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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

A Colónia Penal do Tarrafal

29.10.22 | Manuel

tarrafal.jfif

O Campo do Tarrafal

«O campo de concentração do Tarrafal é um rectângulo de arame farpado, exteriormente contornado por uma vala de quatro metros de largura e três de profundidade. Tem duzentos metros de comprimento por cento e cinquenta de largo e está encravado numa planície que o mar limita pelo poente e uma cadeia de montes por norte, sul e nascente. Dista três quilómetros da vila do Tarrafal, na ilha de Santiago.

A falta de vegetação, os montes escarpados, o mar e o isolamento a que os presos estão submetidos, dão à vida, aí, uma monotonia que torna mais insuportável o cativeiro. Como únicos vestígios do mundo há o ar carrancudo dos guardas e das sentinelas negras que vigiam, as cartas das famílias que demoram meses achegar, e dias a ser distribuídos, os castigos e os enxovalhos, os trabalhos forçados, as doenças e a morte de alguns companheiros.

[...]

O fosso que circunda a Colónia Penal tem a configuração de rampa. Com aterra tirada daí formaram um talude que se eleva a três metros de altura acima do nível do campo. A cada canto desse talude, sobre o qual há uma plataforma por onde passeiam as sentinelas negras, foi construído um reduto, onde pode ser instalada uma metralhadora. Dum lado e outro do portão de entrada erguem-se dois poderosos fortins. Eles defenderão o campo dum assalto exterior ou de uma possível tentativa de fuga. Uma ponte de madeira atravessa o vale nesta direcção. É a única passagem que conduz à vida.

Lá dentro há apenas quatro barracões sem higiene, algumas barracas de madeira, nas quais estão instaladas as oficinas e o balneário, uma cozinha, sem condições de asseio, e algumas árvores.

Eis tudo o que forma este pequeno mundo.

A 29 de Outubro de 1936, na pequena baía do Tarrafal, desembarcámos 150 presos antifascistas, os primeiros que o fascismo português atirou para o campo de concentração de Cabo Verde.

Muitos de nós, como Manuel Alpedrinha, Júlio Fogaça, Fernando Quirino, Alfredo Caldeira, Militão Bessa Ribeiro, Américo de Sousa, Fernando Cruz, Pedro Soares, Sérgio Vilarigues, Carlos Sovela, Acácio José da Costa, Luís da Cunha Taborda, Jaime Francisco, José Tavares de Almeida, e outros, tinham concluído as suas penas; José Gilberto de Oliveira (Espartacus), Manuel Rodrigues da Silva, Edmundo Pedro, Adolfo Pais, José Soares, Carlos Ferreira, Patrício e Domingos Quintas, Armando Callet, não tinham sido julgados ou não tinham processos; outros eram presos sujeitos a pequenas condenações nas cadeias do continente.

Trazidos de outras prisões, do segredo, do Calejão da fortaleza de Angra e dos fortes de Caxias e Peniche, sujeitos ao brutal regime de terror, fomos metidos nos porões dum navio, num ambiente irrespirável, com as vigias tapadas e o cavername do barco cheirando a tinta, tal como os bois e os sacos de café que vêm das colónias.

Éramos camponeses, operários, soldados, os gloriosos marinheiros das revoltas dos navios Dão, Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque, estudantes, intelectuais, filhos do povo que lutávamos pela felicidade do nosso país.

A bordo foi-nos imposto um severíssimo comportamento. As metralhadoras estiveram assestadas durante toda a viagem, para abrirem fogo à primeira voz. Praças da GNR vigiavam-nos.

[...]

Quando chegámos ao campo de concentração, fomos alojados em doze barracas de lona, com sete metros de comprimento por quatro de largo. Aí deviam viver doze homens.

Durante quase dois anos, essas barracas, que o sol e a chuva depressa apodreceram, serviram para nos arruinar a saúde.

Os ventos que sopram continuamente, e por vezes com violência, durante a estação seca, que vai de Novembro a Julho, faziam-nas dançar, os ferros frágeis que as mantinham entortavam-se, partiam-se ou rangiam a noite inteira. E depois vinha a poeira cobrir a cara e o corpo, sujar a roupa, os livros e a loiça, emporcalhar o soalho das barracas, que raríssimas vezes foi lavado... porque não havia água.

Em noites de vento mais forte a poeira irritante invadia tudo, as lonas rasgavam-se, algumas barracas ficavam sem tecto, os suportes de madeira caíam e nós éramos obrigados a consertar as nossas moradias, para continuarmos a viver nelas.

Algumas vezes fazíamo-lo debaixo de chuva. Num destes dias de vento, um ferro de uma barraca partiu-se e quebrou a cabeça ao preso Manuel Miranda, que fazia a barba. Não havia médico nem enfermeiro que o curassem, e só depois de muito instado o director se resolveu mandar vir o médico que o tratou.

O único edifício construído com pedra era a cozinha, que não estava concluída. Com amplas aberturas para o lado donde sopra o vento, enchia-se de poeira, a comida também, e quase sempre no fundo dos pratos ficavam os seus resíduos.

Durante três anos, nas barracas onde vivemos, depois nos barracões, não havia luz de noite. Para que precisávamos nós ver? O vento entortava os ferros das barracas, a poeira turvava a água, o companheiro do lado gemia, necessitávamos fazer as camas, ou procurar um objecto, mas não tínhamos luz! Só em volta do campo ela não faltava, para que as sentinelas negras, selvagens e inconscientes, pudessem assassinar, em nome da «civilização» e da «ordem», o primeiro que se aproximasse.»

(Extractos do primeiro capítulo «O episódio começa» do livro de Pedro Soares Tarrafal – Campo da Morte Lenta, Edições «Avante!», Lisboa, 1975.)

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Carta publicada no “Avante!”, nº. 34, Série II, 2º. Semana de Maio de 1937

«Após alguns dias de chegarmos aqui, fomos logo obrigados a trabalhar, isto em trabalhos humilhantes, pois tivemos de ir carregar pedra às costas, de uma pedreira que ficava bastante longe, para os pretos fazerem umas espécie de pocilgas para os soldados pretos habitarem, pedras estas que tinham de ser arrancadas por nós. Enquanto andamos na nossa triste faina somos guardados por soldados pretos, sempre de arma aperrada e baioneta calada. Mas não são só os soldados pretos que nos guardam; são também vários polícias da informação vindos de Lisboa, que nos acompanham para todos os lados, armados de pistolas e de cavalos-marinhos.

«Provocam-nos a todo o instante para ver se nós nos rebelamos contra as suas ordens, a fim de terem pé para nos massacrarem a todos.

«Não nos é fornecida água para bebermos e até mesmo para a confecção da comida a temos nós que ir buscar a um poço que dista daqui cerca de 600 metros. Mas para irmos buscar a água tivemos que comprar as latas onde fazemos o seu transporte.

«Ainda não te disse que também fomos obrigados a carregar umas barracas alemãs, que tinham um peso enorme, às costas, de uma distância de 3000 metros, barracas aquelas que foram para os senhores polícias e sargentos da força.

«Todos estes transportes são feitos debaixo de forma e com constantes ameaças.

«Passamos fome porque o comandante quer enriquecer à nossa custa. Este senhor manda a comida para 151 presos com meio litro de azeite e quando a gente lhe observa neste sentido a resposta é que está bom porque é assim que ele gosta. Em seguida diz-nos que tenhamos cuidado com os castigos que são terríveis.

«As cartas que escrevemos são retidas dois meses e mais. Mas o ódio e o rancor contra nós vai mais longe, vai até ao ponto de nos obrigarem a formar todos os domingos e dias feriados ao içar e hastear da bandeira. Obrigam-nos também a tirar o chapéu a todos os oficiais, sargentos, cabo e policias, tudo isto só com o fim de nos humilharem.»

Os que foram assassinados

A Colónia Penal do Tarrafal foi criada pelo Decreto nº. 26539 de 23 de Abril de 1936 e abriu portas em 29 de Outubro do mesmo ano - faz agora 70 anos! - com 152 presos políticos provenientes de prisões do Continente e da Fortaleza de Angra do Heroísmo. Foi extinta em 1954 por portaria do governo fascista, mas reaberta em 1963, aquando do início da luta de libertação dos povos das antigas colónias, com a reclusão de uma centena de nacionalistas angolanos e guineenses.

Ficou conhecida por “campo da morte lenta”, por onde passaram 340 cidadãos que fizeram da vida luta pela liberdade, pertencentes a diversos quadrantes políticos, anarquistas, democratas, comunistas e sem partido; onde foram assassinados outros 32 cidadãos, cujos restos mortais foram transladados para Portugal em 1978. A soma das penas dos condenados que por lá passaram atinge 2 mil anos, 11 meses e cinco dias.

Ficam para memória os nomes dos cidadãos assassinados pelo fascismo salazarista no campo de concentração do Tarrafal:

Francisco José Pereira, marinheiro, 1909-1937;

Pedro Matos Filipe, descarregador, 1905-1937;

Francisco Domingues Quintas, industrial, 1889-1937;

Rafael Tobias Pinto da Silva, relojoeiro, 1911-1937;

Augusto Costa, operário vidreiro, 1901-1937;

Cândido Alves Barja, marinheiro, 1910-1937;

Abílio Augusto Belchior, marmorista, 1897-1937;

Francisco do Nascimento Esteves, torneiro, 1914-1938;

Arnaldo Simões Januário, barbeiro, 1897-1938;

Alfredo Caldeira, pintor decorador, 1908-1938;

Fernando Alcobia, vendedor de jornais, 1914-1939;

Jaime da Fonseca e Sousa, impressor na Casa da Moeda, 1902-1940;

Albino António de Oliveira Coelho, motorista, 1897-1940;

Mário dos Santos Castelhano, empregado de escritório, 1896-1940;

Jacinto de Melo Faria Vilaça, marinheiro, 1914-1941;

Casimiro Júlio Ferreira, funileiro, 1909-1941;

Albino António de Oliveira de Carvalho, comerciante, 1884-1941;

António Guedes de Oliveira e Silva, motorista, 1901-1941;

Ernesto José Ribeiro, padeiro, 1911-1941;

João Lopes Dinis, canteiro, 1904-1941;

Henrique Vale Domingues Fernandes, marinheiro, 1913-1942;

Bento António Gonçalves, torneiro mecânico no Arsenal da Marinha, 1902-1942;

Damásio Martins Pereira, operário, dn-1942;

António de Jesus Branco, descarregador, 1906-1942;

Paulo José Dias, fogueiro-marítimo, 1904-1943;

Joaquim Montes, operário corticeiro, 1912-1943;

Manuel Alves dos reis, dn-1943;

Francisco Nascimento Gomes, condutor, 1909-1943;

Edmundo Gonçalves, 1900-1944;

Manuel Augusto da Costa, pedreiro, dn-1945;

Joaquim Marreiros, marinheiro, 1910-1948;

António Guerra, empregado do comércio, 1913-1948.

(Informação e imagens retiradas do livro “Dossier Tarrafal”. Edições Avante! 2006)

Fig.1: Entrada do Campo de Concentração do Tarrafal em 1947. Vêem-se os dois torreões com seteiras, a ponte de madeira sobre a vala e o arame farpado.

Fig. 2: A “Frigideira”, desenho de Rogério Amaral.
A Frigideira era um exíguo edifício de cimento em forma rectangular, dividido interiormente em duas celas quadradas, com portas de ferro onde, na parte de baixo, cinco orifícios não deixavam enfiar um dedo. O tecto era uma espessa placa de betão, perto do qual havia um postigo gradeado em forma de meia lua com menos de cinquenta centímetros de largura por uns trinta de altura. O sol tropical, abrasador, que lhe batia de manhã à noite, tornava-o num forno. Chegaram a estar 12 presos onde caberiam apenas dois ou três.

Em tempo de ascensão dos fascismos: Um poema sem título

26.10.22 | Manuel

 Don’t let the fascist speak (Não deixe os fascistas falarem)

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Pat Parker (1944–1989)

“Não deixe os fascistas falarem”
“Nós queremos ouvir o que eles têm a dizer”
“Deixe-os fora da sala de aula”
“Todo mundo tem direito a liberdade de expressão”

sou uma filha América
uma enteada
criada no quarto dos fundos
entretanto ensinada
ensinada a me comportar
nas suas salas de estar
minha cabeça dá um salto
as vozes dos estudantes
gritando
insultos ameaças
“Deixe os nazis falarem”
“Deixe os nazis falarem”
Todo mundo tem o direito
de falar
eu coloco uma criança negra
com pernas hidratadas com óleo
numa escola negra
numa parte negra da cidade
olho para professora negra
a Declaração de direitos
garante
a todos nós o direito

minha cabeça
recorda canta
artigo I artigo I
& minhas entranhas reviram
elas se lembram
a professora negra
na escola negra
numa parte negra
de uma cidade muito branca
que nos parou
quando nós atacamos
o diretor marionete
o conselho branco
de desEducação
despacha livros
ilustrados com
desenhos &
palavras de sabedoria
escritos por brancos
crianças na
outra parte da cidade
dão falta de páginas
caricaturas
de pretos linchados—
a declaração de direitos
foi escrita para
nos
proteger
minha cabeça recorda
& minhas entranhas reviram
conjuram imagens
polícia
dispersam
manifestações ilegais
assembleias ilegais
conjuram a imagem
de um Pantera Negra
“se um Zé Mané
tentar nos parar
nós pararemos ele”
conjuram imagens
desse mesmo homem negro
indo para a cadeia
por ameaçar
a vida do
PRESIDENTE
todo cidadão
tem direito à
liberdade de expressão
minha cabeça recorda
& minhas entranhas reviram
conjuram imagens
de judeus em campos
de homossexuais em campos
de socialistas em campos
“Deixe os nazis falarem”
“Deixe os nazis falarem”

caras
uma sala de aula
universitária
“Você também está sendo fascista.”
“Nós queremos ouvir o que
eles tem a dizer”
caras
numa sala de aula universitária
jovens caras brancas
falam deixe eles falarem
falam deixe eles falarem
Negros, judeus alguns brancos
pegam o megafone
“Nós não queremos ouvir
sua retórica socialista”
retórica socialista
retórica
da sobrevivência
a suprema corte
diz que é ilegal
gritar fogo
num teatro lotado
gritar fogo
num teatro lotado
cria pânico as pessoas
correm e machucam umas às outras
minha cabeça recorda
e agora eu sei
o que minhas entranhas
dizem
é ilegal provocar
as pessoas
o pânico
correr
machucar
não há
contradição
o que os nazis dizem
fará com que
as pessoas
ME
machuquem.

*

Don’t let the fascist speak

“Don’t let the fascist speak.”
“We want to hear what they have to say.”
“Keep them out of the classroom.”
“Everybody is entitled to freedom of speech.”
I am a child of America
a stepchild
raised in the back room
yet taught
taught how to act
in her front room.
my mind jumps
the voice of students
screaming
insults threats
“Let the Nazis speak”
“Let the Nazis speak”
Everyone is entitled
to speak
I sit a greasy-legged
Black child
in a Black school
in the Black part of town
look to the Black teacher
the Bill of Rights
guarantees
us all the right
my mind
remembers chants
article I article I
& my innards churn
they remember
the Black teacher
in the Black school
in the Black part
of the very white town
who stopped
when we attacked
the puppet principal
the white Board
of mis-Education
cast-off books
illustrated with
cartoons &
words of wisdom
written by white
children in the
other part of town
missing pages
caricatures
of hanging niggers —
the bill of rights
was written to
protect
us
my mind remembers
& my innards churn
conjures images
police
break up
illegal demonstrations
illegal assemblies
conjures images
of a Black Panther
“if tricky Dicky
tries to stop us
we’ll stop him”
conjure image
of the same Black man
going to jail
for threatening
the life of
THE PRESIDENT
every citizen
ins entitled to
freedom of speech
my mind remembers
& my innards churn
conjure images
of jew in camps
of homossexuals in camps
of socialists in camps
“Let the Nazis speak”
“Let the Nazis speak”
faces in a college
classroom
“You’re being fascist too.”
“We want to hear what
They have to say”
faces in
a college classroom
young white faces
speak let them speak
speak let them speak
Black, jews some whites
seize the bullhorn
“We don’t want to hear
your socialist rhetoric”
socialist rhetoric
survival
rhetoric
the supreme court
says it is illegal
to scream fire
in a crowded theater
to scream fire
in a crowded theater
causes people to panic
to run to hurt each other
my mind remembers
& now i know
what my innards
say
illegal to cause
people
to panic
to run
to hurt
there is
no contradiction
what the Nazi say
will cause
people
to hurt
ME.

Tradução: Stephanie Borges

* Pat Parker (1944–1989) é uma poetisa americana negra lésbica feminista. Nasceu no Texas e depois mudou-se para a Califórnia. Casou-se duas vezes e teve filhos antes de se declarar lésbica e ter relacionamentos duradouros até sua morte causada por um câncer de mama. Suas ações como ativista envolviam o combate à violência doméstica, direitos para pessoas LGBTs e o combate ao racismo. O poema Don’t let the fascist speak está no livro Liberations front.

https://medium.com/@stephieborges/um-poema-de-pat-parker-80175a7fc2f

Os pecados da Igreja serão perdoados?

21.10.22 | Manuel

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 Ainda nos lembramos das palavras de um bispo, quando os crimes de pedofilia cometidos dentro da Igreja Católica (mas lá fora) começaram a ser mais falados, de que tais crimes não aconteciam em Portugal. Haveria uma barreira sanitária que impedia a entrada do vírus do pecado entre muros nacionais. Quando começaram a surgir, de forma indesmentível, os primeiros casos, e possivelmente por pressão do Papa Francisco, ele por sua vez também obrigado a ter de limpar a casa, as declarações da hierarquia católica indígena passaram a reconhecer a prevaricação, no entanto desconhecendo o número exacto dos casos. Por fim, e com receio ou já notando descontentamento entre os fiéis, a ICAR lá se decidiu a criar uma comissão independente, e “independente” para não ser acusada de querer encobrir o rol dos crimes.

Com o trabalho da comissão quase no fim e depois de se conhecer que os casos de denúncias já iriam nos 424, um número que não diz bem da real dimensão do desmando sexual dos senhores curas, lá também apareceram as figuras do costume a tentar pôr água na fervura, e, como não podia deixar de ser, o papagaio-mor do reino, que opina sobre todas as coisas e nenhumas, afirmando candidamente que o número de 424 casos de pedofilia não seria nada de monta comparado com o de outros países de maioria católica. E já depois de ter posto as mãos no lume pela credibilidade do cardeal patriarca de Lisboa, por ter sido acusado de encobrimento, um crime tão ou mais grave que o da pedofilia. Esta foi a melhor expressão da santa aliança entre a cruz e a espada. Nada de motivo para a admiração do reviralho na medida em que o historial desta aliança vem antes da fundação da dita “nacionalidade portuguesa”. Dom Afonso Henriques, o primeiro proprietário da quinta, era franco e derrotou e expulsou os infiéis com a ajuda prestimosa e indispensável dos cruzados, católicos e seguidores do Papa.

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A santa aliança entre a cruz e a espada antes do 25 de Abril revestia forma mais pessoalizada, eram inúmeras as anedotas que se contavam sobre a amizade entre as duas figuras supremas do poder, religioso e temporal. No entanto, a Igreja fazia o trabalho de mentalização das massas, nomeadamente rurais, que interessava ao regime fascista português, mas parece que agora os papéis se inverteram.

Diversos altos dignatários da Igreja (ICAR) têm sido questionados sobre o escândalo e, principalmente, sobre o eventual encobrimento da pedofilia dentro da Igreja. Alguns vão conseguindo descalçar, mas mal, a bota e limpar a imagem pessoal e da confraria; um deles, o bispo Ornelas, depois de ter sido avisado pelo PR Marcelo de que estava a ser investigado pela Justiça, tem-se desunhado em entrevistas pelos media mainstream, com relevo para a pública RTP, em defesa da honra e do bom nome. No entanto, outros, por menos inteligentes ou menos diplomáticos, não conseguem esconder a verdadeira alma de arrogância clerical, pensando talvez que ainda se encontram no bom e saudoso tempo da Inquisição, do estado religioso que se sobrepunha ao poder temporal. O bispo do Porto, cujo nome é o antónimo de o ser, de cada vez que abre a boca mais se enterra na contradição de uma instituição que vive fora do tempo; ilusão esta que é alimentada por incompreensíveis e anacrónicos privilégios concedidos pelo poder político de um estado que constitucionalmente se declara laico. A arrogância e o poder da ICAR estão na razão directa do oportunismo e pusilanimidade da classe política nacional e que, à vez, vai gerindo os negócios da elite económica reinante.

A arrogância e algum sentimento de impunidade de quem está acima da plebe faz com que o bispo Linda venha a ficar na história da pedofilia em Portugal por tiradas pouco lindas, do género "O crime de abuso não é público", ou, então, as amnésias selectivas de não se recordar “minimamente” de ter recebido queixa por abuso sexual envolvendo padre e uma menor. A acompanhar, o clérigo Ornelas, usando a abstração do termo “igreja”, não se inibe de afirmar que a “igreja tem casos de pedofilia, mas não é pedófila” – o que será uma “igreja pedófila”? No topo da hierarquia, o Vaticano promete trabalhar “em momento oportuno” com Igreja Portuguesa sobre abusos. Qual será o resultado deste trabalho ainda não sabemos, mas em relação à Justiça portuguesa não será difícil prognosticar porque neste momento o MP já arquivou mais de metade dos inquéritos. Como a grande maioria dos abusos sexuais foi praticada há muito tempo, tendo já prescrito, pouco ou nenhuns irão sequer a julgamento.

Perante a suspeição e a acusação, agora, é a vez de o clero apresentar-se como vítima, atitude que se observa em muitos católicos mais obedientes basta passar os olhos pelas redes sociais. É a "perseguição à Igreja", é a condescendência de que em todas as instituições ou grupos sociais há sempre as ovelhas negras, que em altura certa serão expulsas, ficando a instituição ainda mais pura e verdadeira. Só que a decadência e a evidência de “os valores que estão a voar" são incontornáveis. Mas enquanto os valores morais e espirituais vão decaindo ou adulterando os interesses materiais estão sempre presentes: “Clero do Porto vai investir sete milhões numa hospedaria. Espaço vai ter 55 quartos e será aberto a todos os turistas que queiram usufruir” (é a manchete dos media). A celebração da “segunda peregrinação do ano” a Fátima pela participação e pelo (des)ânimo em que decorreu não conseguiu esconder a realidade presente da ICAR.

A decadência de valores não é de agora, e referimo-nos à Igreja católica portuguesa, lembremo-nos do caso do bispo do Funchal que ordenou padre o secretário, pedófilo e, ao que parece, amante, e o fez sair da prisão, onde se encontrava por presumível crime de homicídio e com contornos de envolvimento sexual – ninguém se esqueceu do padre Frederico que fugiu à Justiça em 1998! Lá vai o tempo em que os padres eram acusados de poligamia e de terem filhos que mais tarde rejeitavam, recorrendo muitas vezes ao infanticídio. Refere Alexandre Herculano: «Um dos males que mais afligiam o reino era a excessiva multidão de sacerdotes. Havia pequena aldeia onde viviam até quarenta, do que resultava andarem sempre em competências, disputando uns aos outros as missas, enterros e solenidades do culto, com altíssimo escândalo do povo». E mais adiante o nosso historiador não se cansa de apontar: «Um dos abusos frequentes que estes tais cometiam era casarem clandestinamente, podendo assim delinquir sem perigo, porque, se os processavam por algum crime de morte, declinavam a competência dos tribunais seculares, e suas mulheres, para os salvarem, não hesitavam em se envilecerem a si próprias perante os magistrados, declarando-se concubinas.» Parece que agora os tempos são outros.

São os tempos da pedofilia, das parafilias resultantes da ancestral e persistente repressão da sexualidade humana por parte da ICAR e ao longo de muitos séculos da sua existência. A pedofilia tem um significado preciso, segundo o psiquiatra Afonso Albuquerque “Na perspectiva sexológica, o pedófilo é um adulto (geralmente um homem) cujo interesse sexual por crianças pré-púberes (até aos 13 anos) excede claramente o seu interesse sexual pelos adultos. Alguma especificidade extra vem sugerida nos sistemas classificativos mais actuais (DSM -IV, CID-10), como a idade de pelo menos 16 anos para o perpetrador e a da vítima ter até 13 anos, e ser pelo menos cinco anos mais nova, de forma a excluir os casos de atracção sexual entre crianças e adolescentes com idades equivalentes”. E como tal deve ser objecto de tratamento clínico, o que não apaga, como é óbvio, a responsabilidade criminal do abusador e da própria instituição que criou condições para tal e não soube tomar medidas em tempo útil.

Embora não parafilia, tanto a homossexualidade como a masturbação têm sido abertamente reprimidos como pecados. Há quem veja esta repressão clerical e religiosa como a repressão de uma “sobrevivência pagã” - como é ainda considerada cristianamente a sexualidade humana - a expressão de uma «psique neurótica» e de «uma psicologia dos grupos conduzindo à neurose». A atitude de sempre da Igreja católica, e reiterada em 1975 pela Sagrada Congregação da Fé quanto a questões de sexo e de castidade, é interpretada numa perspectiva psicanalítica por um dos seus últimos elementos proscritos, o teólogo e psiquiatra alemão Eugene Drewermann, que vê como resultado no indivíduo (homem da igreja ou crente) desta política medieval «o menosprezo do ego, a “mortificação” da pulsão sexual e a submissão do indivíduo ao grupo (leia-se hierarquia)».

O mesmo autor reconhece, fruto da sua experiência de psicoterapeuta, que a percentagem de homossexuais dentro da Igreja católica é grande, como consequência principal da sua moral repressiva e da atitude quanto ao celibato, quer entre religiosos de sexo masculino como do sexo feminino, chegando aos 25% os jovens seminaristas que, de forma permanente ou esporádica, se dedicam a práticas homossexuais. A homossexualidade considerada como uma das formas mais graves de pecado pela Igreja (os acusados pelo crime nefando eram sentenciados à fogueira pela Santa Inquisição, se fosse agora muito haveria que queimar!) é por esta directamente fomentada, mas que, ao mesmo tempo (contradição das contradições), obstinadamente se recusa a reconhecer como realidade existente no seu seio.

Quanto a práticas masturbatórias, elas são frequentes, segundo Drewermann, são diversos os casos, por si vistos na clínica, de eclesiásticos, alguns ocupando altos cargos hierárquicos, que, perante as dificuldades de preparação de uma conferência ou homília, começavam sempre por se masturbar. Masturbação, considerada pela Teologia católica como “um acto gravemente oposto à ordem”, ou então a procura do álcool, outro refúgio bastante solicitado e que, quer um quer outro, funcionam como droga para vencer o medo e a insegurança.

E entre os padres que decidem abandonar o caminho do onanismo para se ligar a alguma mulher, respondendo assim aos apelos mais íntimos do seu ser, confrontam-se as mais das vezes com o problema dos filhos não desejados, sendo, por isso, e segundo aquele teólogo alemão, os abortos coisa frequente: é que o “concubinato” é tolerado desde que o sacerdote em causa não persista ou “não dê escândalo” (cânone 1395 do Direito Canónico), isto é, que não haja conhecimento do “pecado”.

Esta realidade não é de estranhar numa religião, e continuamos a citar as palavras de Drewermann (que apesar de tudo não renega a sua fé), que «falsifica a neurose em santidade, a doença em eleição divina e a angústia em confiança em Deus», e onde a separação entre o pensamento e a sensibilidade, a actividade intelectual e a vivência emocional, constitui uma estrutura fundamental do pensamento clerical. Esta hipocrisia, a mesma que a burguesia manifesta, mas mais refinada e levada ao extremo, é própria de uma religião que «é inimiga da natureza e oposta ao amor», melhor dizendo, tem como objectivo a subjugação do homem, a sua destruição como indivíduo livre e senhor do seu destino.

Por fim, haverá que fazer uma distinção entre “pedófilo” e “adulto abusador sexual de crianças”, que é melhor descrito como «qualquer adulto que tenha contactos sexuais com crianças pré-púberes», segundo Afonso de Albuquerque. E continuando, este «qualquer adulto» vai incluir pedófilos e não pedófilos, ou seja, há adultos que abusam sexualmente de crianças mas não o fazem porque sejam pedófilos mas sim por uma variedade de outros motivos (por exemplo, os violadores). Estas duas populações (pedófilos e abusadores sexuais de crianças) são em parte coincidentes. Talvez tenha sido esta a realidade dos abusadores envolvidos no caso mais que mediático da Casa Pia e que abriu o capítulo de um dos maiores escândalos da democracia portuguesa saída do 25 de Abril de 74, onde estavam envolvidas figuras importantes da sociedade, do futebol, do espectáculo e da política. Quase que o espelho de um certo Portugal bem instalado na vida.

Observando com mais atenção constata-se que os problemas da Igreja Católica são, embora com algum grau de ampliação pelas características específicas, os mesmos da sociedade em geral. Numa sociedade patriarcal, onde predominam conceitos racistas, xenófobos e machistas, os pecados são os mesmo de uma igreja, também ela, patriarcal, e, por acréscimo, celibatária e gerontocrática. No global, é a sociedade burguesa e capitalista que se encontra em decadência, porque a superestrutura não se pode desligar da base económica, andam quanto muito e às vezes desfasadas no tempo.

Bibliografia:

- Afonso de Albuquerque, Minorias Eróticas e Agressões Sexuais. Publicações Dom Quixote, 2006.

- Alexandre Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Edição Círculo de Leitores, 1987.

- Eugen Drewermann, Funcionários de Deus. Editorial Inquérito, 1989.

António Ramos Rosa

19.10.22 | Manuel

21.jpg

A Mulher

Se é clara a luz desta vermelha margem
é porque dela se ergue uma figura nua
e o silêncio é recente e todavia antigo
enquanto se penteia na sombra da folhagem.
Que longe é ver tão perto o centro da frescura

e as linhas calmas e as brisas sossegadas!
O que ela pensa é só vagar, um ser só espaço
que no umbigo principia e fulge em transparência.
Numa deriva imóvel, o seu hálito é o tempo
que em espiral circula ao ritmo da origem.

Ela é a amante que concebe o ser no seu ouvido, na corola
do vento. Osmose branca, embriaguez vertiginosa.
O seu sorriso é a distância fluida, a subtileza do ar.
Quase dorme no suave clamor e se dissipa
e nasce do esquecimento como um sopro indivisível.

*

Teu Corpo Principia

Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.

Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.

Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)

Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.

Silêncio e sol — verdade,
respiração apenas.

Amor, eu sei que vives
num breve país.

Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.

Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.

Ó maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.

Ó vida perfumada
cantando devagar.

Enleio-me na clara
dança do teu andar.

Por uma água tão pura
vale a pena viver.

Um teu joelho diz-me
a indizível paz.

*

Este homem que esperou

Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra duma árvore
mudar a direcção
ao seu pobre destino

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra

*

O Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isso todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

*

António Vítor Ramos Rosa: Faro, 17 de Outubro de 1924 – Lisboa, 23 de Setembro de 2013), foi um poeta, tradutor e desenhista português.

António Ramos Rosa estudou em Faro, não tendo acabado o ensino secundário por questões de saúde. Em 1958 publicou no jornal «A Voz de Loulé» o poema "Os dias, sem matéria". No mesmo ano saiu o seu primeiro livro «O Grito Claro», n.º 1 da colecção de poesia «A Palavra», editada em Faro e dirigida pelo seu amigo e também poeta Casimiro de Brito. Ainda nesse ano iniciou a publicação da revista «Cadernos do Meio-Dia», que em 1960 encerra a edição por ordem da polícia política.

Foi um dos fundadores da revista de poesia Árvore existente entre 1951 e 1953.

Fez parte do MUD Juvenil.

A 10 de Junho de 1992 foi feito Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada e a 9 de Junho de 1997 foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

O seu nome foi dado à Biblioteca Municipal de Faro.

Em 2003, a Universidade do Algarve, atribui-lhe o grau de Doutor Honoris Causa. (Wikipedia)

Fonte:

https://www.citador.pt/

https://www.escritas.org/

Adriano Correia de Oliveira

15.10.22 | Manuel

adriano-correia-de-oliveira.jpg

Fala do Homem Nascido
Venho da terra assombrada
Do ventre da minha mãe.
Não pretendo roubar nada
Nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
Por me trazerem aqui.
Que eu nem sequer fui ouvido
No acto de que nasci.
Trago boca pra comer
E olhos pra desejar.
Tenho pressa de viver
Que a vida é água a correr.
Tenho pressa de viver
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo
Não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
Solta o pano rumo ao Norte.
Meu desejo é passaporte
Para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
Nem marés que não convenham.
Nem forças que me molestem
Correntes que me detenham.
Quero eu e a natureza
Que a natureza sou eu.
E as forças da natureza
Nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença
Mesmo morto hei-de passar.
Não há poder que me vença
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.

Venho da terra assombrada
Do ventre da minha mãe.
Não pretendo roubar nada
Nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui.
Que eu nem sequer fui ouvido
No acto de que nasci.

*

Capa Negra Rosa Negra


Capa negra rosa negra
Rosa negra sem roseira.
Capa negra rosa negra
Rosa negra sem roseira.
Abre-te bem nos meus ombros
Como o vento uma bandeira,
Como o vento uma bandeira.
Abre-te bem nos meus ombros
Vira costas à saudade.
Abre-te bem nos meus ombros
Vira costas à saudade.
Capa negra rosa negra
Bandeira de liberdade,
Bandeira de liberdade.
Eu sou livre como as aves
E passo a vida a cantar.
Eu sou livre como as aves
E passo a vida a cantar.
Coração que nasceu livre
Não se pode acorrentar,
Não se pode acorrentar.

*

Cantar de Emigração (este Parte, Aquele Parte)

Composição: Rosalia de Castro

Este parte, aquele parte
e todos, todos se vão
Galiza ficas sem homens
que possam cortar teu pão

Tens em troca
órfãos e órfãs
tens campos de solidão
tens mães que não têm filhos
filhos que não têm pai

Coração
que tens e sofre
longas ausências mortais
viúvas de vivos mortos
que ninguém consolará

*
Porque

Composição: Sofia de Melo Breyner

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
*
Morte que mataste Lira

Composição: Indisponível

Morte que mataste Lira,
Morte que mataste Lira,
Morte que mataste Lira,
Mata-me a mim, que sou teu!
Morte que mataste lira
Mata-me a mim que sou teu
Mata-me com os mesmos ferros
Com que a lira morreu

A lira por ser ingrata
Tiranicamente morreu
A morte a mim não me mata
Firme e constante sou eu
Veio um pastor lá da serra
À minha porta bateu
Veio me dar por notícia
Que a minha lira morreu

Adriano Maria Correia Gomes de Oliveira nasceu em Avintes em 9 de Abril de 1942, no seio de uma família tradicionalista católica. Tornou-se militante do PCP em 1962. Em 1975 lançou "Que Nunca Mais", com direcção musical de Fausto e textos de Manuel da Fonseca. Este vinil levou a revista inglesa Music Week a elegê-lo como "Artista do Ano". Fundou a Cooperativa Cantabril e publicou o seu último álbum, "Cantigas Portuguesas", em 1980. No ano seguinte, numa altura em que a sua saúde já se encontrava degradada rompeu com a direcção da Cantabril e do partido, ingressando na Cooperativa Era Nova. Em 1982, com quarenta anos, a 16 de Outubro, morreu em Avintes, nos braços da mãe. Foi, juntamente com José Afonso, o percursor do que se entende por canção de intervenção (política) que caracterizou o período que antecedeu o 25 de Abril, incluindo a década de sessenta, e os anos que se seguiram à dita “revolução dos cravos”.
(Poemas in http://letras.terra.com.br/adriano-correia-de-oliveira/486851/)

Guerra atómica e o fim da humanidade

13.10.22 | Manuel

agamben.png

Talvez fosse mais consistente supor que uma humanidade que produziu a bomba (atómica) já está espiritualmente morta e que é a consciência da realidade e não a possibilidade dessa morte que devemos começar a pensar.

Giorgio Agamben*

Em 1958, Karl Jaspers publicou um livro sob o título “A bomba atómica” e o futuro da humanidade em que pretende questionar radicalmente – como diz o subtítulo – a consciência política do nosso tempo. A bomba atómica – ele começa na introdução – produziu uma situação absolutamente nova na história da humanidade, colocando-a diante da alternativa inevitável: "ou toda a humanidade será destruída fisicamente ou o homem deve transformar sua condição ético-política". Se no passado, como nas primeiras comunidades cristãs, os homens fizeram "representações irreais" de um fim do mundo, hoje, pela primeira vez em sua história, a humanidade tem a "possibilidade real" de se aniquilar e a vida na Terra. Essa possibilidade, mesmo que os homens não pareçam percebê-la plenamente, só pode marcar um novo começo para a consciência política e implicar “um ponto de virada em toda a história da humanidade”.

Quase setenta anos depois, a "real possibilidade" de autodestruição da humanidade, que parecia abalar a consciência do filósofo e envolver imediatamente seus leitores (o livro foi amplamente discutido) parece ter se tornado um facto óbvio, que jornais e políticos evocam todos os dias como uma eventualidade absolutamente normal. Ao falar de uma emergência – em que a excepção se torna, como sabemos, a regra – o evento que Jaspers considerava inaudito é apresentado como uma ocorrência totalmente banal da qual cabe aos especialistas avaliar a oportunidade e a iminência. Uma vez que a bomba deixou de ser uma "possibilidade" decisiva para a história da humanidade e, ao invés disso, nos interessa de perto como uma "oportunidade" entre outras que definem uma situação de guerra, será bom então reconsiderar a questão desde o início, que talvez não tivesse sido colocada em seus próprios termos.

Treze anos depois, em um ensaio significativamente intitulado The Apocalypse Disappoints, Maurice Blanchot voltou a questionar o problema do fim da humanidade. E o fez submetendo as teses de Jaspers a uma crítica discreta, mas não menos eficaz. Se o tema do livro era a necessidade de uma mudança de época, é surpreendente que "da parte de Jaspers, no livro que deveria ser a consciência, a retomada e o comentário dessa mudança, nada mudou – nem na linguagem , nem no pensamento, nem nas fórmulas políticas, que se conservam e na verdade se bloqueiam em torno dos preconceitos de uma vida, uns muito nobres, mas outros muito restritos... um pensamento inteiramente novo, não renovou a linguagem que o expressa e produz apenas considerações parciais e partidárias na ordem política ou urgentes e excitantes na ordem espiritual, mas idênticas àquelas que se repetem em vão há dois mil anos?”. A objeção é certamente pertinente, pois não só o livro de Jaspers se apresenta como uma ampla monografia académica que pretende examinar o problema em todos os seus aspectos, mas o que o autor pretende opor à destruição é o clichê de "uma paz universal sem bombas, com uma nova vida economicamente baseada na energia nuclear”. Não menos singular é que a dominação totalitária do bolchevismo (social-fascismo), com a qual é impossível chegar a um acordo, seja ladeada pela bomba atómica como um perigo igualmente mortal.

O facto é, Blanchot parece sugerir, que tal perspectiva apocalíptica é necessariamente decepcionante, porque apresenta como um poder nas mãos da humanidade algo que, na verdade, não é tal. É, de fato, “um poder que não está em nosso poder, que indica uma possibilidade da qual não somos mestres, uma probabilidade – digamos que é provável-improvável – que expressaria nosso poder apenas se o dominássemos com segurança. Por enquanto, porém, somos tão incapazes de dominá-lo quanto de desejá-lo, e por uma razão óbvia: não somos senhores de nós mesmos, porque essa humanidade, capaz de ser totalmente destruída, ainda não existe como um todo”. De um lado, um poder que não pode ser poder, de outro, uma comunidade humana como sujeito reivindicado desse poder, "que pode ser suprimido, mas não afirmado ou que de alguma forma só pode ser afirmado após seu desaparecimento, pelo vazio, impossível de apreender, desse desaparecimento, algo, portanto, que não pode nem mesmo ser destruído, porque não existe” (p. 124).

Se, como parece inegável, a destruição da humanidade não é uma possibilidade que a humanidade dispõe conscientemente, mas permanece confiada à contingência de decisões e avaliações em grande parte aleatórias por este ou aquele chefe de Estado, o argumento de Jaspers é então destruído desde seus alicerces, porque os homens que não têm de facto a capacidade de se autodestruir não podem sequer se conscientizar dessa possibilidade de transformar sua consciência ética e politicamente. Jaspers parece aqui repetir o mesmo erro que Husserl havia cometido quando, em uma palestra de 1935 sobre "A filosofia e a crise da humanidade europeia", ao identificar a causa da crise nos "desvios do racionalismo", ela é melhor definida como a tarefa de guiar a humanidade em seu infinito progresso em direção à maturidade. A alternativa aqui já claramente formulada entre "um desaparecimento da Europa cada vez mais estranha a si mesma e à sua vocação racional" e um "renascimento da Europa" em virtude de "um heroísmo da razão" trai a inconfessável consciência de que onde há necessidade para o "heroísmo" não há mais lugar para essa "vocação racional" (da qual se especifica que distingue a humanidade europeia do "papu selvagem", pelo menos na medida em que este difere de uma besta).

O que uma razão recta não tem coragem de aceitar é que o fim da humanidade europeia ou da própria humanidade, entregue a aspirações anódinas e vãs, que deixam intacto o princípio que é responsável por ele, acaba por derrubar, como Blanchot adivinhou, em "um simples facto do qual não há nada a dizer, excepto que é a própria ausência de sentido, algo que não merece exaltação, nem desespero e talvez nem atenção". Nenhum evento histórico – nem a guerra atómica (ou, para Husserl, a Primeira Guerra Mundial), nem o extermínio dos judeus e certamente nem a pandemia – pode ser hipostasiado em um evento de época, se não se tornar um evento incompreensível e vazio idolum historiae, que já não se pode pensar nem enfrentar.

É necessário, portanto, abandonar sem reservas o argumento de Jaspers, que paga a incapacidade da razão ocidental de pensar o problema de um fim que ela mesma produziu, mas que de modo algum é capaz de dominar. Diante da realidade de seu próprio fim, tenta ganhar tempo, transformando essa realidade em uma possibilidade que remete a uma realização futura, a uma guerra atómica que a razão ainda pode evitar. Talvez fosse mais consistente supor que uma humanidade que produziu a bomba já está espiritualmente morta e que é a consciência da realidade e não a possibilidade dessa morte que devemos começar a pensar. Se o pensamento não pode colocar razoavelmente o problema do fim do mundo, é porque o pensamento está sempre situado no fim, é a cada instante uma experiência da realidade e não da possibilidade do fim. A guerra que tememos está sempre em andamento e nunca terminou, pois a bomba uma vez lançada em Hiroshima e Nagasaki nunca deixou de ser lançada. Só a partir dessa consciência o fim da humanidade, a guerra atómica, as catástrofes climáticas deixam de ser fantasmas que aterrorizam e paralisam uma razão incapaz de compreendê-los e aparecem pelo que são: fenómenos políticos sempre actuais em sua contingência e em seu absurdo, que justamente por isso não devemos mais temer como uma fatalidade sem alternativas, mas podemos enfrentá-los cada vez de acordo com as instâncias concretas em que surgem e as forças que temos para combatê-los ou escapar deles. É o que aprendemos nos últimos dois anos e, diante de pessoas poderosas cada vez mais incapazes de governar a emergência que eles mesmos produziram, pretendemos valorizá-la.

4 de Outubro de 2022

(Tradução livre)

*Filósofo italiano

https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-la-guerra-atomica-e-la-fine-dell-u2019umanita

Harold Pinter, cidadão do mundo

10.10.22 | Manuel

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Aquando da aceitação do Prémio Nobel, Pinter, já com a saúde frágil e à porta de sua casa em Londres, foi inequívoco: “Estou muito comovido. É algo que não esperava”. Por recomendação médica, não pôde assistir à cerimónia de entrega do prestigioso prémio em Estocolmo, mas gravou seu discurso, no qual, como vinha fazendo nos últimos anos, dedicou as suas críticas políticas mais ácidas à Guerra do Iraque, na qual o Reino Unido foi fiel seguidor dos Estados Unidos.

"A invasão do Iraque foi um acto de bandidos, um acto de flagrante terrorismo de Estado que demonstrou um desprezo absoluto do conceito de normativa internacional", afirmou Pinter, visivelmente débil e utilizando uma cadeira de rodas. Sem papas na língua e mais rebelde do que nunca, o dramaturgo aproveitou o Nobel para pedir o processo do presidente dos EUA, George W. Bush, e do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair por crimes de guerra.

Durante sua vida, o autor, que se sentia obrigado a assumir uma posição política como "cidadão do mundo", abraçou outras causas como o desarmamento nuclear, a defesa de Cuba frente ao embargo americano e a rejeição ao bombardeamento da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Sérvia em 1999.

Texto integral do discurso de Harold Pinter aquando da entrega do Prémio Nobel:  

Em 1958, escrevi o seguinte: "Não há distinções explícitas entre o que é real e o que é irreal, tampouco entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente verdadeira ou falsa; ela pode ser tanto falsa quanto verdadeira." Creio que essas afirmações ainda fazem sentido e certamente se aplicam à exploração da realidade por meio da arte. Portanto, como escritor, eu as defendo; todavia, como cidadão, não posso fazê-lo. Como cidadão devo perguntar: O que é verdadeiro? O que é falso?

A verdade, no teatro, é sempre enganosa. Jamais conseguimos encontrá-la totalmente, mas a perseguimos de forma compulsiva. Essa busca é, sem dúvida alguma, o que motiva tal esforço. A busca é tarefa nossa. Com muita frequência, tropeçamos na verdade em meio às trevas, topamos com ela ou vislumbramos apenas uma imagem ou um vulto que parece corresponder à verdade, sem nos dar conta, tantas vezes, do que se passou. Contudo, a verdade real é que não há nunca, em tempo algum, na arte dramática, isto a que chamamos de verdade única. As verdades são muitas. Elas desafiam umas às outras, esquivam-se umas das outras, reflectem-se, ignoram umas às outras, importunam umas às outras, são cegas umas para as outras.

Com frequência, sentimos que temos nas mãos a verdade de um momento, para em seguida vê-la escorrer por entre os dedos e se perder. Perguntam-me muitas vezes como concebo minhas peças. Não sei. Também não posso resumi-las, digo apenas o que se passou. Foi isto o que disseram; isto o que fizeram. A maior parte delas brota de uma fala, de uma palavra ou de uma imagem. A palavra dada é, não raro, seguida logo depois da imagem.

Darei dois exemplos de duas falas que me vieram à mente de forma inesperada seguidas de uma imagem, seguidas então por mim. As peças são “A Volta ao Lar“ (The Homecoming) e “Antigamente” (Old Times). A primeira fala de “A Volta ao Lar” é “O que você fez com a tesoura?” E a primeira fala de “Antigamente” é “Escuro”. Em ambos os casos, eu não dispunha de nenhuma outra informação. No primeiro exemplo, alguém estava obviamente procurando uma tesoura e indagava do paradeiro dela a uma pessoa que, segundo suspeitas do autor da pergunta, a teria roubado. De algum modo, porém, eu sabia que a pessoa a quem a pergunta havia sido dirigida não dava a mínima para a tesoura e tampouco para a pessoa que lhe fizera a pergunta.

Com "escuro" eu fazia referência ao cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e era a resposta a uma pergunta. Nos dois casos, senti-me obrigado a insistir no que tinha. Foi uma ocorrência visual, de um desbotado que passou muito lentamente das sombras para a luz. Sempre começo minhas peças chamando os personagens de A, B e C.

Na peça que se tornou “A Volta ao Lar”, vi um homem entrar em uma sala sóbria e dirigir sua pergunta a outro homem mais jovem, sentado em um sofá ordinário e que se entretinha com a leitura de um jornal sobre corridas. Não sei por que, mas eu suspeitava que A fosse o pai e, B, seu filho, mas não tinha provas disso.

Minha impressão se confirmou, porém, pouco tempo depois, quando B (posteriormente baptizado de Lenny) diz a A (ou Max, como eu o chamaria mais adiante), "Pai, você se importa se eu mudar de assunto? Queria lhe perguntar uma coisa. Aquele prato que comemos antes, como se chama? Qual o nome dele? Por que você não compra um cachorro? Você daria um bom cozinheiro de comida para cachorro. Verdade. Quando você cozinha, parece que está cozinhando para uma porção de cachorros." Portanto, uma vez que B chama A de "Pai", pareceu-me lógico supor que se tratava de pai e filho. A, naturalmente, era o cozinheiro, e sua comida não parecia ter uma reputação muito boa. Será que isso quer dizer que não havia uma mãe? Eu não sabia. Contudo, como dizia para mim mesmo na época, nossos começos não conhecem jamais nossos fins.

"Escuro". Uma janela grande. Céu crepuscular. Um homem. A (mais tarde Deeley), e uma mulher (mais tarde Kate), estão sentados com seus respectivos drinks. "Gorda ou magra?", o homem pergunta. De quem falam? Vejo então, à janela, uma mulher, C (futura Anna), banhada por uma luz diferente, de costas para os dois, de cabelo escuro.

É um momento estranho, o momento da criação das personagens que, até aquele momento, não existiam. O que se segue é fragmentário, incerto, alucinante mesmo, embora às vezes possa se tornar uma avalanche incontrolável. É curiosa a condição do autor. Em certo sentido, ele não goza da simpatia das personagens. Eles o enfrentam, dificultam a convivência, não se deixam definir. É impossível dar-lhes ordens. Em certo sentido, jogamos com eles um jogo que nunca termina, gato e rato, cabra-cega, esconde-esconde.

No fim das contas, porém, percebemos que temos pessoas de carne e osso nas mãos, gente dotada de vontade e de sensibilidade própria, feita de partes que não podemos alterar, manipular ou distorcer. Portanto, a linguagem na arte constitui uma transacção extremamente ambígua, é areia movediça, uma cama elástica, um lago congelado que a qualquer momento poderá ceder sob os pés do autor. Contudo, como já disse, a busca pela verdade nunca termina. Ela não pode ser interrompida, não pode ser adiada. Deve-se encará-la, ali mesmo, de frente.

O teatro político apresenta um conjunto de problemas totalmente distinto. É preciso evitar a todo custo os sermões. A objectividade é essencial. As personagens precisam respirar por si. O autor não pode confiná-los e obrigá-los a satisfazer seu gosto pessoal, sua vontade, seus preconceitos. Ele deve estar preparado para se aproximar deles de diversos ângulos diferentes, de perspectivas totalmente despojadas, pegá-los de surpresa, talvez, de vez em quando, sem contudo privá-los da liberdade de ir aonde queiram. Nem sempre isso funciona. E a sátira política, é claro, não obedece a nenhum desses preceitos. Na verdade, ela faz exactamente o oposto, que é para isso que serve.

Na minha peça “Festa de Aniversário” (The Birthday Party), creio que deixo uma série de opções operar em uma densa floresta de possibilidades antes de me concentrar finalmente em um ato de subjugação. “Língua da Montanha” (Mountain Language) não tem a mesma aspiração. Ela é brutal, breve e incómoda, porém os soldados que nela aparecem conseguem se divertir um pouco. Às vezes nos esquecemos de que os torturadores se entediam facilmente. Eles precisam rir um pouquinho para se animar. Isto foi confirmado, naturalmente, pelos acontecimentos de Abu Ghraib, em Bagdade. “Língua da Montanha” tem apenas 20 minutos, mas poderia se estender por horas a fio repisando sempre o mesmo tema, indefinidamente, durante horas e horas.

“Cinzas às Cinzas” (Ashes to Ashes), por outro lado, parece-me se desenrolar debaixo da água. Uma mulher está se afogando, ela ergue a mão em meio às ondas, afunda, desaparece, procura por outros, mas não encontra ninguém, nem acima, nem abaixo da água, excepto sombras e reflexos que bóiam; a mulher é uma figura perdida em uma paisagem que afunda, uma mulher incapaz de escapar à sina que parecia pertencer unicamente aos outros. Contudo, à medida que morrem, também ela deve morrer.

A linguagem política, conforme o emprego que fazem dela os políticos, não se aventura por nenhum desses territórios, uma vez que a maioria dos políticos, pelas evidências de que dispomos, não estão interessados na verdade, e sim no poder e na manutenção do poder. Para manter o poder é imprescindível que as pessoas permaneçam na ignorância, que vivam em estado de ignorância em relação à verdade, até mesmo a verdade que diz respeito à sua própria vida. Estamos, portanto, rodeados por uma vasta rede de mentiras, das quais nos alimentamos.

Como é de conhecimento geral, a justificativa para a invasão do Iraque era de que Saddam Hussein possuía um arsenal extremamente perigoso de armas de destruição em massa, algumas das quais poderiam ser disparadas em 45 minutos, ocasionando uma destruição pavorosa. Garantiram-nos que era verdade. Não era verdade. Nos disseram que o Iraque mantinha relações com a Al-Qaeda, e que era co-responsável pela atrocidade que se abateu sobre Nova York em 11 de Setembro de 2001. Garantiram-nos que era verdade. Não era.

Nos disseram que o Iraque era uma ameaça à segurança do mundo. Garantiram-nos que era verdade. Não era. A verdade é algo completamente diferente. A verdade diz respeito à forma como os Estados Unidos entendem seu papel no mundo e ao modo que escolheram para protagonizá-lo.

Antes, porém, de voltar ao presente, gostaria de examinar o passado recente, e com isso quero me referir à política externa dos Estados Unidos desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. Creio que é nossa obrigação submeter esse período a algum tipo de escrutínio, ainda que limitado, já que o tempo de que dispomos não nos permitiria mais do que isso. Todo o mundo sabe o que aconteceu na União Soviética e em todo o Leste europeu no período que se seguiu ao pós-guerra: uma brutalidade sistemática, atrocidades generalizadas, a supressão impiedosa do pensamento independente. Tudo isso se acha fartamente documentado e comprovado. Contudo, minha opinião neste caso é de que os crimes dos Estados Unidos no mesmo período foram registrados de modo apenas superficial, não houve de forma alguma preocupação em documentá-los, muito menos em reconhecê-los ou admiti-los como crimes. Creio que é preciso tocar nesse ponto.

A verdade tem um peso considerável sobre a situação actual do mundo. Embora restritas até certo ponto pela existência da União Soviética, as acções dos Estados Unidos pelo mundo afora deixavam claro que eles haviam chegado à conclusão de que tinham carta branca para fazer o que bem entendessem. A invasão pura e simples de um Estado soberano nunca foi o método favorito dos Estados Unidos. De modo geral, eles sempre preferiram o que chamam de "conflito de baixa intensidade". Isto significa que milhares de pessoas morrem, porém mais lentamente do que se jogássemos uma bomba sobre elas. Significa que o coração de um país é infectado, que plantamos nele um crescimento maligno e observamos a gangrena se espalhar. Depois de subjugar o populacho – ou de violentá-lo até a morte, o que dá no mesmo –, você e seus amigos, os militares e as grandes empresas instalam-se confortavelmente no poder. Em seguida, você diz diante das câmaras que a democracia prevaleceu. Isso era comum na política externa dos Estados Unidos nos anos a que me referi.

A tragédia da Nicarágua é emblemática nesse sentido. Decidi apresentá-la aqui como exemplo categórico de como os Estados Unidos entendem seu papel no mundo, tanto naquela época quanto nos dias de hoje. Eu estive presente a uma reunião na embaixada americana em Londres em fins dos anos 1980. O Congresso dos EUA devia decidir se concedia ou não mais verbas para os Contras em sua campanha de oposição ao Estado da Nicarágua. Eu era membro de uma delegação que representava a Nicarágua, porém o membro mais importante da delegação era o padre John Metcalf. O chefe do corpo diplomático americano era Raymond Seitz (na época, o número dois da embaixada; mais tarde ele se tornaria embaixador). O padre Metcalf disse: "Senhor, sou responsável por uma paróquia no norte da Nicarágua. Meus paroquianos construíram uma escola, um centro de saúde e um centro cultural. Sempre vivemos em paz. Faz alguns meses, um grupo dos Contras atacou a paróquia. Eles destruíram tudo: a escola, o cetro de saúde, o centro cultural. Violentaram freiras e professoras, assassinaram médicos da maneira mais brutal possível. Comportaram-se como selvagens. Por favor, exija que o governo dos Estados Unidos retire seu apoio a essas actividades terroristas revoltantes." Raymond Seitz tinha uma reputação excelente de sujeito racional, responsável e muito sofisticado. Ele era bastante respeitado nos círculos diplomáticos. Ele ouviu, fez uma pausa e disse então com uma certa gravidade: "Padre", disse ele, "deixe-me dizer-lhe uma coisa. Na guerra, os inocentes sempre sofrem". Houve um silêncio glacial. Nós o fitamos. Ele não se abalou.

Inocentes, de fato, sempre sofrem. Por fim, alguém disse: "Neste caso, porém, os inocentes foram vítimas de uma atrocidade hedionda patrocinada pelo seu governo, uma das muitas. Se o Congresso der mais dinheiro aos Contras, outras atrocidades do mesmo tipo se seguirão, não é verdade? Portanto, devemos responsabilizar seu governo por apoiar a destruição e o assassinato de cidadãos de um Estado soberano?" Seitz continuava impassível. "Não creio que os fatos, conforme apresentados, justifiquem suas afirmações", disse ele. Quando saíamos da embaixada, um adido americano me disse que gostava das minhas peças. Não respondi. Vale lembrar que, na época, o presidente Reagan deu a seguinte declaração: "Os Contras são o equivalente moral dos nossos Pais Fundadores."

Os Estados Unidos apoiaram a ditadura brutal de Somoza na Nicarágua durante mais de 40 anos. O povo nicaraguense, liderado pelos sandinistas, derrubou o regime em 1979 numa revolução popular magnífica. Os sandinistas não eram perfeitos. Tinham sua cota de arrogância e sua filosofia política continha uma série de elementos contraditórios. Contudo, eram inteligentes, racionais e civilizados. Eles estavam determinados a estabelecer uma sociedade estável, decente e pluralista. A pena de morte foi abolida. Centenas de milhares de camponeses fustigados pela pobreza foram resgatados da morte. Mais de 100.000 famílias foram assentadas em terra própria. Foram construídos dois milhões de escolas. Uma campanha de alfabetização extraordinária reduziu o analfabetismo no país para menos de um sétimo. Escolas e serviços de saúde agora eram gratuitos. A mortalidade infantil foi reduzida em um terço. A pólio foi erradicada.

Os Estados Unidos denunciaram essas realizações atribuindo-as à subversão marxista-leninista. Na opinião do governo americano, criava-se assim um exemplo perigoso. Se deixassem que a Nicarágua estabelecesse padrões elementares de justiça social e económica, se permitissem que o país elevasse os padrões de saúde e de educação, conquistando a unidade social e o auto-respeito nacional, os países vizinhos começariam a fazer as mesmas perguntas e a agir do mesmo modo. Havia na época, evidentemente, uma forte resistência à situação de El Salvador. Referi-me anteriormente à "rede de mentiras" que nos envolve. O presidente Reagan costumava-se referir frequentemente à Nicarágua como "masmorra totalitária". Os media, de modo geral, e certamente o governo britânico, achavam que a observação era precisa e bem aplicada.

Não havia, porém, registro algum de esquadrões da morte no governo sandinista. Não havia registros de tortura. Não havia nenhum registro de brutalidade sistemática ou de brutalidade praticada por militares. Nenhum padre foi morto na Nicarágua. Na verdade, havia três sacerdotes no governo, dois jesuítas e um missionário de Maryknoll. As masmorras totalitárias ficavam nos países vizinhos, El Salvador e Guatemala.  

Os Estados Unidos depuseram o governo guatemalteco, eleito democraticamente, em 1954. Estima-se que mais de 200.000 pessoas tenham sido vítimas de sucessivas ditaduras militares. Seis dos mais renomeados jesuítas do mundo foram cruelmente assassinados na Universidade Centro-Americana em San Salvador, em 1989, por um batalhão do regimento de Alcatl treinado em Fort Benning, no estado americano da Geórgia. O arcebispo Romero, um homem de coragem extraordinária, foi assassinado quando rezava missa. Calcula-se que 75.000 pessoas tenham morrido. E por que elas foram mortas? Porque acreditavam na possibilidade de uma vida melhor, e queriam conquistá-la. Essa fé as qualificava imediatamente como comunistas. Elas morreram porque ousaram questionar o status quo , um platô onde não se divisava o fim da pobreza, das doenças, da degradação e da opressão herdadas desde o berço.

Os Estados Unidos derrubaram por fim o governo sandinista. Foram necessários alguns anos e uma resistência considerável, contudo, depois de uma perseguição econômica implacável e 30.000 mortos, o espírito do povo nicaraguense estava alquebrado. O desânimo e a pobreza triunfaram novamente. Os casinos voltaram ao país. As escolas e os serviços de saúde deixaram de ser gratuitos. Os grandes negócios voltaram com força total. A "democracia" tinha prevalecido.

Todavia, essa "política" não se restringia de modo algum à América Central. Ela foi aplicada no mundo todo. Não acabava nunca. E era como se jamais tivesse acontecido. Os Estados Unidos apoiaram e, em muitos casos, produziram todas as ditaduras militares de direita do mundo depois da 2.ª Guerra Mundial. Refiro-me à Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador e, é claro, o Chile.

O horror que os Estados Unidos impuseram ao Chile, em 1973, não se apagará e não se perdoará jamais. Centenas de milhares de mortes foram contabilizadas nesses países. Elas aconteceram de fato? Deve-se atribuí-las em todos os casos à política externa dos EUA? A resposta é sim, elas aconteceram, e são de responsabilidade da política externa dos EUA. Mas ninguém sabe disso. Nada jamais aconteceu. Mesmo quando acontecia não estava acontecendo. Não importava. Não tinha interesse.

Os crimes praticados pelos Estados Unidos são sistemáticos, constantes, cruéis, impiedosos, mas muito pouca gente toca no assunto. É por obra dos Estados Unidos que é assim. Eles manipulam o poder com extrema frieza no mundo todo fazendo-se passar por força universal do bem. Trata-se de uma sessão de hipnose brilhante, engenhosa mesmo, e muito bem-sucedida.

Digo a vocês que os Estados Unidos nos oferecem, sem dúvida alguma, o maior espectáculo da terra. Brutal, indiferente, escarnecedor e cruel, mas também muito inteligente. Como todo vendedor, está sempre só, e seu campeão de vendas é o amor próprio. É um vencedor.

Perceba como todos os presidentes americanos quando vão à televisão dizem "o povo americano", como na seguinte frase: "Digo ao povo americano que é hora de orar e de defender os direitos do povo americano. Peço ao povo americano que confie no seu presidente naquilo que ele em breve fará a favor do povo americano." É um estratagema brilhante. Emprega-se a linguagem para manter o pensamento em xeque. As palavras "o povo americano" funcionam como uma espécie de almofada extremamente confortável e tranquilizante. Não é necessário pensar. Bastar recostar na almofada. Ela talvez sufoque sua inteligência e suas faculdades críticas, mas é muito confortável.  

Isto, é claro, não se aplica aos 40 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza e aos 2 milhões de prisioneiros do imenso gulag de prisões espalhadas por todo o país. Os Estados Unidos não se importam mais com o conflito de baixa intensidade. Eles não vêem mais vantagem alguma em se manter reticentes ou mesmo distantes. Eles agora põem as cartas sobre a mesa sem nenhum tipo de escrúpulo. Não dão a menor bola para as Nações Unidas, para a lei internacional ou para a dissidência crítica, as quais considera impotentes e irrelevantes. Têm também seu próprio carneirinho, que os segue balindo pela coleira, o patético e inerte Reino Unido.

O que foi que aconteceu com nossa sensibilidade moral? Ou será que nunca tivemos tal coisa? O que significam essas palavras? Seriam uma referência a um termo raramente empregado hoje em dia – consciência? Uma consciência que diga respeito não apenas aos nossos próprios actos, mas também à responsabilidade compartilhada nos actos dos outros? Não existe mais nada disso?

Tome-se o caso da base de Guantánamo. Centenas de pessoas detidas sem nenhuma acusação durante mais de três anos, sem direito à representação legal ou a processo legal justo, tecnicamente detidas para sempre. Essa estrutura completamente ilegítima é mantida em desrespeito à Convenção de Genebra. Ela não é apenas tolerada, como também raras vezes é alvo de alguma reflexão por parte daquela entidade que se convencionou chamar de "comunidade internacional".

Essa afronta criminosa é perpetrada por um país que se declara "líder do mundo livre". Alguma vez já paramos para pensar na população da base de Guantánamo? O que os meios de comunicação dizem a esse respeito? Volta e meia o tema vem à tona – um texto bem curto na página seis. Aquelas pessoas foram despachadas para uma terra de ninguém, da qual talvez nunca retornem. Actualmente, muitos estão em greve de fome, e são alimentados à força, inclusive britânicos. Não faltam a essa alimentação forçada lances de barbarismo. Não se administram sedativos ou anestésicos. Enfia-se um tubo pelo nariz da pessoa até a garganta. Ela vomita sangue.

Isso é tortura. O que tem a dizer a esse respeito o secretário de Relações Exteriores britânico? Nada. O que tem a dizer a esse respeito o primeiro-ministro britânico? Nada. Por que não? Porque os Estados Unidos disseram: criticar nossa conduta na base de Guantánamo é atitude hostil. Ou vocês estão connosco ou estão contra nós. Blair fechou a boca.

A invasão do Iraque foi coisa de bandoleiros, um ato ostensivo de terrorismo de Estado, uma demonstração cabal de desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão foi uma acção militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras em cima de mentiras e grosseira manipulação dos media e, portanto, do público. Foi um ato que teve como propósito consolidar o controle militar e económico dos Estados Unidos no Oriente Médio travestindo-o – como último recurso – de libertação, já que todas as demais justificativas haviam falhado em justificar a si mesmas. Essa demonstração de força militar fabulosa foi responsável pela morte e mutilação de milhares de pessoas inocentes. Levamos ao povo iraquiano a tortura, bombas de fragmentação, urânio empobrecido, incontáveis assassinatos praticados aleatoriamente, infelicidade, degradação e morte e a isso chamamos de "levar a liberdade e a democracia ao Oriente Médio".

Quantas pessoas temos de matar para que sejamos considerados assassinos de multidões e criminosos de guerra? Cem mil? Isso seria mais do que suficiente, creio. Portanto, é justo que Bush e Blair sejam denunciados ao Tribunal Internacional de Justiça. Bush, porém, é mais esperto. Ele não ratificou o protocolo que criou o Tribunal Internacional de Justiça. Portanto, se qualquer soldado americano, ou um político qualquer, for levado ao banco dos réus, Bush já avisou que enviará os fuzileiros navais em seu socorro. Tony Blair, porém, ratificou o Tribunal e pode, portanto, ser processado. Podemos dar seu endereço ao Tribunal, se este demonstrar interesse pelo assunto. Basta que procurem no n.º 10 da rua Downing, em Londres.

A morte neste contexto é irrelevante. Tanto Bush quanto Blair colocam a morte no último lugar da sua lista de preocupações. Pelo menos 100 000 iraquianos foram mortos por bombas e mísseis americanos antes do início da revolta popular. Essas pessoas não têm importância alguma. A morte delas não conta. Elas não existem. Não há sequer registro de sua morte. "Não contamos corpos", disse o general americano Tommy Franks.

Logo no início da invasão os jornais britânicos publicaram na primeira página uma foto de Tony Blair dando um beijo no rosto de um menino iraquiano. "Uma criança agradecida", dizia a legenda. Poucos dias depois os jornais publicaram nas páginas centrais a história de outro garotinho de quatro anos sem braços. Sua família havia sido atingida por um míssil. Ele foi o único sobrevivente. "Quando vou ter meus braços de volta?", queria saber. A história não teve continuidade. º

Bem, Tony Blair não o estava segurando nos baços, tampouco segurava o corpo de outra criança mutilada, muito menos um cadáver ensanguentado. Sangue é coisa suja. Ele suja a camisa e a gravata de quem tem um discurso sincero a fazer pela televisão. Os 2.000 americanos mortos são motivo de constrangimento. Eles são transportados para suas sepulturas no escuro. Os funerais são discretos, realizados em local seguro. Os mutilados apodrecem em seus leitos, alguns permanecem nesse estado até a morte. Portanto, tanto os mortos quanto os mutilados apodrecem em tipos diferentes de sepulturas.

Em um poema intitulado “Explico Algumas Coisas” (Explico Algunas Cosas), Pablo Neruda diz a certa altura:

"E numa certa manhã tudo ardia,
numa manhã o fogo
saltava da terra
devorando os seres,
e ardia,
havia pólvora,
e sangue.
Bandidos com aviões e mouros,
bandidos com anéis nos dedos e duquesas,
bandidos com frades negros e suas bendições
vinham pelo céu matar crianças,
e o sangue delas escorria pelas ruas
sem ruído algum, corria como sangue de criança.

Chacais que seriam alvo de desprezo de outros chacais,
pedras que o cardo seco morderia
e cuspiria, víboras que as próprias víboras abominariam!

Face a face com vocês vi o sangue
da Espanha erguer-se
para afogá-los em uma onda
de orgulho e de facas!

Generais
traidores:
vejam minha casa morta,
vejam a Espanha alquebrada:
de todas as casas sai um metal
que arde,
em vez de flores,
mas de cada oco da Espanha
a Espanha emerge
e de cada criança morta sai um rifle
com olhos,
e de cada crime nascem balas
que um dia encontrarão o caminho
do coração de vocês.

E vocês me perguntarão:
por que os poemas dele
não falam de sonhos, e de folhas
e dos grandes vulcões de sua terra natal.

Venham e vejam o sangue nas ruas,
venham e vejam
o sangue nas ruas,
venham e vejam o sangue
nas ruas!"  

Quero deixar claro que, ao citar o poema de Neruda, não estou de forma alguma comparando a Espanha Republicana com o Iraque de Saddam Hussein. Cito Neruda porque em parte alguma da poesia contemporânea li uma descrição tão veemente e tão visceral sobre o bombardeamento de civis. Disse anteriormente que os Estados Unidos colocam hoje abertamente as cartas sobre a mesa. É a isso que me refiro. Sua política oficial explícita é definida agora como "dominância total do espectro". A expressão não é minha, é deles. "Dominância total do espectro" implica o controle da terra, do mar, ar e espaço, bem como de todos os recursos correspondentes.

Os Estados Unidos ocupam actualmente 702 instalações militares no mundo em 132 países, com a honrosa excepção da Suécia, é claro. Não sabemos exactamente como foi que eles foram parar lá, mas eles estão lá. Os Estados Unidos possuem 8 000 ogivas nucleares activas e operacionais. Duas mil dessas ogivas podem ser disparadas 15 minutos depois de dada a autorização. Eles estão desenvolvendo novos sistemas de força nuclear, conhecidas como arromba-bunkers.

Os britânicos, sempre tão cooperativos, pretendem substituir seu míssil nuclear, o Trident. Eu gostaria muito de saber em quem eles estão mirando. Em Osama bin Laden? Em você? Em mim? Em ninguém em especial? Na China? Em Paris? Quem sabe? O que sabemos de fato é que essa insanidade infantil – a posse de armas nucleares e a ameaça de usá-las – está no âmago da filosofia política americana actual. Não podemos nos esquecer de que os Estados Unidos estão em permanente pé de guerra, e não há sinal de que pretendam relaxar nem um pouco. Muitos milhares, se não milhões, de pessoas nos Estados Unidos estão enojadas, envergonhadas e iradas com as atitudes do governo do seu país, mas na actual situação elas não formam uma força política coerente – por enquanto.

Contudo, a ansiedade, a incerteza e o temor que vemos crescer nos Estados Unidos não devem diminuir. Sei que o presidente Bush tem muita gente talentosa para escrever os seus discursos, mas eu gostaria de me apresentar voluntariamente para o serviço.

Proponho a transmissão pela TV da seguinte alocução à nação: vejo-o com ar grave, o cabelo cuidadosamente penteado, a expressão séria, vencedora, sincera, sedutora, por vezes com um sorriso torto no rosto, atraente, embora excêntrico. "Deus é bom. Deus é grande. Deus é bom. Meu Deus é bom. O Deus de bin Laden é mau. Ele é um Deus malvado. O Deus de Saddam era mau, embora ele não tivesse Deus algum. Ele era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Não cortamos a cabeça das pessoas. Acreditamos na liberdade. Deus também. Não sou bárbaro. Sou um líder eleito democraticamente de uma democracia amante da liberdade. Somos uma sociedade compassiva. Electrocutamos e administramos injecções letais de forma compassiva. Somos uma grande nação. Não sou um ditador. Ele é. Não sou bárbaro. Ele é. Todos eles são. Eu tenho autoridade moral. Estão vendo este pulso? Esta é minha autoridade moral. Não se esqueçam disso.

"A vida de um escritor é uma actividade muito vulnerável e praticamente desnuda. Não temos de chorar por causa disso. O escritor faz sua escolha e se aferra a ela. Mas é verdade que estamos abertos a todos os ventos, alguns deles bem gelados. Estamos sós, numa posição vulnerável. Não encontramos abrigo que nos proteja – a menos que nos tornemos mentirosos – e nesse caso, é claro, a mentira se torna nossa protecção.

Poderíamos também nos tornar políticos. Falei da morte algumas vezes esta noite. Citarei agora um poema meu intitulado “Morte”:

Onde foi encontrado o corpo sem vida?
Quem o encontrou?
Ele estava morto quando foi encontrado?
Como foi encontrado?
Quem era ele?
Quem era o pai ou a filha ou o irmão
ou o tio ou a irmã ou a mãe ou o filho do morto,
e que abandonou o corpo?
O corpo estava morto quando foi abandonado?
O corpo foi abandonado?
Por quem foi ele abandonado?
O corpo morto estava nu
ou vestido para uma viagem?
O que o levou a concluir
que o corpo morto estava morto?
Você disse que o corpo morto estava morto?
Você conhecia bem o corpo morto?
Como você soube que o corpo morto estava morto?
Você o lavou?
Você fechou seus olhos?
Você enterrou o corpo?
Você o abandonou?
Você enterrou o corpo?
Você o beijou?

Quando olhamos no espelho, achamos que a imagem que nos confronta é precisa. Se, porém, nos movermos um milímetro que seja, veremos que a imagem muda. Estamos, na verdade, olhando para um conjunto infinito de reflexos. Às vezes, porém, o escritor tem de quebrar o espelho – porque é do outro lado que a verdade nos observa.

Creio que apesar das enormes desvantagens com que nos deparamos, a determinação intelectual firme e inabalável, como cidadãos, que nos permite definir a verdade real de nossas vidas e de nossas sociedades é uma tarefa crucial que cabe a todos nós. É, na realidade, imprescindível que assim seja. Se nossa visão política prescinde de tal determinação, não nos resta esperança alguma de restaurar aquilo que, por pouco, não perdemos – a dignidade do homem.

(Tradução Antivan Mendes)

Bibliografia:

Prosa:

Kullus (1949)

The Dwarfs (1952-56)

Latest Reports from the Stock Exchange (1953)

The Black and White (1954-55)

The Examination (1955)

Tea Party (1963)

The Coast (1975)

Problem (1976)

Lola (1977)

Short Story (1995)

Girls (1995)

Sorry About This (1999)

God's District (1997)

Tess (2000)

Voices in the Tunnel (2001)

Poesia:

War (2003)

Teatro:

The room (1957)

The birthday party (1957)

The dumb waiter (1957)

The caretaker (1960)

A slight ache (1961)

The homecoming (1965)

Md Times (1971)

No Maris land (1975)

*

Harold Pinter (Londres, 10 de outubro de 1930 — Londres, 24 de dezembro de 2008) foi um ator, diretor, poeta, roteirista, e certamente um dos grandes dramaturgos do século XX, além de destacado e incômodo activista político britânico.

Foi um dos grandes representantes do teatro do absurdo junto com Samuel Beckett e Eugène Ionesco. Recebeu o Nobel de Literatura de 2005 e o prémio Companion of Honour da Rainha da Inglaterra pelos serviços prestados à literatura (in Wikipedia).

Retirado de “Os Bárbaros”

Vasco da Gama: Herói ou Carniceiro?

09.10.22 | Manuel

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O massacre dos peregrinos e outras atrocidades

por Pedro Varela

A vinte e nove de setembro de 1502, naus portuguesas avistaram na costa indiana um barco com centenas de pessoas que regressavam de Meca para Calecute. Vasco da Gama procurava há dias atacar peregrinos muçulmanos que ali passavam e tinha um plano sanguinário para os que se encontravam a bordo desta embarcação: «andando algumas das nossas naus em procura das que vinham de Meca, a S. Gabriel se encontrou com uma de Calecute que dali voltava com duzentos e quarenta homens, sem falar nas mulheres e crianças, que eram bastantes, e que todos voltavam daquela peregrinação: deu-lhes logo caça, e tendo disparado alguns tiros de bombarda, para logo se renderem».[1] 

Os passageiros estavam indefesos e logo pediram misericórdia, oferecendo todas as riquezas que tinham a bordo e ainda mais, para sobreviverem: «O Almirante  via o que se passava por uma escotilha, e algumas mulheres tomavam nos braços seus filhinhos e os levantavam ao ar persuadindo-o assim a que tivesse piedade daqueles inocentes; os homens faziam igualmente sinal com a cabeça que se queriam resgatar a todo o custo; e é certo que com a riqueza que havia naquela nau, se podiam tirar do cativeiro quantos cristãos estão presos no Reino de Fez, e ainda sobraria muito para El Rei N.S.».[2]

Vasco da Gama não queria apenas os bens dos peregrinos, tentou pegar fogo ao barco e mandou disparar mais tiros de canhão. As mulheres e homens resistiram bravamente com as poucas armas e pedras que tinham. Mas, depois de dias de perseguição e ataques, a embarcação foi finalmente capturada e saqueada. A três de outubro de 1502 - e, aqui, variam os relatos - mulheres, crianças e homens ou foram trancados no porão; ou amarrados ao navio; ou foram impedidos de sair a mando de Vasco da Gama, que ordenou que queimassem vivas todas aquelas pessoas e, de seguida, mandou afundar o barco: «fez o Almirante pôr fogo àquela nau, que ardeu com quantas pessoas se achavam dentro, com muita crueldade e sem comiseração alguma».[3] 

O escrivão Thomé Lopes que registou as palavras que tenho citado e foi testemunha ocular do sucedido, deixou-nos o mais longo e pormenorizado relato destes acontecimentos. Marcado profundamente pelo massacre, escreveu o seguinte: «lembrarei toda a minha vida».[4]

Já o cronista Gaspar Correa, que não fez parte desta viagem, narra um final diferente, mas também violento. Depois de Vasco da Gama recusar a proposta desesperada dos peregrinos de encherem os barcos portugueses com especiarias em Calecute, disse «vivos haveis de ser queimados», “mandou dar fogo à nau” e ficando «os Mouros a nado, os batéis andaram às lançadas». Refere ainda que os outros capitães portugueses tentaram persuadir Vasco da Gama a não massacrar as pessoas, aconselhando-o a aceitar as ofertas que os peregrinos lhes faziam.

Fernão Lopes de Castanheda, outro cronista do século XVI que viveu na Índia, diz que os peregrinos seriam trezentos «fora mulheres e meninos» e «o fogo pegou de maneira que ardeu metade da nau e parte dos mouros se afogaram nela, e parte foram mortos no mar onde se deitarão, e assim foram todos mortos».[5]. Nesta narrativa, provavelmente para aligeirar a brutalidade dos portugueses, Castanheda refere que as crianças foram retiradas do barco para serem convertidas ao cristianismo.

Terror em Calecute

Possivelmente, o massacre dos peregrinos de 1502 foi o evento mais sinistro do rasto de carnificina deixado por Vasco da Gama nas suas viagens à Índia. No entanto, este foi apenas um dos vários episódios de brutalidade perpetrada por este navegador português. Pouco dias depois deste massacre, Vasco da Gama bombardeou severamente Calecute, um dos portos mais importantes da região: «e todo o dia até à noite bombardeou a cidade, com que lhe fez grande destruição»[6]. O objetivo desta sua segunda viagem à Índia era dominar o comércio desses mares, expulsar a comunidade muçulmana da cidade e vingar os portugueses mortos em 1500 durante um conflito com os comerciantes locais.[7] 

Nesses dias de fim de outubro, de frente para Calecute, Vasco da Gama enforcou nos mastros das suas naus marinheiros “mouros” e “cafres” [negros] raptados em embarcações mercantis locais: «ordenou também que os guindássemos bem acima, para serem mais bem vistos […] Estava na praia um sem-número de gente, e saía muita da cidade para ver os enforcados, estando como insensatos a olhar para eles»[8]. E, depois, cortou-lhes as mãos, os pés e as cabeças, lançando-as à água para aterrorizar a população local: «À boca da noite mandou o Almirante dizer às naus que tirassem os enforcados, e lhes cortassem as cabeças, as mãos, e os pés, e que deitassem ao mar os toros dos corpos, remetendo todos os outros membros para a sua nau, os quais fez embarcar em uma almadia [canoa], das que tinham sido aprisionadas; e mandou escrever em língua indiana, a um chamado Frangola, um escrito por esta maneira: «Eu vim a este porto com boa mercadoria, para vender, comprar, e pagar os vossos géneros; estes são os géneros desta terra: eu vo-los envio de presente […]»[9]

Este episódio, assim como o massacre dos peregrinos, é retratado de diferentes formas, mas todas as crónicas retratam a sua brutalidade. Por exemplo, Gaspar Correa escreve que Vasco da Gama mandou desmembrar um grupo de tripulantes de uma embarcação de transporte de arroz que foi saqueada e, depois: «a todos os negros assim justiçados mandou atar os pés, porque não tinham mãos para se desatarem, e para que não se desatassem com os dentes, com paus mandou dar neles, que nas bocas lhos meteram para dentro, e foram assim carregados uns sobre outros embrulhados no sangue que deles corria»». De seguida, deu-lhes fogo numa barca que enviou para terra. Diz o mesmo cronista, que Vasco da Gama ordenou que cortassem as orelhas, nariz e mãos a um religioso local, colocando-lhe uma mensagem ao pescoço dizendo: «que mandassem fazer caril para comer».[10]

Meses antes, depois de deixar um rasto de violência na costa africana, recorda também Gaspar Correa que quando o navegador chegou a Quíloa, hoje na Tanzânia, para extorquir uma fortuna ao monarca local: «Houve na gente grande espanto, vendo entrar no porto tão grande armada, e conhecendo que era nossa, de que já tinham tanto sabido das cousas de Moçambique e Melinde, que toda a gente tomou grande medo».[11]. É preciso lembrar que uma das mais célebres obras da ourivesaria portuguesa, a Custódia de Belém, atribuída ao ourives e dramaturgo Gil Vicente, foi feita com o ouro extorquido em Quíloa nesta viagem[12].

Também um flamengo que era tripulante da armada portuguesa, relata que em Calecute: «tomámos ali dois navios grandes e matámos toda a gente e queimámos os navios diante da cidade». E, no regresso a Portugal: «encontrámos uma ilha onde matámos cerca de 300 homens e aprisionámos muitos».[13]

Herói ou Carniceiro?

O historiador indiano, Mahmood Kooria, refere como massacre dos peregrinos de 1502 é um tema recorrente nas memórias sul asiáticas, sendo narrado em cantigas, baladas, livros e no cinema[14]. As imagens que coloquei neste texto pertencem ao filme indiano em malaiala, Urumi (2011)[15], que retrata a história de um herói que pretende vingar a morte de seu pai às mãos dos portugueses. No início do filme, surge ficcionado o massacre dos peregrinos mostrando um Vasco da Gama implacável, louco e sanguinário. Numa das cenas, perante uma criança, o navegador corta a língua e as orelhas de um negociador de paz local, cozendo-lhe depois as orelhas de um cão à cabeça. No fim, o narrador lembra ironicamente que: «Agora, o mundo celebra-o como um grande homem!».

Numa outra perspetiva, em Portugal, Vasco da Gama é lembrado como um dos maiores “heróis” da história nacional. O navegador dá nome a pontes, ruas, avenidas, praças, largos, escolas, clubes, centros comerciais e restaurantes, e tem estátuas erigidas por todo país. É vangloriado na imprensa e televisão, em museus, nas salas de aula, em encontros de empresários e nos discursos oficiais de Estado. Fala-se de um suposto descobridor, ignorando a devastação que deixou nas suas viagens à Índia e suas ações terroristas. Principalmente, esquece-se as centenas de pessoas que tiveram a infelicidade de atravessar o seu caminho, sendo assassinadas de forma atroz, por fanatismo religioso, sede de poder, etnocentrismo, crueldade e, principalmente, por ganância. Na verdade, já é tempo de enfrentar a verdadeira história de Vasco da Gama, “O Carniceiro”.

Notas:

[1] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulo VIII.

[2] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulo VIII. 

[3] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulo IX.

[4] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulos IX.

[5] Fernão Lopes de Castanheda, História do descobrimento e conquista da India pelos portugueses, livro I, Tomo II, capítulo XLV.

[6] Gaspar Correa, Lendas da Índia, Tomo I, “Dom Vasco da Gama, com que partiu para a Índia, ano de 1502”, Capítulo VIII.

[7] Em 1500 Pedro Alvares Cabral já tinha bombardeado Calecute, assassinado tripulações e saqueado frotas comerciais como retaliação a estes eventos.

[8] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulos XIV.

[9] Thomé Lopes, Navegação às Índias Orientais, capítulos XIV.

[10] Gaspar Correa, Lendas da Índia, Tomo I, “Dom Vasco da Gama, com que partiu para a Índia, ano de 1502”, Capítulo VIII.

[11] Gaspar Correa, Lendas da Índia, Tomo I, “Dom Vasco da Gama, com que partiu para a Índia, ano de 1502”, Capítulo IV.

[12] http://www.museudearteantiga.pt/colecoes/ourivesaria/custodia-de-belem

[13] Flamengo anónimo in Teixeira de Aragão, Vasco da Gama e a Vidigueira: um estudo histórico.

[14] Mahmood Kooria, “Killed the Pilgrims and Persecuted Them”: Portuguese Estado da India’s Encounters with the Hajj in the Sixteenth Century.

[15] https://youtu.be/M53RSi-4_Lc

https://www.buala.org/pt/a-ler/vasco-da-gama-o-massacre-dos-peregrinos-e-outras-atrocidades?fbclid=IwAR1ujBvxb-QqpA7OQpO6RZHxe0-hLLz2Yf4yXHFs2rRALhN-b7yAKwjG9_o

Uma justiça que se descredibiliza e os escândalos da democracia portuguesa

03.10.22 | Manuel

 

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Mal iniciara o mês de Setembro os principais media mainstream faziam título: “Com o fim das férias judiciais, os juízes voltam para resolver os casos mais mediáticos da Justiça portuguesa”. E são muitos, desde o caso Pedrogão Grande, Operação Marquês, Football Leaks à Operação Lex, Caso EDP e processo BES/GES, e os tribunais retomaram os julgamentos. De todos, só de um se sabe a decisão final: todos os arguidos do caso do maior incêndio que ocorreu em Portugal com mais de uma centena de mortes, Pedrogão Grande, foram absolvidos. Os advogados de defesa apontaram o dedo para os eventuais principais responsáveis, alguns dos quais governantes ou ex-governantes, que deveriam, esses sim, ter estado no banco dos réus.

Os restantes vão esperando, destacando-se o caso BES/GES, pouco falado pela imprensa corporativa pela razão, facilmente compreensível, de se tratar da maior falência financeira, fraudulenta ou não, ocorrida em Portugal, talvez três vezes superior à do BPN no que concerne ao montante dos prejuízos directos e indirectos. O principal protagonista e arguido do caso ainda faz sentir a influência de ter sido, e ao que parece o domínio ainda não acabou, o DDT (Dono Disto Tudo) deste recanto à beira mar plantado. Ainda esperamos que o jornal Expresso, propriedade do sócio nº1 do PSD, um dos principais partidos do regime, dê a conhecer os nomes de jornalistas ou outros, dos mais que famosos Panama Papers, que se deixaram subornar (“corromper” é feio) por Ricardo Salgado para lhe tratarem da imagem pública.  Ao que parece o “contrato” ainda se mantem.

Aqui há uns anos foi editado um livro, deveras interessante, sobre o tema da corrupção e da benevolência com que a Justiça tratava, e trata, esses casos muito conhecidos entre nós; livro escrito pela jornalista espanhola Virginia López, correspondente do jornal El Mundo e da radio Cadena Ser, a viver em Portugal há dez anos, no momento em que escreveu o livro, 2013. Dá-nos uma visão com o devido distanciamento de pessoa estrangeira, uma visão fria e objectiva e que nos elucida sobre os grandes escândalos da democracia portuguesa que, na altura, já ia na idade madura de quase 40 anos. Estando já a caminho de meio século, a situação, neste campo, não terá melhorado, bem pelo contrário.

Virginia López, no seu livro “Impunidade” (Esfera dos Livros, 2013) elenca os principais escândalos sobre corrupção e da vista grossa feita pela Justiça, e são eles em 2013 (outros já vieram a lume):

  1. Caso Camarate, acidente ou atentado?
  2. Fax de Macau, o escândalo das «doações políticas» ou subornos sobre o qual o ex-presidente Mário Soares nunca quis falar.
  3. Caso dos Hemofílicos, o escândalo da contaminação com o vírus da sida a doentes hemofílicos que atingiu a ex-ministra da Saúde Leonor Beleza.
  4. Saco azul, Fátima felgueiras: protagonista do escândalo municipal mais mediático.
  5. Caso Moderna, o grande escândalo financeiro na universidade privada ao serviço da maçonaria.
  6. Casa Pia, o maior escândalo sexual de Portugal: pedofilia, famosos e mentiras no sei da instituição.
  7. Caso Freeport,o escândalo das alegadas «luvas» a José Sócrates para construir um centro comercial numa zona protegida.
  8. Apito Dourado, o escândalo das escutas da «fruta», dos envelopes e da compra de árbitros.
  9. Caso Portucale, o escândalo do abate de sobreiros para um empreendimento imobiliário de duvidoso «interesse nacional».
  10. Caso Isaltino de Morais, o escândalo das chorudas contas na Suíça do sobrinho taxista do presidente da Câmara de Oeiras.
  11. Casos Sócrates-Independente/Relvas-Lusófona, os escândalos das licenciaturas express: equivalências relâmpago e diploma a um domingo.

Outros escândalos que, na altura, ainda estavam a aguardar resolução judicial e que agora sabemos qual foi:

  1. Caso dos Submarinos, o escândalo dos subornos, as contrapartidas ruinosas e os milhares de fotocópias de Paulo Portas.
  2. Operação Furacão, megaescândalo de fraude fiscal e esquema de evasão de impostos para offshores montado por grandes bancos e empresários.
  3. Caso BPN, o grande escândalo do banco que deixou um buraco financeiro de sete mil milhões de euros.
  4. Face Oculta, o escândalo do «polvo» e a sua rede de influências em várias empresas estatais.

A autora faz algumas considerações que passamos a transcrever, nomeadamente quanto: caso de Camarate, acidente ou atentado? O caso prescreveu sem resposta; casos Freeport, Moderna ou Submarinos, jamais Sócrates ou Portas foram ouvidos pela Justiça, e sete anos depois os dois únicos acusados nos julgamento Freeport foram absolvidos de todas as acusações; os três processos sobre o presidente do FC Porto foram arquivados; dos 150 doentes hemofílicos que receberam tratamento com plasma contaminado com o vírus da sida só 30 sobreviveram, mais tarde, em 2003, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu arquivar o processo… porque o caso havia prescrito, sem nunca ter ido a julgamento; apesar de condenado a perda de mandato, Valentim Loureiro não abandonou o cargo de autarca de Gondomar, também Fátima Felgueiras, implicada no caso Saco Azul, foi condenada na primeira instância a perda de mandato, mas não foi a ordem judicial que a levou a sair do cargo, mas sim a vontade do eleitorado; Isaltino Morais só entrou na prisão em 2013, 10 anos depois do escândalo das contas na Suíça ter rebentado, continuou no cargo e, mais tarde, como todos sabemos recandidatou-se como “independente” e não pelo seu antigo partido PSD, ganhando de novo as eleições, o eleitorado perdoou-lhe os crimes pela obra feita no concelho de Oeiras.

Fazendo as contas poderemos constatar que os escândalos atravessam os dois principais partidos do arco da governação, não deixando de fora o antigo anexo do PSD, CDS/PP de Paulo Portas. Qual deles o mais corrupto e mais tem denegrido e desacreditado o regime democrático saído do 25 de Abril? Os cidadãos que decidam.

Quanto aos casos ainda em aberto: Pedrogão Grande já foi encerrado recentemente, os outros esperam. Caso BES/GES, Ricardo Salgado, depois de ter sido condenado a seis anos de prisão efectiva, ainda não foi preso, espera recurso e teve tempo para sair do país para passar férias em paraíso turístico na Sardenha e ultimamente está a escrever o livro de memórias, apesar de ter entregue em Tribunal um atestado médico a provar que sofre de lapsos de memória devido a doença de Alzheimer, doença que o impedirá de se lembrar de muitos factos relacionados com a falência do seu império financeiro. Prevê-se que nunca irá para a prisão à semelhança do que aconteceu com Oliveira e Costa, homem de mão de Cavaco Silva e principal arguido do caso BPN, que não cumpriu a pena de 14 anos de prisão efectiva a que fora condenado pela simples razão de, entretanto, ter falecido. Pôde gozar calmamente o resto da velhice após divórcio simulado para não ter nada em seu nome, sendo detido em 2008, foi condenado em 2017 e morreu em casa em 2020, com 84 anos – o melhor exemplo da “celeridade” da Justiça em Portugal quando se trata de julgar e condenar algum rico ou poderoso.

A Justiça constitui o ramo da administração fascista que ficou praticamente incólume após a “revolução dos cravos” (por alguma razão terá sido). A passagem à reforma dos juízes do Antigo Tribunal Plenário, onde a Pide dizia como e a que penas os opositores do regime devim ser condenados, dá bem a ideia da natureza de um órgão de soberania que não se encontra sob o escrutínio democrático do voto dos cidadãos. Por esta e outras razões que se entende que a Justiça tem sido quem melhor e mais tem contribuído para a sua descredibilização.  À semelhança do regime que foi derrubado (pelos vistos, mal) pela acção dos militares (estes, por sua vez, um dos pilares da sustentação do Estado de classe), este regime democrático e parlamentar encobre, mas de forma mais sofisticada, a subordinação do poder judicial ao poder político, seja ele parlamentar ou executivo. A independência dos poderes do Estado, que deveria caraterizar o estado democrático e de direito, também tão apregoado e incensado, não passa de uma vulgar falácia.  

A Justiça em Portugal é uma justiça de classe, usa uma rede que deixa passar o peixe graúdo, mas retém o peixe miúdo, ou seja, usa duas medidas para julgar e condenar os criminosos: uma para os ricos e poderosos, outra para os pobres e os trabalhadores ou todos aqueles que são “diferentes”, seja negro, imigrante ou cigano. Com o agravamento da crise económica, os casos de corrupção mantêm-se e tendem a aumentar, mas também devido à inércia do poder político para lhes pôr cobro, ou do poder judicial que é vesgo segundo a conveniência do regime, fácil se torna o aparecimento de um qualquer “Salvador da Pátria”. Figura providencial que não será menos corrupto do que aqueles que diz combater, e os exemplos estão a saltar em Portugal e em outros países. Aproveitando o descontentamento de grande parte dos cidadãos não será difícil prometer um mundo melhor na base de promessas vagas que sabem que não irão cumprir, já que os “democratas” lhes abriram o caminho com as suas mentiras e cobardia política. É a democracia e a sua justiça de classe que se desacreditam, e aos olhos de todos. Entretanto, a corrupção e as injustiças permanecem porque fazem parte da alma da sociedade burguesa e capitalista.