Eu digo: também a crosta feita de escamas de pedra e limo dentro de ti, pelo sangue recebida tecida de medo e ganância má. Ar de pântano diário nos pulmões. Raiz de gestos legais e limbo do homem só numa ilha.
Eu digo: também a crosta essa que a classe gerou vil, tirânica, escamenta.
Se me quiseres amar.
Agora teu corpo é fruto. Peixe e pássaro, cabelos de fogo e cobre. Madeira e água deslizante, fuga ai rija cintura de potro bravo. Teu corpo.
Relâmpago depois repouso sem memória, noturno.
(“Poemas políticos. Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1951)
Diálogo na sombra
– Que dissestes, meu bem?
Esse gosto. Donde será que ele vem?
Corpo mortal. Águas marinhas.
Virá da morte ou do sal? Esses dois que moram no fundo e no fim.
– De quem falas amor, do mar ou de mim?
(“Canção da partida”. Edições Gaveta, 1945)
*
Canção da liberdade
Eu só tenho a vida minha. Eu sou pobre pobrezinha, tão pobre como nasci, não tenho nada do mundo, tudo que tive, perdi. Que vontade de cantar: a vida vale por si.
Nada eu tenho neste mundo, sozinha! Eu só tenho a vida minha.
Eu sou planta sem raiz que o vento arrancou do chão, já não quero o que já quis, livre, livre o coração, vou partir para outras terras, nada mais eu quero ter, só o gosto de viver.
Nada eu tenho neste mundo, sozinha! Eu só tenho a vida minha.
Sem amor e sem saúde, sem casa, nenhum limite, sem tradição, sem dinheiro, sou livre como a andorinha, tem por pátria o mundo inteiro, pelos céus cantando voa, cantando que a vida é boa. Nada eu tenho neste mundo, sozinha! Eu só tenho a vida minha. ("Canção da partida". Edições Gaveta, 1945)
*
Jacinta Velloso Passos escritora nascida em Cruz das Almas, Bahia, em 1914, autora de quatro livros de poemas — Momentos de poesia (1941), Canção da partida (1945), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1958) —, elogiados por críticos do porte de Antônio Candido, Mário de Andrade, Aníbal Machado e Roger Bastide, entre outros. Seu livro mais importante, Canção da partida, foi ilustrado pelo artista Lasar Segall.
Jacinta tornou-se uma das mais ativas jornalistas da Bahia na década de 40, escrevendo sobre os assuntos que mais a interessavam, pelos quais lutava: política, transformações sociais e posição da mulher na sociedade. Colaborou também com jornais e revistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Militante do Partido Comunista Brasileiro de 1945 até a morte, em 1973, dedicou grande parte da vida ao trabalho penoso, clandestino e cotidiano de luta por um Brasil menos injusto.
«Só para relembrar: as chamadas Cruzadas, num total de oito, foram convocadas pelos papas a partir do século XI para “servir a Deus” contra os “infiéis muçulmanos”. Realizadas entre 1095 e 1291, sob o símbolo de uma cruz branca, tiveram também um objectivo bem menos “santo”: o lucro, a pilhagem das cidades, o saque, a tomada de pontos comerciais estratégicos (como o porto de Zara, no Adriático), a imposição dos grandes negócios de venezianos e genoveses. Tudo isso canalizou riquezas para os cofres papais e das classes dominantes da Europa. A derrota dos cruzados ocorreu a partir de 1244, quando perderam definitivamente Jerusalém e em 1291 quando os árabes retomaram Acre, pondo fim a dois séculos de selvajaria económico e religiosa ocidental em terra alheia.» (Jornal "Nova Democracia”) «Os canibais de Maara.
“Eu não sei se o domicílio onde nasci se trata de um pasto de bestas selvagens ou de minha casa!”
Esse grito de aflição de um poeta de Maara não é um simples recurso retórico. Temos infelizmente que tomar suas palavras ao pé da letra e perguntar-nos com ele: o que aconteceu de tão monstruoso na cidade síria de Maara no final do ano 1098?
Até a chegada dos franj (os árabes chamavam os cruzados de franj, provavelmente um termo vindo de franc — francos, franceses), os habitantes viviam pacificamente ao abrigo de sua muralha. Os vinhedos, os campos de oliveiras e pés de figos forneciam-lhes uma modesta prosperidade. O orgulho de Maara era ser berço de uma das maiores figuras da literatura árabe, Abul-Ala al Maari, morto em 1057. Esse poeta cego, livre-pensador, ousara atacar os costumes da época. Era preciso audácia para escrever:
“Os habitantes da terra dividem-se em dois grupos, Os que têm um cérebro, mas não possuem religião, E aqueles que têm religião, mas não têm cérebro.”
Quarenta anos após sua morte, um fanatismo vindo de longe viria, aparentemente, dar razão ao poeta de Maara. Nos primeiros meses de 1098, os habitantes da cidade acompanharam com preocupação a batalha de Antioquia, a três dias dali. Após a vitória dos franj, estes vieram saquear alguns vilarejos vizinhos e Maara fora poupada. Mas algumas famílias preferiram fugir para lugares mais seguros.
Seus temores foram justificados quando, no final de Novembro, milhares de guerreiros francos cercaram a cidade. A maioria dos habitantes não teve escapatória. Maara não possuía exército, tinha apenas uma milícia urbana à qual se juntaram centenas de jovens sem experiência militar. Por duas semanas resistiram corajosamente aos temíveis cavaleiros, chegando a jogar sobre eles colmeias cheias de abelhas.
Até que chega a noite de 11 de Dezembro. Os franj ainda não ousaram penetrar na cidade. Os notáveis de Maara entram em contacto com Bohémond e o chefe franco promete garantias se cessarem o combate. Agarram-se à palavra dada. Na alvorada, chegam os franj . É uma carnificina. Durante três dias matam mais de 100 mil pessoas pela espada e fazem muitos prisioneiros.
Os números do cronista Ibn al-Athir são fantasiosos, pois a população de Maara era provavelmente inferior a 10 mil habitantes. Mas o horror está menos presente no número de vítimas do que no destino inimaginável que lhes foi reservado. “Em Maara os nossos faziam ferver os pagãos adultos em caldeiras, fincavam as crianças em espetos e as devoravam grelhadas”, confessou o cronista franco Raoul de Caen. Até o fim de suas vidas os árabes das redondezas se lembrarão do que viram e ouviram. A lembrança dessas atrocidades fixará nos espíritos uma imagem dos franj difícil de ser apagada.
Jamais os turcos esquecerão o canibalismo dos ocidentais. Em toda a sua literatura épica, os franj serão invariavelmente descritos como antropófagos.
Será injusta essa visão? Terão os invasores devorado os habitantes de Maara com o único objectivo de sobreviver? Seus chefes dirão ao papa: “Uma fome terrível assolou o exército de Maara e o colocou na cruel necessidade de se alimentar dos cadáveres dos sarracenos.” Mas essa explicação parece um pouco fácil. Pois os habitantes da região assistem, naquele inverno, a comportamentos que a fome não pode explicar. Vêem bandos de franj fanatizados, os tafurs, clamando alto que querem devorar a carne dos sarracenos e que se reúnem à noite, ao redor do fogo, para devorar suas presas.
Canibais por necessidade? Os testemunhos são acusadores. Uma frase do cronista Albert de Aix, que esteve na batalha de Maara, permanece inigualável em horror: “Aos nossos não repugnava comer não só a carne dos turcos e dos sarracenos mortos como também a carne dos cães!”
O suplício da cidade só terá fim em Janeiro de 1099 quando os franj armados de tochas põem fogo em cada casa. Os episódios de Maara vão contribuir para cavar entre os árabes e os franj um fosso que vários séculos não serão suficientes para preencher.
Porém, quando os francos retomam sua caminhada ao sul, os emires sírios se apressam em enviar presentes para assegurar-lhes sua boa vontade. Ninguém ignora mais o itinerário dos franj. Não bradam eles que seu objectivo final é Jerusalém, onde querem tomar posse do túmulo de Jesus? Todos que estão nessa rota tentam precaver-se contra o flagelo que representam.
Muitos se escondem nos bosques, outros na fortaleza mais próxima. Foi esta última solução a escolhida pelos camponeses da planície de Bukaya, quando em Janeiro de 1099 são avisados da aproximação dos francos. Reunindo gado, óleo e trigo sobem para Hosnel-Akrad. Mesmo estando há muito abandonada, a fortaleza tem difícil acesso e muralhas sólidas.
Os franj vêm sitiá-los. A 28 de Janeiro seus guerreiros começam a escalar os muros da fortaleza. Sentindo-se perdidos, os camponeses imaginam um estratagema. Abrem subitamente os portões e deixam escapar uma parte de seu rebanho. Esquecendo o combate, os franj se lançam sobre os animais. A desordem é tanta que os sitiados, encorajados, efectuam uma saída e atingem a tenda de Saint-Gilles, onde o chefe franco, abandonado por seus guardas, escapa à captura por um fio.
Os camponeses ficam entusiasmados, mas sabem que os sitiantes voltarão. Dia seguinte, quando Saint-Gilles se lança ao assalto, os camponeses não aparecem. Os atacantes perguntam-se que novo ardil terão inventado. Foi o mais sábio de todos: aproveitaram-se da noite para sair sem ruído e desaparecer ao longe.
A cidadela torna-se por alguns dias o quartel-general dos franj. E nela assiste-se a um espectáculo desconcertante. Das cidades vizinhas chegam delegações com mulas carregadas de ouro, tecidos, provisões. A fragmentação política da Síria é enorme.
De todas as delegações que desfilam nas imensas salas de Hosnel-Akrad, a mais generosa é a de Trípoli. Na época em que os franj surgiram, Trípoli vivia um tempo de paz e prosperidade. A imensa “casa da cultura”, que encerra uma biblioteca de 100 mil volumes, uma das mais importantes daquele tempo, é o orgulho dos cidadãos. A cidade é cercada por campos de oliveiras, alfarrobeiras, cana-de-açúcar e frutas de toda espécie. Seu porto é movimentado.
É essa opulência que vai valer à cidade seus primeiros dissabores com os franj . Na mensagem que manda a Saint-Gilles, o cádi de Trípoli convida-o para negociar uma aliança. Um erro imperdoável. Ao chegarem, os emissários francos ficam tão maravilhados que só pensam em tudo que poderiam pilhar ali. A 14 de Fevereiro, o cádi, aterrorizado, fica sabendo que os franj sitiaram Arqa, a segunda cidade do principado de Trípoli.
Na capital, acumulam-se reservas na espera de um longo sítio. Fevereiro passa, depois Março e Abril. As notícias são reconfortantes: os franj ainda não tomaram Arqa, cujos defensores estão tão espantados quanto os atacantes. O que faz a força de Arqa é que seus habitantes estão convencidos, desde o primeiro instante, que se uma única brecha for aberta eles serão massacrados. Dia e noite velam, impedindo a menor infiltração. Os invasores acabam se cansando. A 13 de Maio de 1099 se afastam, frustrados. A tenacidade dos moradores foi recompensada. Arqa está exultante.
Os francos retomam sua marcha ao sul. Passam defronte de Trípoli com uma lentidão inquietante... mas não param. Seguem em frente e alcançam Nahr el-Kalb, o “Rio do Cachorro”. Ao transpor o rio, colocam-se em estado de guerra com o califado do Egipto.
Anos antes, porém, o homem forte do Egipto, o corpulento Al-Afdal Chahinchah — um escravo de 35 anos que dirigia sozinho a nação egípcia de 7 milhões de habitantes — ficara satisfeito com a chegada dos cavaleiros francos na cristã Constantinopla.
“Alguns dizem que quando os senhores do Egipto viram a expansão do império seldjúcida, foram tomados de medo e pediram aos franj que marchassem sobre a Síria e formassem uma barreira entre eles e os muçulmanos. Só Deus sabe a verdade.”
Essa explicação de Ibn al-Athir sobre a origem da invasão franca diz muito da divisão que reinava no seio do mundo islâmico entre os sunitas, vinculados ao califado abássida de Bagdad e os xiitas, ligados ao califado fatímida do Cairo.
Na chegada dos ocidentais, em 1097, Al-Afdal tentara até um acordo de partilha: para aqueles, a Síria do Norte; para ele, a Síria do Sul, isto é, a Palestina. Os francos mostraram-se amigáveis com os diplomatas egípcios, chegando até a oferecer-lhe o espectáculo das cabeças cortadas de 300 turcos. Mas, curiosamente, recusaram-se a concluir qualquer acordo.
Em Julho de 1098, ao chegar a notícia da queda de Antioquia, o homem forte do Cairo decide agir imediatamente, sitiando Jerusalém. Por vários meses, os acontecimentos parecem dar razão a Al-Afdal, pois tudo se passa como se os franj, ao se deparar com o facto consumado, tivessem renunciado a Jerusalém. Mas quando em Janeiro de 1099 os francos retomam sua marcha ao sul, ele fica preocupado.
Faz chegar novas propostas aos franj. A resposta: “Nós iremos a Jerusalém todos juntos, em ordem de combate, lanças erguidas!” É uma declaração de guerra. Em Maio, os invasores atravessam sem hesitar o “Rio do Cachorro”, o limite norte do território egípcio.
Na manhã de 7 de Junho os habitantes de Jerusalém já podem vê-los aparecer ao longe. O comandante Iftikhar ad-Dawla, “Orgulho do Estado”, comandante da guarnição egípcia, observa com serenidade do alto da torre de David. Há meses tomou todas as providências para um longo sítio.
Mas o comportamento dos franj é desconcertante. Iftikhar esperava vê-los construir, tão logo chegassem, torres móveis e instrumentos de sítios, cavar trincheiras. Ora, longe desses preparativos, eles começam organizando uma procissão em volta dos muros, conduzida por sacerdotes que oram e cantam, antes de se lançarem como loucos ao assalto das muralhas, sem dispor de escada alguma.
As procissões cantantes dos franj irritam Iftikhar, mas não o preocupam. Somente após a segunda semana é que ele sente nascer a preocupação quando o inimigo inicia a feitura de duas imensas torres de madeira.
“Uma das torres móveis construídas pelos franj”, contará Ibn al-Athir, “ estava do lado de Sião, ao sul, e a outra ao norte. Os muçulmanos conseguiram queimar a primeira, matando todos aqueles que se encontravam nela. Porém, mal tinham acabado de destrui-la, um mensageiro chegou, pedindo ajuda, pois a cidade estava sendo invadida pelo outro lado. De fato, ela foi tomada pelo norte, numa sexta-feira de manhã, sete dias antes do final do tempo de chaaban do ano 492 (Julho de 1099).”
Segundo al-Athir,“ a população da Cidade Santa foi morta pela espada e os franj massacraram os muçulmanos durante uma semana. Na mesquita al-Aqsa, eles mataram mais de 70 mil pessoas.” Ibn al-Qalanissi, que evita manipular números que se podem verificar, disse apenas que muitas pessoas foram mortas e que os francos destruíram até os monumentos dos santos (!). Entre as construções saqueadas estava a mesquita de Omar, feita em memória do segundo sucessor de Maomé, Omar Ibn al-Khattab, que tomara Jerusalém dos cristãos em Fevereiro de 638. Os árabes não deixaram de evocar este acontecimento para ressaltar a diferença entre seu o comportamento e o dos franj.
Lembravam que Omar assegurou a vida e os bens de todos os habitantes da cidade. E que quando ele e o patriarca grego (chefe cristão de Jerusalém, recém deposto) estavam visitando o Santo Sepulcro, Omar perguntou onde poderia estender seu tapete para orar, pois chegara a hora da reza a Alá. O patriarca disse-lhe para orar ali mesmo, mas o árabe não quis. “Se eu fizer isso, amanhã os muçulmanos vão querer apropriar-se deste local dizendo: “Omar orou aqui...” E, levando o seu tapete, foi ajoelhar-se em outro local. Pensou correctamente, pois foi naquele exacto local que se construiu a mesquita que traz seu nome.
Os chefes francos não tiveram essa magnanimidade. Festejaram seu triunfo com uma matança indescritível, depois saquearam selvaticamente a cidade que pretendiam venerar.
Seus correligionários (os cristãos do Oriente) não foram poupados: uma das primeiras medidas dos franj foi expulsar da igreja do Santo Sepulcro todos os sacerdotes cristãos gregos, georgianos, etc., que oficiavam juntos, segundo uma tradição que todos os conquistadores haviam respeitado até então.
Pasmos, os dignitários das comunidades cristãs orientais decidiram resistir. Recusaram-se a revelar aos invasores o local onde estava escondida a cruz verdadeira onde Cristo morreu. Para aqueles homens, a devoção religiosa era acrescida de orgulho patriótico. Não eram eles, afinal, os concidadãos do Nazareno?
Mas os invasores não se deixam impressionar. Submetendo os sacerdotes à tortura, conseguiram tirar dos cristãos da Cidade Santa, pela força, a mais preciosa de suas relíquias.»
Nota: O Concílio de Clermont, realizado em novembro de 1095, na cidade do mesmo nome na região central da França, testemunhou a histórica convocação pelo Papa Urbano II (pontificado 1088-1099) da Primeira Cruzada (1095-1102), com o objetivo de tomar Jerusalém, das mãos dos muçulmanos que a ocupavam, em nome da cristandade. O discurso do Papa para a hierarquia da Igreja e para a multidão de laicos ali reunidos prometia, enfaticamente, a remissão dos pecados de todos os que participassem (www.worldhistory.org).
A ocupação da Palestina e a guerra por todo o Médio Oriente alargado, bem como a guerra na Ucrânia, enquadram-se na cruzada do domínio destas regiões estratégicas pelo mundo ocidental cristão e capitalista.
"As cruzadas vistas pelos árabes", de Amin Maalouf e editado em 1983, lança alguma luz sobre a acção civilizadora e libertadora levada a cabo pelos países ocidentais e pelo cristianismo em terras árabes. O capítulo Os canibais de Maara, que tomamos a liberdade de transcrever, é um resumo de responsabilidade de Rosana Bond e publicado no jornal brasileiro “Nova democracia”.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
*
As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.
Ela sobe dos pés e atravessa
a carne quebrada.
Nasce dos pés, ou da vulva, ou do ânus -
e mistura-se nas águas,
no sonho da cabeça.
As mulheres pensam como uma impensada roseira
que pensa rosas.
Pensam de espinho para espinho,
param de nó em nó.
As mulheres dão folhas, recebem
um orvalho inocente.
Depois sua boca abre-se.
Verão, outono, a onda dolorosa e ardente
das semanas,
passam por cima. As mulheres cantam
na sua alegria terrena.
Que coisa verdadeira cantam?
Elas cantam.
São fechadas e doces, mudam
De cor, anunciam a felicidade no meio da noite,
Os dias rutilantes, a graça.
Com lágrimas, sangue, antigas subtilezas
E uma suavidade amarga -
As mulheres tornam impura e magnífica
nossa límpida, estéril
vida masculina.
Porque as mulheres não pensam: abrem
rosas tenebrosas,
alagam a inteligência do poema com o sangue menstrual.
São altas essas roseiras de mulheres,
inclinadas como sinos, como violinos, dentro
do som.
Dentro da sua seiva de cinza brilhante.
O pão de aveia, as maçãs no cesto,
o vinho frio,
ou a candeia sobre o silêncio.
Ou a minha tarefa sobre o tempo.
Ou o meu espírito sobre Deus.
Digo minha vida é para as mulheres vazias,
as mulheres dos campos, os seres
fundamentais
que cantam de encontro aos sinistros
muros de Deus.
As mulheres de ofício cantante que a Deus mostram
a boca e o ânus
e a mão vermelha lavrada sobre o sexo.
Espero que o amor enleve a minha melancolia
E flores sazonadas estalem e apodreçam
docemente no ar.
E a suavidade e a loucura parem em mim,
e depois o mundo tenha cidades antigas
que ardam na treva sua inocência lenta
e sangrenta.
Espero tirar de mim o mais veloz
apaixonamento e a inteligência mais pura.
- Porque as mulheres pensarão folhas e folha;
no campo.
Pensarão na noite molhada,
no dia luzente cheio de raios.
Vejo que a morte se inspira na carne
que a luz martela de leve.
Nessas mulheres debruçadas sobre a frescura
veemente da ilusão,
nelas - envoltas pela sua roseira em brasa -
vejo os meses que respiram.
Os meses fortes e pacientes.
Vejo os meses absorvidos pelos meses mais jovens.
Vejo meu pensamento morrendo na escarpada
treva das mulheres.
E digo: elas cantam a minha vida.
Essas mulheres estranguladas por uma beleza
incomparável.
Cantam a alegria de tudo, minha
alegria
por dentro da grande dor masculina.
Essas mulheres tornam feliz e extensa
a morte da terra.
Elas cantam a eternidade.
Cantam o sangue de uma terra exaltada.
*
Se alargas os braços desencadeia-se uma estrela de mão
a mão transparente, e atrás,
nas embocaduras da noite,
o mundo completo treme como uma árvore
luzindo
com a respiração. E ofereces,
das unhas à garganta
talhada, a deslumbrante queimadura do sono.
-Em teu próprio torvelinho se afundam
as coisas. Porque és um vergão raiando entre
esses braços
que irrompem da minha morte se durmo, da loucura
se a veia
violenta que me atravessa a cabeça se torna
ígnea como
um rio abrupto num mapa. Quando as salas
negras fotográficas
imprimem a sensível trama das estações
com as paisagens por cima. E
Jorras
desde as costas dos espelhos, seu coração
arrancado pelos dedos todos de que se escreve
o movimento inteiro.
Nunca digas o meu nome se esse nome
não for o do medo. Ou se rapidamente o lume se não repartir
nas formas
lavradas como chamas à tua volta. Os animais
que essa labareda ilumina
na boca. Desde a obscuridade
de tudo que tudo
é inocente. Nunca se pode ver a noite toda de súbito.
E da fronte aos quadris em tuas linhas, és
cega, fechada.
A minha força é a desordem. Reluzes
na tempera enxuta - queima-te.
O ouro desloca atua cara. Um nervo
atravessa as frementes, delicadas massas
das imagens:
como uma ferida límpida desde a nascença pela carne
fora. És alta em mim por essa
cicatriz que se abre ao dormir e quando
se acorda fica aberta.
- Esta
espécie de crime que é escrever uma frase que seja
uma pessoa magnificada.
Uma frase cosida ao fôlego, ou um relâmpago
estancado
nos espelhos. E às vezes é uma raiz engolfada, e quando toca
a fundura das paisagens, as constelações mudam
no chão. A truculência
que se traça como uma frase na pessoa, uma queimadura
branca. Porque ela mostra as devastações
magnéticas
da matéria. Na frase vejo os fulcros da pessoa.
Por furos acerbos as estações que se escoam
e a inquebrantável
paisagem que as persegue por dentro. A frase
que é uma pálpebra
viva
como roupa fechada sobre a radiação das veias.
Que é uma cara, uma cratera.
Ou um hausto animal das unhas à testa
onde
fulguram os cornos em coroa.
E esta massa ofegante é queimada por um
suspiro, um alimento brutal.
O teu rosto cerca-me, a minha
morte cerca o teu rosto como uma clareira
pulsando
na luz cortada. A pessoa
que é uma frase: astro
rude cruamente encordoado entre as omoplatas.
Como se um nervo cosesse todas as partes pungentes e selvagens
da carne. Como
se atua frase fosse um buraco brilhando até aos pulmões,
com o sangue e a língua
na minha garganta. A beleza que te trabalha
deixa-te
árdua e intacta
no mundo, entre o sangue estrangulado na minha memória.
(“Ou O Poema Contínuo: Súmulas”. Edição Assírio & Alvim, 2001)
Herberto Helder é considerado como um dos maiores poetas europeus contemporâneos ou o "maior poeta português da segunda metade do século XX" e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa. Nasceu em Funchal, Ilha da Madeira em 23 de novembro de 1930. Faleceu em Cascais em 23 de março de 2015
Por este rio acima Deixando para trás A côncava funda Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho Flutuando nas águas Dos rios dos céus Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas Pimenta e canela Recebendo ofertas De músicas suaves Em nossas orelhas
Leve como o ar A terra a navegar Meu bem como eu vou Por este rio acima
Por este rio acima Os barcos vão pintados De muitas pinturas Descrevem varandas
E os cabelos de Inês Desenham memórias Ao longo da água Bosques enfeitiçados
Soutos laranjeiras Campinas de trigo Amores repartidos Afagam as dores Quando são sentidos
Monstros adormecidos Na esfera do fogo Como nasce a paz Por este rio acima
Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei, eu nem sei Fica um bocadinho mais Que eu também Que eu também Meu bem
Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei, eu nem sei Fica um bocadinho mais Que eu também Que eu também Meu bem
Por este rio acima Isto que é de uns Também é de outros Não é mais nem menos
Nascidos foram todos Do suor da fêmea Do calor do macho Aquilo que uns tratam Não hão-de tratar Outros de outra coisa
Pois o que vende o fresco Não vende o salgado Nem também o seco Na terra em harmonia Perfeita e suave Das margens do rio Por este rio acima
Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei, eu nem sei Fica um bocadinho mais Que eu também Que eu também Meu bem
Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei, eu nem sei Fica um bocadinho mais Que eu também Que eu também Meu bem
Por este rio acima Deixando para trás A côncava funda Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho Flutuando nas águas Dos rios dos céus Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas Pimenta e canela Recebendo ofertas De músicas suaves Em nossas orelhas
Leve como o ar A terra a navegar Meu bem como eu vou Por este rio acima
Por este rio acima
*
Uns Vão Bem e Outros Mal
Senhoras e meus senhores, façam roda por favor Senhoras e meus senhores, façam roda por favor, cada um com o seu par Aqui não há desamores, se é tudo trabalhador o baile vai começar. Senhoras e meus senhores, batam certos os pézinhos, como bate este tambor Não queremos cá opressores, se estivermos bem juntinhos, vai-se embora o mandador Vai-se embora o mandador
Faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres Folha seca cai ao chão, folha seca cai ao chão Eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, Que eu sou doutra condição, que eu sou doutra condição
De velhas casas vazias, palácios abandonados, os pobres fizeram lares Mas agora todos os dias, os polícias bem armados desocupam os andares Para que servem essas casas, a não ser para o senhorio viver da especulação Quem governa faz tábua rasa, mas lamenta com fastio a crise da habitação
E assim se faz Portugal, uns vão bem e outros mal
Faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres Folha seca cai ao chão, folha seca cai ao chão Eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, Que eu sou doutra condição, que eu sou doutra condição
Tanta gente sem trabalho, não tem pão nem tem sardinha e nem tem onde morar Do frio faz agasalho, que a gente está tão magrinha da fome que anda a rapar O governo dá solução, manda os pobres emigrar, e os emigrantes que regressaram Mas com tanto desemprego, os ricos podem voltar porque nunca trabalharam
E assim se faz Portugal, uns vão bem e outros mal
Faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres Folha seca cai ao chão, folha seca cai ao chão Eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, Que eu sou doutra condição, que eu sou doutra condição
E como pode outro alguém, tendo interesses tão diferentes, governar trabalhadores Se aquele que vive bem, vivendo dos seus serventes, tem diferentes valores Não nos venham com cantigas, não cantamos para esquecer, nós cantamos para lembrar Que só muda esta vida, quando tiver o poder o que vive a trabalhar
Segura bem o teu par, que o baile vai terminar
Faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres, faz lá como tu quiseres Folha seca cai ao chão, folha seca cai ao chão Eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, eu não quero o que tu queres, Que eu sou doutra condição, que eu sou doutra condição.
O termo "anticristo" (anticristos) aparece no Novo Testamento apenas na primeira e na segunda carta de João. O contexto é certamente escatológico (paidia, eschate hora estin, vulg. Filioli, novissima hora est, "filhos, é a última hora"), e o termo aparece significativamente também no plural: "como ouvistes que o anticristo vem e agora muitos se tornaram anticristos”. Não menos decisivo é que o apóstolo define a última hora como o "agora (nyn)" em que ele mesmo se encontra: "vem o anticristo (erchetai, presente do indicativo)". Pouco depois, é especificado, se necessário, que o anticristo "está agora no mundo (nyn en to kosmoi estin)". É bom não esquecer esse contexto escatológico do anticristo, se é verdade - como Peterson, e Barth antes dele, não se cansam de lembrar - que o último momento da história humana é inseparável do cristianismo ("um cristianismo - escreve Barth - que não é tudo e totalmente e sem escatologia residual, não tem nada totalmente e sem resíduos a ver com Cristo "). O anticristo é para João aquele que na última hora "nega que Jesus é o Cristo" (isto é, o Messias) e os anticristos são, portanto, os "muitos" que, como ele, "saíram de nós, mas que não eram de nós", o que sugere, não sem ambiguidade, que o anticristo emerge do seio da ekklesia, mas realmente não pertence a ela. Como tal, ele é repetidamente referido como "enganador" (planos, literalmente "aquele que engana", vulg. Sedutor).
O lugar em que a exegese dos padres e teólogos sobre o anticristo se concentrou durante séculos não é, porém, nas cartas de João, mas na segunda carta paulina aos tessalonicenses. Mesmo que o termo não apareça, a personagem enigmática que a carta apresenta como "o homem da anomia" (ho anthropos tes anomias) e o "filho da perdição" (ho uios tes apoleias) já foi identificado por Hipólito, Irineu e Tertuliano e depois por Agostinho com o anticristo. De fato, Paulo diz dele, a quem ele também define como "iníquo" (anomos), que "ele se levanta contra tudo o que se chama Deus ou objeto de veneração, a ponto de se sentar no templo de Deus, proclamando-se ser Deus". O anticristo é um poder mundano (uma tradição o identificou com um Nero revivido) que tenta imitar e falsificar o reino de Cristo no tempo do fim.
Na carta aos Tessalonicenses, porém, o homem sem lei é colocado em estreita relação com outra figura enigmática, o katechon (τὸ κατέχον), aquele que retém (também na forma masculina: "aquele que retém"). O que é retido é "a parusia de nosso Senhor Jesus Cristo e nosso reencontro com ele": o contexto da carta é, portanto, exatamente como na carta escatológica de João (pouco antes, o apóstolo evoca "o justo juízo de Deus... na revelação do Senhor Jesus com os anjos do seu poder”). Já no tempo de Agostinho, esse poder que impede o advento final de Cristo foi identificado com o Império Romano (que Paulo, segundo as palavras de Agostinho, teria omitido mencionar explicitamente "para não incorrer na acusação de desprezo, desejando o mal ao império que todos consideravam eterno”) ou com a própria igreja romana, como a carta de João parecia sugerir, mencionando os anticristos que “sairão de nós”. Em todo caso, seja o império romano ou a igreja, o poder que detém é o de uma instituição fundada em uma lei ou constituição estável (antecipando nossa nação de "estado", diz Tertuliano: status romanus, que seu tempo significava " a condição estável do Império Romano").
O decisivo é entender a relação entre o poder que retém e "o homem da ausência da lei". Às vezes, tem sido interpretado como um conflito entre dois poderes, no qual o sem lei ou o anticristo "retira" o poder que detém. A expressão ek mesou genetai ("até que saia do caminho aquele que retém") não implica de forma alguma que seja o homem da anomia quem o faça: como sugere a tradução da vulgata (donec de medio fiat), livrar-se dos meios é o mesmo poder que detém (seja o império ou a igreja). O texto que se segue é perfeitamente claro neste sentido: "e então os iníquos serão revelados". A relação entre o poder institucional do cateco e o homem da ausência de lei é a sucessão entre dois poderes mundanos, um dos quais descola e é substituído - ou passa - no outro. Este é, nas palavras de Paulo, "o mistério da anomia que já está em andamento" e que encontra sua revelação no final, como se, como o termo "mistério" parece sugerir, o "sem lei" finalmente exibido em plena luz a verdade do poder que o precede.
Se isso for verdade, então a carta contém uma doutrina sobre o destino de qualquer poder institucional que não deve ser negligenciada. De acordo com isso na doutrina, o poder institucional firmemente fundado cede necessariamente no final a uma condição de anomia, na qual o soberano constitucionalmente fundado é substituído por um soberano "sem lei", que exerce seu governo arbitrariamente. A carta contém, portanto, uma mensagem que nos interessa de perto, porque é precisamente esse "mistério da anomia" que vivemos. O poder estatal baseado em leis e constituições ditas democráticas vem-se transformando - por meio de um processo imparável que começou há algum tempo, mas que só agora chega à sua crise definitiva - em uma condição anómica, em que a lei é substituída por decretos e medidas do poder executivo e o estado de emergência torna-se a forma normal de governo. Resta - é bom não esquecer - que a carta afirma que, uma vez revelado o poder dos "iníquos", "o Senhor o suprimirá com o sopro de sua boca e o desativará com a aparência de sua presença". Isso significa que o que nos resta pensar na condição aparentemente sem saída que estamos vivendo é a forma de uma comunidade humana que escapa tanto do "poder de detenção" com sua aparente estabilidade institucional quanto da anomia emergencial em que fatalmente se é convertido.
P'ra mentira ser segura e atingir profundidade, tem que trazer à mistura qualquer coisa de verdade.
Mentiu com habilidade, fez quantas mentiras quis; agora fala verdade ninguém crê no que ele diz.
Gosto do preto no branco, como costumam dizer: antes perder por ser franco que ganhar por não ser.
Julgando um dever cumprir, Sem descer no meu critério, - Digo verdades a rir Aos que me mentem a sério!
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Porque o Povo Diz Verdades
Porque o povo diz verdades, Tremem de medo os tiranos, Pressentindo a derrocada Da grande prisão sem grades Onde há já milhares de anos A razão vive enjaulada.
Vem perto o fim do capricho Dessa nobreza postiça, Irmã gémea da preguiça, Mais asquerosa que o lixo.
Já o escravo se convence A lutar por sua prol Já sabe que lhe pertence No mundo um lugar ao sol.
Do céu não se quer lembrar, Já não se deixa roubar, Por medo ao tal satanás, Já não adora bonecos Que, se os fazem em canecos, Nem dão estrume capaz.
Mostra-lhe o saber moderno Que levou a vida inteira Preso àquela ratoeira Que há entre o céu e o inferno.
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SOBRE SI PRÓPRIO Fui polícia, fui soldado, Estive fora da Nação, vendo jogo, guardo gado, Só me falta ser ladrão!...
Em resposta a algumas provocações de meninos mal-criados:
Não sou esperto nem bruto Nem bem nem mal educado; Sou simplesmente o produto Do meio em que fui criado.
Mas a mais célebre é sem dúvida a quadra de improviso com que respondeu a quem pôs em causa a sua honestidade ou se referiu à forma andrajosa como se vestia:
Sei que pareço um ladrão... Mas há muitos que eu conheço Que, sem parecer o que são, São aquilo que eu pareço.
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António Fernandes Aleixo (Vila Real de Santo António, 18 de Fevereiro de 1899 – Loulé, 16 de Novembro de 1949) é talvez o maior poeta popular português. Em tempo de mentiras, fake news, intimidações e manipulações, de toda a sua poesia oral estas quadras serão as mais oportunas.
Como os antigos bardos e aedos, o poeta popular português António Aleixo nunca teve a preocupação de registar suas composições, mesmo porque era quase analfabeto. Mas graças ao trabalho de Joaquim de Magalhães, compilador dos versos ditados pelo poeta, surgiu um primeiro volume de quadras em 1943, isto é, apenas seis anos antes da morte do autor. Intitulava-se Quando Começo a Cantar. Ainda surgiriam mais dois livros em sua vida: Intencionais, em 1945 e Auto da Vida e da Morte, em 1948. Depois, o resto da obra, publicada postumamente, e só reunida na íntegra em 1969, sob o título "Este livro que vos deixo".
A utilização do título na obra que aqui termina – expressão de grande divulgação feita com base numa narrativa construída, como vimos, pela dupla Salazar-António Ferro – tem, na nossa aceção, um sentido ambíguo e irónico, como se se tratasse de um título idêntico ao do livro de Eduardo Lourenço, O fascismo nunca existiu. Como tentámos provar, tendo como estilo o que foi apresentado pelo nosso ensaísta (que utilizou tantas vezes essa forma de dizer propositadamente o contrário do que queria afirmar), o Estado Novo pode ser caracterizado como uma forma de «fascismo», o que Salazar recusava, ainda que admirasse Mussolini. Do modo idêntico pode, pois, usar-se a expressão e a explicação salazarista de que o Estado Novo tinha de se adaptar aos «brandos costumes» do povo português através de um autoritarismo «brando», procurando nós dizer o inverso. Mas não esqueçamos que a força dessa ideia ainda está presente em alguns historiadores e outros escritores que refletem sobre o Estado Novo e sobre Salazar, como por exemplo sucedeu – para não falarmos dos textos de considerados ensaístas de «direita», como Jaime Nogueira Pinto – na recente obra de um historiador inglês, Tom Gallagher. Sejamos claros: o Estado Novo é um autoritarismo ou mesmo, em certo sentido, um totalitarismo, que não usou de forma alguma a tolerância, nem uma «intolerância branda». E ao dizer isso, estamos a falar do óbvio, porque o regime jamais manifestou, ou poderia manifestar, a tolerância e o pluralismo que supõe a ideia democrática.
Expliquemos melhor. Apresentando-se como Estado corporativo e sem admitir, na prática, a liberdade de reunião e de expressão, toda e qualquer afirmação de liberdade que supusesse a «oposição» aos seus princípios e ideias teria de ser considerada pelo sistema político como uma traição. Por isso, as liberdades do artigo 8.º da Constituição de 1933 teriam de ser contrariadas por decretos-leis e pela prática de instituições que foram sendo criadas. Assim, as eleições jamais poderiam ser livres e existir numa aceção democrática. Nisso o Estado Novo – conceito fascista de origem italiana, Stato nuovo – teria de ter, e teve, grande coerência, exercendo, através dos seus órgãos policiais e de censura, bem como dos seus órgãos corporativos e administrativos e dos seus órgãos de reprodução ideológica, uma prática de intolerância para com as ideias e as práticas de «oposição». Desta forma, como vimos, a PIDE e a Censura teriam um papel importante no cumprimento de uma ideia única, que não podia ser contrariada.
Mas será que essa ação se verificou de maneira «branda»? Não vale a pena fazer comparações que nos levem a colorir de forma diferente o sistema de Salazar. Mas digamos que a sua ação policial e censória não se pode comparar com sistemas «racistas» e antissemitas como o Nazismo. O Fascismo de Mussolini teve uma intensidade dramática muito mais acentuada, até pelo facto de a Itália ter combatido na Segunda Guerra Mundial ao lado da Alemanha nazi, assim como teve o Franquismo, que surgiu no âmbito de uma guerra civil que originou, nas duas partes em confronto, uma prática de violência sem limites, ou o Estalinismo, que acompanhou, de uma forma enérgica e repressiva, a formação da União Soviética e do seu desenvolvimento económico. O Estado Novo, ao contrário, manteve-se em paz até ao despontar dos movimentos anticolonialistas e da «guerra colonial», pelo que todo o sistema de violência ficou, até aos anos 60, relativamente adormecido e, sobretudo, encoberto. No entanto, a ação repressiva teve as mesmas finalidades: extinguir principalmente as ideias e práticas anarquistas e comunistas, mas também as simplesmente liberais, católico-progressistas ou até monárquicas. Depois, e já antes, do início da guerra nas «colónias», intituladas depois dos anos 50 como «províncias ultramarinas», quando se reconfigurou a ideia unitária de «Nação», veio ao de cima no Salazarismo, como complemento mais evidente, a luta contra os movimentos anticolonialistas, defensores da autodeterminação ou da independência, contrariando os ventos que sopravam em todo o mundo, ao mesmo tempo que se obrigava os jovens a defender uma pretensa integridade territorial em vários continentes. De resto, o Estado usou de todas formas que foram utilizadas noutros sistemas autoritários ou totalitários: a exoneração forçada da função pública, a destruição ou o prejuízo das carreiras profissionais, os interrogatórios, a prisão sem culpa formada, a tortura, o julgamento por tribunais não neutrais em matéria política, a vigilância constante de ordem política e pessoal utilizando mesmo informadores secretos, a proibição da publicação de obras ou da realização de espetáculos, o clima de medo, etc.
Portanto, pode dizer-se que a ideia da intolerância «branda» é apenas um mito criado pelas «circunstâncias» e que viveu ao seu sabor, mantendo-se hoje ainda vivo como memória. Assim, quando recentemente falávamos a um indivíduo de «direita» acerca da intolerância da PIDE e de todo o sistema repressivo criado pelo Estado Novo, ele dizia-nos, surpreendentemente (talvez como mera retórica), que se tratava de uma «simples nota de rodapé». Não o foi, obviamente, e esperamos que a leitura desta obra contribua para a diluição do mito, que pode hoje vir a renascer. Trata-se de um «ensaio» (escrito em determinadas «circunstâncias») que nos pode levar – assim o esperamos – a refletir, mais uma vez, sobre o sistema que foi extinto no 25 de Abril de 1974 e que alguns, sem o dizer (pelo menos por enquanto, embora já usem algumas das suas frases mestras), talvez queiram recuperar, embora de forma diferente ao do regime de Salazar e de Marcello Caetano. E não devemos esquecer que a nossa revolução, que consolidou, pelo menos formalmente e no plano das liberdades (apesar das suas ambiguidades e contradições), a democracia, está quase a comemorar meio século.
Imagem: Desenho de João Abel Manta.
Luís Reis Torgal (Coordenação), “Brandos Costumes… O Estado Novo, a PIDE e os intelectuais”. 2022 (um livro a ler!)
No princípio era o labirinto O secreto palácio do terror calado Ele trouxe para o exterior o medo Disse-o na lisura dos pátios no quadrado De sol de nudez e de confronto Expôs o medo como um toiro debelado
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A PEQUENA PRAÇA
A minha vida tinha tomado a forma da pequena praça Naquele outono em que a tua morte se organizava meticulosamente Eu agarrava-me à praça porque tu amavas A humanidade humilde e nostálgica das pequenas lojas Onde os caixeiros dobram e desdobram fitas e fazendas Eu procurava tornar-me tu porque tu ias morrer E a vida toda deixava ali de ser a minha Eu procurava sorrir como tu sorrias Ao vendedor de jornais ao vendedor de tabaco E à mulher sem pernas que vendia violetas Eu pedia à mulher sem pernas que rezasse por ti Eu acendia velas em todos os altares Das igrejas que ficam no canto desta praça Pois mal abri os olhos e vi foi para ler A vocação do eterno escrita no teu rosto Eu convocava as ruas os lugares as gentes Que foram as testemunhas do teu rosto Para que eles te chamassem para que eles desfizessem O tecido que a morte entrelaçava em ti
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DUAL
Dois cavalos a par eu conduzia
Não me guiava a mim mas meus cavalos
E no país de espanto e de tumulto
Em mim se desuniu o que eu unia
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LIBERDADE
Aqui nesta praia onde Não há nenhum vestígio de impureza, Aqui onde há somente Ondas tombando ininterruptamente, Puro espaço e lúcida unidade, Aqui o tempo apaixonadamente Encontra a própria liberdade.
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CANTATA DE PAZ
Vemos, ouvimos e lemos Não podemos ignorar Vemos, ouvimos e lemos Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos Relatórios da fome O caminho da injustiça A linguagem do terror
A bomba de Hiroshima Vergonha de nós todos Reduziu a cinzas A carne das crianças
D'África e Vietname Sobe a lamentação Dos povos destruídos Dos povos destroçados
Nada pode apagar O concerto dos gritos O nosso tempo é Pecado organizado
* Nasceu a 06 Novembro 1919 (Porto). Morreu em 02 Julho 2004 (Lisboa)
DUAL, Sophia de Mello Breyner Andresen. Assírio & Alvim, 2014