem se metera em intrigas para lá chegar. Agora, como chefe de Estado, as suas responsabilidades eram preocupantes.
Enquanto as irmãs Vincenza, Assunta, Clorinda e Gabriella serviam em silêncio os três homens e estes viam na televisão as notícias que preocupavam a Itália nessa noite, outros homens, noutros lugares, sentiam-se profundamente inquietos com as actividades de Albino Luciani.
No andar abaixo dos apartamentos papais as luzes continuavam acesas no Banco do Vaticano. O presidente, o bispo Paul Marcinkus, tinha coisas mais importantes em que pensar do que a refeição da noite. Nascido em Chicago, Marcinkus aprendera a sobrevivência nas ruas escusas de Cícero, Illinois. No decorrer da sua ascensão meteórica até à posição de «banqueiro de Deus» tinha sobrevivido a muitos momentos de crise. Estava agora confrontado com o mais sério de toda a sua existência. Nos últimos trinta e três dias os seus colegas do banco tinham notado uma transformação visível no homem que controlava os milhões do Vaticano. O homem extrovertido, com os seus 1,90 m de altura e 100 quilos de peso, tornara-se tristonho e introvertido. Emagrecia a olhos vistos e o seu rosto tinha uma palidez cinzenta. Em muitos aspectos a Cidade do Vaticano é uma aldeia e é difícil guardar segredos numa aldeia. Marcinkus tinha ouvido dizer que o novo papa começara calmamente a fazer uma investigação pessoal ao Banco do Vaticano e, especificamente, aos métodos utilizados por Marcinkus para dirigir esse Banco. Vezes sem conta, desde a chegada do novo papa, Marcinkus lamentara aquele negócio feito em 1972 referente à Banca Cattolica deI Veneto.
O cardeal Jean Villot, secretário de Estado do Vaticano, era outro dos que ainda se encontrava sentado à secretária naquela noite de Setembro. Estudava a lista de entrevistas, demissões a pedir e transferências que o papa lhe entregara uma hora antes. Ele bem aconselhara, discutira, argumentara, mas sem resultados. Luciani mostrara-se inflexível.
Era, qualquer que fosse o ponto de vista, um novo e dramático baralhar das cartas. Encaminharia a Igreja para novas direcções; direcções essas que Villot e os outros da lista que iam ser substituídos consideravam altamente perigosas. Quando essas mudanças fossem anunciadas, milhões de palavras seriam escritas e pronunciadas pelos meios de comunicação mundiais, analisando, dissecando, profetizando, explicando. Mas a verdadeira explicação não seria discutida, não seria trazida a público – havia um denominador comum, um facto que ligava cada um dos homens que ia ser substituído. Villot sabia disso. Mais importante ainda, o papa também o sabia. Era um dos factores que o levara a agir: tirar a esses homens o poder real e colocá-los em posições relativamente inócuas. Era a Maçonaria.
As provas que o papa reunira indicavam que dentro da Cidade do Vaticano havia mais de 100 maçãos, de cardeais a padres. Isto apesar do facto de a Lei Canónica declarar que um Pedreiro Livre ficava automaticamente sujeito à excomunhão. Luciani estava também extremamente preocupado com uma loja maçónica ilegal que se ramificara por toda a Itália na sua busca de riqueza e poder. Auto-denominava-se P2. O facto de ter penetrado no recinto do Vaticano e recrutado padres, bispos e até cardeais fazia da P2 um anátema para Albino Luciani.
Villot já andava muito inquieto com o novo papado antes de rebentar esta última bomba. Era um dos muito poucos a estar ao corrente do diálogo que se travava entre o papa e o Departamento de Estado em Washington. Sabia que a 23 de Outubro o Vaticano receberia uma delegação do Congresso e que, a 24 de Outubro, a delegação teria uma audiência privada com o papa. Assunto: planeamento familiar.
Villot examinara cuidadosamente a ficha do Vaticano sobre Albino Luciani. Lera também o memorando secreto que Luciano, então bispo de Vittorio Veneto, enviara a Paulo VI antes da proclamação papal da encíclica Humanea Vitae, uma encíclica que proibia os católicos de usarem qualquer forma artificial de contracepção. As discussões que ele próprio tivera com Luciani não lhe haviam deixado qualquer dúvida quanto à posição do novo papa sobre o assunto. Na mente de Villot não havia igualmente dúvidas sobre o que o papa tencionava agora fazer. Alguns concordariam com a opinião de Villot de que se tratava de uma traição a Paulo VI. Muitos aplaudi-lo-iam como a maior contribuição da Igreja ao século XX.
Em Buenos Aires, outro banqueiro, Roberto Calvi, pensava no papa João Paulo I, enquanto Setembro de 1978 se aproximava do fim. Nas semanas anteriores tinha discutido os problemas postos pelo novo papa com os seus protectores, Licio Gelli e Umberto Ortolani, dois homens que podiam incluir, entre os seus muitos predicados, o controlo completo de Calvi, administrador do Banco Ambrosiano. Calvi andava acossado de problemas mesmo antes da eleição papal que colocara Albino Luciani na cátedra de S. Pedro. O Banco de Itália tinha andado a investigar secretamente o Banco de Calvi em Milão e isto desde Abril. A investigação fora induzida por uma misteriosa campanha de cartazes contra Calvi que rebentara em fins de 1977: cartazes que forneciam pormenores sobre algumas das actividades criminosas de Calvi e sugeriam uma série de actos criminosos à escala mundial.
Calvi sabia exactamente quais os progressos da investigação do Banco de Itália. A sua intimidade com Licio Gelli garantia-lhe um relatório diário. Estava igualmente ao corrente do inquérito papal ao Banco do Vaticano. Tal como Marcinkus, sabia que era apenas uma questão de tempo até que as duas investigações independentes compreendessem que uma sindicância a um desses impérios financeiros era uma sindicância a ambos. Estava a tentar tudo o que o seu considerável poder lhe permitia para desviar o inquérito do Banco de Itália e proteger o seu império financeiro do qual já tinha roubado para cima de um bilião de dólares.
Uma análise cuidada da situação de Roberto Calvi em Setembro de 1978 revela claramente que, se o sucessor do papa Paulo fosse um homem honesto, a Calvi não restaria senão a ruína total, o colapso do seu banco e certamente a prisão. Não há qualquer dúvida de que Albino Luciani era esse homem.
Em Nova Iorque, o banqueiro siciliano Michele Sindona, seguia também ansiosamente as actividades do papa João Paulo. Havia mais de três anos que Sindona lutava contra as tentativas do Governo Italiano para o extraditarem. Queriam levá-lo para Milão para responder a acusações de desvio fraudulento de 225 milhões de dólares. Em Maio daquele ano, Sindona parecia finalmente ter perdido a longa batalha. Um juiz federal declarara válido o pedido de extradição.
Sindona manteve-se nos Estados Unidos mediante o pagamento de uma caução de 3 milhões de dólares enquanto os seus advogados se preparavam para jogar uma última cartada. Exigiam que o Governo dos Estados Unidos provasse que a extradição era fundamentada. Sindona afirmava que as acusações que lhe eram feitas pelo Governo italiano eram obra de comunistas e de outros políticos da ala esquerda. Os seus advogados afirmavam também que o procurador de Milão sonegara provas que ilibavam Sindona e que, se este regressasse a Itália, seria quase certamente assassinado. O processo estava marcado para Novembro.
Naquele Verão, em Nova Iorque, outras pessoas agitavam-se igualmente em benefício de Michele Sindona. Um membro da Mafia, Luigi Ronsisvalle, assassino profissional, ameaçava a testemunha Nicola Biase, que tinha prestado declarações contra Sindona durante a audição do processo de extradição. A Mafia tinha também um «contrato» sobre a vida do advogado John Kenney que era o procurador-geral encarregado do processo de extradição. A tarifa para o assassinato do procurador era de 100 000 dólares.
Se o papa João Paulo I continuasse a escavar a situação do Banco do Vaticano, não haveria «contratos» capazes de impedir que Sindona fosse enviado para Itália. A rede de corrupção no Banco do Vaticano, que incluía a manipulação do dinheiro da Mafia através desse Banco, ultrapassava de longe Calvi: chegava até Michele Sindona.
Em Chicago, outro príncipe da Igreja Católica andava preocupadíssimo com os acontecimentos na Cidade do Vaticano: o cardeal John Cody, chefe da mais rica arquidiocese do mundo. Cody reinava sobre dois milhões e meio de católicos, cerca de 3 000 padres e 450 paróquias e tinha um rendimento anual cuja totalidade sempre se recusara a revelar a quem quer que fosse. Excedia, de facto, os 250 milhões de dólares. O segredo fiscal era apenas um dos problemas que se agitavam em torno a Cody. Em 1978, fazia treze anos que governava Chicago. Nesses anos, os pedidos para a sua substituição haviam atingido proporções extraordinárias. Padres, freiras, trabalhadores laicos, gente de muitas profissões seculares haviam enviado milhares de petições para Roma no sentido de afastar um homem que consideravam um déspota.
O papa Paulo debatera-se durante anos com a angústia de afastar Cody. Pelo menos uma vez armara-se de coragem e tomara a decisão, mas revogara a ordem no último instante. A personalidade complexa e torturada de Paulo explicava apenas em parte a sua vacilação. Paulo sabia que haviam sido feitas outras alegações secretas contra Cody, baseadas em provas substanciais que indicavam a necessidade urgente de substituir o cardeal de Chicago.
Em fins de Setembro, Cody recebeu um telefonema de Roma. A Cidade do Vaticano transmitia mais uma das suas informações – informações sempre bem pagas por Cody ao longo dos anos. O informador dizia que onde o papa Paulo vacilara, o papa João Paulo agira. O papa decidira que o cardeal John Cody tinha de ser substituído.
Sobre, pelo menos, três destes homens avolumava-se a sombra de um outro: Licio Gelli. Havia quem lhe chamasse Il Burattinaio – o Titereiro. As marionetas eram muitas e estavam colocadas em numerosos países. Licio Gelli controlava a P2 e, através dela, controlava a Itália. Em Buenos Aires, a cidade onde discutiu com Calvi o problema do novo papa, o Titereiro organizara o triunfante regresso ao poder do general Perón - facto que Perón reconheceu posteriormente, ajoelhando aos pés de Gelli. Se as várias acções planeadas por Albino Luciani ameaçavam Marcinkus, Sindona ou Calvi, era do interesse directo de Licio Gelli que a ameaça fosse afastada.
Era perfeitamente claro que em 28 de Setembro de 1978 aqueles cinco homens, Marcinkus, Villot, Calvi, Sindona e Gelli tinham muito a temer se o papado de João Paulo I continuasse. Era igualmente claro que todos eles tinham a ganhar sob muitos e variados aspectos se o papa João Paulo I morresse de repente.
Foi o que aconteceu.
Entre o fim da tarde de 28 de Setembro de 1978 e a madrugada de 29 de Setembro de 1978, trinta e três dias após a sua eleição, Albino Luciani morreu.
Hora da morte: desconhecida. Causa da morte: desconhecida.
Estou convencido de que a totalidade dos factos e das circunstâncias meramente delineados nas páginas anteriores detém a chave para a verdade da morte de Albino Luciani. Estou igualmente convencido de que um daqueles seis homens tinha já, na tarde de 28 de Setembro de 1978, dado início à acção que resolveria os problemas postos pelo papado de Albino Luciani. Um desses homens estava no cerne de uma conspiração que propunha uma solução unicamente italiana.
Albino Luciani fora eleito papa em 26 de Agosto de 1978. Pouco depois do Conclave o cardeal inglês Basil Hume dizia:
«A decisão foi inesperada. Mas logo que aconteceu pareceu total e inteiramente certa. A sensação de que ele era exactamente aquilo que precisávamos foi tão geral que mostrou ser ele, sem sombra de erro, o candidato de Deus.»
Trinta e três dias depois «o candidato de Deus» morria.
O que se vai seguir é o produto de três anos de investigação contínua e intensiva sobre essa morte. Estabeleci um certo número de regras para uma investigação desta natureza. Regra Número Um: começar pelo princípio. Determinar a natureza e a personalidade do morto. Que espécie de homem era Albino Luciani?
(“Em Nome de Deus” de David Yallop. Publicações D. Quixote. 2006)
Naquela roça que não tem chuva é o suor do meu rosto que rega as plantações;
Naquela roça grande tem café maduro e aquele vermelho-cereja são gotas do meu sangue feitas seiva.
O café vai ser torrado, pisado, torturado, vai ficar negro, negro da cor do contratado!
Negro da cor do contratado!
Perguntem às aves que cantam, aos regatos de alegre serpentear e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo? quem vai à tonga? Quem trás pela estrada longa a tipóia ou o cacho de déndén? Quem capina e em paga recebe desdém fubá podre, peixe podre, panos ruins, cinqüenta angolares porrada se refilares?
Quem?
Quem faz o milho crescer e os laranjais florescer — Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar máquinas, carros, senhoras e cabeças de pretos para os motores?
Quem faz o branco prosperar, ter a barriga grande — ter dinheiro? — Quem?
E as aves que cantam, os regatos de alegre serpentear e o vento forte do sertão responderão: — Monangambéée...
Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras Deixem-me beber maruvo, maruvo e esquecer diluído nas minhas bebedeiras — Monangambéée...
*
Poema da Alienação
Não é este ainda o meu poema o poema da minha alma e do meu sangue não Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema o grande poema que sinto já circular em mim
O meu poema anda por aí vadio no mato ou na cidade na voz do vento no marulhar do mar no Gesto e no Ser
O meu poema anda por aí fora envolto em panos garridos vendendo-se vendendo
“ma limonje ma limonjééé”
O meu poema corre nas ruas com um quibalo podre à cabeça oferecendo-se oferecendo
“carapau sardinha matona ji ferrera ji ferrerééé…”
O meu poema calcorreia ruas “olha a probíncia” “diááário” e nenhum jornal traz ainda o meu poema
O meu poema entra nos cafés “amanhã anda a roda amanhã anda a roda” e a roda do meu poema gira que gira volta que volta nunca muda
“amanhã anda a roda amanhã anda a roda”
O meu poema vem do Musseque ao sábado traz a roupa à segunda leva a roupa ao sábado entrega a roupa e entrega-se à segunda entrega-se e leva a roupa
O meu poema está na aflição da filha da lavadeira esquiva no quarto fechado do patrão nuinho a passear a fazer apetite a querer violar
O meu poema é quitata no Musseque à porta caída duma cubata
“remexe remexe paga dinheiro vem dormir comigo”
O meu poema joga a bola despreocupado no grupo onde todo o mundo é criado e grita
“obeçaite golo golo”
O meu poema é contratado anda nos cafezais a trabalhar o contrato é um fardo que custa a carregar
“monangambééé”
O meu poema anda descalço na rua
O meu poema carrega sacos no porto enche porões esvazia porões e arranja força cantando
“tué tué tué trr arrimbuim puim puim”
O meu poema vai nas corda encontrou sipaio tinha imposto, o patrão esqueceu assinar o cartão vai na estrada cabelo cortado
“cabeça rapada galinha assada ó Zé”
picareta que pesa chicote que canta
O meu poema anda na praça trabalha na cozinha vai à oficina enche a taberna e a cadeia é pobre roto e sujo vive na noite da ignorância o meu poema nada sabe de si nem sabe pedi O meu poema foi feito para se dar para se entregar sem nada exigir
Mas o meu poema não é fatalista o meu poema é um poema que já quer e já sabe o meu poema sou eu-branco montado em mim-preto a cavalgar pela vida.
* António Jacinto (do Amaral Martins) (Luanda, 28/9/1924 – Lisboa, 23/6/1991): Poeta e contista. Jacinto ganhou conhecimento com sua poesia de protesto, e devido à sua militância política, foi exilado no Campo de Concentração de Tarrafal, em Cabo Verde, no período de 1960 a 1972.
Em 27 Setembro 2009 era notícia no “JN”: «Universidade Lusíada de Famalicão vai pagar 90 mil euros à família do jovem universitário que terá morrido na sequência de uma praxe académica». E acrescentava: «Para o tribunal, a instituição "não controlou nem evitou as praxes académicas", diz o Movimento Anti-Tradição Académica (MATA) num comunicado de imprensa enviado (no mesmo dia) para a Agência Lusa».
Transcreve-se:
Ontem o Tribunal Cível de Famalicão reconheceu a responsabilidade da Universidade Lusíada de Famalicão nos acontecimentos em torno da morte de Diogo Macedo.
Em Outubro de 2001 Diogo Macedo, estudante do 4º ano de Arquitectura e membro da tuna, morreu devido a lesões cérebro-medulares, após acontecimentos ainda por esclarecer na noite em que aparentemente tinha decidido abandonar a tuna por não suportar mais as praxes a que era submetido . Inicialmente a morte tinha sido considerada acidental, mas as suspeitas de um médico do Hospital de S. João fizeram com que mais averiguações fossem efectuadas, tendo a autópsia demonstrado múltiplas escoriações corporais, além da fractura de uma vértebra cervical contraída por agressão e que teria sido a causa da morte.
Na sequência destes factos, dois elementos da tuna foram constituídos arguidos. Contudo, o processo foi arquivado em 2004 por falta de provas, uma vez que seria “impossível imputar à acção de qualquer pessoa concreta a produção das lesões”. Inexplicavelmente, apesar de estarem perto de 20 pessoas nas mesmas instalações que Diogo, nenhuma destas se recordava dos acontecimentos. Após a morte reuniram-se de urgência para alegadamente gizar versões, oportunamente criando uma amnésia colectiva que se apoderou dos “amigos” e “colegas” de Diogo, impedindo-os de fornecerem qualquer pormenor. Numa sessão de tribunal em que as testemunhas estavam a ser ouvidas, o próprio juiz reconheceu o "muro de silêncio" que tinha sido criado. Uma única versão conjunta de nada.
Depois do processo-crime, segue-se o processo cível. A mãe de Diogo Macedo pede uma indemnização de 210 mil euros à Fundação Minerva, que detém a Universidade Lusíada. O tribunal deu como provada a morte, em consequência de lesões provocadas. Este e outros dados levaram o Tribunal Cível de Famalicão a dar como provada a morte do estudante, em consequência de uma pancada, alegadamente, desferida durante a praxe. Estamos agora em Junho de 2009, oito anos após a morte de Diogo Macedo.
Ontem assistimos a uma decisão semelhante à de outros Tribunais relativamente a casos de praxe, numa tendência crescente de responsabilização das faculdades sobre as praxes que nelas se passam. O Tribunal de Vila Nova de Famalicão considerou que a Universidade Lusíada de Famalicão (ULF), não controlou nem evitou as praxes académicas, sendo obrigada a pagar uma indemnização de 90 mil euros à família de Diogo. O Tribunal considerou provado que “Nunca a ré (universidade) teve algum controlo efectivo sobre esse tipo de praxes violentas e humilhantes. Não temos notícia que alguma vez tenha proibido a violência mencionada, aliás os factos apurados mostram a ausência de intervenção”, tendo ainda acrescentado que "Existe uma clara interdependência” com a ULF “que lhe cede espaço, subsidio e publicidade, em troca de evidente publicidade e charme académico que esse tipo de grupos traz à sua academia”.
Este caso merece várias considerações:
- Estranhamente, apenas 3 anos depois da morte de Diogo Macedo os acontecimentos foram tornados públicos, em grande parte devido a uma Grande Reportagem da autoria de Felícia Cabrita. Esta jornalista, numa semana de investigação no local, descobriu mais do que as polícias em três anos – isto, apesar da direcção da Lusíada ter ameaçado de expulsão qualquer aluno que lhe prestasse declarações! Por outro lado, os relatos da mãe deixam claro que a escola sempre soube o que aconteceu; inclusivamente, tentou sempre silenciar as suas tentativas para descobrir as causas da morte do seu filho. Ao que parece, o poder da Universidade Lusíada conseguiu silenciar as vozes que poderiam esclarecer as circunstâncias em que este aluno morreu.
- Nesta tuna (e em todas as outras tunas universitárias), a democracia é inexistente, assim como as regras básicas de respeito pela expressão individual. O relacionamento é totalmente condicionado por uma hierarquia absolutamente rígida. Quem as integra obedece a uma autêntica estrutura de castas com claro prejuízo para quem está "mais abaixo" na cadeia. Este era o caso do Diogo, que apesar de já a integrar há 4 anos continuava a ser "caloiro" e alvo de animosidade, a qual esteve na origem da sua decisão de abandonar o grupo.
- À semelhança do que se passa noutras instituições do Ensino Superior, é evidente a conivência entre Direcções e grupos de estudantes que têm como base a hierarquização, submissão e proliferação de comportamentos repressores e inerentemente violentos. Isto exige uma reflexão por parte da Sociedade e das Instituições sobre aquilo que são e sobre o que pretendem oferecer aos seus alunos. Não podemos perpetuar estas "tradições" imaginárias que se apoderaram do vazio cultural e intelectual que tem caracterizado as escolas nestes últimos anos.
- Este caso extravasa os contornos praxísticos, a gravidade é a de um homicídio. Homicídio que ocorreu no contexto da praxe, numa tuna, entre estudantes, nas instalações de uma Faculdade do Ensino Superior. Estes factos obrigam-nos a pensar na arbitrariedade da "tradição". A "tradição" não pode cobrir de impunidade actos como este, os muros têm de ser derrubados e permitir que a verdade venha ao de cima.
Comunicado de imprensa do M.A.T.A. – Movimento Anti-Tradição Académica, 27 de Setembro de 2009
O ex-vice-presidente da EcoHealth Alliance testemunha sob juramento perante o Congresso e o Senado dos EUA sobre a origem do SARS-COV2.
Dr. Andrew G. Huff fez parte da EcoHealth Alliance como Vice-Presidente. Militar, epidemiologista e especialista em doenças infecciosas, com décadas de experiência em pesquisa científica e segurança nacional.
Ele foi um dos principais cientistas da empresa de biotecnologia até deixar o cargo e denunciar o que havia vivenciado em relação ao SARS-COV2.
A partir desse momento, que descreve como “o dia mais feliz da sua vida”, foi uma das vozes que denunciou às autoridades e à opinião pública o que se fazia na EcoHealth Alliance, como era financiada e que tipo de estudos e experimentos estavam ocorrendo em Wuhan.
Este cientista e militar publicou um trabalho: “A verdade sobre Wuhan. Como a maior mentira da história foi criada. Neste livro, o autor escreve sobre por que o governo dos EUA apoiou o desenvolvimento do COVID-19 nos EUA e na China . O Dr. André G. Huff detalha, do seu ponto de vista como especialista em bioterrorismo, por que considera que a versão dada sobre a fuga do laboratório e, principalmente, as razões para ocultá-la, estavam incorretas.
Ontem o Dr. Andrew G. Huff compartilhou em suas redes sociais o resumo de sua declaração feita perante o Senado e Congresso dos Estados Unidos, sob juramento.
Nos documentos que publicou, ele observa que “o vírus SARS-COV2 foi criado em um laboratório em Wuhan, China, pela EcoHealth Alliance e financiado por Anthony Fauci por meio do NIH/NIAID.
As evidências, observa ele, demonstram as seguintes questões, entre outras:
1.- O SARS-COV2 foi criado no laboratório de Wuhan, China
2.- Anthony Fauci financiou a criação do SARS-COV2 e mentiu ao Congresso sobre o financiamento do trabalho sobre Ganho de Função
3.- A Comunidade de Inteligência dos Estados Unidos estava ciente e estaria envolvida no financiamento do trabalho chamado Gain of Function
4.- Um bom número de parceiros, públicos e privados, estava em dia com o trabalho de Ganho de Função, que resultou no SARS-COV2
5.- Anthony Fauci e outros coordenaram o encobrimento do financiamento das obras de Ganho de Função das quais surgiu o SARS-COV2
O texto acrescenta que, dadas as recentes ações criminais de alto nível tomadas pelo Congresso e pelo Departamento de Justiça, espera-se que as investigações imediatas tenham o apoio de ambas as partes principais, à luz das informações recentemente compiladas. Renz LAw e Make Americans Free Again fornecerão todo o apoio possível em tais investigações e processos. Além disso, o texto aponta, que estão sofrendo uma verdadeira censura para que todas essas informações não venham à tona.
Por Beatriz Talegón, Diario 16 /Resumen Latinoamericano
Ruben A. (26 de Maio de 1920 – 23 de Setembro de 1975)
“Foi das pessoas mais originais que conheci na vida”, disse Eduardo Lourenço sobre Ruben A. “Chamou-me ao Hotel Astória, em Coimbra, e fui encontrar o meu futuro amigo, que me recebeu como um príncipe no seu quarto, fazendo a toilette como Luís XIV, diante do seu amigo provinciano que acabara de conhecer da maneira mais divertida possível”.
Diria que esta postura de Ruben era, de muitos modos, uma teimosa resposta à vida das trivialidades míopes e das jogadas de similitudes efémeras. Era um modo de convivência cultural, generoso e aberto à sã e criativa interpretação.
Escritor e ensaísta, sob o pseudónimo Ruben A., Ruben Alfredo Andresen Leitão nasceu em Lisboa em 1920. A sua infância foi vivida no Porto e partilhada com sua prima Sophia de Mello Breyner Andresen, na Quinta do Campo Alegre. Considerado um autor essencial para a literatura do século XX português, não fora ele e a sua viagem, e todos seríamos mais sós.
Convive com Agostinho da Silva, seu professor que admirou pela invulgar capacidade intelectual. Foi Leitor e professor no King’s College de Londres. Em Portugal foi muito publicamente criticado pelo regime de Salazar. O silêncio sobre a sua obra abateu-se num significante peso, mas edita obras memoráveis como “Caranguejo” (1954), narrativamente escrito de trás para a frente e sem numeração de página, “Cartas de D. Pedro V aos seus Contemporâneos”, “A Torre da Barbela” (prémio Ricardo Malheiros), ou a autobiografia “O Mundo à Minha Procura”. Privou com o escultor Henry Moore e o escritor T.S. Eliot, entre outros. Era admirador de Henry Miller. Foi também autor de vários verbetes no Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão.
Diria que no termos de viver também aquilo que fomos, levou Ruben A. a escrever no texto introdutório à sua autobiografia «O Mundo à Minha Procura I»:
«Voltar ao Campo Alegre foi para mim qualquer coisa de enorme na vida, mais importante do que ir à Lua, ou andar em órbita à volta da Terra», evocando assim os tempos de infância na companhia da sua prima Sophia de Mello Breyner Andresen. Este sentir de forte afeto e os detalhes da paisagem que o envolveram, irão marcar para sempre o seu imaginário na escrita.
Para nós em Ruben, a verdade é que tudo pode ser ao mesmo tempo tanto e tão pouco, vertido nas escolhas que fazemos, e, estas suscetíveis de uma crítica irónica, salutar, corajosa e arguta ao modo de estar do que nos rodeia, e envoltos nós num sério com sorriso, encontraremos a tão recôndita sabedoria interior e o relevo do meio em nós. Esta uma das características da palavra de Ruben A.
Cremos também que a ditadura do antigo regime há de ter tido uma influência no angulo de leitura da escrita de Ruben A., ao não deixar que surgisse claro, o quanto escritores como ele são, acima de tudo, um modo coletivo de pensarmos e de vivermos a liberdade. As falsas acalmias nunca promoveram ou promoverão a capacidade de resposta viva ao que naturalmente se levantou em Ruben A.
Nos anos 50, Óscar Lopes, júri de um concurso literário, recusara o romance “A Torre de Barbela”, que considerava um embuste, e publicou um artigo negando-lhe qualquer qualidade literária. Mais tarde reconhecera o erro. Todavia Ruben ficou acantonado e esquecido, e esta realidade carece de esclarecimento.
Julgamos poder afirmar que Ruben conhece a existência através do ato da escrita e da arquitetura que lhe deu através da sua vida, da sua quantidade e qualidade de energia, daquela mesma que foi capaz de tirar do subsolo da alma.
A pandemia alterou os planos da festa dos 100 anos de Ruben A, a 26 de Maio passado. Contudo há que estar atento à mudança de datas, já que:
Na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, realizar-se-á o colóquio O Incrível Ruben A., numa organização da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com a participação de autores, investigadores e professores como Clara Rocha, Dália Dias, Fernando Pinto do Amaral, Gustavo Rubim, Joana Matos Frias, Joana Meirim, Pedro Mexia e Sílvia Chicó. A comissão das celebrações do centenário é constituída entre outros pelos professores António Feijó, Miguel Tamen e Sílvia Chicó, da Universidade de Lisboa, e Clara Rocha, da Universidade Nova de Lisboa. A exposição O Incrível Ruben A. - 100 anos do escritor, na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, realizar-se-á em 2021, em datas a confirmar. No próximo ano, o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, também dedicará um dia ao escritor, iniciativa em colaboração com o Centro Nacional de Cultura.
Diziam que os republicanos comiam crianças vivas com menos de quatro anos de idade e capavam as que fossem encontradas em passeios nos jardins do subúrbio. Afirmavam que quer todos os católicos seriam obrigados a rapar o cabelo à escovinha, e de joelhos cantarem o hino da Portuguesa, boatavam que os antigos funcionários públicos seriam despidos das suas funções numa acção total de depuramento e alimpamento pois altamente comprometidos com os talassas não podiam servir os ideais democráticos e pensar saudosamente no Rei exilado. Os pés-de-meia, de operários de burgueses e dos ricos seriam embrulhados pelos republicanos, em revistas a casas e andares, para com esse dinheiro pagarem os novos comícios e as vindas dos manifestantes da província a Lisboa para vitoriarem a revolução. Mais tardes as camionetas facilitaram muito estes movimentos, tanto aos salazaristas como aos comunistas, todos convocados para prestigiarem o povo e o operariado em manifestações espontâneas. Diziam que os republicanos iam baixar as rendas de casa e os bilhetes do eléctrico, diziam que os republicanos mais vermelhos desfloravam as virgens no Poço do Borratém e penduravam todos os bigodes às janelas da Estação do Rossio. A adesão ao medo pelas forças gerais dos citadinos era em massa. Tremia a cidade, borravam-se os nervosos e psicopatas, e nas trocas de olhares as cargas de futura electricidade iluminavam as colinas e penetravam na casa de Dona Umbelina em picada de luz. O Costa pouco ligava, o medo era apenas do Dino e do Gomes, os outros respondiam a tremer às suas invectivas. Medo de sons, da reabertura das cozinhas económicas por uma nova comissão administrativa que substitui as irmãs de caridade. Zémacho metia medo cada vez que saía à rua. Os rapazinhos republicanos tremelicavam -se, e os mais avançados, numa decisão verdadeiramente democrática expulsaram os padres da Companhia de Jesus. Era a terceira vez que saíam do país. Foram todos detidos em Caxias, medidos os crânios numa mensuração perfeita e numerados em chapa. Os filhos de Santo Inácio foram presos em suas casas. Terminava mais uma investida da Sociedade de Jesus sem que – era o medo – a associação de antigos alunos de Campolide, constituída por bispos, militares, doutores, altos burocratas, capitalistas e homens de estado – que em ágapes fraternais se reuniam, todos os anos no majestoso colégio – fossem à estação dar-lhes adeus. Era o medo. Medo borrado medo medo dos republicanos que tinham alguns jesuítas sob os ferros JHS JHS JHS. Todos ficavam devidamente identificados na cadeia. Na busca a que os sujeitaram, no apalpão de bolsos, na vigilância cerrada foram encontrados trinta e dois canivetes, vinte e quatro caixas de fósforos e duas fisgas altamente comprometedores. Os jornais atacaram todo este material bélicocom descrições minuciosas e fotográficas, chamando-lhes clandestinos, usurpadores, comunistas, intrusos, ladrões e para vingança e procura de heróis mortos pelos jesuítas, apenas a Sociedade Protectora dos Animais reclamou um gato, foi decidido erigir um grande monumento ao Marquês de Pombal pela coragem de ter sido o homem que abriu o caminho à República tendo expulso os jesuítas no século XVIII. Bandos de homens do povo, juntos a trabalhadores e operários, percorreram as ruas da baixa dando vivas ao Pombal e morras aos jesuítas.
Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a música! Tirem-nos a terra em que nascemos, onde crescemos e onde descobrimos pela primeira vez que o mundo é assim: um labirinto de xadrez… Tirem-nos a luz do sol que nos aquece, a tua lírica de xingombela nas noites mulatas da selva moçambicana (essa lua que nos semeou no coração a poesia que encontramos na vida) tirem-nos a palhota - humilde cubata onde vivemos e amamos, tirem-nos a machamba quSÚPLICAe nos dá o pão, tirem-nos o calor de lume (que nos é quase tudo) - mas não nos tirem a música! Podem desterrar-nos, levar-nos para longes terras, vender-nos como mercadoria, acorrentar-nos à terra, do sol à lua e da lua ao sol, mas seremos sempre livres se nos deixarem a música! Que onde estiver nossa canção mesmo escravos, senhores seremos; e mesmo mortos, viveremos. E no nosso lamento escravo estará a terra onde nascemos, a luz do nosso sol, a lua dos xingombelas, o calor do lume, a palhota onde vivemos, a machamba que nos dá o pão! E tudo será novamente nosso, ainda que cadeias nos pés e azorrague no dorso… E o nosso queixume será uma libertação derramada em nosso canto! - Por isso pedimos, de joelhos pedimos: Tirem-nos tudo… mas não nos tirem a vida, não nos levem a música!
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Poesia, Não venhas!
Porque vieste hoje, Precisamente hoje, que não posso te receber? Hoje, Em que tudo tem uma cor De pesadelo e em que até minha irmã a lua Não veio, com a sua carícia fraterna, dar-me calma? Oh Poesia, Não, não venhas hoje! Não vês que a minha alma Não te pode compreender? Que está fechada, Cercada, fatigada, E nada mais quer senão chorar? Hoje, eu só saberia cantar A minha própria dor… Ignoraria Tudo o que, Poesia, Me viesses segredar… E a minha dor, Que é minha dor egoísta e vazia, Comparada aos sofrimentos seculares De irmãos aos milhares? Bem sei que as minhas frouxas lágrimas Nem o mais humilde poema valeriam… E se tu sabes que é assim, Oh! Poesia! Será melhor que fiques lá onde estás, E não venhas hoje, não! (Moçambique, 23/04/1949)
* Poetisa moçambicana (20 de Setembro de 1926 - 4 de Dezembro de 2002)
Noémia de Sousa segundo Mia Couto
“Conhecia a poesia antes da pessoa. Construí para mim próprio mitologia, a ideia de uma mulher fisicamente pujante, voz sólida como a esperança de que era estandarte, olhar firme como a causa das lutas que abraçava. Noémia era frágil e delicada, a voz trêmula, o olhar doce e apaixonado de criança. Ela era o poema e a poesia. A bandeira que se erguia nos seus textos éramos nós que a sustentávamos. E a certeza do que proclamava não vinha senão do murmúrio, esse mesmo sussurro que são a voz do vento, do mar e do amor.”
Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste de face, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno:
Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura, Bebendo em níveas mãos por taça escura De zelos infernais letal veneno:
Devoto incensador de mil deidades, (Digo de moças mil) num só momento Inimigo de hipócritas, e frades:
Eis Bocage, em quem luz algum talento: Saíram dele mesmo estas verdades Num dia, em que se achou cagando ao vento
II
Lá quando em mim perder a humanidade Mais um daqueles, que não fazem falta, Verbi-gratia – o teólogo, o peralta, Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:
Não quero funeral comunidade, Que engrole sub-venites em voz alta; Pingados gatarrões, gente de malta, Eu também vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enxada idosa Sepulcro me cavar em ermo outeiro, Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
«Aqui dorme Bocage, o putanheiro: Passou vida folgada, e milagrosa; Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro».
III
Amar dentro do peito uma donzela; Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura; Falar-lhe, conseguindo alta ventura, Depois da meia-noite na janela:
Fazê-la vir abaixo, e com cautela Sentir abrir a porta, que murmura; Entrar pé ante pé, e com ternura Apertá-la nos braços casta e bela:
Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos, E a boca, com prazer o mais jucundo, Apalpar-lhe de neve os dois pimpolhos:
Vê-la rendida enfim a Amor fecundo; Ditoso levantar-lhe os brancos folhos; É este o maior gosto que há no mundo.
IV
Não lamentes, oh Nise, o teu estado; Puta tem sido muita gente boa; Putíssimas fidalgas tem Lisboa, Milhões de vezes putas têm reinado:
Dido foi puta, e puta dum soldado; Cleópatra por puta alcança a coroa; Tu, Lucrécia, com toda a tua proa, O teu cono não passa por honrado:
Essa da Rússia imperatriz famosa, Que ainda há pouco morreu (diz a Gazeta) Entre mil porras expirou vaidosa:
Todas no mundo dão a sua greta: Não fiques pois, oh Nise, duvidosa: Que isto de virgo e honra é tudo peta.
V
É pau, e rei dos paus, não marmeleiro, Bem que duas gamboas lhe lombrigo; Dá leite, sem ser árvore de figo, Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:
Verga, e não quebra, como o zambujeiro; Oco, qual sabugueiro, tem o umbigo; Brando às vezes, qual vime, está consigo; Outras vezes mais rijo que um pinheiro:
À roda da raiz produz carqueja: Todo o resto do tronco é calvo e nu; Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!
Para carvalho ser falta-lhe um u; Adivinhem agora que pau seja, E quem adivinhar meta-o no cu.
VI
Bojudo fradalhão de larga venta, Abismo imundo de tabaco esturro, Doutor na asneira, na ciência burro, Com barba hirsuta, que no peito assenta:
No púlpito um domingo se apresenta; Prega nas grades espantoso murro; E acalmado do povo o gran sussurro O dique das asneiras arrebenta.
Quatro putas mofavam de seus brados, Não querendo que gritasse contra as modas Um pecador dos mais desaforados:
«Não (diz uma) tu, padre, não me engodas: Sempre me há-de lembrar por meus pecados A noite, em que me deste nove fodas!»
Poemas retirados de “Poesias eróticas – Burlescas & Satíricas” de M. M. Barbosa du Bocage. Orfeu, 1985 (livro cuja publicidade na RTP foi proibida pelo governo de Cavaco Silva)
Notas escritas em 2005, Ano do Bocage:
Em 15 de Setembro de 1765, nasceu em Setúbal uma criança que havia de ser Bocage. Filho de José Luís Soares de Barbosa, antigo magistrado, e de Mariana Joaquina Lestof du Bocage, de origem francesa. Governava o marquês de Pombal a monarquia de D. José I.
Em 1780 seu pai introduziu-o na vida activa, cingindo-lhe a espada de cadete do regimento de Setúbal. Em vez das letras foram as armas. Aos 16 anos passava Bocage do exército para a armada, com o posto de guarda-marinha. Foi então que veio residir em Lisboa e foi pela primeira vez que apareceu o triunfador como poeta.
Aos 20 anos parte para a Índia, com o posto de tenente, datam desta viagem os versos em que primeiro se retomou aos céus da grande inspiração o lirismo bocagiano.
Por 1790, de novo em Lisboa, e de novo a boémia e os botequins, a hospedagem por casas de amigos e jantares a troco de ditirambos e sonetos laudatórios. Convidado para a Nova Arcádia, manifesta-se o génio tempestuoso. A impiedade de alguns dos seus versos atraiu sobre o rigor da Inquisição, valendo-lhe um breve encarceramento nas masmorras; cinquenta anos antes, teria como destino a fogueira.
O entusiasmo é a sua feição predominante. Ao toque da sua fantasia tudo para ele se transforma em ode, lírica arrebatada; é uma ode a sátira, torrentuosa e veemente; é uma ode o idílio; uma ode a elegia… O ardor do pensamento comunica-se-lhe ao verso que ninguém fez mais sonoro, à frase que ninguém teve mais pura e mais nobre.
Ainda teve em 1802 que sofrer perseguições do Santo Ofício, suspensas logo pelos poderosos protectores. A 21 de Dezembro de 1805, contando apenas 40 anos de idade, faleceu na casa em que morava na Travessa André Valente, no meio da geral consternação de Lisboa.
2005 é o Ano de Bocage. Duzentos anos após a sua morte, Bocage é esquecido por organismos públicos, pelos mentores e opinion makers do regime democrático de Abril, tal como ao tempo do fascismo. Bocage continua a ser o poeta de fora do establishment, quase o poeta maldito.
Em 1985, aquando da edição pela primeira vez da sua poesia satírica e erótica depois de 25 de Abril, a RTP (estação de televisão oficial, e única na altura) proibiu a sua publicidade, retomando a velha tradição do lápis azul da censura salazarista (estávamos no início do cavaquismo). Em 2005, esta é a melhor contribuição para que seja conhecida parte da poesia menos divulgada de Bocage.
Os pedidos vêm crescendo para que algumas das joias da coroa da rainha sejam devolvidas à Índia e à África.
A rainha Elizabeth II faleceu na quinta-feira, 8 de setembro, no Castelo de Balmoral, na Escócia. Ela tinha 96 anos.
Enquanto muitos foram às ruas de Londres perto do Palácio de Buckingham, a área ao redor do Castelo de Windsor, bem como as mídias sociais para prestar seus respeitos, outros falaram sobre a história colonial do país que a rainha serviu por 70 anos.
Em particular, as pessoas têm pedido o retorno do diamante Koh-i-Noor, que atualmente está colocado na coroa da Rainha Mãe e faz parte das Joias da Coroa em exibição na Torre de Londres e no conjunto Grande Estrela da África, no Cetro do Soberano, que também faz parte das Joias da Coroa.
O Koh-i-Noor é um dos maiores diamantes lapidados do mundo , chegando a pouco mais de 105 quilates. Diz-se que vale entre US $ 140 e US $ 400 milhões, mas também é aclamado como inestimável. Também é conhecido como um dos diamantes mais controversos do mundo.
Embora se acredite que tenha sido mencionado pela primeira vez há mais de 5.000 anos em uma escrita sânscrita, o diamante foi referido como o Syamantaka e, posteriormente, quem realmente possuía a propriedade era simplesmente especulação.
Depois disso, pelos próximos 300 anos a partir do ano de 1339, permaneceu na cidade de Samarcanda.
O Koh-i-Noor permaneceu na Índia até 1849, quando as forças britânicas conquistaram o Punjab e se tornou parte da Companhia Britânica das Índias Orientais.
Foi então enviado de volta à Grã-Bretanha e, em julho de 1850, entregue à rainha Vitória.
O diamante tornou-se parte das joias da coroa depois que a rainha Vitória faleceu.
“Em vez de devolver o patrimônio saqueado aos seus legítimos proprietários, os britânicos estão se apegando a artefatos roubados, como o diamante Kohinoor, que eles incrustaram na tiara da rainha-mãe e ostentam descaradamente na Torre de Londres”, disse Tharoor.
Os pedidos também aumentaram para que a Grande Estrela da África – também conhecida como Cullinan I e Primeira Estrela da África – seja devolvida.
Os Arquivos da África twittaram:
“A rainha Elizabeth II possui o maior diamante lapidado do mundo, conhecido como a Grande Estrela da África. A gema de 530 quilates foi extraída na África do Sul em 1905. Foi roubada da África do Sul. Seu valor estimado é de US$ 400 milhões.
A Africa Archives twittou: “A rainha Elizabeth II possui o maior diamante lapidado do mundo, conhecido como a Grande Estrela da África. A gema de 530 quilates foi extraída na África do Sul em 1905. Foi roubada da África do Sul. Seu valor estimado é de US$ 400 milhões.
“Os britânicos afirmam que foi dado a eles como um símbolo de amizade e paz, mas foi durante o colonialismo. Os britânicos então substituíram o nome 'The Great Star of Africa' pelo nome do presidente da mina 'Thomas Cullinan'.”
«Fala como um dono de herdade.» É o que dizem os chilenos de todos aqueles que se expressam a partir da prepotência e da vaidade desavergonhada do poder. Os donos de herdades, os latifundiários crioulos e também os estrangeiros chegados em migrações sucessivas a um país que recebe sempre os forasteiros com os braços abertos, estabeleceram uma forma unidireccional de expressão que consiste em dar ordens verbais com o apoio do açoite, do chicote açoita cavalos que aprendeu a consolar-se na pele dos humildes. Alguns historiadores que falam como donos de herdades garantem que no Chile houve uma burguesia ilustrada, dialogante e progressista. Não é verdade, nunca houve. Quer a oligarquia latifundiária, proprietária das minas, quer aquela que pela simples utilização da máquina a vapor se converteu em burguesia detentora da mais-valia gerada pelos operários, foram sempre grosseiras, retrógradas e absolutamente servis face a qualquer dominação estrangeira. Nunca tiveram sentido de Estado. Nelas primou o espírito miserável dos encomenderos.
Com o mesmo tom de dono de herdade, insiste-se em apontar o diário El Mercurio e a família Edwards como representantes dessa burguesia ilustrada que nunca existiu. Nada mais distante da verdade. Desde a sua fundação há mais de um século, El Mercúrio foi o porta-voz – em caso algum dos princípios porque carecem deles – das quarenta famílias detentoras do poder económico e dos seus sócios estrangeiros. Impuseram o estilo comunicacional do dono de herdade, violento e baseado, não em mentiras descaradas, mas em alterações sistemáticas e adaptações da realidade aos seus interesses de classe.
A história do Chile foi escrita com a linguagem do dono da herdade. É uma história infame da infâmia, uma ininterrupta alteração das páginas mais negras, protagonizadas pelos capatazes dos donos de herdades: as forças armadas chilenas.
Em 1907, os mineiros do salitre decidiram que não queriam continuar a fazer parte do inventário dos senhores feudais chilenos e ingleses, declararam-se em greve e barricaram-se na Escola Santa María, em Iquique, no deserto de Atacama. Entre as suas reivindicações – todas elas inaceitáveis para os donos – uma era de uma originalidade cândida: queriam receber os seus salários miseráveis em dinheiro e não em fichas emitidas pelas companhias salitreiras, que só podiam trocar nas pulperías – armazéns – das próprias companhias.
A resposta do governo foi um ultimato e, quando um dirigente dos mineiros, chamado Leiva, saiu da escola com uma bandeira branca de parlamentar, com a intenção de pedir que autorizassem as mulheres e as crianças a abandonar o local, o exército atacou. Segundo a história infame da infâmia, esses «factos deploráveis provocaram algumas vítimas. Oh, se provocaram...! Mais de duas mil pessoas assassinadas. Mineiros, mulheres e filhos. Os que não morreram imediatamente foram acabados à baioneta. Os que tiveram a pouca sorte de sobreviver às feridas de bala foram degolados numa orgia de sangue e tortura que se prolongou durante uma semana.
O exército chileno, que sempre desempenhou bem as tarefas encomendadas pelos donos de herdade, limpou Iquique e fez desaparecer milhares de corpos. Essas vítimas jazem junto às vítimas de outros massacres sucessivos de mineiros sob o solo salino do deserto de Atacama, que tudo conserva, a memória e os restos mortais, mumificados, livres da corrupção bacteriana e da infâmia. Costuma acontecer que, quando as mãos ansiosas, amorosas, dos familiares dos desaparecidos pelo terror pinochetista, esgaravatam o solo desértico à procura dos seus entes queridos, encontram os restos mortais dos outros, dos irmãos que tiveram o mesmo fim, que sofreram às mãos dos mesmos criminosos.
Várias gerações de chilenos aprenderam nas aulas que esses «factos deploráveis provocaram algumas vítimas». Apenas entre 1970 e 1973 se começou a ensinar a história baseada nos factos, a história triste, vergonhosa, verídica, em oposição à história infame da infâmia. Nessa altura, os donos de herdade escandalizaram-se e, através das páginas de El Mercurio, bramaram, porque no Chile se estava a «reinterpretar a história de um ponto de vista marxista».
A história infame da infâmia é ininterrupta. Em 1967, durante o governo de Eduardo Frei, pai, que chegou ao governo prometendo uma «revolução em liberdade» e, financiado pelos Estados Unidos através da «aliança para o progresso», um pacote de medidas populistas delineadas pela CIA para se opor à influência crescente da revolução cubana entre os espoliados, os mineiros de El Salvador, também no deserto de Atacama, viram ser sufocada a tiros uma greve com a qual reclamavam melhorias salariais. Oito mineiros mortos pelas balas do exército. Em El Mercurio, os donos de herdade deram a sua versão dos factos: «O exército respondeu a um ataque de elementos agitadores». Um ano mais tarde, na cidade austral de Puerto Montt, um grupo de famílias sem casa ocupou Pampa Irigoin, uma exploração ganadeira abandonada há anos pelos latifundiários, e aí construiu as suas miseráveis barracas de madeira e cartão. A resposta do exército não se fez esperar e saldou-se pelo assassinato de onze pessoas que, como cantou Victor Jara, «morreram sem saber porquê, lutando pelo direito de um chão para viver» ...
Segundo a história infame da infâmia, o exército restituiu, nas duas vezes, a «ordem e o respeito pela propriedade». Nunca se mencionou que o responsável pela execução dos dois massacres foi um oficial de infantaria chamado Augusto Pinochet. E nunca se efectuou uma investigação, apesar dos esforços de alguns parlamentares de esquerda e dos sindicatos, para determinar se uma utilização tão desproporcionada da força se justificava de alguma maneira. O vozeirão dos donos de herdade sobrepôs-se às vozes débeis dos que exigiam justiça.
Em Setembro de 1973, quando a direita chilena e o seu braço executor, as forças armadas, derrubaram o governo constitucional de Salvador Allende, a CIA, Henry Kissinger e Nixon sentiram-se satisfeitos, pois os oficiais que dirigiram o golpe fascista eram ex-alunos destacados da Escuela de Las Américas, no Canal do Panamá, a escola de assassinos onde receberam instrução, entre outros infames, o general guatemalteco Ríos Mont, o célebre cobarde das Malvinas, Astiz, e tantos outros que ostentam os seus diplomas de especialistas na «doutrina de segurança nacional», «oficiais dos serviços secretos para combater o inimigo interno», todos eles graduados pela grande universidade de violação dos direitos humanos.
As forças armadas chilenas, especialmente o exército, necessitam de «gestas épicas» que, convenientemente cantadas e louvadas no tom dos donos de herdade, justifiquem a inutilidade e o carácter parasitário de uma guarda pretoriana ao serviço dos donos do país. Todo o horror sofrido pelos perdedores, pela sociedade chilena, e que comoveu tanta gente deste vasto mundo, não é mais do que a aplicação diligente daqueles que estudaram no Panamá, não é mais do que os amos exigiram aos seus cérebros.
Quando Pinochet ordena a saída da Caravana da Morte, é bastante explícito na sua incumbência: «agilizar os processos». Que processos, se foi tudo uma farsa, se nenhum prisioneiro teve acusações reais e provadas contra si, se nunca existiu a presunção de inocência ou a figura do defensor? E como se isso não bastasse para descrever a farsa dos processos, nem vale a pena referir que, por serem as acusações tão fracas e infundadas, quase todos os assassinados pelo general Arellano Stark e pelos coronéis Morén e Espinoza já tinham sido condenados por tribunais militares em tempo de guerra... em tempo de guerra...de que guerra?
A verdadeira incumbência da Caravana da Morte foi semear o terror, um terror inconfundível e inequívoco na população e na oficialidade com veleidades ou tendências constitucionalistas. A Caravana da Morte fez do terror o único método da ditadura, e a classe dominante garantiu-lhe um país dominado, tranquilo, socialmente desarticulado, juridicamente submisso às ordens militares, para poder assim retomar o estilo encomendero, do dono da herdade, que fora perigosamente questionado pelo avanço cultural e social, consequência dos mil dias do Governo Popular, da revolução pacífica liderada por Allende.
Num Chile socialmente letárgico, com o terror instalado em cada casa, com as ruas interditas durante as horas do recolher obrigatório, foi fácil empreender a primeira grande experiência neoliberal, e foi também fácil declará-la bem sucedida. E a partir do êxito do «modelo chileno» associado por motivos propagandísticos à figura de Pinochet, a história infame da infâmia obtém uma das suas mais significativas conquistas: a linguagem de dono de herdade contagia sectores da democracia-cristã e do partido socialista que, a partir de 1986, começam a produzir um discurso opositor que se sintetiza da seguinte forma: «Justiça, sim, mas no modelo económico não se toca.»
A direita chilena, rude e obcecada, nunca teve a menor intenção de abandonar o poder garantido pela ditadura, nunca pensou em convocar eleições, em regressar a uma espécie de normalidade democrática, e foi a megalomania de Pinochet, a sensação de impunidade permanente que se instalou nas forças armadas, que a fez aceitar a ideia de um plebiscito que, dadas as características de uma sociedade dominada e domada pelo terror, supunha ganho desde o próprio instante da convocatória.
Mas (e esta é uma das grandes matérias que aguardam os futuros responsáveis por escrever a história verdadeira), apesar do terror e das decapitações, apesar dos desaparecimentos de pessoas, apesar da tortura e do exílio, houve milhares de chilenos que mantiveram viva a chama da resistência legítima, do dever de se oporem por todos os meios, incluindo o das armas, à tirania, e foram estas chilenas e chilenos, especialmente as milícias Rodriguistas, quem derrotou o tirano, que muito a contragosto reconheceu o seu fracasso.
A oposição venceu o plebiscito de 1988 e começou a curiosa «transição» chilena, que pouco ou nada tem a ver com a transição espanhola. A direita e a ditadura redigiram rapidamente as leis de amnistia, as reformas constitucionais que lhes garantiam maiorias eternas no parlamento, a designação de Pinochet como senador vitalício e, acima de tudo, garantiam a continuidade de um modelo económico baseado e sustentado na impunidade. A aparente contradição entre a direita, os militares e a Concertação Democrática (composta principalmente por democratas-cristãos e socialistas convertidos ao neoliberalismo económico), não foi mais do que uma briga entre diferentes propostas para administrar o mesmo modelo económico. Nem uma única consideração acerca das vítimas que clamavam por justiça foi aceite, reconhecida ou reivindicada. A impunidade dos criminosos foi aceite como «o preço da prosperidade», e, quando algum juiz audaz se atreveu a insinuar algum possível delito, como, por exemplo, em 1993, quando se tentou levar aos tribunais um filho de Pinochet suspeito de mais que evidentes delitos de corrupção e cobranças milionárias de favores, Santiago amanheceu um dia invadido por soldados em uniforme de combate e dispostos ao ataque, protagonistas de «um exercício habitual de ligações», que levaram o juiz audaz a desistir e o governo a pôr de parte qualquer possível investigação. Assim, a impunidade tornou-se a forma de convivência no poder e a amnésia transformou-se em razão de Estado.
A história infame da infâmia recitada em tom de dono de herdade, acossa as vítimas, toma-as diabólicas, desprestigia-as, por não considerarem suficiente o gesto das forças armadas que, num assomo de generosidade indicaram os locais onde, talvez, estejam os restos mortais de duzentos homens e mulheres assassinados, barbaramente torturados e cujos nomes, por acaso, fazem parte dos muitos processos que Pinochet enfrenta. Cada corpo que aparece, e não importa quão macabros sejam os relatórios dos médicos-legistas e das testemunhas militares que começam a falar - «Antes de matarem o engenheiro Ruiz- Tagle, arrancaram-lhe os olhos com um punhal, depois abriram-lhe o ventre e finalmente acabaram com ele a golpes de sabre. Tive de reunir os seus pedaços para os entregar à mãe num caixão selado» - sem que nada disto importe, cada corpo encontrado é um caso encerrado, porque, com o aparecimento, prescreve o delito de sequestro, do qual Pinochet, Arellano, Morén, Espinoza, Contreras e outros generais já se auto-amnistiaram.
Os militares, numa cerimónia de confissão que é uma amostra de cinismo sistemático, reconheceram que muitos corpos nunca serão encontrados porque os atiraram para as profundezas do oceano, para lagos inacessíveis na Cordilheira, ou para rios caudalosos que descem dos Andes.
Espiritualmente incitados e fortalecidos pelo exemplo do juiz espanhol Garzón, primeiro, e do juiz chileno Guzmán, agora, os familiares das vítimas atrevem-se a denunciar cada vez mais e maiores injustiças semelhantes. E qual é a resposta dos donos de herdade?
Manifesta-se nas declarações do ministro Insulza que, com absoluto desprezo pelas vítimas, exige não fazer mais denúncias que envolvam militares, a não ser que os casos tenham acabado com a morte dos afectados.
É um apelo miserável à omertà, um convite à impunidade e mais um escárnio aos que sofreram. Com uma voz insuperável do dono de herdade, Insulza afirma: se a ti, mulher, apenas te violaram, apenas te aplicaram eléctrodos, apenas te introduziram ratos na vagina, apenas te mantiveram seis meses num buraco imundo de Villa Grimaldi, esquece, perdoa, reconcilia-te e não atentes contra a paz social e contra a tranquilidade económica com as tuas denúncias. Se a ti, homem, apenas te danificaram os pulmões com o «submarino» 1, se apenas te deixaram impotente depois de te cozerem os testículos com choques eléctricos, se apenas torturaram a tua mãe na tua presença, se apenas te condenaram a quinze, vinte anos de exílio, se perdeste apenas a casa, a cidade, o país, o passado, esquece, perdoa e reconcilia-te. Não perturbes a paz dos patrões, a sacrossanta impunidade daqueles que, para o bem ou para o mal, me permitem ser ministro.
A história infame da infâmia tem as suas garras cravadas no Chile, mas, e os meus filhos e os filhos dos meus filhos agradecer-me-ão por isto, as pessoas boas do Chile conservam a coragem que tornou possível dias melhores e a ira sagrada dos justos. E, tal como eles, eu também repito: NEM ESQUECIMENTO NEM PERDÃO.
1 O «submarino» era uma tortura que consistia em meter a cabeça dos presos dentro de um balde de água ou de excrementos até perderem a consciência. (N. da T.)
(Retirado do livro “O General e o Juiz” de Luís Sepúlveda. Eds. Asa. 2003)
200 anos se passaram desde que o Brasil deixou de ser uma colônia. O período se inicia com a invasão do território nacional pelos colonizadores. Mas, diferentemente da grande maioria dos países latino-americanos, o Brasil não passou de colônia em república, mas de colônia em monarquia. Por quê? Qual é o significado desta passagem anômala no continente?
Na grande maioria dos países latino-americanos, a independência significou uma ruptura com os colonizadores, bem como o fim da escravidão. No caso do Brasil, ao contrário, a data significou a chegada da família real portuguesa ao Brasil, estreitando os laços com o país, ao abandonar Portugal às tropas napoleônicas. A Espanha, ao contrário, havia resistido a essa invasão, que enfraqueceu seu poder militar e favoreceu sua derrota contra os países latino-americanos.
Assim, o Brasil passou de colônia a monarquia, fortalecendo, ao invés de distanciar, os laços com os colonizadores. A ponto de seu primeiro monarca ser filho do monarca português. E nessa frase, que advertia que um aventureiro deveria ser impedido de se apropriar da coroa, os aventureiros eram os brasileiros, entre eles o atual herói nacional, Tiradentes. A “independência ou morte” não se referia à independência do Brasil, mas à permanência do vínculo com Portugal. O Brasil não teve heróis da independência como Bolívar, San Martín, O'Higgins ou, entre outros, Sucre, como acontece em outros países latino-americanos e caribenhos.
Ao mesmo tempo, a escravidão no Brasil não acabou com o fim da colônia. Os dois fatores estavam intrinsecamente ligados, segundo a análise de Caio Prado Jr. Em 1859, foi promulgada uma Lei de Terras, que formalizou a posse das terras dos que as apropriaram. Assim, quando a escravidão acabou no final do século XIX, os novos homens livres não tinham acesso à terra. Deixaram de ser escravos, mas continuaram pobres, sem terra.
Desta forma, a questão colonial estava ligada à questão étnica e à questão social e nacional. O Brasil foi o país da América Latina e do Caribe que mais tarde acabou com a escravidão. E a República não se estabeleceu até o final do século XIX, como uma espécie de movimento militar, sem qualquer tipo de participação popular, protagonizado pelos militares.
Do ponto de vista da dependência externa, já havia ocorrido a transição da dependência portuguesa para a dependência britânica, que se consolidou a partir desse momento.
Temos que celebrar esse tipo de independência? Temos que entender o seu significado. Entenda como essa independência frustrante teve efeitos no futuro do país.
Primeiro, por ter estendido a escravidão por quase mais um século. Segundo, por não ter iniciado a construção do Estado nacional na época do fim da colônia, com todas as consequências que isso acarreta.
Como disse Spinoza: 'não chore nem sorria; Compreendo'.
Imagem: Martirio de Tiradentes (1893), de Aurélio de Figueiredo. Museo Histórico Nacional, en Rio de Janeiro