Do papão que as espera, hediondo, atrás das portas
Para as levar no bolso ou no capuz dum frade.
Não te rias da infância, ó velha humanidade,
Que tu também tens medo ao bárbaro papão,
Que ruge pela boca enorme do trovão,
Que abençoa os punhais sangrentos dos tiranos,
Um papão que não faz a barba há seis mil anos,
E que mora, segundo os bonzos têm escrito,
Lá em cima, detrás da porta do infinito!
SEMANA SANTA
(…)
Saiamos; rompe a aurora. A burguesia dorme
Como a jibóia enorme
Que ressona, depois de devorar um touro;
Ó jibóia feliz, ó burguesia, ó pança,
Dorme com segurança
Que a força está de guarda aos teus bezerros d'ouro.
E chama-se Progresso, ó Deus, esta farsada!
Isto é o cinismo alvar e em pêlo, à desfilada,
É a prostituição ignóbil da mulher;
São desejos brutais, é carne em plena orgia,
Enfim, a saturnal da pobre burguesia,
Que reza como o papa e ri como Voltaire.
Morrendo o velho Deus, o velho Deus tirano,
Este mundo burguês, católico-romano,
Encontrou-se sem fé, sem dogma, sem moral,.
Ajustiça era dele, o Padre omnipotente;
Esse padre morreu; ficou-nos simplesmente
Um único evangelho – o Código Penal.
A consciência humana é um monte de destroços.
Foram-se as orações, foram-se os padres-nossos,
Tombou a fé, tombou o Céu, tombou o altar;
E o velho Deus-castigo e o velho Deus-receio
É simplesmente um freio
Para conter a raiva à besta popular:
A crassa burguesia, essa récua fradesca,
Opípara, animal, silénica, grotesca,
Namora a Deusa-carne e adora o Deus-milhão;
E as almas, fermentando assim nesta impureza,
Resvalam, sensuais, do leito para a mesa,
Da mesa para o chão.
Vendem-se a peso d'ouro as lânguidas donzelas
Mais torpes que as cadelas,
Que ao menos dão de graça o libertino amor:
E o Dever; a Saúde, o Justo, o Verdadeiro,
Esses ricos metais fundem-se no braseiro
Dum sensualismo espesso, atroz, devorador:
A agiotagem, a bolsa, a cotação dos fundos,
É o princípio rei dominador dos mundos
É um sangue vital, forte como o conhaque.
Engordai, engordai, ó bravos homens sérios,
Que servis para dar esterco aos cemitérios
E música a Offenbach.
A vergonha morreu, a dignidade foi-se.
O mundo oficial é um vergonhoso alcoice,
E a plebe, tripudiando em hórridas orgias,
Lança sobre o Direito um pustulento escarro,
E acende, cambaleando, a ponta do cigarro
Na fogueira que abrasa o Louvre e as Tulherias.
A família é um bordel. Os leitos sensuais
São verdadeiramente esgotos seminais,
Eróticas latrinas,
Onde, entre o tumultuar dum debochado gozo,
Se fabrica de noite o sangue escrofuloso
Das raças libertinas.
Calemo-nos. Eu ouço as ferraduras de Árgus.
É a ordem e a Lei; correm a trotes largos;
Vêm nesta direcção, esconde-te, Jesus!
Metamo-nos aqui num beco, anda ligeiro!
Que, se sabem quem és, meu velho petroleiro,
Mandam-te pendurar segunda vez na Cruz.
(…)
O GENESIS
Jeová, por alcunha antiga – o Padre Eterno,
Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,
Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz!
Pôs-se a esgaravatar coo dedo no nariz,
Tirou desse nariz o que um nariz encerra,
Deitou isso depois cá baixo, e fez-se a Terra.
Em seguida tirou da cabeça o chapéu,
Pô-lo em cima da Terra, e zás, formou o Céu.
Mas o chapéu azul do Padre Omnipotente
Era um velho penante, um penante indecente,
Já muito carcomido e muito esburacado.
E eis aí porque o Céu ficou todo estrelado.
Depois o Criador (honra lhe seja feita!)
Achou a sua obra uma obra imperfeita,
Mundo sarrafaçal, globo de fancaria,
Que nem um aprendiz de Deus assinaria,
E furioso escarrou no mundo sublunar;
E a saliva, ao cair na Terra, fez o mal:
Depois, para que a Igreja arranjasse entre os povos,
Com bulas da cruzada, alguns cruzados novos,
E Tartufo pudesse ainda dessa maneira
Jejuar; sem comer de carne à sexta-feira,
Jeová fez então para a crença devota
A enguia, o bacalhau e a pescada marnota.
Em seguida meteu a mão pelo sovaco,
Mais profundo e maior que a caverna de Caco
E arrancando de lá parasitas estranhos,
De toda a qualidade e todos os tamanhos,
Lançou-os sobre a Terra, e deste modo insonte
Fez ele o megatério e fez o mastodonte.
Depois, para provar em suma quando pode
Um Criador; tirou dois pêlos do bigode,
Cortou-os em milhões e milhões de bocados
(Obra em que ele estragou quatrocentos machados),
Dispersou-os no globo, e foi desta maneira
Que nasceu o carvalho, o plátano e a palmeira.
[...]
Por fim, com barro vil, assombro da olaria!
O que é que imaginais que o Criador faria?
Um pote? Não; um bicho, um bípede com rabo,
A que uns chamam Adão e outros Simão. Ao cabo
O pobre Criador; sentindo-se já fraco
(Coitado, tinha feito o universo e um macaco
Em seis dias!), pensou: «Deixemo-nos de asneira!
Trago já uma dor horrível nas cadeiras,
Fastio... Isto dá cabo até duma pessoa...
Nada, toca a dormir uma sonata boa!»
Descalçou-se, tirou os óculos e o chinó,
Pitadeou com delícia alguns trovões em pó,
Abriu, para cair num sono repentino,
O alfarrábio chamado o Livro do Destino,
E enflanelando bem a carcaça caduca,
Com o barrete azul-celeste até à nuca,
Fez ortodoxamente o seu sinal da Cruz.
Como qualquer de nós, tossiu, soprou à luz.
E de pança pró ar; num repouso bendito,
Espojou-se, estirou-se ao longo do infinito
Num imenso enxergão de névoa e luz dourada.
E até hoje, que eu saiba, ainda não fez mais nada.
(“A Velhice do Padre Eterno”, Guerra Junqueiro. Publicações Europa-América, 2010)
Abílio Manuel Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta, Ligares, 15 de Setembro de 1850 — Lisboa, 7 de Julho de 1923) foi alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor e poeta. Foi o poeta mais popular da sua época e o mais típico representante da chamada "Escola Nova". Poeta panfletário, a sua poesia ajudou a criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República. (Wikipedia)
Como os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões
Não pode haver maior desgraça, no mundo, que converter-se, a um doente, em veneno a teriaga que tomou para queimar a peçonha que o vai matando. Ferir-se e matar-se um homem, com a espada que cingiu ou arrancou para se defender de seu inimigo, e arrebentar-lhe nas mãos o mosquete e matá-lo, quando fazia tiro para se livrar da morte – é fortuna muito má de sofrer. E tal é que acontece em muitas Repúblicas do mundo, e até nos reinos mais bem governados, os quais, para se livrarem dos ladrões – que é a pior peste que os atrasa –, fizeram varas que chamam de justiça, isto é, meirinhos, almotacés, alcaides; puseram guardas, rendeiros e jurados; e fortaleceram a todos com provisões, privilégios e armas. Mas eles, virando tudo de carnaz para fora, tomam o rasto às avessas e, em vez de nos guardarem as fazendas, são os que maior estrago nos fazem nelas, de sorte que não se distinguem dos ladrões que lhes mandam vigiar em mais senão que os ladrões furtam nas charnecas e eles no povoado; aqueles com carapuças de rebuço e eles com as caras descobertas; aqueles com seu risco e estes com provisão e cartas de seguro. Declaro-me: manda a lei aos senhores almotacés que vigiem as padeiras, regateiras, estalagens e tabernas, etc., se vendem as coisas por seu justo preço. Antecipam-se todas as pessoas sobreditas, mandam a casa as primícias e meias natas de seus interesses e ficam logo licenciadas para maquinarem tudo como quiserem.
Têm obrigação os meirinhos e alcaides de tomarem as armas defesas, prenderem os que acharem de noite e darem cumprimento aos mandados de prisões e execuções, que se lhes encarregam. Dissimulam e passam por tudo, pelo dobrão e pela pataca que lhes metem na bolsa, e seguem-se daí mortes, roubos e perdas intoleráveis. Corre por conta dos guardas e rendeiros a defensão dos pastos, vinhas, olivais, coutadas, que não as destruam os gados alheios. Quem os tem avença-se com eles, por pouco mais de nada, que vem a ser muito, porque concorrem os poucos de muitas partes; ficam livres para poderem lograr as fazendas alheias, como se foram próprias, sem incorrerem nas coimas. E eis aqui como os que têm por ofício livrar-nos de ladrões vêm a ser os maiores ladrões que nos destroem. Não falo de varas grandes, porque as residências as fazem andar direitas, nem das garnachas, que ,esperam maiores postos e não quer, em perder o muito pelo pouco. Livre-nos Deus a todos de oferecimentos secretos, que correm sua fortuna sem testemunhas; aceitos, torcem logo as meadas, até quebrar o fiado pelo mais fraco, e a poder de nós cegos o fazem parecer inteiro. Até nas residências, onde se dão em se fazerem as barbas uns aos outros, fíca tudo sem remédio e com a maior parte da presa, em um momento, quem nos ia restaurar dos danos de um triénio.
Milhares de exemplos há que explicam bem esta espécie de furtos, e melhor que todos o que poderemos pôr nos físicos; mas manda a Sagrada Escritura que os honremos propter sanitatem, e assim é bem que lhes guardemos aqui respeitos, ainda que a verdade sempre tem lugar. Digamo-lo, ao menos, dos boticários. Têm estes um livrinho – não é maior que uma cartilha – e nada tem de sua doutrina, porque se devia de compor no limbo. Certo é que o não imprimiu Galeno, que houvera de ser muito bom cristão se não fora gentio, porque tinha bom entendimento. A este livro chamam eles: Qui pro quo, quer dizer «uma coisa por outra»; e o título basta para se entender que contém mais mentiras que verdades. Antes, só uma verdade contém e é que, em tudo, ensina a vender gato por lebre, como agora. Se lhe faltar na botica a água de escorcioneira, que receita o médico para o cordial, que lhe podem botar água de cevada cozida; e se não tiverem pedra de bazar, que pevides de cidra tanto montam; se não houver óleo de amêndoas, que lhe ponham o da candeia. E assim vai baralhando tudo, de maneira que não pode haver boticário que deixe de ter quanto lhe pedem. E daí poder ser que veio o provérbio, com que declaramos a abundância de uma casa rica, que tudo se acha nela como em botica.
E já lhes eu perdoara tudo, se tudo tivera os mesmos efeitos; e se eles não nos levaram tanto pelos ingredientes supostos, que nada valem, como haviam de levar pelos verdadeiros, que valem muito. Donde parece que nasceu a murmuração de quem disse que as mãos dos boticários são como as de Midas, que, quanto tocam, convertem em oiro, porque não há arte química que os vença em fazer de maravalhas metais preciosos; nem pode haver maior destreza que a de um destes mestres ou discípulos de Esculápio que, mandando pelo seu moço buscar um molho de malvas ao monturo, com duas fervuras que lhe dão no tacho, ou com as pisar no almofariz, as transformam, de maneira que não lhes saem das mãos sem lhes deixarem nelas três ou quatro cruzados, não valendo elas, em si, um ceitil; e o mesmo corre em outras mil e trezentas coisas. Têm os físicos-mores obrigação de vigiarem tudo isto, e assim o fazem correndo o reino e visitando todas as boticas dele algumas vezes. Chamam a isto dar varejo e dizem bem, porque assim como nós varejamos uma oliveira, para lhe apanhar a azeitona, assim eles varejam as boticas, para recolher dinheiro. e muito para ver a a diligência com que os boticários se acodem uns aos outros nestas ocasiões, emprestando-se vidros e medicamentos, para que os visita dores os achem providos de tudo. E poderá suceder – por mais que tenham tudo bem apurado e a ponto –, se não andarem mais diligentes em peitar que em se prover, que lhes quebrem todos os vidros, por dá cá aquela palha. Por isso, outros fazem bem, que visitam, antes de serem visitados, e com isso escusam o trabalho de se proverem e apurarem; e escapam os seus frascos, como vaso mau que nunca quebra.
Bem se vê como responde tudo isto ao título. deste capítulo; só uma coisa há aqui que a não entendo nem haverá quem a declare: que morra enforcado o homicida, que matou, à espingarda ou às estocadas, um homem, e que matem boticários e médicos, cada dia, milhares deles, sem vermos por isso nenhum na forca, antes são privilegiados, que, depois de vos darem com as costas no adro e com vosso pai na cova, demandam vossos herdeiros que lhes paguem a peçonha com que vos tiraram a vida e o trabalho que tiveram em vos apressarem a morte, com sangrias piores que estocadas, por serem sem necessidade ou fora de tempo.
Um ferrador, vizinho do cardeal Palloto, desapareceu de Roma; e indo depois o cardeal a Nápoles, com certa diligência do sumo pontífice, teve um achaque, sobre que se fez junta de médicos, e entre eles veio o ferrador por mais afamado. Conheceu-o o cardeal, tomou-o à parte e perguntou-lhe quem o fizera médico. Respondeu que só mudara de fortuna e não de ofício, porque, do mesmo modo que curava, em Roma, as bestas, curava, em Nápoles, os homens; e que lhe sucedia tudo melhor, porque além de acertar nas curas tão bem e melhor que os demais médicos, se acertava, por erro, de dar com algum doente na outra vida, que ninguém o demandava por isso como sua eminência, que lhe fez pagar uma mula do seu coche, por lhe morrer andando em cura. O que mais sucedeu no caso não serve ao intento; mas do dito se colhe que anda o mundo errado na matéria de médicos e boticários, que hão mister grandíssima reforma, porque, tendo por ofício assegurar as vidas, não só no-las tiram, mas sobre isso nos pedem as bolsas. Não fazia outro tanto o «Sol-Posto» aos castelhanos, nas charnecas; e, no cabo, foi esquartejado por isso. E estes senhores ficar-se-ão rindo e aguçando a ferramenta, para irem por diante na matança de que fazem oficio.
Em França, há lei que nenhum médico do paço vença salário enquanto alguma pessoa real estiver doente, porque assim se apressem em tratar da sua saúde. E os portugueses somos tais que, quando estamos doentes, fazemos mais mimos e damos maiores pagas aos médicos, sem advertirmos que, por isso mesmo nos dilatarão a saúde e farão grave o mal que é leve. Como o outro que curava de um espinho certo cavalheiro e tinha-lhe metido em cabeça que era apostema. Ausentou-se um dia e deixou seu filho instruído que continuasse com os emplastros do espinho, a que chamavam apostema. Mas o filho, na primeira cura, para se mostrar mais destro, arrancou o espinho; cessaram as dores e sarou o doente, em menos de vinte e quatro horas. Veio o pai; pediu-lhe o filho alvíssaras que sarara o doente só com lhe tirar o espinho. Respondeu-lhe o pai: «Pois daí comerás para besta. Não vias tu, selvagem, que, enquanto se queixava das dores, continuavam as visitas e se acrescentavam as pagas? Secaste o leite à cabra que ordenhávamos.»
Bem se acudiria a isto se se pagassem melhor as curas breves que as dilatadas. E muito necessário era haver lei que nenhuma cura se pagasse do doente que morresse. Pudera-se, pelo menos, pôr remédio a tudo, com favorecerem os reis mais esta ciência, que anda muito arrastada, porque não ee aplica a ela senão quem não tem cabedal para cursar outros estudos. No Estado de Milão, todos os médicos têm foro de condes; nos Estados de Mântua, Modena, Parma e em toda a Lombardia, são tidos e havidos por fidalgos e gozam os seus privilégios. El-rei D. Sebastião começou a aplicar algum cuidado nesta parte, mandando à Universidade de Coimbra que escolhessem, de todos os gerais, os estudantes mais hábeis e nobres e que os aplicassem à medicina, com promessas de grandes acrescentamentos. Por mais fácil tivera mandar à China dois pares deles, com as mesmas promessas, para estudarem a medicina com que todo aquele vastíssimo império se cura, que, sem controvérsia, é a melhor do mundo, porque sabe qualquer médico, pelas regras da sua arte, em tomando o pulso a um doente, tudo o que teve e há-de ter por horas, sem lhe errar nenhum acidente. E logo levam consigo os medicamentos para a cura, se é que o mal tem alguma. E melhor fora irmos lá buscar essa ciência, para reparar a vida, que as porcelanas que logo quebram.
Desenhos: Eduardo Batarda
Arte de Furtar (capítulo IV) - (Edições Afrodite. Lisboa, 1970)
Monumento da prosa barroca, a Arte de Furtar, hoje dominantemente atribuída ao jesuíta Padre Manuel da Costa (1601-1667), é uma das obras literárias emblemáticas do período da Restauração e o ponto mais alto da literatura portuguesa de costumes dos séculos XVI a XVIII. A sua redacção ocorreu, como se depreende do texto, em 1652, ou seja, ainda em vida de D. João IV, ao qual foi oferecida pelo autor, embora só quase um século depois tenha sido impressa.
O meu artigo anterior sobre o Natal provocou a curiosidade dos leitores. Recebi algumas cartas interessantes, entre elas, esta de Nazanin Amiriam onde me diz: «Desde tempos imemoriais, os habitantes da Ásia Central e parte do Médio Oriente consagram Yalda ao solstício de Inverno, como Natalis Invicti do Deus Mitra, o Sol Invencível, dia que o Senhor da Luz e da Justiça vence o senhor do Mal e das Trevas, iluminado a vida e as criaturas terrestres…
por Lisandro Otero
O meu artigo anterior sobre o Natal provocou a curiosidade dos leitores. Recebi algumas cartas interessantes, entre elas, esta de Nazanin Amiriam onde me diz: «Desde tempos imemoriais, os habitantes da Ásia Central e parte do Médio Oriente consagram Yalda ao solstício de Inverno, como Natalis Invicti do Deus Mitra, o Sol Invencível, dia que o Senhor da Luz e da Justiça vence o senhor do Mal e das Trevas, iluminado a vida e as criaturas terrestres. Quem transmitiu esta religião para o Ocidente foram os soldados romanos, então em guerra na Pérsia, que, fascinados por este credo, fundaram irmandades mitraicas e, ao regressar a Roma, o transmitiram ao povo. Pouco tempo depois, esta religião oriental expandiu-se por todo o mundo romano e o imperador Nero declarou-a religião oficial e a festividade de 25 de Dezembro como o dia do Nascimento de Mitra. Construíram-se templos Mithrium, adornados com cruzes (símbolo do Sol), onde se celebravam o baptismo e a eucaristia, consumindo o pão em forma do rei dos astros. O Cristianismo, com o fim de facilitar a integração dos seus adeptos à nova fé, fez seus muitos símbolos e rituais desta crença e, no século IV, determinou que Jesus nasceu a 25 de Dezembro, denominou “padre” os seus sacerdotes – ao estilo dos cardeais mitraístas que se chamavam “pedre” (padres) – e colocaram a touca com o nome de “mitra”». Até aqui muito curioso.
Mas há mais. Ninguém sabe exactamente em que dia nasceu Jesus de Nazaré, se é que realmente este sujeito histórico existiu. No evangelho de S. Lucas, diz-se que encarnou quando Cirineu era governador da Síria e antes da morte de Herodes, o que ocorreu no século I antes da era cristã. Os primeiros analistas cristãos especulavam se o acontecimento tinha ocorrido na Primavera ou no Outono, mas logo se deixaram arrastar pelo culto dominante do Sol, em Dezembro.
O renascimento da Luz do Mundo, no solstício de Inverno quando os romanos celebravam verdadeiras orgias báquicas e eróticas, tinha um forte sabor pagão. Os cristãos pensaram que deveriam dar um conteúdo ético a estas festas e persuadiram os seus seguidores em celebrá-las com sóbria austeridade. Em algumas partes do mundo cristão adoptaram outra data como dia de Nascimento, o dia 6 de Janeiro que coincidia com uma antiga solenidade egípcia. Mas não foi até ao século IV da era cristã que prevaleceu o 25 de Dezembro.
A árvore de Natal com luzes é um costume germânico tomado de velhas tradições bárbaras das tribos nórdicas. A figura de Santa Claus, ou Santiclós, ou Pai Natal, foi tirada da existência histórica do Bispo Nicolau que no século IV se evidenciou pela sua generosidade e bondade caritativa para com as crianças e os desvalidos. Nicolau de Bari nasceu em Patara, viajou na sua juventude pela Palestina e Egipto. Mais tarde converteu-se em bispo de Myra, e encarcerado pelo imperador Diocleciano foi libertado por Constantino, e assistiu ao Concílio de Niceia no ano de 325. A sua reputação consolidou-se por oferecer dotes às jovens pobres casadoiras e, segundo reza a lenda, devolver a vida a crianças falecidas.
No ano de 1087 os seus restos mortais foram levados para Bari onde foi venerado pelos seus milagres. Na Idade Média foi convertido no santo padroeiro da Rússia e da Grécia, foi também patrono das guildas de marinheiros e mercadores. No século VI, o imperador Justiniano consagrou-lhe um templo em Constantinopla. O culto de São Nicolau foi introduzido nos Estados Unidos por imigrantes holandeses.
Os três Reis Magos aparecem nos salmos mas não se diz que foram reis mas três sábios do Oriente que prestaram homenagem à criança nascida em Belém. Na chamada Epifania, a lenda oriental situou o número de devotos em doze, no Ocidente se quantificam apenas três: Melichior, Gathaspa e Bithisarea, também chamados Manucher, Garshasp e Barasant, e finalmente convertidos em Belchior, Gaspar e Baltazar, reis da Arábia, Pérsia e Índia, com os seus presentes de incenso, mirra e ouro; representando cada um deles uma das três etapas da vida: juventude, idade madura e velhice; personificados como branco, negro e oriental. Isto é, tratava-se de conseguir uma representação omnisciente da humanidade.
A apropriação que fizeram os primeiros cristãos dos mitos de Mitra é algo que todas as religiões fizeram ao serem os ritos legados de umas religiões para as outras, com modificações mas aproveitando a tradição existente. A imaginação humana foi enriquecendo, ornamentando e desenvolvendo as fábulas, criando novos mitos, embelezando a realidade. Esta acumulação de sonhos entregou-nos a bela e mágica alegoria do Natal.
A minha casa é concha. Como os bichos Segreguei-a de mim com paciência: Fachada de marés, a sonho e lixos, O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos. O orgulho carregado de inocência Se às vezes dá uma varanda, vence-a O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhados de vidro, e escadarias Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso! Lareira aberta ao vento, as salas frias.
A minha casa. . . Mas é outra a história: Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço, Sentado numa pedra de memória.
(O BICHO HARMONIOSO, 1938)
*
Semântica Electrónica
Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado Ordeno ao ordenador que me ordenhe o ordenhado Ordinalmente Ordenadamente Ordeiramente. Mas o desordeiro Quebrou o ordenador E eu já não dou ordens coordenadas Seja a quem for. Então resolvo tomar ordens Menores, maiores, E sou ordenado, Enfim – o ordenado Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado. – Mas – diz-me a ordenança – Você não pode ordenhar uma máquina: Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca. De mais a mais, você agora é padre, E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha Velhaca, mesmo uma ovelha velha, Quanto mais uma vaca! Pois uma máquina é vicária (você é vigário?): Vaca (em vacância) à vaca. São ordens... Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado, Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa (Para acabar a conversa Como aprendi na Infantaria), Ordenhado chorei meu triste fado. Mas tristeza ordenhada é nata de alegria: E chorei leite condensado, Leite em pó, leite céptico asséptico, Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!
(LIMITE DE IDADE, 1972)
*
Nova bárbara escrava
Barborinha uma crioula: Faz de bahiana evocada Num hotel de vidro e avenca; Usa torço cor-de-rosa, Pano-da-costa fingido, Chambre crivado no seio: Seu balangandã preserva-a Bem menos que seu enleio. Para não ver os meus olhos – Figa branca, figa preta - Atira-as pra trás nas costas, Tão bem, que só vê diante A cuia do vatapá: Mas eu sei quantas pancadas, Vindo assim, seu peito dá. Peixinho moreno, pula No aquário do hotel de luxo Como gota de água ao céu: Tem vergonha de ser mate, O seu passo é como um véu. Barborinha é uma crioula (Mulatinha era demais): As cores, à parte, são várias: Unidinhas, são iguais. Vem servir-me cor-de-rosa, Parda me serve xinxim (Pérfido, atraso o jantar Fitando-a entro e mim). Mas o que serve em verdade A Barborinha morena, Na sua saia bahiana Com roda de campainha, Não é o envisco que comem Os peixes do hotel de vidro, Mas a sua graça apenas. Tão quente (sendo ela fria)! E as mãos! as mãos! – tão pequenas, Tão pequenas, que eu diria Que as fazem penas – e fogem As aves que há na Bahia!
(POEMAS BRASILEIROS, 1972)
*
Pedra de Canto
Ainda terás alento e pedra de canto, Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira, Para cantar em sílabas ásperas o canto, De rima em -anto, o pranto, O amor, o apego, o sossego, a rima interna Das almas calmas, isto e aquilo, o canto Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro, O estupro de outrora, a triste vida dela, o canto, Buraco onde te metes, duplamente: com falo, Falas, fá-la chorar e ganir, com falo o canto No buraco de grilo onde anoiteces, No buraco de falso eremita onde conheces Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia, Canteiro porque o falo a julga flores, o canto Áspero do canteiro de pedra e sémen que tu és (No buraco do falo falaste), Tu, falazão de amor, que a amas e conheces. Amas a quem? Conheces quem? Pobre Hipocrene, Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,
Embora isso em sangue dessa pobre alma em ferida: A dela, a tua, cadela a tua pura e fiel no canto De lama e amor como não há no charco em torno, Maravilhoso canto só de soprares na ponta a um corno E logo a sílaba e o inferno te obedecem E as dores íntimas dela nas tuas falas se conhecem, Sua íntima vergonha inconfessada desponta, Passiflora penada, pequenina vulva triste Em teu sémen sarada e já livre de afronta: O canto em pedra e voz, psicóide e bem vibrado, Límpido como vidro a altas horas lavado, Como o galo de bronze pela dor acordado, No amor e na morte alevantado, Da trampa mentirosa resgatado, Como Dante o lavrou em pedra de Florença E Deus to deu de amor por ela no atoleiro? Flor menina de orvalho em amor verdadeiro?
Ainda terás amor e pedra de canto, Fé nela e sua dor de arrependida e enganada, Ou, enfim, amor a fogo dado e perdão puro... Eu quero lá saber! Amor de Deus no canto De misericórdia e paz, mesmo para os violentos Da violada violeta, a breve miosótis Ao canto unida e em tuas lágrimas orvalhada? Cala-te e humilha-te como ela, Que é maior do que tu no canto E a esta hora só bebe talvez água salgada, Oh poeta de água doce!
Mas, antes de calar espada e voz, responde: Ainda terás alento e pedra de canto Para cantar estas coisas, Encantar outra vez a donzela roubada ou nina morta, Enfim, o teu amor? Dize lá, sem-vergonha, Homem singelo: Pois se nisto me mentes nunca mais a verás.
(Quem fala?)
(Poema publicado na Revista Colóquio/Letras, nº. 35 Janeiro de 1977)
Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva (Praia da Vitória, 19 de Dezembro de 1901 — Lisboa, 20 de Fevereiro de 1978) poeta, romancista, cronista, académico e intelectual.
A 16 de Dezembro de 1972, o dia amanheceu como sempre em Chaworha. Em casa do régulo, não havia sinais de agitação. Os seus vizinhos, os Mixone, tinham acordado cedo. Os filhos, António e o irmão mais novo, estavam ansiosos por descer até ao rio. As cabras tinham de começar a pastar bem cedo, antes que as vacas tomassem conta dos furos de água e invadissem o terreno de pastagem contíguo. Uma das cabras estava prenha, podia parir a qualquer momento e ainda havia muito a fazer antes que a cria nascesse. Nada mexia. Em Chaworha reinava acalma.
Em Wiriamu, não. Semanas antes, um médium experiente fora chamado à aldeia para «fazer chover». A cerimónia fora demorada e intensa. A chuva tardava em aparecer. Então, os wiriamu decidiram chamar o Senhor Soda. Talvez ele pudesse convencer o céu a mostrar-se generoso. Venceu a contenda. Choveu. O chão estava húmido e cheirava aterra molhada. Os habitantes de Wiriamu acordaram cedo para comemorar. Os Kaniveti tinham matado uma vaca para vender a carne e preparavam o equipamento para fermentar cerveja. Os homens estavam reunidos fora das palhotas a conversar sobre a chuva e a quantidade de carne que era preciso vender para comprar o açúcar e a farinha necessários para fazer cerveja. Kalifornia Kaniveti estava de costas para os campos onde costumavam ir apanhar lenha, lá longe, a oeste da povoação. Outros estavam reunidos no espaço de convívio de Juwau.
A essa hora, já havia movimento em casa da família Tenente Valeta. Os visitantes de Riachu tinham chegado cedo para se conhecerem e se cumprimentarem. Uma das filhas de Tenente viera de outra povoação, ainda distante dali, para visitar os pais. As crianças brincavam por perto, algures entre as duas árvores, uma próximo da casa dos Tenente Valeta e a outra na orla da povoação, perto da casa de Bulachu Zambezi, que dava para Riachu. Vasco Tenente Valeta estava entre as mais velhas.
O régulo Wiriamu e o patriarca dos Tenente Valeta, o seu ajudante-de-campo, foram vistos a caminho da machamba do primeiro onde iam «falar de negócios» relacionados com o pombe. Não se sabe ao certo se estavam a beber cachassu. Se assim era, estariam demasiado ébrios para reagir com celeridade a uma situação de emergência que sucedesse na aldeia, dado o elevado teor alcoólico da bebida. Passaram aí a tarde inteira.
Pouco se sabe sobre o que aconteceu nesse dia em Riachu e em Djemusse. Algumas das mulheres de Riachu encontravam-se em Wiriamu. Dos homens desta povoação não havia sinal. Tanto quanto foi possível apurar, os homens e mulheres de Djemusse não saíram da povoação. Aqui, tal como em Chaworha, tudo estava calmo - à excepção de um entrevistado, cuja identidade se perdeu juntamente com outros dados devido à deterioração dos registos em papel durante o trabalho de campo. Estava de visita a Chaworha e aí permaneceu até ao meio-dia, momentos depois da chegada dos portugueses.
Quase 25 quilómetros para norte, no quartel-general regional de Tete, Zona Operacional de Tete (ZOT), estavam reunidos os estrategistas portugueses. Nessa manhã, por volta das 6h30, Antonino Melo, comandante da 6." Companhia de Comandos, recebeu ordens para se apresentar no quartel-general. Normalmente não seria ele a liderar a unidade, mas o seu comandante tinha adoecido com apendicite e, sendo Melo o oficial mais graduado, assumiu o comando da unidade. Chegou à hora prevista e foi conduzido à sala de reuniões. De pé, de frente para uma mesa oval, fez continência e ficou à espera de receber o comando de «à vontade». Diante dele encontravam-se alguns altos funcionários. Estavam acima dele na escala de remunerações, revelou. Não conseguiu identificá-los. Compreendeu as suas ordens: «Vá a Wiriamu e limpe tudo.» As ordens não o surpreenderam. Já realizara inúmeras operações semelhantes. Na verdade, o diário de operações da sua companhia confirma-o: muitas delas eram operações de limpeza. Melo não conseguiu precisar quantas.
«Mas o que significavam essas ordens?», perguntámos a Melo durante as entrevistas. «Normalmente», disse ele, «deslocávamo-nos até à zona... e limpávamos tudo isso.» Era simples. «Para poupar balas, metíamos as pessoas dentro de palhotas, atirávamos uma granada para o interior, trancávamos a porta e pum!» O telhado de capim era projectado no ar, deixava sair o ar quente e sugava oxigénio fresco, tornando a cair e incendiando tudo. Os que não morriam no momento da explosão, pereciam no incêndio. Em seguida, se tivessem tempo, destruíam os celeiros, os víveres e as cabeças de gado. «Tínhamos de ser rápidos. Se pudéssemos evitá-lo, preferíamos não nos envolver em fogo cruzado com a FRELIMO», acrescentou Melo.
Foi igualmente informado de que a DGS acompanharia a sua unidade. Pareceu-lhe estranho. Nunca participara numa operação conjunta, embora tal tivesse acontecido, no sul, durante os massacres de Mucumbura e Estima. Pouco antes do meio-dia, uma unidade de apoio logístico cercou as aldeias e sinalizou o perímetro exterior com bandeiras vermelhas. Inicialmente, ninguém reparou nelas. A Sra. Mixone estava no seu quintal, em Chaworha. Viu o filho chegar com a cabra prenha nos braços, que ele não queria deixar morrer e perder, assim, para o irmão a posse de um rebanho próprio. «Mamã, ela vai parir e eu tenho fome», diz o irmão de António, recordando a conversa. Colocou a cabra num local confortável enquanto ela ia buscar comida para o filho. Foi quando viu a bandeira e se interrogou sobre o que significaria. «O que é aquilo?» perguntou ao filho. «Não sei, mamã.» 0 instinto disse-lhe que se tratava de um mau presságio. Nessa altura, António já voltara para casa, tendo seguido o irmão.
0 padre Domingo Ferrão, da Missão de S. Pedro, tinha acabado de almoçar e, como era seu hábito, encaminhou-se para a árvore da escola da missão com um livro na mão, junto à qual costumava encostar-se para ler e dormir uma sesta. «De repente, ouvi um estrondo e vi umas setas metálicas, eram uns aviões a jacto de combate que voavam na direcção do triângulo.» «Estranho», murmurou para consigo, «não costumo ver estes aviões. 0 que será que andam a fazer?» Recostou-se no tronco da árvore e adormeceu. Não sabe se o pessoal do hospital, que ficava relativamente próximo da missão, também ouviu o rugido dos aviões.
Enquanto isso, os pilotos da Força Aérea Portuguesa bombardeavam o perímetro das cinco aldeias. Um corredor na diagonal em relação a Juwau formava um túnel destinado a capturar todos os que tentassem fugir na direcção de Mpharhamadwe. Segundo consta, cinco helicópteros surgiram em seguida. Três estão registados. Um pousou para largar um grupo de agentes da DGS em uniforme, nas proximidades de Chaworha, chefiados por Chico Cachavi e Johnny Kongorhogondo. Dois continuaram a sobrevoar a zona, um perto de Juwau e o outro próximo de Djemusse. Nenhum aterrou. Não conseguiam por causa dos cepos de árvore rasos. Normalmente, os helicópteros ficavam a pairar sobre a zona enquanto «nós saltávamos para terra e corríamos», recorda Antonino Melo. «Mas não consigo precisar bem este ponto. Penso que foi isto que aconteceu», acrescentou. Alguém chamou a atenção de Kalifornia Kaniveti para o ruído dos helicópteros «ali em baixo». «Que barulho é aquele?», «Ah, não deve ser nada. São os militares... dor de cabeça...»
«Mas não adivinharam que isto ia acontecer?», perguntaram-lhe durante a entrevista, «isto» referindo-se à guerra. Bulachu ouvia a entrevista, sentado por perto. Kalifornia Kaniveti ficou calado. Bulachu levantou o véu de silêncio sobre a história não registada. «Nós sabíamos que havia uma guerra lá longe. Nunca pensámos que ela viria ter connosco.» «Eles estavam a lutar uns contra os outros e não tinha nada que ver connosco», acrescentou de forma sucinta. Bulachu esqueceu-se de referir, ou optou por não referir, que nessa altura já se havia juntado à FRELIMO, após primeira ronda de conversações, no acampamento-base de Raimundo Dalepa. Quando lhe relembrámos este pormenor, no final das entrevistas, encolheu os ombros. «Guerra é guerra. São todas iguais.» Quereria ele dizer que estava decepcionado com a FRELIMO? A pergunta não lhe foi feita. Após uma curta pausa, esclareceu a ambiguidade das suas palavras: «Primeiro, sofremos contra os colonos. Depois, tivemos outra guerra. Guerra, guerra, guerra. Nós, o povo, sofremos. Continuamos a sofrer. Olhe para nós. Que ganhámos nós com toda esta guerra!»
Sadismo e fogo em Chaworha
O primeiro helicóptero chegou a Chaworha. Transportava os dois agentes da DGS e a terceira unidade da 6.ª Companhia de Comandos. Não foi possível confirmar este dado junto dos informadores. Chico e Johnny ordenaram a todos os habitantes que se reunissem perto do quintal do régulo. «Ficámos aqui, não, ali», explicou António, apontando para um determinado local. «Aqui, exactamente?», perguntámos-lhe. «Tem a certeza?» «Sim, aqui, exactamente aqui. Eu estava aqui... e o meu irmão estava atrás de mim. Nessa altura, não havia ervas, era tudo plano», apontando para um local situado a 60 passos da árvore que projectava a sua sombra sobre uma parte do quintal do régulo. A sequência dos acontecimentos a partir daqui não é clara. Os habitantes reuniram-se, gradualmente, à medida que eram retirados à força das suas casas por soldados de uniforme. Foi assim que os irmãos de Mixone foram surpreendidos quando se preparavam para fugir. Chico pediu ao visitante de Djemusse que levasse uma mensagem à aldeia de Wtriamu: «Diz ao régulo para convocar toda a gente, para bater o batuque.» Segundo disse, saiu a correr. Já tinha visto o suficiente. Sabia que escapara à morte por pouco. Chegou a Wiriamu e disse a alguém, não sabe ao certo a quem, que «eles iam chegar» e que deviam reunir-se. Depois de entregar a mensagem, correu até Djemusse para contar aos seus habitantes aquilo a que acabara de assistir e o que, na sua opinião, estava prestes a acontecer. Acabou por fugir de Djemusse. Anos mais tarde, perdeu a visão, por razões que não revelou. Recordou os acontecimentos daquele dia, já cego, mas com extrema clareza, quando se apresentou em Djemusse, com um bordão na mão, pronto para ser entrevistado.
Em Chaworha, a multidão foi crescendo. Johnny estava ao lado de Chico. Porque se haviam recusado a mudar-se para Mpharhamadwe, como lhes fora dito? O régulo Chaworha explicou que ninguém o tinha feito, aguardavam a garantia de que teriam acesso a água e a terrenos de pastagem para os seus animais. O pedido de Chaworha era razoável. Era sabido que os aldeamentos não tinham as condições necessárias para a prática da pastorícia -até as autoridades portuguesas o reconheciam. Diversos régulos tinham preferido migrar para territórios vizinhos a instalarem-se nesses aldeamentos.
Em frente, estava talvez o mais célebre de todos os marcos - a árvore de sombra reconfortante erguia-se diante do primeiro corredor da morte de Chaworha. Nesse momento, Consonbera foi avistado a caminhar em passo lento na direcção da árvore. Vinha do denso aglomerado de casas pertencentes a uma das sete famílias abastadas, situado à beira do riacho seco, perto do campo de futebol. Parecia alheio a tudo o que estava a acontecer perto do quintal, segundo contou António. Quando se aproximou da árvore, Johnny Kongorhogondo viu-o e disparou na sua direcção. Consonbera caiu no chão, morto.
Começou, então, a destruição de Chaworha. Pediram aos habitantes que batessem palmas e disseram-lhes: era agora. Iam morrer. Deviam preparar-se para se encontrar com o seu Criador. Um verdadeiro pandemónio instalou-se quando começou o tiroteio. Entre o grupo reunido junto do quintal do chefe Chaworha, 53 caíram no chão. Enquanto os restantes tentavam fugir, Chico Cachavi gritava: «Aphani Wense! Aphani Wense! Matem todos. Não deixem ninguém vivo. Nada de testemunhas.» O grupo de militares armados dividiu-se em dois. Um juntou os corpos num monte e ateou-lhes fogo com capim; o outro formou um semicírculo em volta da pira e preparou-se para atirar sobre eventuais fugitivos e sobre todos os que tentassem escapar do monte de cadáveres. António estava num extremo do amontoado de corpos, juntamente com o irmão mais novo, Domingo, que tinha quatro anos. Outros quatro conseguiram escapar. Os militares portugueses, «pretos e brancos», dispararam na sua direcção, contou António. «Corri depressa. Não olhei para trás.» Uma bala atingiu-o no ombro. Ignorando o ferimento, continuou a correr até estar a salvo.
Conseguira chegar à aldeia do régulo Matambo. «Éramos parentes.» Contou-lhe o que tinha sucedido. O seu outro irmão mais novo, Zeca, já lá estava. «Depois fui até ao rio», para se lavar. Voltou e pernoitou na povoação. No dia seguinte, um parente próximo que fazia parte da milícia portuguesa chegou à aldeia, de uniforme, para impedir que fosse capturado pelos militares portugueses que andavam em perseguição dos sobreviventes. Levou António ao hospital de Tete, onde trabalhava a irmã Lúcia, para que lhe tratassem a ferida. António saltou para a bicicleta. A partir daqui, o paradeiro do seu irmão mais novo é incerto.
Entretanto, o régulo Matambo ordenara ao seu povo que evacuasse a aldeia, caso fossem eles as próximas vítimas. Dias mais tarde, o régulo Trabuco, vizinho de Chaworha, visitou o local da carnificina. Contou 300 mortos e depois parou. Foi ele quem, alegadamente, contou o sucedido ao padre Ferrão com a ajuda de um intermediário cuja identidade continua envolta em mistério, mas que pode muito bem ter sido Kansande. O padre Ferrão não pôde confirmá-lo. Kansande não se lembrava se tudo isto era ou não verdade.
O súbito desaparecimento de Juwau
O morticínio em Juwau e em Wiriamu teve contornos menos sádicos. Alguns pormenores sobre a destruição de Juwau são conhecidos. As tropas da companhia de comandos começaram a limpar a povoação, quando o helicóptero ainda se preparava para partir. Há poucas provas sobre a forma como mataram os habitantes. Uma testemunha, que se escondera atrás de um canavial alto, numa ravina próxima, e que não conseguimos localizar, viu as tropas da primeira unidade da 6.a Companhia de Comandos, comandada por Antonino Melo, atirarem granadas para dentro de palhotas cheias de pessoas, enquanto outros disparavam sobre quem tentasse fugir. Assumindo como certa a utilização da táctica de lançamento de granadas, já descrita por Antonino Melo, será legítimo concluir que o relato desta testemunha não é uma versão exagerada da verdade. Ou seja, a destruição de Juwau, foi certamente rápida, cirúrgica, concisa e fria. Disso, podemos estar certos.
A outra testemunha foi Kalifornia Kaniveti, provavelmente o elemento mais lesto do grupo de homens reunidos no espaço de convívio de Juwau. Fugiu quando começou o massacre. Com uma cabra apoiada na nuca e uma criança pequena em cada braço, desceu o morro e atravessou a estrada que ia dar ao Cruzamento 18. Foi então que ouviu o ruído dos rotores, atrás de si. Baixou-se para «fugir às pás», disse, mas continuou a correr até não poder mais. Nessa altura, tropeçou e deixou cair a sua carga preciosa. «Olhei para o céu.» O helicóptero que pairava sobre a sua cabeça como uma libélula também parou, ficando praticamente imóvel. Viu o piloto fazer-lhe sinal para seguir na direcção de Mpharhamadwe. Pôs-se de pé e recomeçou a correr até tornar a parar e beber um pouco de água num ribeiro antes de o atravessar. O helicóptero deixou-o aí. Kaniveti terminou o seu testemunho, dizendo, «aquele piloto salvou a minha vida», sugerindo que se tratava de um pássaro misericordioso que lhe concedera uma segunda vida. Existem poucas razões para duvidar das palavras de Kaniveti quando atribui aos portugueses um gesto de misericórdia não corroborado. Talvez o piloto tivesse intenção de o salvar, ou talvez estivesse apenas a empurrá-lo para os braços de uma unidade de comandos. Como vimos, esta unidade prestava apoio logístico às tropas comandadas por Antonino Melo e fazia a vigilância da zona em busca de fugitivos. Kaniveti regressaria ao local do massacre alguns dias mais tarde. «Estava esfomeado e precisava de comida», explicou. A povoação estava deserta. As hienas já rondavam os cadáveres. Não se atreveu a ir à aldeia de Wiriamu. «Levei duas cabras comigo», referiu, e voltou para Mpharhamadwe, «onde assentei.» «Nunca mais lá voltei.»
Continua
in “O Massacre português de Wiriamu, Moçambique 1972”. Mustafah Dhada.
Coca-cola, Chase Manhattan, General Motors Christian Dior, MacDonald, Shell, Dynasty, Hilton lntemational, Sangam Kentucky Fried Chicken, gás lacrimogéneo matracas, polícia secreta Ibn Khaldun disse: estes são os fundamentos do Estado entre os Árabes Murid Al-Barghuti
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O Impossível Ser-vos-á mil vezes mais fácil passar um elefante pelo fundo duma agulha, pescar um peixe assado numa galáxia, abrir sulcos no mar, fazer falar um crocodilo, ser-vos-á mil vezes mais fácil do que, ao perseguir-nos, destruir o fulgor da nossa ideia ou afastar-nos um palmo do caminho que escolhemos.
Dir-se-ia que somos vinte prodígios em Lidda, em Ramlah, na Galileia. Aqui permaneceremos sobre os vossos peitos como um muro, nas vossas gargantas como um pedaço de vidro... como o espinho dum cacto, e nos vossos olhos como uma tempestade de fogo.
Aqui permaneceremos como um muro sobre os vossos peitos, esfregando os pratos dos vossos bares, enchendo os copos dos senhores, varrendo os tijolos das vossas lôbregas cozinhas para arrancar dos vossos caninos azuis uma fatia de pão para os nossos filhos.
Aqui permaneceremos sobre os vossos peitos como um muro, famintos, sedentos, desafiando-vos, recitando poemas, enchendo as ruas com a nossa cólera e o nosso protesto, enchendo as prisões com o nosso orgulho e fazendo com que os nossos filhos engendrem sem parar gerações vingadoras.
Como se fôssemos vinte prodígios em Lldda, em Ramlah, na Gahlela…
Aqui permaneceremos.
Ide e bebei o mar.
Vigiando a sombra da nossa figueira e da nossa oliveira, semeando as nossas ideias como o fermento no pão. Com o frio do gelo nos nossos nervos e o inferno vermelho em nossos corações. Se sedentos, esprememos a rocha para saciar a nossa sede. Se famintos, saciamos com poeira a nossa fome. Mas não nos moveremos. Não traímos o nosso sangue limpo. Aqui temos um passado, um presente e um futuro.
Como se fôssemos vinte prodígios em Lidda, em Ramlah, na Galileia. Oh viva raiz nossa, afunda-te bem e mergulha até ao fundo. Melhor será ao opressor tomar a fazer as contas antes que o enredo se desfaça. Toda a acção tem resposta. Lede o que diz o Livro.
Como se fôssemos vinte prodígios. Em Lidda, em Ramlah, na Galileia. Tawfiq Zayyad
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Bilhete de Identidade
Escreve sou árabe o número do meu bilhete de identidade é o cinquenta mil tenho oito filhos e o nono chegará... depois do verão Ficarás irritado?
Escreve sou árabe trabalho com os meus companheiros de infortúnio numa pedreira tenho oito filhos para eles extraio da rocha a carcaça do pão a roupa e os cadernos E não venho mendigar à tua porta não me curvo no átrio da tua casa Ficarás irritado?
Escreve sou árabe Tenho um nome vulgar sofro num país que ferve de raiva As minhas raízes... fixadas antes do nascimento do tempo antes da eclosão dos séculos antes dos ciprestes e das oliveiras antes da erva da família do arado e não dos senhores de Nujub O meu avô, um camponês sem árvore genealógica Ensinou-me os movimentos do sol antes da leitura A minha casa Tirania tão ruim; uma cabana de guarda feita de canas e ramos Estás contente com a minha condição? Tenho um nome vulgar
Escreve sou árabe cabelos... pretos olhos... castanhos sinais particulares na cabeça um keffiah seguro por um cordel A palma da minha mão, rugosa como a rocha arranha a mão que aperta o meu endereço: sou duma aldeia perdida, sem defesa e todos os seus homens estão no campo e na pedreira... Ficarás irritado?
Escreve sou árabe Tu espoliaste-me das vinhas dos meus antepassados e da terra que cultivava com todos os meus filhos e só nos deixaste a nós e aos nossos descendentes este cascalho o vosso governo vai também apoderar-se dele como dizem?
Então escreve ao alto da primeira página Eu não odeio os meus semelhantes e não ataco ninguém Mas... se um dia me obrigarem a passar fome comerei a carne do meu espoliador Fica atento... fica atento à minha fome e à minha cólera! Mahmud Darwich *
Também Nós Amamos a Vida
Também nós amamos a vida quando podemos. Dançamos entre dois mártires e no meio deles erguemos um minarete de violetas ou uma palmeira.
Também nós amamos a vida quando podemos.
Ao bicho-da-seda roubamos um fio para tecer o nosso céu e estancar este êxodo. Abrimos a porta do jardim para que o jasmim saia para a rua como um dia bonito.
Também nós amamos a vida quando podemos.
Na morada que escolhemos, cultivamos plantas vivazes e recolhemos os mortos. Sopramos na flauta a cor da distância, desenhamos um relincho no pó do caminho. E escrevemos os nossos nomes, pedra a pedra. Tu, ó raio, ilumina a nossa noite, ilumina-a um pouco. Também nós amamos a vida quando podemos. Mahmud Darwich
(Poesia Palestina Contemporânea. Selecção e tradução de Alberto Martins. Edições ASA, 2004)
Desde há 20 anos que se comemora o Dia Internacional Contra a Corrupção, em 9 Dezembro, data instituída pela ONU, será, este ano, o 20° aniversário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção com o objectivo de “prevenir o crime, promover a transparência e fortalecer as instituições” como essência de se alcançar os ODS, ou seja, as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Para a ONU, presentemente em situação de grave crise existencial, combater o crime da corrupção “é direito e responsabilidade de todos”. Estes “todos” serão “estados, funcionários públicos, agentes da lei, representantes dos media, sector privado, sociedade civil, académicos e juventude”. Devemos reconhecer que estas peregrinas intenções mais não são que um marketing, basta olhar para o que se passa entre nós ou na Europa Comunitária.
Quase todos os dias que faz título a notícia de mais um caso de corrupção, desde o mais pequeno e corriqueiro ao grande e institucional, que escandaliza a opinião pública sobre a conduta dos seus representantes políticos. Esta semana foi a investigação à corrução e abuso de poder no ministério da Defesa, operação "Tempestade Perfeita", relacionada com a derrapagem das obras do antigo Hospital Militar de Belém, cujos custos subiram dos inicialmente contratados 750 mil euros para 3,2 milhões, isto é, mais dobro. Foram detidas cinco pessoas, e entre elas três altos quadros da administração pública, Alberto Coelho, que liderou a Direção-Geral de Pessoal e de Recursos da Defesa Nacional, Francisco Marques, diretor de Serviços de Infraestruturas e Património, e Paulo Branco, ex-diretor da Gestão Financeira do Ministério da Defesa. Pessoas de inteira confiança do governo PS/Costa, à semelhança do ex-secretário de Estado Ajunto do primeiro-ministro e ex-presidente da Câmara de Caminha, Miguel Alves, envolvido em fraude enquanto presidente, e que depois de contorcionismos vários foi obrigado a demitir-se.
Logo de imediato, a imprensa mainstream afecta aos partidos da oposição veio apontar o dedo ao actual ministro dos Negócios Estrangeiros, e que na altura dos factos era quem tutelava o ministério da Defesa, por ter encoberto a corrupção na medida em que protegeu Alberto Coelho em intervenção no Parlamento, quando elogiou os “40 anos ao serviço do estado” de um funcionário que merecia ser promovido, como veio acontecer, sabendo já das suspeitas que atingiam as obras contratadas a empresas de construção civil, cujos responsáveis se encontram também detidos. A ser verdade as acusações agora feitas, e independentemente das condenações que vierem a acontecer, somos levados a pensar que nos encontramos perante uma mafia, uma famiglia socialista no seu melhor. Não sabemos que tempo irá durar no cargo um indivíduo que tem sido nomeado para ministro, sendo mais que evidente a sua ignorância e impreparação para o cargo, basta olhar para os dislates que ultimamente tem proferido em relação questões relacionadas com o apoio da União Europeia ao conflito da Ucrânia.
Durante a pandemia assistiu-se a muitas compras por ajuste directo de toda sorte de equipamento sanitário, desde máscaras, testes a ventiladores e vacinas, envolvendo centenas de milhões euros, com empresas de reparação de automóveis a venderem luvas aos hospitais do SNS. Foram os medicamentos completamente inúteis, e até prejudiciais, para o combate ao vírus da covid-19, por exemplo, os 35 milhões de euros na compra de 100 mil (!?) frascos de Remdesivir à norte-americana Gilead. Foram os casos de médicos que recebem milhões dos laboratórios farmacêuticos, mas continuam a prestar serviço para o estado, como o caso do pneumologista Filipe Froes, a quem foi levantado processo disciplinar por manter simultaneamente a sua função de consultor (?!) da DGS, para além de funcionário público, e, segundo o jornal online “Página Um”, o ministro da Saúde Manuel Pizarro vai retardando o dar a conhecer o resultado do inquérito. Não deixa de ser despiciendo o facto daquele médico ser “o líder do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos, um órgão não-estatutário que inclusive serviu para perseguir médicos com opiniões distintas do bastonário Miguel Guimarães, como sucedeu com Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria”. A promiscuidade entre o sector privado e o público não deixa de estar envolta ma mais despudorada corrupção, com a conivência do governo.
Onde se encontra a corrupção? Encontra-se um pouco por todo o lado, na administração pública e no sector privado e, podemos afirmar sem exagerar, na sociedade em geral. No estado é mais notória por tanto as diferentes instituições públicas estarem mais expostas e porque de dinheiros públicos se trata. O caso mais mediático, e que envolveu de uma só vez um montante bastante elevado de dinheiro, foi a compra dos inúteis submarinos, que terão ficado em mais de mil milhões de euros; os corruptos activos foram condenados na Alemanha em sete anos de prisão efectiva enquanto os corrompidos em Portugal não foram encontrados pela justiça portuguesa, ou melhor ainda, não sequer existiram; terá sido um mistério. Contratos por concurso ou por ajuste directo são sempre bem oleados por chorudas comissões e tanto faz serem governantes do PSD, PP, PSD ou do Bloco Central. O governo não deixa de ser um centro de corrupção.
Todas as privatizações bem como parecerias público privadas estão envoltas na maior das corrupções, as mais escandalosas, por envolverem mais dinheiro, foram indubitavelmente as PPP rodoviárias e ferroviárias que irão pesar nos cofres públicos em mais de 30 mil milhões de euros até 2040, com uma rentabilidade escandalosa entre 11% e 14% para os accionistas das empresas intervenientes, segundo o antigo juiz conselheiro do Tribunal de Contas, Carlos Moreno; um montante que supera várias vezes o valor real daquelas infra-estruturas. Estes contratos, ruinosos para o estado, incluem clausulas secretas que os torna, à luz da Constituição, ilegais. Assim se percebe que haja muito arrivista que queira ser político, porque estes negócios rendem sempre boas comissões para quem os assina do lado do estado. O outsourcing veio para ficar na administração pública ou nas empresas do estado, para contratar tudo e mais alguma coisa, como acontece no SNS na contratação dos profissionais a empresas de trabalho temporário, ou melhor negreiro. Ao não mudar a lei das contratações públicas, PPP, e outras leis para benefício dos interesses de que muitos dos deputados são representantes, o Parlamento acaba por ser um coio da corrupção. Aliás, o governo acabou recentemente de fazer “alguns ajustes ao Código dos Contratos Públicos”, para “simplificar e agilizar os procedimentos de contratação”, mas talvez seja mais para facilitar os negócios da corrupção.
Os casos de corrupção com a administração pública, central ou autárquica, são constantes. Ainda há poucos dias mais outro que ficará para anedotário nacional da corrupção: “Câmara de Penamacor fez ajuste direto para estrada que já estava feita”. Se o presidente, autor da habilidade, é dos lados rosas ou laranjas pouco importa, na medida em que parecem ler todos a mesma cartilha de roubar o povo, que não se rebela, e a impunidade é quase certa. Quanto a esta última, ficam retidas as palavras de um dos arguidos do caso, também célebre e que envolveu um general e outros oficiais de patente elevada da Força Aérea que se abotoavam por esquema de corrupção nas messes, um capitão que disse que havia uma "sensação de impunidade". E na realidade houve uma quase impunidade visto que as penas foram leves, o general foi condenado a seis anos de prisão efectiva, a pena mais pesada se não estamos erro, e neste momento quase de certeza que estará em liberdade, foi em 2019, e as firmas ficaram proibidas de fornecer o estado durante 4 anos, o que estará quase a terminar.
A sensação da impunidade torna, por sua vez, o crime frequente e como corriqueiro, porque compensa. Lembremo-nos de Arlindo de Carvalho, ex-ministro da Saúde de Cavaco, que pagou 22 milhões de euros para não cumprir a pena de prisão a que fora condenado no escândalo da fraude do BPN, apesar de ter enfiado nos bolsos 60 milhões de euros; o que não deixou de ser um excelente negócio para ele e mais um desfalque para o estado, mas aqui pagamos nós, contribuintes. A corrupção abrange de igual modo a justiça nem que seja por esta usar dois pesos e duas medidas para julgar as questões que aparecem na barra. E o caso do ex-procurador, que foi condenado há quatro anos por corrupção, só agora é que foi demitido do Ministério Público, e quanto á sua prisão, embora anunciada, ainda estaremos para ver. Veio há pouco a Procuradora-Geral Europeia dizer que: “A corrupção está em todo o lado na Europa. E não só em Portugal ou na Roménia”. Pois está, em todo o lado, na Europa e em Portugal. Em Bruxelas pontifica a corrupção, cujo melhor exemplo foi a aquisição das vacinas anti-covid 19 pela Comissão Europeia, sendo iniludível as relações entre Von Der Leyen e a norte-americana Pfizer. Bruxelas acaba por ser o centro da corrupção na UE.
Devemos reconhecer que a atitude dos portugueses em geral é de alguma benevolência quanto á corrupção, sendo mais severos e intransigentes quanto à corrupção dos políticos; mas mesmo quanto a estes e quando se trata de autarcas, que também “fazem muito” pela terra, parece que há o perdão já que também eles, eleitores, são beneficiados com a sobras. A reeleição de Isaltino de Morais, ex-presidente da câmara de Oeiras pelo PSD e agora presidente como independente, condenado a sete anos de prisão e a perda de mandato por fraude fiscal, abuso de poder e corrupção, diz-nos bem do critério usado por muitos cidadãos portugueses. Será difícil encontrar alguém que não tenha metido a “cunha” para fazer andar algum processo na câmara ou resolver problema na repartição das Finanças ou até para arranjar emprego para algum familiar. A “cunha” como instituição nacional possui barbas e pergaminho, vem dos tempos da realeza, costuma-se dizer que “quem não tem padrinhos, morre moiro”; o que não deixa de ser uma verdade num país em que não se fez a revolução industrial e que as relações sociais assentam em muito nos compadrios e amigos. Falar em mérito pessoal neste canto periférico é quase um insulto ou uma piada de mau gosto.
Foi recentemente publicado o resultado de estudo que salienta que "a honestidade é valorizada pelos cidadãos como o princípio basilar que deve orientar a conduta dos titulares de cargos políticos", enquanto "os políticos tendem a reconhecer a lei como o único critério orientador da sua conduta"; o que não contraria as afirmações feitas por nós anteriormente, porque muitos portugueses gostam de dar uma boa imagem de si próprios e tendem a responder a estes inquéritos em modo politicamente correcto. Inquéritos que parecem contradizer o que se vê por aí quanto à corrupção: “Funcionária de ex-secretário de Estado acusada de beneficiar empresário em troca de queijos da serra e estadias em hotéis”. Quase que somos levados a pensar que há portugueses que se deixam corromper por um jantar ou um copo de vinho. Daí talvez a razão de vir a saber-se que: “Portugal é o terceiro país mais corrupto da União Europeia” (Público, 08.10.2003) ou “Portugal é visto como um dos países mais corruptos da Europa” (TSF, 05.12.2012) ou “Portugal parado na perceção da corrupção” (Observador, 25.01.2017), e por aí fora.
Quais as razões de Portugal democrático e estado de direito ser visto como um dos países mais corruptos da Europa, serão políticas, religiosas, sociais, culturais? Não sabemos ao certo, mas possivelmente um conjunto de todas. Não será coincidência a facto da corrupção ser mais visível nos países do Sul da Europa, países predominantemente católicos e onde não houve uma revolução industrial, com fracas tradições democráticos e cuja população em geral possui baixa literacia política, científica e cultural; só para citar o exemplo do alfabetismo, enquanto a Suécia tinha a sua população praticamente toda alfabetizada no início do século XVIII, para poder ler e discutir os textos sagrados da Reforma Protestante (versão burguesa do Cristianismo), Portugal tinha ainda 20% da população analfabeta em 1974, ano da Revolução dos Cravos. Poderão os partidos da direita, os que geralmente usam a bandeira da corrupção para viragem da democracia para o autoritarismo, ficar bem descansados, que não será por este caminho que derrubarão o governo do PS/Costa. Só o Chega exigiu a demissão do ministro, e o PCP, o partido mais à esquerda na Assembleia da República, apenas pediu ao ministro que retire “ilações”. A classe média nacional não parece dar-se mal com este estado de coisas e será o povo, talvez um dia e quando encostado à parede, se insurgir contra esta sociedade capitalista e burguesa, cujo fim é o lucro e o motor o dinheiro. A corrupção está incrustada no genoma do capitalismo.
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente!
Vulcões
Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal Não tem a lividez sinistra da montanha Quando a noite a inunda dum manto sem igual De neve branca e fria onde o luar se banha.
No entanto que fogo, que lavas, a montanha Oculta no seu seio de lividez fatal! Tudo é quente lá dentro…e que paixão tamanha A fria neve envolve em seu vestido ideal!
No gelo da indiferença ocultam-se as paixões Como no gelo frio do cume da montanha Se oculta a lava quente do seio dos vulcões…
Assim quando eu te falo alegre, friamente, Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!
04/05/1916
*
A MULHER
Ó Mulher! Como és fraca e como és forte! Como sabes ser doce e desgraçada! Como sabes fingir quando em teu peito A tua alma se estorce amargurada! Quantas morrem saudosa duma imagem. Adorada que amaram doidamente! Quantas e quantas almas endoidecem Enquanto a boca rir alegremente! Quanta paixão e amor às vezes têm Sem nunca o confessarem a ninguém Doce alma de dor e sofrimento! Paixão que faria a felicidade. Dum rei; amor de sonho e de saudade, Que se esvai e que foge num lamento!
*
VOLÚPIA
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...
Florbela Espanca, em "Charneca em Flor"
"Charneca em Flor"
Florbela Espanca
Nascimento: 8 de dezembro de 1894, Vila Viçosa
Falecimento: 8 de dezembro de 1930, Matosinhos
Poetisa portuguesa. A sua vida, de apenas 36 anos, foi plena, embora tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos, que a autora soube transformar em poesia da mais alta qualidade, carregada de erotização, feminilidade e panteísmo. Há uma biblioteca com o seu nome em Matosinhos.
Acabou de se comemorar ou, melhor, passou-se alguns dias sobre o Dia Internacional para a Abolição da Escravatura, que se assinala em cada dia 2 de Dezembro. Será mais um formalismo oficial sem conteúdo de relevo, na justa medida em que a realidade da escravatura no mundo e em Portugal, em particular, é iniludível e não tem decrescido, bem pelo contrário. Se Portugal foi um dos pioneiros na abolição da escravatura, em 1761 por decreto do Marquês de Pombal, entretanto, foi o primeiro estado do mundo a fazer comércio global de escravos vindos de África, terá traficado cerca de 11 milhões de pessoas, entre 1450 e 1900. Em 1974, ano da revolução dos cravos, havia ainda trabalho forçado (eufemismo de escravo) nas ainda colónias africanas.
Portugal, nomeadamente o Portugal das elites, é pródigo na hipocrisia e nas medidas de faz de conta para dar uma boa imagem de uma realidade que nada tem de belo ou de humano. E quando as coisas vêm ao de cimo ou tentam-se esconder ou dizer que não é nada connosco, foi o que aconteceu com os trabalhadores imigrantes escravos na agricultura intensiva no Alentejo. As três mais altas figuras representativas, e de poder, de estado resolveram fazer turismo futebolístico no Qatar, conhecido paraíso dos direitos humanos, ao serem criticadas ou vieram com desculpas esfarrapadas ou assobiaram para o lado e mandaram “esquecer” o assunto.
Se as autoridades democráticas, da República/Estado democrático e de direito, escondem o problema para debaixo do tapete, a elite que beneficia directamente dessa mão-de-obra escrava ou quase escrava faz também de conta que não é responsável de nada e até, aonde vai o descaramento?, se vitimiza. Assim, segundo a proba opinião do presidente da Associação de Agricultores do Sul, "as associações de agricultores não têm nada a ver com isto, nem os agricultores em geral", reafirmando que estes trabalhadores imigrantes são “fundamentais” e que o problema se resolverá com mais fiscalização. Como se este assunto fosse apenas uma questão de polícia e não política.
Claro que a exploração de seres humanos, com o objectivo de lhes arrancar a maior taxa de mais-valia possível, coisa que não seria possível nem tão fácil se tratasse de mão-de-obra nacional, é aberta e inquestionavelmente um crime, mas por detrás encontram-se relações sociais de produção capitalista. A existência de agricultura intensiva no Alentejo, no Algarve, ou em outras partes do território nacional, maioritariamente nas mãos de empresas estrangeiras, nomeadamente de empresas britânicas, ou seja, fora da União Europeia, deve-se ao facto de Portugal se encontrar dentro do espaço comunitário e tendo-lhe cabido o papel de fornecimento de mão-de-obra barata e facilidades a nível fiscal e de ordem geral aos grandes grupos económicos capitalistas. Entretanto, a elite, incluindo a parte política, colhe a renda.
O governo do senhor Costa e do partido que se auto-denomina de “socialista” sabe do problema, melhor, conhece-o desde o primeiro dia de mandato e quando foi tema mediático, chegou a prometer contentores com ar condicionado e internet, só que passado que foram três anos e pós-reeleição, as palavras foram levadas pelo vento e a exploração continuou… para lucro acrescido dos empresários e terra-tenentes. Logo que passe a onda do futebol o tema será de novo relegado para o esquecimento, porque até as pessoas são mais escuras e nem são portuguesas, se ainda fossem, vamos lá!, louras e de olhos azuis e de preferência ucranianas, então iríamos ver, é que Bruxelas já enviou 60 milhões de euros para os refugiados da guerra da Ucrânia e talvez escorregasse com mais algum.
A elite nacional é entranhadamente racista e xenófoba e para aferir o seu espírito de humanismo e anti-esclavagista basta olhar para as sentenças proferidas pela Justiça nos últimos anos. Na maioria dos casos, as condenações ou são brandas, com absolvições ou com pena suspensa, e quando pena efectiva são poucos anos de prisão. Não se percebe que o código de justiça penal não preveja penas de 25 anos, pena máxima, para os casos mais graves e nem os empresários que empregam mão-de-obra escrava não sejam de igual modo penalizados, à semelhança dos traficantes por colaboradores activos do crime. Sabe-se inclusivamente que são estes empresários, quando os trabalhadores ousam protestar contra condições degradantes e humilhantes de trabalho, são eles próprios que os denunciam às autoridades.
A prova de que o tráfico de seres humanos tem aumentado exponencialmente entre nós é o número crescente das condenações que mais do que duplicaram nos últimos anos, segundo o relator nacional para o tráfico de seres humanos da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) da presidência do Conselho de Ministros, sendo realçada a importância de se aplicar “sentenças suficientemente dissuasivas” em Portugal, o que não tem suficientemente acontecido. Não podemos deixar de realçar o facto de o Tribunal de Coimbra ter condenado cinco de seis arguidos, acusados de tráfico de seres humanos, entre 2013 e 2018, a penas efetivas de prisão, entre seis e sete anos, que serão na prática diminuídas para metade em caso de bom comportamento dos réus. Porque não o dobro e ficaram sem o património que deveria reverter para as vítimas e para o estado? Não é a pedagogia de dissuasão que se pretende? Ora, não é com penas brandas que se atinge esse objectivo.
Muitos dos traficantes são estrangeiros, o negócio compensa e está globalizado. Ficou-se a saber que muitos dos trabalhadores imigrantes, na recente operação policial em Beja, eram contratados e sequestrados por uma casal romeno que escravizava os próprios compatriotas, mas já em 2018 o tribunal de Santarém condenou a prisão efectiva cinco arguidos por tráfico humano para exploração laboral, sendo dois deles estrangeiros, um israelita, Aharon Rony Bargig, condenado a 10 anos de prisão, o outro nepalês, Sharad Gurunq, condenado a cinco anos e três meses, o tribunal determinou ainda a expulsão do país por oito e cinco anos, respetivamente. Depois de cumprida a pena poderão regressar, as portas estarão abertas.
Como o negócio é rentável e com um bocado de sorte as penas serão simbólicas ou quanto muito brandas, podendo retomar a actividade mais tarde, daí ser também um negócio familiar podendo envolver várias pessoas da mesma família. Em outra sentença, e estamos a recorrer a casos noticiados na imprensa, foram condenados quatros arguidos pertencentes à mesma família, residentes na área da Covilhã, três sofreram penas de prisão efectivas, o outro a pena de prisão suspensa. Em caso mais recente, já em este ano de 2022, o tribunal de Coimbra condenou um homem a cinco anos de prisão e a sua filha, também arguida, a três anos e meio, mas ambos com pena suspensa, o crime tinha sido a exploração de dois homens da Europa de Leste em trabalhos domésticos e na empresa de têxteis e de vestuário de sua propriedade, como se fossem pretos à moda antiga.
A atitude das autoridades perante a questão dos imigrantes e dos diversos casos de escravatura encontra-se bem patente no comportamento dos agentes de autoridade, que usam a força para lidar com o problema, chegando recorrer à tortura, à boa moda antiga da Pide, levando por vezes à morte dos torturados, como aconteceu com o trabalhador imigrante ucraniano, cujo assassínio foi bastante mediatizado, tendo ajudado a cozer em lume brando o ex-ministro da Administração Interna Cabrita e servido de pretexto para a reforma das polícias, antro de antiga e prodigiosa corrupção. Se Ihor Homenyuk fosse portador de um visto gold quase de certeza que os agentes que o torturaram lhe teriam estendido aos pés uma passadeira vermelha. Afinal, trata-se de uma questão de dinheiro e de posição social.
A questão é simples, trata-se de dinheiro: se se é mafioso com muito dinheiro para reciclar não se pergunta nem sobre o que faz nem ao que vem, se se é pobre e trabalhador, o interrogatório é feito a preceito, como aconteceu no caso do imigrante ucraniano. O racismo acaba por ser um racismo económico, é o ódio pelo pobre, que apenas procura um meio de melhorar a sua vida. A discriminação serve somente para justificar a maior exploração da parte da classe dos trabalhadores discriminadas. E facilmente se interligam os conceitos de racismo e de que a exploração dos trabalhadores pode ser levada ao extremo da escravatura pura e dura; conceitos que se encontram bem entranhados nas nossas elites, sejam elas políticas ou económicas, e aos seus instrumentos de controlo e repressão, tribunais e polícias. O resto da sociedade, como não se encontra separada por uma muralha da China, deixa-se facilmente contaminar, e mais fácil se houver ganhos directos ou secundários. E os casos são mais do que muitos e quase quotidianos.
O estado não é neutro, não está acima das classes, ele é na essência o instrumento de dominação de uma classe por outra, e resume em si toda a mentalidade da classe que se encontra no poder. E quando esse estado é herdado quase incólume de um regime autoritário, como era o anterior ao 25 de Abril, por um regime que se pretende democrático, então, esta democracia e este estado de direito são, na maioria das vezes, simplesmente formais. E os exemplos abundam. Mais recentemente, os sete militares da GNR que agrediram e sequestraram alguns imigrantes, chegando a filmar a proeza, e que se encontravam suspensos, voltaram ao activo ainda antes de serem condenados pela justiça. A sentença está para ser conhecida em breve, como será? Não será difícil de imaginar. Outro exemplo: os seis jovens que foram sequestrados, agredidos e humilhados na esquadra da PSP em Alfragide apelaram à Provedora de Justiça para que os oito agentes condenados fossem punidos disciplinarmente de forma a não "torturarem" mais ninguém, esperam há 21 meses pela resposta da Provedora da Justiça.
Como se constata, a escravatura, o racismo, a xenofobia, a discriminação e a exploração do ser humano, a nível laboral, sexual, psicológico ou outro (é notícia recente “Tráfico e exploração sexual de menores crescem na Europa”) estão inscritos no genoma da nossa sociedade burguesa e capitalista e que mais dificilmente se apagarão numa sociedade que, ainda por cima, não soube, não conseguiu ou não quis livrar-se das velhas chagas e maleitas do fascismo. Aliás, enquanto forem fonte de rendimento para as elites e para uns poucos mais, manter-se-ão.