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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Jacinta Passos - Poeta e Revolucionária

30.11.22 | Manuel

jacintafoto.jpg

Canção do amor livre

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.

Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.

Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.
Teu corpo.

Relâmpago depois repouso
sem memória, noturno.

(“Poemas políticos. Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1951)

Jacinta P.jpg

Diálogo na sombra

– Que dissestes, meu bem?

Esse gosto.
Donde será que ele vem?

Corpo mortal.
Águas marinhas.

Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no fundo e no fim.

– De quem falas amor, do mar ou de mim?

(“Canção da partida”. Edições Gaveta, 1945)

*

Canção da liberdade

Eu só tenho a vida minha.
Eu sou pobre pobrezinha,
tão pobre como nasci,
não tenho nada do mundo,
tudo que tive, perdi.
Que vontade de cantar:
a vida vale por si.

   Nada eu tenho neste mundo,
   sozinha!
   Eu só tenho a vida minha.

Eu sou planta sem raiz
que o vento arrancou do chão,
já não quero o que já quis,
livre, livre o coração,
vou partir para outras terras,
nada mais eu quero ter,
só o gosto de viver.  

   Nada eu tenho neste mundo,
   sozinha!
   Eu só tenho a vida minha.

Sem amor e sem saúde,
sem casa, nenhum limite,
sem tradição, sem dinheiro,
sou livre como a andorinha,
tem por pátria o mundo inteiro,
pelos céus cantando voa,
cantando que a vida é boa.
Nada eu tenho neste mundo,
sozinha!
Eu só tenho a vida minha.
("Canção da partida". Edições Gaveta, 1945)

*

Jacinta Velloso Passos escritora nascida em Cruz das Almas, Bahia, em 1914, autora de quatro livros de poemas — Momentos de poesia (1941), Canção da partida (1945), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1958) —, elogiados por críticos do porte de Antônio Candido, Mário de Andrade, Aníbal Machado e Roger Bastide, entre outros. Seu livro mais importante, Canção da partida, foi ilustrado pelo artista Lasar Segall.

Jacinta tornou-se uma das mais ativas jornalistas da Bahia na década de 40, escrevendo sobre os assuntos que mais a interessavam, pelos quais lutava: política, transformações sociais e posição da mulher na sociedade. Colaborou também com jornais e revistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Militante do Partido Comunista Brasileiro de 1945 até a morte, em 1973, dedicou grande parte da vida ao trabalho penoso, clandestino e cotidiano de luta por um Brasil menos injusto.

(in http://www.elfikurten.com.br/2015/07/jacinta-passos.html)

As cruzadas vistas pelos árabes: afinal, quem eram os bárbaros?

27.11.22 | Manuel

Cruzada.jpg

«Só para relembrar: as chamadas Cruzadas, num total de oito, foram convocadas pelos papas a partir do século XI para “servir a Deus” contra os “infiéis muçulmanos”. Realizadas entre 1095 e 1291, sob o símbolo de uma cruz branca, tiveram também um objectivo bem menos “santo”: o lucro, a pilhagem das cidades, o saque, a tomada de pontos comerciais estratégicos (como o porto de Zara, no Adriático), a imposição dos grandes negócios de venezianos e genoveses. Tudo isso canalizou riquezas para os cofres papais e das classes dominantes da Europa. A derrota dos cruzados ocorreu a partir de 1244, quando perderam definitivamente Jerusalém e em 1291 quando os árabes retomaram Acre, pondo fim a dois séculos de selvajaria económico e religiosa ocidental em terra alheia.» (Jornal "Nova Democracia”) «Os canibais de Maara.

“Eu não sei se o domicílio onde nasci se trata de um pasto de bestas selvagens ou de minha casa!”

Esse grito de aflição de um poeta de Maara não é um simples recurso retórico. Temos infelizmente que tomar suas palavras ao pé da letra e perguntar-nos com ele: o que aconteceu de tão monstruoso na cidade síria de Maara no final do ano 1098?

Até a chegada dos franj (os árabes chamavam os cruzados de franj, provavelmente um termo vindo de franc — francos, franceses), os habitantes viviam pacificamente ao abrigo de sua muralha. Os vinhedos, os campos de oliveiras e pés de figos forneciam-lhes uma modesta prosperidade. O orgulho de Maara era ser berço de uma das maiores figuras da literatura árabe, Abul-Ala al Maari, morto em 1057. Esse poeta cego, livre-pensador, ousara atacar os costumes da época. Era preciso audácia para escrever:

“Os habitantes da terra dividem-se em dois grupos,
Os que têm um cérebro, mas não possuem religião,
E aqueles que têm religião, mas não têm cérebro.”

Quarenta anos após sua morte, um fanatismo vindo de longe viria, aparentemente, dar razão ao poeta de Maara. Nos primeiros meses de 1098, os habitantes da cidade acompanharam com preocupação a batalha de Antioquia, a três dias dali. Após a vitória dos franj, estes vieram saquear alguns vilarejos vizinhos e Maara fora poupada. Mas algumas famílias preferiram fugir para lugares mais seguros.

Seus temores foram justificados quando, no final de Novembro, milhares de guerreiros francos cercaram a cidade. A maioria dos habitantes não teve escapatória. Maara não possuía exército, tinha apenas uma milícia urbana à qual se juntaram centenas de jovens sem experiência militar. Por duas semanas resistiram corajosamente aos temíveis cavaleiros, chegando a jogar sobre eles colmeias cheias de abelhas.

Até que chega a noite de 11 de Dezembro. Os franj ainda não ousaram penetrar na cidade. Os notáveis de Maara entram em contacto com Bohémond e o chefe franco promete garantias se cessarem o combate. Agarram-se à palavra dada. Na alvorada, chegam os franj . É uma carnificina. Durante três dias matam mais de 100 mil pessoas pela espada e fazem muitos prisioneiros.

Os números do cronista Ibn al-Athir são fantasiosos, pois a população de Maara era provavelmente inferior a 10 mil habitantes. Mas o horror está menos presente no número de vítimas do que no destino inimaginável que lhes foi reservado. “Em Maara os nossos faziam ferver os pagãos adultos em caldeiras, fincavam as crianças em espetos e as devoravam grelhadas”, confessou o cronista franco Raoul de Caen. Até o fim de suas vidas os árabes das redondezas se lembrarão do que viram e ouviram. A lembrança dessas atrocidades fixará nos espíritos uma imagem dos franj difícil de ser apagada.

Jamais os turcos esquecerão o canibalismo dos ocidentais. Em toda a sua literatura épica, os franj serão invariavelmente descritos como antropófagos.

Será injusta essa visão? Terão os invasores devorado os habitantes de Maara com o único objectivo de sobreviver? Seus chefes dirão ao papa: “Uma fome terrível assolou o exército de Maara e o colocou na cruel necessidade de se alimentar dos cadáveres dos sarracenos.” Mas essa explicação parece um pouco fácil. Pois os habitantes da região assistem, naquele inverno, a comportamentos que a fome não pode explicar. Vêem bandos de franj fanatizados, os tafurs, clamando alto que querem devorar a carne dos sarracenos e que se reúnem à noite, ao redor do fogo, para devorar suas presas.

Canibais por necessidade? Os testemunhos são acusadores. Uma frase do cronista Albert de Aix, que esteve na batalha de Maara, permanece inigualável em horror: “Aos nossos não repugnava comer não só a carne dos turcos e dos sarracenos mortos como também a carne dos cães!”

O suplício da cidade só terá fim em Janeiro de 1099 quando os franj armados de tochas põem fogo em cada casa. Os episódios de Maara vão contribuir para cavar entre os árabes e os franj um fosso que vários séculos não serão suficientes para preencher.

Porém, quando os francos retomam sua caminhada ao sul, os emires sírios se apressam em enviar presentes para assegurar-lhes sua boa vontade. Ninguém ignora mais o itinerário dos franj. Não bradam eles que seu objectivo final é Jerusalém, onde querem tomar posse do túmulo de Jesus? Todos que estão nessa rota tentam precaver-se contra o flagelo que representam.

Muitos se escondem nos bosques, outros na fortaleza mais próxima. Foi esta última solução a escolhida pelos camponeses da planície de Bukaya, quando em Janeiro de 1099 são avisados da aproximação dos francos. Reunindo gado, óleo e trigo sobem para Hosnel-Akrad. Mesmo estando há muito abandonada, a fortaleza tem difícil acesso e muralhas sólidas.

Os franj vêm sitiá-los. A 28 de Janeiro seus guerreiros começam a escalar os muros da fortaleza. Sentindo-se perdidos, os camponeses imaginam um estratagema. Abrem subitamente os portões e deixam escapar uma parte de seu rebanho. Esquecendo o combate, os franj se lançam sobre os animais. A desordem é tanta que os sitiados, encorajados, efectuam uma saída e atingem a tenda de Saint-Gilles, onde o chefe franco, abandonado por seus guardas, escapa à captura por um fio.

Os camponeses ficam entusiasmados, mas sabem que os sitiantes voltarão. Dia seguinte, quando Saint-Gilles se lança ao assalto, os camponeses não aparecem. Os atacantes perguntam-se que novo ardil terão inventado. Foi o mais sábio de todos: aproveitaram-se da noite para sair sem ruído e desaparecer ao longe.

A cidadela torna-se por alguns dias o quartel-general dos franj. E nela assiste-se a um espectáculo desconcertante. Das cidades vizinhas chegam delegações com mulas carregadas de ouro, tecidos, provisões. A fragmentação política da Síria é enorme.

De todas as delegações que desfilam nas imensas salas de Hosnel-Akrad, a mais generosa é a de Trípoli. Na época em que os franj surgiram, Trípoli vivia um tempo de paz e prosperidade. A imensa “casa da cultura”, que encerra uma biblioteca de 100 mil volumes, uma das mais importantes daquele tempo, é o orgulho dos cidadãos. A cidade é cercada por campos de oliveiras, alfarrobeiras, cana-de-açúcar e frutas de toda espécie. Seu porto é movimentado.

É essa opulência que vai valer à cidade seus primeiros dissabores com os franj . Na mensagem que manda a Saint-Gilles, o cádi de Trípoli convida-o para negociar uma aliança. Um erro imperdoável. Ao chegarem, os emissários francos ficam tão maravilhados que só pensam em tudo que poderiam pilhar ali. A 14 de Fevereiro, o cádi, aterrorizado, fica sabendo que os franj sitiaram Arqa, a segunda cidade do principado de Trípoli.

Na capital, acumulam-se reservas na espera de um longo sítio. Fevereiro passa, depois Março e Abril. As notícias são reconfortantes: os franj ainda não tomaram Arqa, cujos defensores estão tão espantados quanto os atacantes. O que faz a força de Arqa é que seus habitantes estão convencidos, desde o primeiro instante, que se uma única brecha for aberta eles serão massacrados. Dia e noite velam, impedindo a menor infiltração. Os invasores acabam se cansando. A 13 de Maio de 1099 se afastam, frustrados. A tenacidade dos moradores foi recompensada. Arqa está exultante.

Os francos retomam sua marcha ao sul. Passam defronte de Trípoli com uma lentidão inquietante... mas não param. Seguem em frente e alcançam Nahr el-Kalb, o “Rio do Cachorro”. Ao transpor o rio, colocam-se em estado de guerra com o califado do Egipto.

Anos antes, porém, o homem forte do Egipto, o corpulento Al-Afdal Chahinchah — um escravo de 35 anos que dirigia sozinho a nação egípcia de 7 milhões de habitantes — ficara satisfeito com a chegada dos cavaleiros francos na cristã Constantinopla.

“Alguns dizem que quando os senhores do Egipto viram a expansão do império seldjúcida, foram tomados de medo e pediram aos franj que marchassem sobre a Síria e formassem uma barreira entre eles e os muçulmanos. Só Deus sabe a verdade.”

Essa explicação de Ibn al-Athir sobre a origem da invasão franca diz muito da divisão que reinava no seio do mundo islâmico entre os sunitas, vinculados ao califado abássida de Bagdad e os xiitas, ligados ao califado fatímida do Cairo.

Na chegada dos ocidentais, em 1097, Al-Afdal tentara até um acordo de partilha: para aqueles, a Síria do Norte; para ele, a Síria do Sul, isto é, a Palestina. Os francos mostraram-se amigáveis com os diplomatas egípcios, chegando até a oferecer-lhe o espectáculo das cabeças cortadas de 300 turcos. Mas, curiosamente, recusaram-se a concluir qualquer acordo.

Em Julho de 1098, ao chegar a notícia da queda de Antioquia, o homem forte do Cairo decide agir imediatamente, sitiando Jerusalém. Por vários meses, os acontecimentos parecem dar razão a Al-Afdal, pois tudo se passa como se os franj, ao se deparar com o facto consumado, tivessem renunciado a Jerusalém. Mas quando em Janeiro de 1099 os francos retomam sua marcha ao sul, ele fica preocupado.

Faz chegar novas propostas aos franj. A resposta: “Nós iremos a Jerusalém todos juntos, em ordem de combate, lanças erguidas!” É uma declaração de guerra. Em Maio, os invasores atravessam sem hesitar o “Rio do Cachorro”, o limite norte do território egípcio.

Na manhã de 7 de Junho os habitantes de Jerusalém já podem vê-los aparecer ao longe. O comandante Iftikhar ad-Dawla, “Orgulho do Estado”, comandante da guarnição egípcia, observa com serenidade do alto da torre de David. Há meses tomou todas as providências para um longo sítio.

Mas o comportamento dos franj é desconcertante. Iftikhar esperava vê-los construir, tão logo chegassem, torres móveis e instrumentos de sítios, cavar trincheiras. Ora, longe desses preparativos, eles começam organizando uma procissão em volta dos muros, conduzida por sacerdotes que oram e cantam, antes de se lançarem como loucos ao assalto das muralhas, sem dispor de escada alguma.

As procissões cantantes dos franj irritam Iftikhar, mas não o preocupam. Somente após a segunda semana é que ele sente nascer a preocupação quando o inimigo inicia a feitura de duas imensas torres de madeira.

“Uma das torres móveis construídas pelos franj”, contará Ibn al-Athir, “ estava do lado de Sião, ao sul, e a outra ao norte. Os muçulmanos conseguiram queimar a primeira, matando todos aqueles que se encontravam nela. Porém, mal tinham acabado de destrui-la, um mensageiro chegou, pedindo ajuda, pois a cidade estava sendo invadida pelo outro lado. De fato, ela foi tomada pelo norte, numa sexta-feira de manhã, sete dias antes do final do tempo de chaaban do ano 492 (Julho de 1099).”

Segundo al-Athir,“ a população da Cidade Santa foi morta pela espada e os franj massacraram os muçulmanos durante uma semana. Na mesquita al-Aqsa, eles mataram mais de 70 mil pessoas.” Ibn al-Qalanissi, que evita manipular números que se podem verificar, disse apenas que muitas pessoas foram mortas e que os francos destruíram até os monumentos dos santos (!). Entre as construções saqueadas estava a mesquita de Omar, feita em memória do segundo sucessor de Maomé, Omar Ibn al-Khattab, que tomara Jerusalém dos cristãos em Fevereiro de 638. Os árabes não deixaram de evocar este acontecimento para ressaltar a diferença entre seu o comportamento e o dos franj.

Lembravam que Omar assegurou a vida e os bens de todos os habitantes da cidade. E que quando ele e o patriarca grego (chefe cristão de Jerusalém, recém deposto) estavam visitando o Santo Sepulcro, Omar perguntou onde poderia estender seu tapete para orar, pois chegara a hora da reza a Alá. O patriarca disse-lhe para orar ali mesmo, mas o árabe não quis. “Se eu fizer isso, amanhã os muçulmanos vão querer apropriar-se deste local dizendo: “Omar orou aqui...” E, levando o seu tapete, foi ajoelhar-se em outro local. Pensou correctamente, pois foi naquele exacto local que se construiu a mesquita que traz seu nome.

Os chefes francos não tiveram essa magnanimidade. Festejaram seu triunfo com uma matança indescritível, depois saquearam selvaticamente a cidade que pretendiam venerar.

Seus correligionários (os cristãos do Oriente) não foram poupados: uma das primeiras medidas dos franj foi expulsar da igreja do Santo Sepulcro todos os sacerdotes cristãos gregos, georgianos, etc., que oficiavam juntos, segundo uma tradição que todos os conquistadores haviam respeitado até então.

Pasmos, os dignitários das comunidades cristãs orientais decidiram resistir. Recusaram-se a revelar aos invasores o local onde estava escondida a cruz verdadeira onde Cristo morreu. Para aqueles homens, a devoção religiosa era acrescida de orgulho patriótico. Não eram eles, afinal, os concidadãos do Nazareno?

Mas os invasores não se deixam impressionar. Submetendo os sacerdotes à tortura, conseguiram tirar dos cristãos da Cidade Santa, pela força, a mais preciosa de suas relíquias.»

Nota: O Concílio de Clermont, realizado em novembro de 1095, na cidade do mesmo nome na região central da França, testemunhou a histórica convocação pelo Papa Urbano II (pontificado 1088-1099) da Primeira Cruzada (1095-1102), com o objetivo de tomar Jerusalém, das mãos dos muçulmanos que a ocupavam, em nome da cristandade. O discurso do Papa para a hierarquia da Igreja e para a multidão de laicos ali reunidos prometia, enfaticamente, a remissão dos pecados de todos os que participassem (www.worldhistory.org).

A ocupação da Palestina e a guerra por todo o Médio Oriente alargado, bem como a guerra na Ucrânia, enquadram-se na cruzada do domínio destas regiões estratégicas pelo mundo ocidental cristão e capitalista.

"As cruzadas vistas pelos árabes", de Amin Maalouf e editado em 1983, lança alguma luz sobre a acção civilizadora e libertadora levada a cabo pelos países ocidentais e pelo cristianismo em terras árabes. O capítulo Os canibais de Maara, que tomamos a liberdade de transcrever, é um resumo de responsabilidade de Rosana Bond e publicado no jornal brasileiro “Nova democracia”.

Herberto Helder: A minha força é a desordem

23.11.22 | Manuel

HH.jpg

 No sorriso louco das mães batem as leves

gotas de chuva. Nas amadas

caras loucas batem e batem

os dedos amarelos das candeias.

Que balouçam. Que são puras.

Gotas e candeias puras. E as mães

aproximam-se soprando os dedos frios.

Seu corpo move-se

pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões

e órgãos mergulhados,

e as calmas mães intrínsecas sentam-se

nas cabeças filiais.

Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,

vendo tudo,

e queimando as imagens, alimentando as imagens,

enquanto o amor é cada vez mais forte.

E bate-lhes nas caras, o amor leve.

O amor feroz.

E as mães são cada vez mais belas.

Pensam os filhos que elas levitam.

Flores violentas batem nas suas pálpebras.

Elas respiram ao alto e em baixo. São

silenciosas.

E a sua cara está no meio das gotas particulares

da chuva,

em volta das candeias. No contínuo

escorrer dos filhos.

As mães são as mais altas coisas

que os filhos criam, porque se colocam

na combustão dos filhos, porque

os filhos estão como invasores dentes-de-leão

no terreno das mães.

E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,

e atiram-se, através deles, como jactos

para fora da terra.

E os filhos mergulham em escafandros no interior

de muitas águas,

e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos

e na agudeza de toda a sua vida.

E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,

e através dele a mãe mexe aqui e ali,

nas chávenas e nos garfos.

E através da mãe o filho pensa

que nenhuma morte é possível e as águas

estão ligadas entre si

por meio da mão dele que toca a cara louca

da mãe que toca a mão pressentida do filho.

E por dentro do amor, até somente ser possível

amar tudo,

e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

*

As mulheres têm uma assombrada roseira

fria espalhada no ventre.

Uma quente roseira às vezes, uma planta

de treva.

Ela sobe dos pés e atravessa

a carne quebrada.

Nasce dos pés, ou da vulva, ou do ânus -

e mistura-se nas águas,

no sonho da cabeça.

As mulheres pensam como uma impensada roseira

que pensa rosas.

Pensam de espinho para espinho,

param de nó em nó.

As mulheres dão folhas, recebem

um orvalho inocente.

Depois sua boca abre-se.

Verão, outono, a onda dolorosa e ardente

das semanas,

passam por cima. As mulheres cantam

na sua alegria terrena.

 

Que coisa verdadeira cantam?

Elas cantam.

São fechadas e doces, mudam

De cor, anunciam a felicidade no meio da noite,

Os dias rutilantes, a graça.

Com lágrimas, sangue, antigas subtilezas

E uma suavidade amarga -

As mulheres tornam impura e magnífica

nossa límpida, estéril

vida masculina.

Porque as mulheres não pensam: abrem

rosas tenebrosas,

alagam a inteligência do poema com o sangue menstrual.

São altas essas roseiras de mulheres,

inclinadas como sinos, como violinos, dentro

do som.

Dentro da sua seiva de cinza brilhante.

 

O pão de aveia, as maçãs no cesto,

o vinho frio,

ou a candeia sobre o silêncio.

Ou a minha tarefa sobre o tempo.

Ou o meu espírito sobre Deus.

Digo minha vida é para as mulheres vazias,

as mulheres dos campos, os seres

fundamentais

que cantam de encontro aos sinistros

muros de Deus.

As mulheres de ofício cantante que a Deus mostram

a boca e o ânus

e a mão vermelha lavrada sobre o sexo.

 

Espero que o amor enleve a minha melancolia

E flores sazonadas estalem e apodreçam

docemente no ar.

E a suavidade e a loucura parem em mim,

e depois o mundo tenha cidades antigas

que ardam na treva sua inocência lenta

e sangrenta.

Espero tirar de mim o mais veloz

apaixonamento e a inteligência mais pura.

- Porque as mulheres pensarão folhas e folha;

no campo.

Pensarão na noite molhada,

no dia luzente cheio de raios.

 

Vejo que a morte se inspira na carne

que a luz martela de leve.

Nessas mulheres debruçadas sobre a frescura

veemente da ilusão,

nelas - envoltas pela sua roseira em brasa -

vejo os meses que respiram.

Os meses fortes e pacientes.

Vejo os meses absorvidos pelos meses mais jovens.

Vejo meu pensamento morrendo na escarpada

treva das mulheres.

 

E digo: elas cantam a minha vida.

Essas mulheres estranguladas por uma beleza

incomparável.

Cantam a alegria de tudo, minha

alegria

por dentro da grande dor masculina.

Essas mulheres tornam feliz e extensa

a morte da terra.

Elas cantam a eternidade.

Cantam o sangue de uma terra exaltada.

*

Se alargas os braços desencadeia-se uma estrela de mão

a mão transparente, e atrás,

nas embocaduras da noite,

o mundo completo treme como uma árvore

luzindo

com a respiração. E ofereces,

das unhas à garganta

talhada, a deslumbrante queimadura do sono.

-Em teu próprio torvelinho se afundam

as coisas. Porque és um vergão raiando entre

esses braços

que irrompem da minha morte se durmo, da loucura

se a veia

violenta que me atravessa a cabeça se torna

ígnea como

um rio abrupto num mapa. Quando as salas

negras fotográficas

imprimem a sensível trama das estações

com as paisagens por cima. E

Jorras

desde as costas dos espelhos, seu coração

arrancado pelos dedos todos de que se escreve

o movimento inteiro.

Nunca digas o meu nome se esse nome

não for o do medo. Ou se rapidamente o lume se não repartir

nas formas

lavradas como chamas à tua volta. Os animais

que essa labareda ilumina

na boca. Desde a obscuridade

de tudo que tudo

é inocente. Nunca se pode ver a noite toda de súbito.

E da fronte aos quadris em tuas linhas, és

cega, fechada.

A minha força é a desordem. Reluzes

na tempera enxuta - queima-te.

O ouro desloca atua cara. Um nervo

atravessa as frementes, delicadas massas

das imagens:

como uma ferida límpida desde a nascença pela carne

fora. És alta em mim por essa

cicatriz que se abre ao dormir e quando

se acorda fica aberta.

- Esta

espécie de crime que é escrever uma frase que seja

uma pessoa magnificada.

Uma frase cosida ao fôlego, ou um relâmpago

estancado

nos espelhos. E às vezes é uma raiz engolfada, e quando toca

a fundura das paisagens, as constelações mudam

no chão. A truculência

que se traça como uma frase na pessoa, uma queimadura

branca. Porque ela mostra as devastações

magnéticas

da matéria. Na frase vejo os fulcros da pessoa.

Por furos acerbos as estações que se escoam

e a inquebrantável

paisagem que as persegue por dentro. A frase

que é uma pálpebra

viva

como roupa fechada sobre a radiação das veias.

Que é uma cara, uma cratera.

Ou um hausto animal das unhas à testa

onde

fulguram os cornos em coroa.

E esta massa ofegante é queimada por um

suspiro, um alimento brutal.

O teu rosto cerca-me, a minha

morte cerca o teu rosto como uma clareira

pulsando

na luz cortada. A pessoa

que é uma frase: astro

rude cruamente encordoado entre as omoplatas.

Como se um nervo cosesse todas as partes pungentes e selvagens

da carne. Como

se atua frase fosse um buraco brilhando até aos pulmões,

com o sangue e a língua

na minha garganta. A beleza que te trabalha

deixa-te

árdua e intacta

no mundo, entre o sangue estrangulado na minha memória.

(“Ou O Poema Contínuo: Súmulas”. Edição Assírio & Alvim, 2001)

Herberto Helder é considerado como um dos maiores poetas europeus contemporâneos ou o "maior poeta português da segunda metade do século XX" e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa.  Nasceu em Funchal, Ilha da Madeira em 23 de novembro de 1930. Faleceu em Cascais em 23 de março de 2015

Por este rio acima, 40 anos depois

19.11.22 | Manuel

Rio acima.jpg

Fausto Bordalo Dias

Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo

Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel

Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas

Leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima

Por este rio acima
Os barcos vão pintados
De muitas pinturas
Descrevem varandas

E os cabelos de Inês
Desenham memórias
Ao longo da água
Bosques enfeitiçados

Soutos laranjeiras
Campinas de trigo
Amores repartidos
Afagam as dores
Quando são sentidos

Monstros adormecidos
Na esfera do fogo
Como nasce a paz
Por este rio acima

Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei, eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
Meu bem

Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei, eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
Meu bem

Por este rio acima
Isto que é de uns
Também é de outros
Não é mais nem menos

Nascidos foram todos
Do suor da fêmea
Do calor do macho
Aquilo que uns tratam
Não hão-de tratar
Outros de outra coisa

Pois o que vende o fresco
Não vende o salgado
Nem também o seco
Na terra em harmonia
Perfeita e suave
Das margens do rio
Por este rio acima

Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei, eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
Meu bem

Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei, eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
Meu bem

Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo

Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel

Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas

Leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima

Por este rio acima

*

Uns Vão Bem e Outros Mal

Senhoras e meus senhores, façam roda por favor
Senhoras e meus senhores, façam roda por favor, cada um com o seu par
Aqui não há desamores, se é tudo trabalhador o baile vai começar.
Senhoras e meus senhores, batam certos os pézinhos, como bate este tambor
Não queremos cá opressores, se estivermos bem juntinhos, vai-se embora o mandador
Vai-se embora o mandador

Faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres
Folha seca cai ao chão, folha seca cai ao chão
Eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres,
Que eu sou doutra condição, que eu sou doutra condição

De velhas casas vazias, palácios abandonados, os pobres fizeram lares
Mas agora todos os dias, os polícias bem armados desocupam os andares
Para que servem essas casas, a não ser para o senhorio viver da especulação
Quem governa faz tábua rasa, mas lamenta com fastio a crise da habitação

E assim se faz Portugal, uns vão bem e outros mal

Faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres
Folha seca cai ao chão, folha seca cai ao chão
Eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres,
Que eu sou doutra condição, que eu sou doutra condição

Tanta gente sem trabalho, não tem pão nem tem sardinha e nem tem onde morar
Do frio faz agasalho, que a gente está tão magrinha da fome que anda a rapar
O governo dá solução, manda os pobres emigrar, e os emigrantes que regressaram
Mas com tanto desemprego, os ricos podem voltar porque nunca trabalharam

E assim se faz Portugal, uns vão bem e outros mal

Faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres
Folha seca cai ao chão, folha seca cai ao chão
Eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres,
Que eu sou doutra condição, que eu sou doutra condição

E como pode outro alguém, tendo interesses tão diferentes, governar trabalhadores
Se aquele que vive bem, vivendo dos seus serventes, tem diferentes valores
Não nos venham com cantigas, não cantamos para esquecer, nós cantamos para lembrar
Que só muda esta vida, quando tiver o poder o que vive a trabalhar

Segura bem o teu par, que o baile vai terminar

Faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres
Folha seca cai ao chão, folha seca cai ao chão
Eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres,
Que eu sou doutra condição, que eu sou doutra condição.

(Do album "Madrugada dos Trapeiros", 1977)

Estado e anomia. Considerações sobre o anticristo

17.11.22 | Manuel

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Giorgio Agamben

O termo "anticristo" (anticristos) aparece no Novo Testamento apenas na primeira e na segunda carta de João. O contexto é certamente escatológico (paidia, eschate hora estin, vulg. Filioli, novissima hora est, "filhos, é a última hora"), e o termo aparece significativamente também no plural: "como ouvistes que o anticristo vem e agora muitos se tornaram anticristos”. Não menos decisivo é que o apóstolo define a última hora como o "agora (nyn)" em que ele mesmo se encontra: "vem o anticristo (erchetai, presente do indicativo)". Pouco depois, é especificado, se necessário, que o anticristo "está agora no mundo (nyn en to kosmoi estin)". É bom não esquecer esse contexto escatológico do anticristo, se é verdade - como Peterson, e Barth antes dele, não se cansam de lembrar - que o último momento da história humana é inseparável do cristianismo ("um cristianismo - escreve Barth - que não é tudo e totalmente e sem escatologia residual, não tem nada totalmente e sem resíduos a ver com Cristo "). O anticristo é para João aquele que na última hora "nega que Jesus é o Cristo" (isto é, o Messias) e os anticristos são, portanto, os "muitos" que, como ele, "saíram de nós, mas que não eram de nós", o que sugere, não sem ambiguidade, que o anticristo emerge do seio da ekklesia, mas realmente não pertence a ela. Como tal, ele é repetidamente referido como "enganador" (planos, literalmente "aquele que engana", vulg. Sedutor).

O lugar em que a exegese dos padres e teólogos sobre o anticristo se concentrou durante séculos não é, porém, nas cartas de João, mas na segunda carta paulina aos tessalonicenses. Mesmo que o termo não apareça, a personagem enigmática que a carta apresenta como "o homem da anomia" (ho anthropos tes anomias) e o "filho da perdição" (ho uios tes apoleias) já foi identificado por Hipólito, Irineu e Tertuliano e depois por Agostinho com o anticristo. De fato, Paulo diz dele, a quem ele também define como "iníquo" (anomos), que "ele se levanta contra tudo o que se chama Deus ou objeto de veneração, a ponto de se sentar no templo de Deus, proclamando-se ser Deus". O anticristo é um poder mundano (uma tradição o identificou com um Nero revivido) que tenta imitar e falsificar o reino de Cristo no tempo do fim.

Na carta aos Tessalonicenses, porém, o homem sem lei é colocado em estreita relação com outra figura enigmática, o katechon (τὸ κατέχον), aquele que retém (também na forma masculina: "aquele que retém"). O que é retido é "a parusia de nosso Senhor Jesus Cristo e nosso reencontro com ele": o contexto da carta é, portanto, exatamente como na carta escatológica de João (pouco antes, o apóstolo evoca "o justo juízo de Deus... na revelação do Senhor Jesus com os anjos do seu poder”). Já no tempo de Agostinho, esse poder que impede o advento final de Cristo foi identificado com o Império Romano (que Paulo, segundo as palavras de Agostinho, teria omitido mencionar explicitamente "para não incorrer na acusação de desprezo, desejando o mal ao império que todos consideravam eterno”) ou com a própria igreja romana, como a carta de João parecia sugerir, mencionando os anticristos que “sairão de nós”. Em todo caso, seja o império romano ou a igreja, o poder que detém é o de uma instituição fundada em uma lei ou constituição estável (antecipando nossa nação de "estado", diz Tertuliano: status romanus, que seu tempo significava " a condição estável do Império Romano").

O decisivo é entender a relação entre o poder que retém e "o homem da ausência da lei". Às vezes, tem sido interpretado como um conflito entre dois poderes, no qual o sem lei ou o anticristo "retira" o poder que detém. A expressão ek mesou genetai ("até que saia do caminho aquele que retém") não implica de forma alguma que seja o homem da anomia quem o faça: como sugere a tradução da vulgata (donec de medio fiat), livrar-se dos meios é o mesmo poder que detém (seja o império ou a igreja). O texto que se segue é perfeitamente claro neste sentido: "e então os iníquos serão revelados". A relação entre o poder institucional do cateco e o homem da ausência de lei é a sucessão entre dois poderes mundanos, um dos quais descola e é substituído - ou passa - no outro. Este é, nas palavras de Paulo, "o mistério da anomia que já está em andamento" e que encontra sua revelação no final, como se, como o termo "mistério" parece sugerir, o "sem lei" finalmente exibido em plena luz a verdade do poder que o precede.

Se isso for verdade, então a carta contém uma doutrina sobre o destino de qualquer poder institucional que não deve ser negligenciada. De acordo com isso na doutrina, o poder institucional firmemente fundado cede necessariamente no final a uma condição de anomia, na qual o soberano constitucionalmente fundado é substituído por um soberano "sem lei", que exerce seu governo arbitrariamente. A carta contém, portanto, uma mensagem que nos interessa de perto, porque é precisamente esse "mistério da anomia" que vivemos. O poder estatal baseado em leis e constituições ditas democráticas vem-se transformando - por meio de um processo imparável que começou há algum tempo, mas que só agora chega à sua crise definitiva - em uma condição anómica, em que a lei é substituída por decretos e medidas do poder executivo e o estado de emergência torna-se a forma normal de governo. Resta - é bom não esquecer - que a carta afirma que, uma vez revelado o poder dos "iníquos", "o Senhor o suprimirá com o sopro de sua boca e o desativará com a aparência de sua presença". Isso significa que o que nos resta pensar na condição aparentemente sem saída que estamos vivendo é a forma de uma comunidade humana que escapa tanto do "poder de detenção" com sua aparente estabilidade institucional quanto da anomia emergencial em que fatalmente se é convertido.

19 de outubro de 2022

(Tradução livre)

https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-stato-e-anomia.-considerazioni-sull-u2019anticri

Quadras da mentira e da verdade

15.11.22 | Manuel

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P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.

Mentiu com habilidade, 
fez quantas mentiras quis;
agora fala verdade
ninguém crê no que ele diz.

Gosto do preto no branco,  
como costumam dizer:
antes perder por ser franco
que ganhar por não ser.

Julgando um dever cumprir,
Sem descer no meu critério,
- Digo verdades a rir
Aos que me mentem a sério!

                     *

Porque o Povo Diz Verdades

Porque o povo diz verdades,
Tremem de medo os tiranos,
Pressentindo a derrocada
Da grande prisão sem grades
Onde há já milhares de anos
A razão vive enjaulada.

Vem perto o fim do capricho
Dessa nobreza postiça,
Irmã gémea da preguiça,
Mais asquerosa que o lixo.

Já o escravo se convence
A lutar por sua prol
Já sabe que lhe pertence
No mundo um lugar ao sol.

Do céu não se quer lembrar,
Já não se deixa roubar,
Por medo ao tal satanás,
Já não adora bonecos
Que, se os fazem em canecos,
Nem dão estrume capaz.

Mostra-lhe o saber moderno
Que levou a vida inteira
Preso àquela ratoeira
Que há entre o céu e o inferno.

                *

SOBRE SI PRÓPRIO
Fui polícia, fui soldado,
Estive fora da Nação,
vendo jogo, guardo gado,
Só me falta ser ladrão!...

Em resposta a algumas provocações de meninos mal-criados:

Não sou esperto nem bruto
Nem bem nem mal educado;
Sou simplesmente o produto
Do meio em que fui criado.

Mas a mais célebre é sem dúvida a quadra de improviso com que respondeu a quem pôs em causa a sua honestidade ou se referiu à forma andrajosa como se vestia:

Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que, sem parecer o que são,
São aquilo que eu pareço.

___________

António Fernandes Aleixo (Vila Real de Santo António, 18 de Fevereiro de 1899 – Loulé, 16 de Novembro de 1949) é talvez o maior poeta popular português. Em tempo de mentiras, fake news, intimidações e manipulações, de toda a sua poesia oral estas quadras serão as mais oportunas.

Como os antigos bardos e aedos, o poeta popular português António Aleixo nunca teve a preocupação de registar suas composições, mesmo porque era quase analfabeto. Mas graças ao trabalho de Joaquim de Magalhães, compilador dos versos ditados pelo poeta, surgiu um primeiro volume de quadras em 1943, isto é, apenas seis anos antes da morte do autor. Intitulava-se Quando Começo a Cantar. Ainda surgiriam mais dois livros em sua vida: Intencionais, em 1945 e Auto da Vida e da Morte, em 1948. Depois, o resto da obra, publicada postumamente, e só reunida na íntegra em 1969, sob o título "Este livro que vos deixo".

Um país de "brandos costumes" onde o fascismo nunca existiu

10.11.22 | Manuel

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«BRANDOS COSTUMES» ...

Luís Reis Torgal

A utilização do título na obra que aqui termina – expressão de grande divulgação feita com base numa narrativa construída, como vimos, pela dupla Salazar-António Ferro – tem, na nossa aceção, um sentido ambíguo e irónico, como se se tratasse de um título idêntico ao do livro de Eduardo Lourenço, O fascismo nunca existiu. Como tentámos provar, tendo como estilo o que foi apresentado pelo nosso ensaísta (que utilizou tantas vezes essa forma de dizer propositadamente o contrário do que queria afirmar), o Estado Novo pode ser caracterizado como uma forma de «fascismo», o que Salazar recusava, ainda que admirasse Mussolini. Do modo idêntico pode, pois, usar-se a expressão e a explicação salazarista de que o Estado Novo tinha de se adaptar aos «brandos costumes» do povo português através de um autoritarismo «brando», procurando nós dizer o inverso. Mas não esqueçamos que a força dessa ideia ainda está presente em alguns historiadores e outros escritores que refletem sobre o Estado Novo e sobre Salazar, como por exemplo sucedeu – para não falarmos dos textos de considerados ensaístas de «direita», como Jaime Nogueira Pinto – na recente obra de um historiador inglês, Tom Gallagher. Sejamos claros: o Estado Novo é um autoritarismo ou mesmo, em certo sentido, um totalitarismo, que não usou de forma alguma a tolerância, nem uma «intolerância branda». E ao dizer isso, estamos a falar do óbvio, porque o regime jamais manifestou, ou poderia manifestar, a tolerância e o pluralismo que supõe a ideia democrática.

Expliquemos melhor. Apresentando-se como Estado corporativo e sem admitir, na prática, a liberdade de reunião e de expressão, toda e qualquer afirmação de liberdade que supusesse a «oposição» aos seus princípios e ideias teria de ser considerada pelo sistema político como uma traição. Por isso, as liberdades do artigo 8.º da Constituição de 1933 teriam de ser contrariadas por decretos-leis e pela prática de instituições que foram sendo criadas. Assim, as eleições jamais poderiam ser livres e existir numa aceção democrática. Nisso o Estado Novo – conceito fascista de origem italiana, Stato nuovo – teria de ter, e teve, grande coerência, exercendo, através dos seus órgãos policiais e de censura, bem como dos seus órgãos corporativos e administrativos e dos seus órgãos de reprodução ideológica, uma prática de intolerância para com as ideias e as práticas de «oposição». Desta forma, como vimos, a PIDE e a Censura teriam um papel importante no cumprimento de uma ideia única, que não podia ser contrariada.

Mas será que essa ação se verificou de maneira «branda»? Não vale a pena fazer comparações que nos levem a colorir de forma diferente o sistema de Salazar. Mas digamos que a sua ação policial e censória não se pode comparar com sistemas «racistas» e antissemitas como o Nazismo. O Fascismo de Mussolini teve uma intensidade dramática muito mais acentuada, até pelo facto de a Itália ter combatido na Segunda Guerra Mundial ao lado da Alemanha nazi, assim como teve o Franquismo, que surgiu no âmbito de uma guerra civil que originou, nas duas partes em confronto, uma prática de violência sem limites, ou o Estalinismo, que acompanhou, de uma forma enérgica e repressiva, a formação da União Soviética e do seu desenvolvimento económico. O Estado Novo, ao contrário, manteve-se em paz até ao despontar dos movimentos anticolonialistas e da «guerra colonial», pelo que todo o sistema de violência ficou, até aos anos 60, relativamente adormecido e, sobretudo, encoberto. No entanto, a ação repressiva teve as mesmas finalidades: extinguir principalmente as ideias e práticas anarquistas e comunistas, mas também as simplesmente liberais, católico-progressistas ou até monárquicas. Depois, e já antes, do início da guerra nas «colónias», intituladas depois dos anos 50 como «províncias ultramarinas», quando se reconfigurou a ideia unitária de «Nação», veio ao de cima no Salazarismo, como complemento mais evidente, a luta contra os movimentos anticolonialistas, defensores da autodeterminação ou da independência, contrariando os ventos que sopravam em todo o mundo, ao mesmo tempo que se obrigava os jovens a defender uma pretensa integridade territorial em vários continentes. De resto, o Estado usou de todas formas que foram utilizadas noutros sistemas autoritários ou totalitários: a exoneração forçada da função pública, a destruição ou o prejuízo das carreiras profissionais, os interrogatórios, a prisão sem culpa formada, a tortura, o julgamento por tribunais não neutrais em matéria política, a vigilância constante de ordem política e pessoal utilizando mesmo informadores secretos, a proibição da publicação de obras ou da realização de espetáculos, o clima de medo, etc.

Portanto, pode dizer-se que a ideia da intolerância «branda» é apenas um mito criado pelas «circunstâncias» e que viveu ao seu sabor, mantendo-se hoje ainda vivo como memória. Assim, quando recentemente falávamos a um indivíduo de «direita» acerca da intolerância da PIDE e de todo o sistema repressivo criado pelo Estado Novo, ele dizia-nos, surpreendentemente (talvez como mera retórica), que se tratava de uma «simples nota de rodapé». Não o foi, obviamente, e esperamos que a leitura desta obra contribua para a diluição do mito, que pode hoje vir a renascer. Trata-se de um «ensaio» (escrito em determinadas «circunstâncias») que nos pode levar – assim o esperamos – a refletir, mais uma vez, sobre o sistema que foi extinto no 25 de Abril de 1974 e que alguns, sem o dizer (pelo menos por enquanto, embora já usem algumas das suas frases mestras), talvez queiram recuperar, embora de forma diferente ao do regime de Salazar e de Marcello Caetano. E não devemos esquecer que a nossa revolução, que consolidou, pelo menos formalmente e no plano das liberdades (apesar das suas ambiguidades e contradições), a democracia, está quase a comemorar meio século.

Imagem: Desenho de João Abel Manta.

Luís Reis Torgal (Coordenação), “Brandos Costumes… O Estado Novo, a PIDE e os intelectuais”. 2022 (um livro a ler!)

Sophia de Mello Breyner Andresen

07.11.22 | Manuel

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O POETA TRÁGICO

No princípio era o labirinto
O secreto palácio do terror calado
Ele trouxe para o exterior o medo
Disse-o na lisura dos pátios no quadrado
De sol de nudez e de confronto
Expôs o medo como um toiro debelado

*

A PEQUENA PRAÇA

A minha vida tinha tomado a forma da pequena praça
Naquele outono em que a tua morte se organizava meticulosamente
Eu agarrava-me à praça porque tu amavas
A humanidade humilde e nostálgica das pequenas lojas
Onde os caixeiros dobram e desdobram fitas e fazendas
Eu procurava tornar-me tu porque tu ias morrer
E a vida toda deixava ali de ser a minha
Eu procurava sorrir como tu sorrias
Ao vendedor de jornais ao vendedor de tabaco
E à mulher sem pernas que vendia violetas
Eu pedia à mulher sem pernas que rezasse por ti
Eu acendia velas em todos os altares
Das igrejas que ficam no canto desta praça
Pois mal abri os olhos e vi foi para ler
A vocação do eterno escrita no teu rosto
Eu convocava as ruas os lugares as gentes
Que foram as testemunhas do teu rosto
Para que eles te chamassem para que eles desfizessem
O tecido que a morte entrelaçava em ti

*

DUAL

Dois cavalos a par eu conduzia

Não me guiava a mim mas meus cavalos

 

E no país de espanto e de tumulto

Em mim se desuniu o que eu unia

*

LIBERDADE

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

*

CANTATA DE PAZ

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado

* Nasceu a 06 Novembro 1919 (Porto). Morreu em 02 Julho 2004 (Lisboa)

DUAL, Sophia de Mello Breyner Andresen. Assírio & Alvim, 2014

Teixeira de Pascoaes

02.11.22 | Manuel

 

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O POETA

I

Ninguém contempla as cousas, admirado.

Dir-se-á que tudo é simples e vulgar...

E se olho a flor, a estrela, o céu doirado,

Que infinda comoção me faz sonhar!

 

É tudo para mim extraordinário!

Uma pedra é fantástica! Alto monte

Terra viva, a sangrar, como um Calvário

E branco espectro, ao luar, a minha fonte!

 

É tudo luz e voz! Tudo me fala!

Ouço lamúrias de almas, no arvoredo,

Quando a tarde, tão lívida, se cala,

Porque adivinha a noite e lhe tem medo.

 

Não posso abrir os olhos sem abrir

Meu coração à dor e à alegria.

Cada cousa nos sabe transmitir

Uma estranha e quimérica harmonia!

 

É bem certo que tu, meu coração,

Participas de toda a Natureza.

Tens montanhas, na tua solidão,

E crepúsculos negros de tristeza!

 

As cousas que me cercam, silenciosas,

São almas, a chorar, que me procuram.

Quantas vagas palavras misteriosas,

Neste ar que aspiro, trémulas, murmuram!

 

Vozes de encanto vêm aos meus ouvidos,

Beijam meus olhos sombras de mistério.

Sinto que perco, às vezes, os sentidos

E que vou a flutuar num rio aéreo...

 

Sinto-me sonho, aspiração, saudade,

E lágrima voando e alada cruz...

E rasteirinha sombra de humildade,

Que é, para Deus, a verdadeira luz.

(...)

*

UMA TRAGÉDIA

Que grande multidão, além, naquela praça!

As carruagens não conseguem transitar...

E, num pressentimento enorme de desgraça,

Trémulo aproximei-me então desse lugar.

 

Nas pedras dum passeio, eu encontrei deitado,

Os olhos já sem luz, com o crânio partido,

O peito todo em sangue, um homem desgraçado

Que dum terceiro andar havia ali caído…

 

E uns murmúrios banais de tristeza e piedade

Pairavam sobre mim, como uma sombra fútil.

E eu vi toda a irrisão e toda a crueldade,

Inconsciente talvez, daquela dor inútil!

 

A escura multidão chorava aquela morte,

Nesse triste prazer que produzem os dramas,

Onde há lagos de sangue e maldições da sorte

E mártires a arder entre vermelhas chamas!

 

Porque é que vós chorais o magro proletário,

Que num perigo enorme a trabalhar andava,

Um Cristo que subira, enfim, o seu calvário

E que entre os Fariseus, colérico, expirava,

 

Se fostes vós, irmãos, os únicos autores

Desse drama que tanto assim vos comoveu?...

Uma injúria saiu daqueles estertores

E, ao ouvi-la, vossa alma inquieta estremeceu!

 

Era uma injúria de revolta e indignação

Contra a injustiça humana e contra a crueldade

Que obrigam a perder a vida por um pão

Um justo que merece o amor e a piedade...

 

E o povo dispersou num remorso sombrio...

E na sua sombra negra a noite amortalhou

Esse cadáver hirto, ensanguentado e frio

Que aos homens sem amor a Paz arrebatou!...

*

A FÁBRICA

As negras chaminés, quais bocas tenebrosas,

Cospem no azul negros escarros pestilentos

Dum fumo que envenena as paisagens nervosas

E que os lúcidos céus nos torna nevoentos...

 

A fábrica trabalha, e silvos estridentes

Cortam, como uma espada, a trágica atmosfera.

Há rodas a girar, grandes fornos ardentes,

Terríveis como o olhar sangrento da Quimera!

 

Lívidos rostos, como lágrimas, orvalham

Os vapores que vão mover as engrenagens.

Há negros vultos revoltados que trabalham,

Enquanto o sol fecunda o ventre das paisagens!

 

Vem visitar, ó Dante, este medonho inferno,

Os negros antros do Trabalho e da Miséria...

Cavernas onde geme o sofrimento eterno

Que tem no rosto magro a palidez funérea!

 

Anda ver, ó Poeta, os antros do Martírio,

Os modernos Titãs que hão-de escalar os céus...

E nas forjas, a arder, as chamas em delírio,

Que, porventura, anima a cólera de Deus!...

 

E a bigorna onde forja a Dor o raio ardente

Que há-de o mundo imperfeito e injusto fulminar!

Mas nesta escuridão eu vejo claramente

O brando alvorecer dum místico luar...

 

E da Fábrica cruel, cheia de fumo e treva,

De grandes corações amargos, sofredores,

Um grande sonho, ó Deus, fantástico se eleva,

E envolvem a oficina estranhos esplendores!...

*

A MORTE

O nosso corpo é estrela,

Que vai arrefecendo

E escurecendo,

Para que nele surja uma outra luz mais bela,

A luz espiritual.

 

É preciso baixar à negra sepultura,

Para que a humana e pobre criatura

Alcance o eterno amor.

 

É preciso sofrer o último estertor,

Chorar a lágrima final...

*

O DOIDO E A MORTE

Era uma noite fria de Natal.

Sobre os campos, a lua derramava

Sinistra palidez misteriosa...

Nos montanhosos longes denegridos

Pairavam alvas formas indecisas,

Asas de anjos desfeitas em brancura...

A translúcida aragem, perpassando,

Arripiava os ermos viandantes

E retocava o brilho das estrelas.

Os pinheiros gemiam surdamente;

E, na face das pedras espelhado,

O luar abria num sorriso triste...

Vultos negros, opacos de penedos,

Erguiam-se, sonâmbulos e mudos,

E olhavam o Infinito, como Esfinges...

O silêncio reinava: era o Senhor

Do mundo e da paisagem, e o seu Reino

Além das Nebulosas se estendia...

 

Por um longo caminho esbranquiçado,

Entre pinhais, sombrios e confusos,

A Morte cavalgava, a largo trote.

As patas espectrais do seu cavalo

Ouviam-se calcar a terra dura

E sonora que o gelo trespassava.

E aquele ruído escuro, difundindo-se

No indefinido e lívido ambiente,

O ensombrava de lágrimas e medos...

 

Figurava no espaço a feia Morte,

Como pintada a negro, numa tela,

De infinita e brumosa irrealidade...

Envolta numa túnica de sombra,

Segurava na mão, só feita de ossos,

A Fouce reluzente que ao luar,

Tão fria; cintilava! Nos seus olhos,

Dois profundos buracos tenebrosos,

As funéreas corujas, os morcegos,

As estrelas, as árvores, as nuvens,

Iam ver a sua imagem reflectida.

E as aves agoireiras esvoaçavam

De encontro àquelas órbitas vazias

Como fontes de pedra que secaram.

 

E a Morte cavalgava, a largo trote,

Por um longo caminho esbranquiçado,

No arrepio da noite e do mistério...

Um frio, agreste e fino, magoava

As árvores, fazendo flutuar

A túnica da Morte que vestia

Seu corpo ressequido e as largas ancas

Do seu cavalo, cuja sombra inquieta

E nervosa manchava a estrada clara.

 

E atravessava agora um indeciso

Planalto, em formas tristes, emergindo

Da cerração gemente dos pinhais.

Nesta altitude, o vento, embrandecendo,

Era um suspiro de alma... E a lua, aprumo,

Fulgia sobre a Morte, que alongava

Os olhos pelos montes solitários,

Mais delidos no céu, mais afastados,

Duma matéria feita de quimera...

 

E vinham, na asa múrmura da aragem,

Palmas, gritos, risadas de cristal,

Rasgando 'agudas fendas no silêncio.

Eram bruxas malditas, pobres ninfas,

Amantes do Dem6nio, o velho Pã...

Amam a escuridade e os sítios maus,

Esses bocos profundos e cismáticos,

Os silveirais espessos e águas lívidas

Onde as cousas nocturnas se reflectem,

Desmaterializadas, reduzidas

Ao seu simples e anímico esqueleto...

 

E outras bruxas, em bandos luarentos,

Passavam no ar, fantásticas, dançando

Com alados demónios coruscantes...

E o Medo, avô de espectros e de deuses,

Condensava o luar em frias lágrimas,

Marmorizava os fluidos longes vagos...

 

As figuras da Noite, as criaturas

Do nosso pensamento, despertavam

Mal ouviam trotar a Morte... E a lâmina

Da sua Fouce ia, em curva, pelo céu,

De horizonte a horizonte; e a sua túnica

Parecia manchar toda a paisagem...

(…)

 Obras Completas de Teixeira de Pascoaes. Livraria Bertrand.

POEMA SOBRE O DESASTRE DE LISBOA

01.11.22 | Manuel

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Ou exame deste axioma: “Tudo está bem” 

Voltaire 

Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra!

Ó agregado horrendo que a todos os mortais encerra!

Exercício eterno que inúteis dores mantém!

Filósofos iludidos que bradais «Tudo está bem»;

Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas,

Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas,

Estas mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados

Estes membros dispersos sob estes mármores quebrados

Cem mil desafortunados que a terra devora,

Os quais, sangrando, despedaçados, e palpitantes embora,

Enterrados com seus tectos terminam sem assistência

No horror dos tormentos sua lamentosa existência!

Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes,

Ao espectáculo medonho de suas cinzas fumegantes,

Direis vós: «Eis das eternas leis o cumprimento,

Quem de um Deus livre e bom requer o discernimento?»

Direis vós, perante tal amontoado de vítimas:

«Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes»?

Que crime, que falta cometeram estes infantes

Sobre o seio materno esmagados e sangrantes?

Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios

Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias?

Lisboa está arruinada, e dança-se em Paris.

Tranquilos espectadores, espírito de intrépido cariz,

De vossos irmãos moribundos contemplando as contrariedades

Vós procurais em paz as causas das tempestades:

Mas logo que da sorte adversa os golpes sentis,

Tornados mais humanos, tal como nós carpis.

Crede-me, quando a terra entreabre seus despenhadeiros,

Meu lamento é inocente e meus gritos verdadeiros.

Por toda a parte rodeados das crueldades da sorte,

Dos furores dos malvados, das armadilhas da morte,

De todos os elementos provando seu acometimento,

Companheiros de nossos males, permiti-nos o lamento.

E o orgulho, dizeis vós, o orgulho perturbador

A pretender que, estando mal, poderíamos estar melhor:

Ide interrogar as margens do Tejo;

Revolvei os escombros deste sangrento despejo;

Perguntai aos moribundos, nesta morada de pavor,

Se é o orgulho quem clama: «Ajudai-me, senhor!

Ó céus, tende piedade do humano fadário!»

«Tudo está bem», dizeis vós, «e tudo é necessário.»

Mas quê! O Universo inteiro, sem este abismo infernal,

Sem engolir Lisboa, teria estado em maior mal?

Estais vós seguros de que a eterna causa que tutela,

Que tudo faz, que tudo sabe, que tudo criou por ela,

Não poderia atirar-nos para este triste revés

Sem formar vulcões acesos por baixo de nossos pés?

Limitaríeis vós assim a suprema potência?

Proibi-la-íeis de exercer sua clemência?

Não tem o Artesão eterno ao dispor da sua mão

Infinitos meios adequados à sua intenção?

Humildemente desejo, sem ofensa a meu amo poderoso,

Que este abismo inflamado de enxofre e de sal nitroso

Haja acendido seus lumes no fundo dos desertos.

Eu respeito o meu Deus, mas amo o Universo.

Quando o homem ousa gemer por um flagelo tão terrível,

Não é de todo orgulhoso, infelizmente ele é sensível.

 

Os tristes habitantes destes sítios desolados

Entre o horror dos tormentos haviam de ser consolados

Caso alguém lhes dissesse: «Tombai, morrei tranquilos;

Pela felicidade do mundo destroem-se vossos asilos;

Outras mãos vão construir vossos palácios abrasados,

Outra gente nascerá em vossos muros quebrados;

O Norte há-de enriquecer com vossas perdas fatais;

Todos os vossos males são um bem, de acordo com as leis gerais;

Deus vos vê do mesmo modo que aos vis vermes necrófagos

Dos quais sereis pasto no fundo de vossos sarcófagos.»

Para tais infortunados, que linguajar horrendo!

Cruéis, às minhas dores não someis tal vilipêndio.

 

Não, não ostenteis mais a meu coração alterado

Essas imutáveis leis da necessidade,

Essa cadeia dos corpos, dos espíritos, e dos mundos.

Ó sonhos de sábios! Ó desvarios profundos!

Deus tem na mão a corrente, e não está acorrentado;

Por sua escolha benévola tudo é determinado:

Ele é livre, ele é justo, e não é implacável.

Porque sofremos então com um amo justo e amável?

Eis o nó fatal que se deveria desembaraçar.

Curareis vós nossos males enquanto os ousais negar?

Todos os povos, tremendo sob uma mão divina,

Do mal que vós negais buscaram a fonte prístina.

Se a eterna lei que move os elementos

Faz cair os penedos com os esforços dos ventos,

Se os carvalhos tocados pelo raio se abrasam,

Eles não sentem de todo os golpes que os esmagam:

Mas eu vivo, mas eu sinto, mas meu coração opresso

Demanda auxílio ao Deus que lhe deu nexo.

 

Filhos do Todo-Poderoso, mas na miséria nascidos,

Estendemos as mãos para nosso pai reconhecido.

O vaso, bem o sabemos, jamais diz ao oleiro:

«Por que sou eu tão vil, tão fraco e tão grosseiro?»

Ele nunca toma a palavra, nunca tem um pensamento;

Essa urna que ao formar-se se quebra ruidosamente,

Da mão do oleiro não recebeu nenhum coração

Que desejasse os bens e sentisse seu cajão.

«Essa desdita», dizeis vós, «é o bem de um outro ser.»

De meu corpo ensanguentado mil insectos hão-de nascer;

Quando a morte vem culminar tudo o que sofri de espinhos,

Que belo alívio esse, ser-se comido pelos vermezinhos!

Tristes calculadores das misérias humanas,

Não me consoleis, vós agravais minhas penas;

E não vejo em vós senão o esforço impotente

De um garboso infortunado que finge estar mui contente.

 

Não sou do grande todo mais que uma parte desvalida:

Sim; mas os animais condenados à vida,

Todos os seres que sentem, nascidos sob a mesma lei,

Vivem na dor, e morrem como eu – ao que sei.

 

O abutre encarniçado sobre a sua tímida presa

Dos membros sangrentos desta alegremente faz mesa;

Para ele tudo parece bem: mas cedo, de um outro lado,

Por uma águia de agudo bico o abutre é devorado;

O homem, com um chumbo mortal, atinge essa águia altaneira:

E o homem, nos campos de Marte, jazendo sobre a poeira,

Sangrando, trespassado de golpes, sobre um monte de agonizantes,

 

Serve de alimento horrendo a tais aves devorantes.

Igualmente do mundo inteiro todos os membros gemem;

Nascidos todos para as tormentas, um pelo outro perecem;

E vós haveis de compor por entre este caos fatal

Das desventuras de cada ser uma felicidade geral!

Que felicidade! Ó mortal e fraco e miserável,

Vós clamais «Tudo está bem» com uma voz lamentável;

O Universo desmente-vos e vosso próprio coração

Por cem vezes refutou a vosso espírito tal errónea noção.

 

Elementos, animais, humanos, tudo está em guerra.

Há que reconhecê-lo, o mal está sobre aterra:

Seu princípio secreto não nos é de todo conhecido.

Do autor de todo o bem, terá o mal decorrido?

Será o negro Tifão, o bárbaro Arimane,

Cuja lei tirânica a sofrer nos condena?

Tais monstros odiosos meu espírito não incorpora

Deles o mundo tremente fez deuses outrora.

Mas como conceber um Deus, a bondade mesma,

Que prodigalizasse seus bens aos filhos que ama

E sobre eles lançasse os males em torrente?

Que visão penetraria os recessos de sua mente?

Do ser todo perfeito não poderia o mal ganhar teor;

Porém ele não vem de outrem, pois só Deus é o senhor

Ele existe, contudo. Ó tristes verdades!

Ó mistura espantosa de contrariedades!

Um Deus veio consolar a nossa raça alarmada;

Visitou a terra, mas não a mudou em nada!

Diz-nos um sofista arrogante que ele o não pôde fazer:

«Ele poderia», diz outro, «mas havia de o querer:

Querê-lo-ia, sem dúvida;» e, enquanto se apregoa,

Há trovões subterrâneos que vão engolindo Lisboa,

E de trinta cidades dispersam os lambris,

Das margens sangrentas do Tejo até ao mar de Cádis.

 

Ou o homem nasceu culpado, e Deus pune sua raça,

Ou esse senhor absoluto do ser e do espaço,

Sem furor, sem piedade, tranquilo, indiferente,

De seus primeiros decretos segue a eterna torrente;

Ou a matéria informe, a seu mestre rebelde,

Transporta consigo defeitos tão necessários quanto ela;

Ou Deus nos põe à prova, e esta estadia mortal

Não é senão uma passagem estreita para um mundo eternal.

Aqui experimentamos dores transitórias:

Falecer é um bem que termina as nossas misérias.

Mas quando por fim sairmos desta passagem de agruras,

Qual de nós pretenderá merecer colher venturas?

 

Qualquer partido que tomemos, certo é que tremeremos.

Nada há que conheçamos, e nós tudo tememos.

A natureza está muda, em vão a interrogamos;

Precisamos de um Deus que fale aos humanos.

Somente a ele cabe explicar o que há obrado,

Consolar o fraco, e esclarecer o avisado.

O homem, na dúvida, no erro, sem ele dado ao relento,

Busca em vão os esteios que lhe sirvam de fundamento.

Leibniz nunca me ensina por que nós invisíveis,

No mais bem ordenado dos universos possíveis,

Uma desordem eterna, um caos de infelicidades,

A nossos vãos prazeres mistura certas dores que são verdades,

Nem por que é que o inocente, tal como o culpado,

Sofre do mesmo modo este mal desgraçado.

Também não concebo como tudo estaria bem:

Sou como um médico; infelizmente nada sei.

 

Diz Platão que o homem teria outrora sido alado,

Um corpo impenetrável ainda que mortalmente golpeado;

Nunca se aproximavam dele a dor, ou o falecimento.

Como hoje em dia ele difere desse estado esplandecente!

Ele arrasta-se, sofre, morre; tudo o que nasce tem conclusão.

A natureza é o império da destruição.

Uma fábula composta de nervos e de ossamentos

Não pode ser insensível ao choque dos elementos;

Esta mistura de sangue, de licores e de poeira,

Já que foi constituída, há-de dissolver-se inteira;

E destes nervos delicados o pronto sentimento

Foi sujeitado às dores, ministras do falecimento:

Eis o que me ensina a voz da natureza.

Abandono Platão, rejeito Epicuro com firmeza.

Bayle sabe mais que todos; é a ele que vou consultar:

De balança na mão, Bayle ensina a duvidar.

Basto sábio, basto grande para não ter sistema que se veja,

Ele a todos destruiu, e a si mesmo se peleja:

Semelhante aquele cego pelos Filisteus alvejado,

Que tombou debaixo dos muros por suas mãos derribados.

Que pode pois do espírito a mais vasta extensão?

Nada: o livro da sorte fecha-se diante da nossa visão.

O homem, estranho a si mesmo, pelo homem é ignorado.

Que sou eu, onde estou, onde vou, e donde fui tirado?

Átomos atormentados sobre este informe lameiro,

Que a morte engole, e cuja sorte se joga por inteiro,

Mas átomos pensantes, átomos cujos olhos incréus,

Conduzidos pelo pensamento, mediram os céus;

No seio do infinito arremessamos o nosso ser,

Sem por um instante nos podermos ver e conhecer.

Este mundo, este teatro de orgulho e de inverdade,

Está repleto de infortunados que falam de felicidade.

Todos se queixam, todos gemem enquanto buscam o bem-estar:

Ninguém quereria morrer, ninguém quereria regressar.

Todavia, nos dias que consagramos aos padecimentos,

Pela mão do prazer secamos os carpimentos;

Mas o prazer abala, e passa como uma sombra;

Nossas penas, nossos remorsos, nossas perdas, são sem conta.

O passado não é para nós mais que um triste recordar;

O presente é terrível, se não pudermos futurar,

Se a noite tumular aniquila o ser que pensa.

Um dia tudo estará bem, eis aí a nossa esperança;

Tudo está bem hoje em dia, eis aqui a ilusão.

Os sábios enganaram-me, somente Deus tem razão.

Humilde nos meus suspiros, sujeitado à minha sofrença,

Não me elevo de todo contra a Providência.

Num tom bem menos lúgubre me viram outrora

Dos doces prazeres cantar a lei sedutora:

Outros tempos, outros costumes: instruído pelo envelhecimento,

Dos humanos dispersos partilhando o desfalecimento,

Por entre espessa noite procuro me iluminar,

Não sei senão sofrer, e nem sequer murmurar.

 

Outrora um califa, chegado à hora em que se falece,

Ao deus que adorava disse então como prece:

«Trago-te, ó único rei, único ser sem limitação,

Tudo o "que não possuis na tua imensidão,

Os defeitos, os remorsos, os males e a ignorância.»

Mas poderia haver acrescentado ainda a esperança.

(Poema sobre o Desastre de Lisboa, Voltaire. Frenesi, Lisboa, 2005)