Eis-me chegando ao fim e eis a minha sentença. Condeno o cristianismo, lanço contra a igreja cristã a mais terrível acusação que jamais passou pelos lábios de um acusador. Para mim ela é a maior corrupção concebível, a sua vontade de corrupção tinha como fim a última das corrupções possíveis. Nada a igreja cristã poupou à sua corrupção, de cada valor fez um não-valor, de cada verdade uma mentira, de cada rectidão uma baixeza de alma. Que se atrevam a falar-me das duas benesses «humanitárias»! Suprimir qualquer angústia iria contra o seu mais profundo interesse: ela viveu de angústias, ela inventou angústias para se eternizar. O verme do pecado, por exemplo: foi necessária a Igreja para a humanidade se ver enriquecida com essa angústia! «A igualdade das almas perante Deus», essa aldrabice, esse pretexto para as rancunes* de todos os espíritos inferiores, essa ideia-explosivo, finalmente tornada revolução, ideia moderna e início de todos o declínio de toda e qualquer organização social – é o dinamite cristão… «Humanitárias» benesses do cristianismo! Adestrar a humanitas para a tornar uma auto-contradição, uma arte de se poluir, uma vontade de mentira a todo o custo, uma repulsa, um desprezo por todos os bons e rectos instintos! A isso chamaria eu as benesses do cristianismo! – O parasitismo, só e única prática da Igreja; com o seu ideal de anemia, o seu ideal de «santidade» bebendo, até esgotar, todo o sangue, todo o amor, toda a esperança da vida; o além como vontade de negação da realidade; a cruz como emblema para a mais subterrânea conjura que jamais existiu – contra a saúde, a beleza, a qualidade, a bravura, o espírito, a bondade de alma, contra a própria vida…
Esta eterna acusação contra o cristianismo, hei-de escrevê-la nas paredes, por todo o lado onde houver paredes – as minhas letras fazem ver até os cegos… Chamo ao cristianismo, a grande maldição, a grande corrupção interior, o grande instinto de vingança para o qual não há meio algum que seja demasiado venenoso, clandestino, subterrâneo, demasiado pequeno – chamo-lhe o enxovalho imortal da humanidade…
E o tempo conta-se a partir desse dies nefastus, com que se instaurou esta fatalidade – do primeiro dia do cristianismo! E porque não do seu último dia? – A contar de hoje? – Transvolarização de todos os valores!
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LEI CONTRA O CRISTIANISMO
Dada no dia da Salvação, primeiro dia do ano Um (- a 30 de Setembro de 1888, pelo falso calendário)
GUERRA DE MORTE: O VÍCIO
O VÍCIO É O CRISTIANISMO
Artigo Primeiro. – É vício qualquer tipo de anti-natureza. A mais viciosa espécie de homens é o padre. Ele ensina a anti-natureza. Contra o padre não temos razões, temos a casa de correcção.
Artigo Segundo. – Qualquer participação num ofício divino é atentado contra a moral pública. Seremos mais duros para com um protestante que para um católico, mais duros para com um protestante liberal que para com um puritano. Quanto mais próximo se está da ciência, maior é o crime de ser cristão. Por consequência, o criminoso dos criminosos é o filósofo.
Artigo Terceiro. – O lugar de maldição onde o cristianismo chocou os ovos de basilisco, será completamente arrasado, e sendo sobre a terra o local sacrílego, constituirá motivo de pavor para a posteridade. Aí serão criadas serpentes venenosas.
Artigo Quarto. – A pregação da castidade é uma pública excitação para o anti-natural. Desprezar a vida sexual, enxovalhá-la com a noção de «impuro», eis o verdadeiro pecado contra o espírito santo da vida.
Artigo Quinto. – Comer a Uma mesa com um padre, expulsa; fazendo-o, excomungamo-nos da sociedade proba. O padre é a nossa Tchandala, - será metido na prisão, privado de alimentos, expulso para uma espécie de deserto.
Artigo Sexto. – Dar-se-á à história «santa» o nome que merce, pois é a história maldita; utilizar-se-ão as palavras «Deus», «Salvador», «Redentor», «Santo», para injuriar, para com elas marcar os criminosos.
Artigo sétimo. – O resto nasce daqui.
Nietzsche – Anticristo
O Anticristo
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O MARTELO FALA
ZARATUSTRA 3,90
Tu, ó meu Querer, milagre para toda a angústia, tu minha necessidade. Livra-me da pequena vitória!
Tu, caminho da minha alma, a que chamo destino! Tu em mim! Guarda-me e reserva-me para Um grande destino!
E a tua última grandeza, meu Querer, reserva-a para ser a derradeira, - possas tu ser inexorável na vitória. Ah! Quem não sucumbiu na vitória!
Ah! Quem há cujo olhar se não tenha enevoado neste crepúsculo ébrio! Ah! Quem, cujo pé não tenha tropeçado; quem, que não tenha desaprendido no momento da vitória – a estar de pé!
– Que um dia eu esteja pronto e amadurecido no grande Meio-dia, pronto e amadurecido ao bronze ardente, à nuvem prenhe de raios, à teta regorgitante de leite:
– pronto e amadurecido para mim próprio e para o meu Querer mais secreto, um arco no ardor da sua flecha, uma flecha no ardor do seu astro:
– um astro pronto e amadurecido no seu Meio-dia, incandescente, trespassado, na delícia das flechas aniquiladoras do sol: – ele próprio sol e inexorável vontade-sol, pronta para«, triunfante, aniquilar!
Ó Querer, desvio de toda a angústia, tu, minha necessidade! Preserva-me uma grande vitória!
(O Anti-Cristo, Frederico Nietzsche. Editorial Presença, 1973)
Eu acredito no viver. Eu acredito no espectro dos dias Beta e do povo Gama. Eu acredito no brilho do sol. Em moinhos de vento e cachoeiras, triciclos e cadeiras de balanço. E eu acredito que sementes tornam-se brotos. E brotos tornam-se árvores. Eu acredito na mágica das mãos. E na sabedoria dos olhos. Eu acredito na chuva e nas lágrimas. E no sangue do infinito.
Eu acredito na vida. E eu vi o desfile da morte marchando pelo torso da terra, esculpindo corpos de lama em seu caminho. Eu vi a destruição da luz do dia, e vi vermes sedentos de sangue sendo adorados e saudados.
Eu vi os dóceis tornarem-se cegos e os cegos tornarem-se prisioneiros num piscar de olhos. Eu andei sobre cacos de vidro. Eu admiti meus erros e engoli derrotas¹ e respirei o fedor da indiferença.
Eu fui trancafiada pelos injustos. Algemada pelos intolerantes. Amordaçada pelos gananciosos. E, se tem alguma coisa que eu sei, é que um muro é apenas um muro e nada além disso. Ele pode ser posto abaixo.
Eu acredito no viver. Eu acredito no nascimento. Eu acredito na doçura do amor e no fogo da verdade
E eu acredito que um navio perdido, conduzido por navegantes cansados e mareados, ainda pode ser guiado à casa para atracar.
¹Do original I have eaten crow and blunder bread. Ambas expressões significam admitir seus erros ou provarem que ela estava errada.
Affirmation (Original)
I believe in living. I believe in the spectrum of Beta days and Gamma people. I believe in sunshine in windmills and waterfalls, tricycles and rocking chairs. And I believe that seeds grow into sprouts, And sprouts grow into trees. I believe in the magic of the hands. And in the wisdom of the eyes. I believe in rain and tears. And in the blood of infinity.
I believe in life. And I have seen the death parade march through the torso of the earth, sculpting mud bodies in its path. I have seen the destruction of the daylight, and seen the bloodthirsty maggots prayed to and saluted.
I have seen the kind become the blind and the blind become the bind in one easy lesson. I have walked on cut glass. I have eaten crow and blunder bread and breathed the stench of indifference.
I have been locked by the lawless. Handcuffed by the haters. Gagged by the greedy. And, if I know anything at all, it’s that a wall is just a wall and nothing more at all. It can be broken down.
I believe in living. I believe in birth. I believe in the sweat of love and in the fire of truth.
And I believe that a lost ship, steered by tired, seasick sailors, can still be guided home to port.
Retirada do livro Assata: An Autobiography, originalmente de 1987, edição da Zed Books no Reino Unido. Relançado, em 2001, nos Estados Unidos com prefácio da Angela Davis.
Assata Olugbala Shakur (nascida JoAnne Deborah Byron, em 16 de Julho de 1947, Flushing, Queens): ativista política, foi membro do Black Liberation Army (BLA), escritora e poetisa, vive hoje no exílio em Cuba. Perseguida pelo FBI, fez uma fuga cinematográfica da prisão em 1979 e se engajou na luta internacional anti-imperialista. A pretexto de ter atingido um agente da polícia em tiroteio na New Jersey Turnpike em 1973, o FBI promete uma recompensa de 2 milhões de dólares pela sua detenção.
Para além da ausência de regras que permitam, pela via individual, o acesso do cidadão à actividade politica, não existem regras idóneas de financiamento dos partidos nem de transparência para os políticos. Um pouco à semelhança dos "pilares morais" do regime, a Maçonaria e a Opus Dei, tudo se decide às escondidas, como se o direito dos cidadãos à informação completa e rigorosa de como são financiadas as suas instituições e dos rendimentos dos seus governantes e dos seus magistrados se tratasse de algo suspeito, de algo subversivo."
Rui Mateus
O Partido Social-Democrata Sueco estava comprometido em apoiar a Conferência «Europa Connosco» e o responsável pela organização, Rolf Theorin, viria a Portugal em numerosas ocasiões para acertar os detalhes da primeira reunião cimeira internacional, realizada pelo Partido Socialista. Com uma peregrinação a várias capitais europeias para confirmar o convite de Olof Palme, eu próprio me encarregaria de pessoalmente garantir a presença dos participantes mais relevantes. A partir de meados de Fevereiro, instalaríamos o quartel-general da conferência no hotel Vermar em cujo último andar se realizaria, nos dias 13 e 14 de Março, a reunião. Preparámos o local e confirmámos todos os pormenores minuciosamente e com o experimentado know-how sueco. Era a primeira vez que um tão grande número de personalidades, que incluía vários chefes de governo, se reunia no nosso país. Mas, apesar da nossa inexperiência, tudo correu impecavelmente com excepção de um pequeno imprevisto, que nem aos suecos ocorreria. No domingo, no final da conferência e depois do grandioso comício realizado na noite da véspera no Palácio de Cristal, estava prevista uma conferência de imprensa no Palácio da Bolsa. Chovia então torrencialmente no Porto e chovia mesmo dentro da sala do Palácio da Bolsa. François Mitterrand recusou-se, assim, a tirar o seu sobretudo, protegendo-se dos pingos com o seu característico chapéu!
Os custos desta reunião seriam integralmente cobertos pelo Partido Social-Democrata Sueco, que contribuiu com cerca de meio milhão de coroas, e pelo Partido Socialista Austríaco de Bruno Kreisky, que contribuiu com 750 mil shillings austríacos. Para o efeito seria informado pelo banco PK da Suécia que o PSD sueco mandara abrir uma conta na Suíça em meu nome, através da qual aquelas verbas seriam movimentadas. Estas e outras verbas começariam contudo a expor o PS a sinais exteriores de riqueza e a dar lugar a todo o tipo de especulações e contra-informação. Grande parte do apoio vinha em notas e cheques em moedas estrangeiras e, apesar dos contactos que o PS detinha na banca, sempre que o tesoureiro, Fernando Barroso, procedia a operações cambiais saíam notícias e circulavam rumores. Para além da contra-informação do PCP e da extrema-esquerda, logo após a visita aos EUA seriam lançadas notícias em órgãos de comunicação social por dissidentes da CIA, como foi o caso de Philip Agee. As notícias inicialmente difundidas pelo New York Times de que o PS estaria a receber avultadas quantias da CIA e do estrangeiro «obrigariam» Mário Soares a veementes desmentidos e a uma conferência de imprensa, a 8 de Fevereiro, não só para desmentir o que era verdade mas, sobretudo, para camuflar esses apoios, anunciando o lançamento pelo PS de uma campanha nacional de angariação de fundos. Diria então que «o nosso partido é um partido de trabalhadores, é um partido de esquerda e, como tal, um partido pobre. Têm-nos sido dirigidas muitas calúnias por parte dos que nos acusam de recebermos fundos estrangeiros. Essas calúnias nunca foram provadas, nem o poderiam ser, porque são efectivamente calúnias. Estamos no início desta campanha [eleitoral], que vai ser extremamente dinâmica e esclarecedora para o País, com grandes dificuldades financeiras, porque a campanha eleitoral é efectivamente dispendiosa. Por isso resolvemos iniciar a nossa actuação, neste período pré-eleitoral em que nos encontramos, por uma campanha de recolha de fundos. Como lhes disse, amanhã vai aparecer a cidade coberta de grandes cartazes deste tipo: Com a tua vontade de Vencer. Por um amanhã a construir. Recolha de fundos para o Partido Socialista».
Nesse ano eleitoral de 1976, vários partidos e entidades estrangeiros entregariam avultadíssimas somas em dinheiro, por todos os meios, as quais a Administração Financeira ia classificando como campanha de «angariação de fundos». Só os recibos que me foram entregues ultrapassariam, então, os 40 mil contos, embora à medida que iam sendo entregues na Rua da Emenda a Fernando Barroso fossem, inadvertidamente, sendo classificados em moeda estrangeira e, às vezes, referindo mesmo a entidade doadora. O Partido Trabalhista Britânico, segundo me foi comunicado, tinha unicamente enviado, em 1975, para a conta da Holanda, a quantia de 4108 Libras o que equivalia a 240 contos na altura. Os «pacotes de biscoitos» do M16, «CH», o último dos quais seria entregue em 7 de Abril de 1976, representavam a extensão do conceito político da «Europa Connosco» ao outro lado do Atlântico!
Esta reunião do Porto consagraria Mário Soares perante o público português como um dos «grandes» da Internacional Socialista, para além de continuar o «espírito», e o apoio financeiro, do comité de solidariedade constituído meses antes em Estocolmo. Teria a presença de Willy Brandt, Bruno Kreisky, Joop den Uyl, François Mitterrand, Felipe González e, claro, Olof Palme. Teve um enorme impacto nacional. Não tanto pelo que ali foi dito mas, sobretudo, pelo significado da presença conjunta, no nosso país, dos principais protagonistas do socialismo democrático europeu. Finalmente os portugueses tinham oportunidade de conhecer os homens que iriam fazer entrar Portugal na Europa e que, por intermédio do PS, iriam transformar Portugal num país europeu igual àqueles onde trabalhavam os nossos vizinhos e os nossos familiares.
O secretário-geral do PS estava eufórico com a ocasião, ao lado dos «grandes» da social-democracia mundial. Estatuto que considerava não poder ser atribuído a Felipe González que, além de usar blusão de cabedal, na «cerimónia», não era reconhecido na Espanha pelo Partido Socialista Popular, chefiado por Tierno Galván. E, no que respeita a Espanha, em 1976, as preferências de Soares eram claramente a favor do partido dos seus amigos Raul Morodo e Fernando Morán, estando mesmo convencido de que, eleitoralmente, até o PCE de Santiago Carrillo teria mais votos do que o «grupo»
de González. Assim, numa das crises de enfant gaté que ocasionalmente o assaltavam, não queria que González discursasse no grande comício que teve lugar no Palácio de Cristal, no dia 13, encarregando-me a mim da desagradável tarefa de explicar a González que só um número restrito de oradores estava previsto. Um pequeno número que incluía só os «grandes» líderes. Tanto quanto me pude aperceber então, a ideia era a de excluir Zenha, cuja reputação nacional, popularidade e estatura moral lhe começavam a fazer sombra. E depois, quando já fosse tarde demais, seria eu responsabilizado, por ter sido eu a organizar a conferência... Ao fim de um ano de actividade dentro do PS, e sabendo como as culpas pelo desastre do primeiro Congresso, tinham caído em cima do Tito de Morais, estava perfeitamente ambientado na política de «sacudir a água do capote» dos dirigentes socialistas. Por isso recusar-me-ia, informando, pelo contrário, Zenha da «deselegância» que o secretário-geral pretendia cometer. Zenha que melhor que ninguém o conhecia de ginjeira, alteraria a situação. Zenha seria um dos grandes oradores da noite e González discursou mesmo, sendo vibrantemente aplaudido. Afinal ele estava ainda a lutar pelos direitos de existência do seu partido em Espanha e necessitava daquela publicidade, talvez mais que nós próprios que já a tínhamos adquirido.
Mas, como já tinha explicado anteriormente, as relações do PS com o PSOE não eram exactamente as melhores se bem que, da parte de Felipe González, todos os esforços fossem feitos para um bom relacionamento connosco. A situação em Espanha ainda estava longe de ser clara e, como acontecera connosco antes do 25 de Abril, aos socialistas espanhóis faltava quase tudo. Portugal era assim um ponto de referência fundamental. Um mês antes da reunião do Porto, a 12 de Fevereiro, o chanceler austríaco Bruno Kreisky organizara em Viena um grande «comício de luta contra o fascismo». Os convidados principais seriam Soares, que representava a vitória do regime democrático e González, que representava a luta pela democracia. O acontecimento, pese embora o então maior prestígio de Soares, destinava-se essencialmente a apoiar o PSOE mas Soares, no seu discurso, não faria uma única referência ao PSOE ou a González. Diria simplesmente que «conhecemos bem o valor da solidariedade internacional anti-fascista. É por isso que hoje estamos ao lado dos nossos companheiros espanhóis, vibrando com eles na esperança de que em breve a democracia estará restabelecida em Espanha». E no final daria vivas à amizade luso-austríaca, ao PS austríaco e ao socialismo. Ao PSOE nada!
Começa aqui a explicação da «deselegância» da cimeira do Porto. Soares não queria González nessa cimeira e seria o chanceler Bruno Kreisky (que aliás pagaria grande parte das despesas da «Europa Connosco») quem insistiria para que o jovem líder socialista espanhol estivesse presente. Após o êxito do Porto, González demonstraria também interesse em passar o dia das eleições legislativas, marcadas para o dia 25 de Abril, em Lisboa. Queria confraternizar com os seus camaradas portugueses e tirar partido, tanto quanto possível, da enorme cobertura mediática internacional, na esperança de poder beneficiar desse feedback no seu país. Só que Felipe González chegara no voo de Madrid na manhã de 25 de Abril, acompanhado do responsável pelas relações internacionais, Luis Yafies, mas o secretário-geral do PS disse-me «que não estava para o aturar» e eu que «tomasse conta dele como fizera no Porto». Eu fui esperá-los ao aeroporto e, após um aperitivo em casa de Bernadino Gomes, no Estoril, sendo este acompanhante da funcionária da Fundação Friedrich Ebert, Elke Esters, que representara os alemães na fundação do PS em Bad Munstereifel em 1973, almoçámos no hotel Albatroz em Cascais, tendo depois visitado vários locais de voto em Lisboa e arredores. Na noite das eleições, Mário Soares cumprimentaria sem grandes cerimónias os «convidados» espanhóis que nunca lhe perdoariam a «altivez» e a frieza da recepção. E apesar de todos os esforços que eu desenvolveria nos anos seguintes, as relações de Mário Soares com Felipe González, seriam sempre pouco calorosas.
Apesar do difícil relacionamento, Felipe González demonstraria grandes qualidades de estadista ao compreender quer a amizade pessoal de Soares com os dirigentes do Partido Socialista Popular, quer a diferença de pontos de vista derivada da diferença de idades entre ambos. Também sabia que dentro do PS português tinha inúmeros amigos e que as bases simpatizavam com ele, como a própria cimeira do Porto demonstrara. Estas delicadas questões tinham já sido abordadas numa reunião que tivera lugar em Lisboa, em Junho de 1975, entre o PS e uma delegação do PSOE chefiada por Nicolas Redondo. Quando então nos pediram para clarificar a situação, derivada do entusiástico apoio a Santiago Carrilho e da nossa tão ambígua posição, Mário Soares pediu a Nicolas Redondo que informasse o seu partido de que o PS «reconhecia o PSOE enquanto parceiro na Internacional Socialista, não obstante laços de amizade pessoal entre alguns socialistas portugueses e espanhóis não pertencentes ao PSOE».
O resultado eleitoral das primeiras eleições legislativas não corresponderia, contudo às expectativas. Nem às expectativas políticas dos dirigentes do PS, nem às dos amigos estrangeiros que tinham investido no PS. Apesar de terem sido gastos enormes meios financeiros na campanha, apesar de prestigiadas figuras internacionais terem vindo a Portugal exprimir solidariedade ao PS e, sobretudo, após o 25 de Novembro, a «gratidão» revelada pelo povo português neste acto eleitoral não seria aquilo que o futuro primeiro-ministro tinha esperado. O PS baixaria três pontos percentuais em relação às eleições para a Assembleia Constituinte e o PPD baixaria dois e meio. Os comunistas também perderiam terreno e como concluiria Freitas do Amaral «o CDS foi o único partido que subiu», de 7,5 % para 16% ! Qualquer analista poderia concluir que uma grande parte da direita, em 1975, utilizara o PS e até o PPD para travar o avanço do PCP. Mas também se compreenderia melhor a razão pela qual o PS, no dia 26 de Novembro de 1975, alinhara pela tese do major Melo Antunes em relação ao Partido Comunista. Não porque tivesse estado de acordo com aquele militar, quando afirmou ser o PCP necessário «para a construção do socialismo em Portugal», mas porque o secretário-geral do PS pretendera utilizar o PCP para meter medo à direita, convencido, como viria a estar a partir de então, que os socialistas só serviam para combater os comunistas. Esta análise, já viciada desde o acordo de governo assinado com o PCP em Paris, em 1973, motivaria os socialistas portugueses a tratar Sá Carneiro e o seu partido como «inimigos principais», cometendo um erro de estratégia que comprometeria para o futuro a sanidade política da sociedade portuguesa. O general Ramalho Eanes, que apesar de candidato do PS/PPD e CDS à Presidência da República era, até então, politicamente irrelevante, iria ter, graças aos resultados eleitorais, um papel determinante na vida política do País e, em especial, na vida interna do Partido Socialista. Muitos dirigentes socialistas, contudo, apesar de não possuírem os meios para alterar a situação que o secretário-geral decidira sem auscultar o partido, entendiam que o apoio à candidatura de um militar, «imposto» pelo Grupo dos Nove não fazia sentido no regime democrático que pretendiam construir. O próprio Sá Carneiro via o futuro do País no quadro de um pacto de regime entre o PS e o seu partido, estando mesmo preparado para, dentro de um tal acordo, apoiar a candidatura de Mário Soares à Presidência da República. O PS, que evidentemente se não poderia coligar com os seus ex-parceiros comunistas, após o 25 de Novembro, ou se coligava com o PPD, que se reclamava da mesma faln11ia política do Partido Socialista, ou teria que, com todos os riscos inerentes, governar sozinho. Uma coligação com o CDS, visto pela esmagadora maioria da opinião pública como um partido de extrema-direita e, ainda por cima, o único vencedor das eleições legislativas, seria impensável. Mas o secretário-geral do PS faria ouvidos de mercador aos conselhos de muitos dos seus amigos e, num acto de que se iria arrepender, escolheria a via do «PS sozinho». Estava então convencido, que o general Ramalho Eanes era um militar apolítico às suas ordens, que «estaria sempre, diante de si, como um aluno aplicado».
Sá Carneiro ficaria extremamente desiludido com a atitude de Mário Soares, que considerara irresponsável. Para ele a consolidação do regime democrático, então ainda tutelado pelos militares e sob enorme influência político-cultural do PCP, passava pela cooperação entre os dois partidos do centro, que se reclamavam da família social-democrata. Uma cooperação que poderia mesmo conduzir à fusão do PPD no PS. As bases de ambos, afinal, eram idênticas e os princípios semelhantes. Para Sá Carneiro seria difícil compreender a arrogância dos socialistas, convencidos que estavam de que Eanes era parte do seu património político. Acusaria então o PS de «tentação mexicana», o que não foi completamente destituído de razão, dada a sobranceria com que pretendia aliar-se a Ramalho Eanes para governar o País em minoria. Por outro lado, Soares considerava que «objectivamente, o regime do México não é de partido único». Da parte do PS não seriam invulgares as manifestações de grosseria para com Sá Carneiro. Desde referências à sua estatura física, à sua situação familiar e até à colaboração em campanhas pouco dignificantes que visavam atingir a sua honorabilidade. Entretanto, e apesar das muitas ofensas de que seria alvo, o seu pensamento político e a sua acção, nunca foi anti-socialista e, como se teria ocasião de verificar, seria até frequentes vezes favorável ao PS e ao seu secretário-geral, pesem embora normais diferenças que ocorreriam durante as campanhas eleitorais dos seus partidos. Já em 1976 oferecera a Soares «o apoio a uma eventual candidatura, pedindo em troca algo que Soares nunca lhe poderia conceder: a luz verde para que o PSD possa aderir à Internacional Socialista».
De facto, após o 25 de Abril Sá Carneiro declararia pretender que o seu partido aderisse à Internacional Socialista tendo, de imediato, Mário Soares desenvolvido todos os esforços no sentido de barrar qualquer pedido formal de adesão, que nunca chegaria a ser feito. O desconhecimento de como funcionava aquela organização era um reflexo do isolamento internacional em que o País se encontrava, que acabaria por ser desfavorável ao PSD. Na realidade, quando Sá Carneiro declarou a sua pretensão, em 1974, existiam na IS vários partidos do mesmo país. O PS e o PSDI de Itália, O PT e o MAPAM de Israel, o PS e o PSD do Japão, a AD e o MEP da Venezuela. Tivesse ele formalizado o pedido e a IS teria que o discutir e votar. Em 1974, após o 25 de Abril, o PS não possuía nenhumas garantias de que a IS negaria o acesso ao PPD. Mas só a partir de 1979, profundamente desiludido com Eanes e desejoso de o impedir de se recandidatar à Presidência da República, Mário Soares proporia ao Secretariado
Nacional que considerasse as virtualidades de um acordo com Sá Carneiro. Nesta altura, como em praticamente todas as decisões de fundo do PS, as posições políticas do secretário-geral seriam tomadas em função dos seus interesses pessoais. A sua «vontade» de um acordo com Sá Carneiro, que tinha que ver com uma vingança contra Eanes e com as suas próprias ambições políticas, chegava cinco anos tarde demais, quando a maioria do Secretariado Nacional do Partido Socialista já não seguia as suas orientações.
Atento à evolução política na Península Ibérica, o Presidente da República da Venezuela, Carlos Andrés Perez, cujo partido, Accion Democratica, era observador da Internacional Socialista, percebeu que a «Revolução Portuguesa» e a evolução democrática em Espanha iriam ter enorme impacto na América Latina, onde ele, chefe de Estado de um país produtor de petróleo, pretendia ter um papel de relevo. O presidente venezuelano, que tinha sido eleito em 1974, acompanhava de perto a crescente importância da Internacional Socialista e, como tal, desenvolveu todos os esforços para reunir em Caracas uma cimeira semelhante à que acabara de ocorrer em Portugal. Mas, enquanto em Portugal a iniciativa partira de Olof Palme, a ideia da reunião de Caracas partira de Klaus Lindenberg, representante da Fundação Friedrich Ebert naquele país. Esta fundação já na altura investia consideráveis meios naquele subcontinente e tinha escritórios e representantes alemães em quase todas as capitais latino-americanas. Editava aliás uma importante revista teórica sobre a social-democracia no contexto da América Latina, a partir da capital venezuelana, de nome Nueva Sociedad. Na reunião que teve lugar no hotel Tamanaco no dia 22 de Maio, para além dos anfitriões, que incluiriam o popular ex-presidente da República, Rómulo Betencourt, marcariam presença em Caracas Willy Brandt, Bruno Kreisky, Willy Claes e André Cools da Bélgica, Hernan Siles Suazo da Bolívia, Luis Albero Monge e Carlos Oscar Arias da Costa Rica, Anker Joergensen da Dinamarca, Rodrigo Borja do Equador, Felipe González e Luis Yafíez do PSOE e Raul Morodo do Partido Socialista Popular, Michel Rocard de França, o italiano Bettino Craxi, ainda então secretário-geral-adjunto de Francesco De Martino e Vitor Raul Haya de Ia Torre, do Peru. Os representantes do PS seriam Mário Soares, Medeiros Ferreira e eu. Foi uma reunião muito importante para Willy Brandt e para a Internacional Socialista, que marcaria o início de tensões ideológicas com os Estados Unidos da América e de uma crise na definição geo-estratégica ocidental entre a Europa e a América.
A Internacional Socialista sentia-se no papel dos «mencheviques», chamando a si ou louros pela vitória da democracia em Portugal. Uma vitória que todos sabiam iria trazer não só repercussões imediatas em Espanha mas, a médio prazo, também na América Latina. Era do interesse da Europa, ou pelo menos da Internacional Socialista europeia, «ignorar» o papel dos Estados Unidos e explorar os defeitos da linha Kissinger no caso português. Seria essa a linha que o próximo presidente da Internacional Socialista Willy Brandt, apoiado por poderosos meios financeiros canalizados por intermédio da Fundação Ebert, iria seguir. Para ele, que dois anos antes se vira alvo de investigações dos serviços de inteligência ocidentais, era extremamente importante marcar o seu decisivo papel em prol da democratização de Portugal, da Espanha e da América Latina. Na nova fase da sua carreira política, ter contribuído para derrotar os comunistas em Portugal, seria uma importante componente do seu currículo. A Internacional Socialista estava lançada nos «Processos de Democratização na Península Ibérica e na América Latina», em concorrência com os EUA. Uma disputa que os americanos iriam ganhar com a ajuda do PS português.
(Contos Proibidos – Memórias de PS Desconhecido, Rui Mateus. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996)
Dr. Jacques Pauwels: “Para promover os seus objectivos de maximização de lucros, o capitalismo está disposto a usar a “cenoura” da democracia, bem como o “pau” do fascismo” - Entrevista realizada por Mohsen Abdelmoumen
«É efectivamente um mito que o capitalismo seja uma espécie de gémeo siamês da democracia. Por outras palavras, que o ambiente político favorito do capitalismo seja a democracia. A história mostra-nos que o capitalismo floresceu em sistemas altamente autoritários e apoiou entusiasticamente esses sistemas.» Isso verifica-se de Bismark a Pinochet passando por Hitler, e não ficará por aí, se isso lhe for permitido.
Mohsen Abdelmoumen: No seu livro “Big Business and Hitler”, fala da colaboração da elite económica, industrial e financeira mundial com Hitler. Hitler era um produto puro, um instrumento do sistema capitalista?
Dr. Jacques Pauwels: o chamado “Nacional-Socialismo” de Hitler, na realidade nenhuma forma de socialismo, era a variedade alemã do fascismo, e o fascismo era uma manifestação do capitalismo, a forma brutal e sórdida com que o capitalismo se manifestou no período entre guerras em resposta à ameaça de mudança revolucionária, personificada pelo comunismo, e a crise económica da Grande Depressão. Na medida em que Hitler personificou a variedade alemã de fascismo, ele pode de facto ser chamado “instrumento” do capitalismo; entretanto, como mencionei no meu livro, o termo “instrumento” é realmente demasiado simplista. Seria mais exacto definir Hitler como uma espécie de “agente”, um ser humano complexo com uma mente própria, agindo em nome do capitalismo alemão, mas nem sempre de acordo com os desejos dos capitalistas, ao invés de um mero “instrumento” ou “ferramenta” do capitalismo alemão. Isso explica por que os capitalistas alemães nem sempre estiveram perfeitamente satisfeitos com os serviços de Hitler. Mas a vantagem desse arranjo era que, após o colapso da Alemanha nazi, eles poderiam culpar o “agente” por todos os crimes que havia cometido em seu nome.
Tem o capitalismo uma necessidade vital do nazismo e do fascismo?
O capitalismo é um sistema socioeconómico muito flexível, capaz de funcionar em diferentes contextos políticos. É certamente um mito que o capitalismo, eufemisticamente conhecido como “mercado livre”, seja uma espécie de gémeo siamês da democracia, em outras palavras, que o ambiente político favorito do capitalismo seja a democracia. A história mostra-nos que o capitalismo floresceu em sistemas altamente autoritários e apoiou entusiasticamente esses sistemas. Na Alemanha, o capitalismo saiu-se extremamente bem quando Bismarck governava o Reich com punho de ferro. A Alemanha permaneceu 100% capitalista sob Hitler, e o capitalismo floresceu sob Hitler, antes e durante a guerra, como demonstrei no meu livro. O capitalismo também pode e deseja fazer parceria com a democracia, especialmente se as reformas democráticas parecem necessárias para dissipar a ameaça de mudança revolucionária, como por exemplo depois da Segunda Guerra Mundial, quando reformas políticas e sociais democráticas (o Welfare State) foram introduzidas na Europa Ocidental para inviabilizar as reivindicações muito mais radicais, até mesmo revolucionárias, formuladas por movimentos de resistência em países como a Itália e a França. Pode dizer-se que, para promover os seus objectivos de maximização de lucros, o capitalismo está disposto a usar a “cenoura” da democracia, bem como o “pau” do fascismo e outras formas de autoritarismo, como as ditaduras militares.
A ascensão de grupos neonazis e fascistas ao redor do mundo serve ao grande capital e à oligarquia que governa o mundo?
Como mencionado anteriormente, o fascismo é uma manifestação do capitalismo. Em outras palavras, é a forma pela qual o capitalismo, como um camaleão, ajusta a sua cor a um ambiente social e político em mudança. O fascismo histórico dos anos 30, personificado por gente como Mussolini e Hitler, reflectiu a resposta do capitalismo, na Itália e na Alemanha, à ameaça dupla da mudança revolucionária ao estilo russo e da Grande Depressão. Após a Segunda Guerra Mundial, quando o fascismo estava presumivelmente morto e enterrado, o capitalismo, especialmente o capitalismo americano, apoiou-se em sistemas neo, quase ou cripto-fascistas para neutralizar ameaças semelhantes. Por exemplo no Chile, onde Pinochet foi levado ao poder para bloquear reformas radicais e manter o país seguro para o capital de investimento dos EUA. Hoje, problemas económicos e sociais cada vez maiores, juntamente com ameaças revolucionárias reais ou percebidas, fizeram com que o capitalismo em vários países gerasse partidos e movimentos fascistas ou, se preferir, quase ou neofascistas. De momento, o capitalismo não precisa de levar esses fascistas ao poder; mas eles são muito úteis porque, como Hitler com seu anti-semitismo, desviam a atenção do público das deficiências do sistema capitalista culpando todas as coisas desagradáveis em bodes expiatórios (de preferência de cor), como muçulmanos, refugiados, os chineses e os Russkis. O escritor alemão Bertolt Brecht nos alertou poeticamente, aludindo ao fascismo hitlerista e à capacidade inalterada do capitalismo de gerar novas formas de fascismo:
“So was hätt einmal fast die Welt regiert! (O mundo quase era governado por tal monstro!) Die Völker wurden seiner Herr, jedoch (Felizmente, as nações derrotaram-no) dass keiner von uns zu früh da triunphiert (Mas não nos alegremos demasiado cedo) Der Schoss ist fruchtbar noch (O útero de onde rastejou ainda é fértil.) Aus dem das kroch” (“A resistível ascensão de Arturo Ui”)
A União Europeia culpa a URSS por iniciar a Segunda Guerra Mundial. O que acha disso?
Culpar a URSS e, por implicação, o seu estado-sucessor russo pela Segunda Guerra Mundial, é uma declaração puramente política. Constitui uma distorção monstruosa e vergonhosa da história. Nos anos 30, a União Soviética procurou durante anos estabelecer uma aliança anti-Hitler com a França e a Grã-Bretanha, mas foi sucessivamente rejeitada. A razão para isso é que os cavalheiros no poder em Londres e Paris não queriam ir para a guerra ao lado dos soviéticos contra Hitler, mas queriam que Hitler usasse o poderio militar da Alemanha para marchar para o leste e destruir a União Soviética enquanto assistiriam alegremente do lado de fora. Hitler certamente queria a guerra, e é justamente culpado por iniciar a Segunda Guerra Mundial. Mas os líderes franceses e britânicos merecem uma parte da culpa porque encorajaram Hitler e o apoiaram com sua política de “Apaziguamento”, por exemplo, oferecendo-lhe a Tcheco-Eslováquia numa bandeja de prata no infame pacto que concluíram com ele em Munique em 1938.
Ao culpar a URSS, os políticos e os media ocidentais não procuram encobrir a sua própria horrível história de colaboração com Hitler e o nazismo?
Na verdade, culpando a União Soviética os países “ocidentais”, ou pelo menos seus líderes, procuram desviar a atenção do seu próprio papel na eclosão da Segunda Guerra Mundial. Por meio da sua infame política de apaziguamento, os líderes britânicos e franceses encorajaram e facilitaram os planos de Hitler para uma “cruzada” contra a União Soviética. E a elite corporativa e financeira dos países ocidentais, incluindo os Estados Unidos, colaborou de forma muito próxima - e muito lucrativa - com Hitler, como demonstrei nos meus livros, “Big Business and Hitler” e “The Myth of the Good War”.
Nos seus livros “Big Business and Hitler” e “Myth of the Good War: America and the Second World War”, desmantela o mito da “libertação” da Europa pelos Estados Unidos quando sabemos que foi a vitória soviética de Stalingrado que foi o ponto de viragem da guerra. Não é outra mentira histórica dizer que os Estados Unidos libertaram a Europa? Os Estados Unidos simplesmente não colonizaram a Europa? Como explica a dependência da Europa em relação aos EUA e o facto de os europeus ainda seguirem a política imperialista dos EUA? A NATO não se tornou obsoleta?
É verdade que a União Soviética deu, de longe, a maior contribuição para a vitória dos Aliados. Se o Exército Vermelho não tivesse conseguido deter o rolo compressor nazi em frente a Moscovo em 1941 e obter grandes vitórias em Stalingrado e outros lugares, Hitler teria vencido a guerra. Mas os nazis tinham a máquina de guerra mais poderosa que o mundo já vira, e derrotá-la exigiu contribuições de todos os exércitos aliados e também de movimentos de resistência. Que o exército norte-americano deu também uma contribuição importante não pode ser negado; entretanto, os líderes americanos aproveitaram a presença de seu exército na Europa Ocidental para estabelecer a sua hegemonia sobre aquela parte do mundo. Em muitos aspectos, realmente não “libertaram” os países da Europa Ocidental. Mesmo hoje, a Alemanha não é “livre” para pedir que as tropas americanas deixem o seu solo, e a Bélgica e a Holanda devem tolerar a presença de bombas atómicas norte-americanas no interior das suas fronteiras. O presidente da França, Charles de Gaulle, não estava longe do alvo quando descreveu a libertação norte-americana da França como uma segunda “ocupação”, seguindo os passos da ocupação alemã. Ao contrário dos alemães e belgas, ele teve a coragem de exigir que as tropas dos Estados Unidos deixassem a França, e essa foi uma das razões pelas quais a CIA parece ter-se envolvido em vários atentados contra a sua vida. Mas mesmo de Gaulle verificou ser impossível evitar a adesão à NATO, que não é de todo uma aliança de iguais, mas um clube de “satélites” europeus dos EUA, estritamente controlado pelo Pentágono, e funcionando como um departamento de vendas e relações públicas do “complexo militar-industrial” norte-americano. A NATO foi originalmente criada para defender a Europa Ocidental contra uma totalmente fictícia ameaça proveniente da União Soviética e, portanto, deveria ter sido dissolvida após o colapso do “império do mal”. Para os Estados Unidos, entretanto, a OTAN é um muito útil e poderoso instrumento de controlo da Europa. E, de facto, esse controlo, essa hegemonia, foi estabelecido pelos EUA nos meses que se seguiram ao desembarque das suas tropas na Normandia em 1944. Ironicamente, essa conquista não teria sido possível se o Exército Vermelho não tivesse anteriormente assestado golpes mortais à Alemanha nazi.
A intervenção norte-americana na Europa durante a Segunda Guerra Mundial não foi simplesmente uma guerra capitalista? Não serve principalmente aos interesses do imperialismo norte-americano e do seu complexo militar-industrial?
A Segunda Guerra Mundial resultou em duas guerras reunidas numa só. Por um lado, foi efectivamente uma guerra “capitalista”, ou melhor, uma guerra “imperialista”. O imperialismo foi/é a manifestação internacional e mundial do capitalismo, envolvendo competição e conflito entre as principais potências capitalistas/imperialistas sobre territórios repletos de desiderata como matérias-primas (como o petróleo) e mão de obra barata. A Primeira Guerra Mundial foi um conflito imperialista, mas não resolveu as coisas, por isso as potências imperialistas foram à guerra uma segunda vez. Os EUA sairiam desse conflito como o grande vencedor, graças, ironicamente, à derrota esmagadora do outro candidato à supremacia imperialista, a Alemanha nazi, perante a União Soviética. Ao mesmo tempo, a Segunda Guerra Mundial foi também um conflito entre capitalismo/imperialismo e socialismo, personificado pela União Soviética. É uma ironia da história que os dois tipos de conflito se tenham fundido, produzindo contradições como a aliança de facto da União Soviética socialista, intrinsecamente anticapitalista e anti-imperialista, com duas potências imperialistas anti-socialistas, os EUA e a Grã-Bretanha. A guerra serviu os interesses do imperialismo dos EUA ao permitir que os EUA emergissem como o número um indiscutível do imperialismo. Mas o resultado da guerra foi imperfeito porque também significou um triunfo para a União Soviética anti-imperialista. É por isso que, imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, Washington iniciou uma nova guerra, a “Guerra Fria”, com o objectivo de nada menos que a eliminação da União Soviética.
O imperialismo dos EUA nunca cessou uma política de guerra e golpes em todo o mundo. As guerras imperialistas no Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Iémen, etc. não são um sintoma da barbárie do imperialismo norte-americano?
Historicamente, o imperialismo norte-americano perseguiu seus objectivos de maneira sistemática, implacável e, pode acrescentar-se, não apenas abertamente mas também furtivamente, por meio de guerra aberta, guerra económica, desestabilização, sabotagem e tentativas de assassínio. Exemplos dessa crueldade incluem o desnecessário bombardeamento nuclear de Hiroshima, guerra química contra os vietnamitas, tentativas de assassínio bem ou mal sucedidas de líderes recalcitrantes como Fidel Castro e Lumumba e sanções económicas que custaram a vida de dezenas, senão centenas de milhares de mulheres e crianças, como Madeleine Albright infamemente reconheceu numa referência ao Iraque. Então, sim, as guerras iniciadas pelos EUA no Iraque, Afeganistão, Líbia, etc., são sintomáticas dessa crueldade ou barbárie, como lhe chama.
Jacques R. Pauwels é historiador, investigador e escritor, nascido em Ghent, Bélgica. Emigrou para o Canadá em 1969 após estudar história na Universidade de Ghent e instalou-se perto da cidade de Toronto. Fez estudos de doutoramento na York University em Toronto, especializando-se na história social da Alemanha nazi, e recebeu seu PhD em 1976. Tornou-se professor de história em várias universidades canadianas, incluindo a University of Toronto e a University of Guelph. Em 1995 obteve um Ph.D. em ciência política na especialidade de regulamentação do investimento estrangeiro no Canadá. É professor em várias universidades de Ontário, incluindo a University of Toronto, Waterloo, Guelph, e publicou numerosos artigos.
É autor de vários livros traduzidos em várias línguas, incluindo “Women, Nazis, and Universities : Women University Students in Nazi Germany, 1933-1945”; “The Myth of the Good War”; “The Great Class War”; “Big Business and Hitler”.
O seu website contém conferências e entrevistas em que participou, bem como as suas numerosas publicações: http://www.jacquespauwels.net/
Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto;
assim como uma bala do chumbo pesado, no músculo de um homem pesando-o mais de um lado
qual bala que tivesse um vivo mecanismo, bala que possuísse um coração ativo
igual ao de um relógio submerso em algum corpo, ao de um relógio vivo e também revoltoso,
relógio que tivesse o gume de uma faca e toda a impiedade de lâmina azulada;
assim como uma faca que sem bolso ou bainha se transformasse em parte de vossa anatomia;
qual uma faca íntima ou faca de uso interno, habitando num corpo como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse, e sempre, doloroso, de homem que se ferisse contra seus próprios ossos.
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A Educação pela Pedra
Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, frequentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse, não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma.
(MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro. Nova Aguilar, 1994)
João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife, Pernambuco, no dia 9 de janeiro de 1920. Filho de Luís Antônio Cabral de Melo e de Carmem Carneiro Leão Cabral de Melo era irmão do historiador Evaldo Cabral de Melo e primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre. Foi poeta e diplomata brasileiro autor da obra "Morte e Vida Severina", poema dramático que o consagrou. Tornou-se imortal da Academia Brasileira de Letras.
Numa terceira etapa, João Cabral desvencilha o poema de todo e qualquer artifício, sua poesia é desenvolvida mediante a preocupação com os aspectos formais da poesia.
Nesse período aparecem obras-primas como Uma Faca só Lâmina, Terceira Feira e A Educação Pela Pedra.
É a porta por onde entram para o vício baixo a maior das desgraças, a quem a sua má cabeça ou um passo em falso, arrasta para a estrada, que ao princípio, se lhes afigura toda de rosas, mas de onde, dados os primeiros passos, começam a brotar agudos espinhos que a pouco e pouco lhes vão esfacelando a alma, a carne e a vida.
É uma praga que se chama quase toda Lisboa; mas onde elas abundam mais é nos bairros pobres, como Mouraria, Alfama, Bairro Alto, Madragoa, etc. Alguma há também pelas ruas da Baixa, como Arco do Bandeira, Travessa do Palha, Madalena, mas já em melhor número.
Quem dá mais lucro a esses verdadeiros antros do vício, da porcaria e da imundície, são: primeiro, as criancinhas desempregadas, ou mesmo empregadas, levadas lá a primeira vez pela mão do namorado; a segunda vez são geralmente elas quem lá os levam, chegando algumas mesmo a dar preferências a esta ou aquela casa, tão conhecidas já lhes são depois de meia dúzia de passos nessa dita estrada, de que tão difícil e, raro, é vê-las voltarem atrás. As segundas são as costureirinhas.
É geralmente destas duas classes que saem o maior número de degeneradas.
Das primeiras, as criadinhas, para o vício baixo; das segundas para a alta, onde as levou a ambição do luxo que confeccionavam para as protegidas da sorte e onde os magros proventos da agulha lhes não deixavam chegar e portanto… o que não dá a agulha, compra o corpo.
Nas primeiras é apenas o vício, a besta, que as faz seguir esse caminho, pois que raras são aquelas que têm ambições que vão além do lenço de seda, o fatinho preto e os sapatos de polimento; depois, com o verem nas outras os aumentos, então sim, começa a acordar nelas a vontade de subirem e às vezes tão depressa o querem fazer que o trambolhão é mortal. Mas o que lhes faz dar os primeiros passos, repito, foi apenas o vício, acordado nelas a maior parte das vezes pelo filho da casa, quando não é pelo próprio patrão e que depois de sentida a primeira sensação, de acordado nela o desejo do gozo, que até então lhe era desconhecido, as faz atirar de cabeça, porque a criada, mulher saída, quase sempre, da classe baixa, sem princípios nem educação, sentida pela primeira vez a sensação que acima digo, só o que quer, o que de então para diante deseja é a repetição desse mesmo gozo, sem olhar de onde, o de quem ele lhe venha.
É vê-las, aí pelo romper das oito da manhã, atravessarem o Rossio, desembocando de todas aquelas ruas e travessas, cabaz no braço saia arregaçada, a caminho da Praça rindo a uma ou outra graça pesada que lhe é dirigida pelos apreciadores do género, que os há e bastantes por Lisboa; e não é raro vê-las, depois de feitas as compras, meterem por qualquer travessa próxima, afogueadas, os nabos e as couves muito verdes e viçosas, a espreitarem por sob a asa do cabaz, seguidas por qualquer D. Juan de ocasião, enfiarem pela escada de certo prédio, onde numa janela de qualquer andar, chama a atenção a tradicional lanterna. Passados tempos elas aí saem, mais afogueadas ainda, espreitando receosas, não as veja alguém conhecido, muito rentes à parede até alcançarem a primeira esquina e... zut, lá vão a caminho de casa onde os patrões, furiosos pela demora, as esperam com a zarabanza já engatilhada.
– "Ó Maria, você hoje ia lá ficando; isto assim não pode ser. O patrão à espera para ir para o escritório e você a demorar-se este tempo todo!" Que não, que a demora não foi dela, era que estava muita gente no talho, na tenda, no lugar da hortaliça e faz um tal estendal das descomposturas que deu para não a demorarem que quase ainda os patrões têm de lhe pedir desculpa e pagar à parte o tempo que ela perdeu nos braços do pequenino e brejeiro Deus Cupido... padeiral.
Com a criada antiga, a verdadeira e genuína sopeira portuguesa, já não acontecia isto. Essa tinha horas marcadas para ir a qualquer parte, e passasse um minuto que fosse dessa hora que já sabia o que a esperava.
Contas feitas e... rua.
Não digo que essa fosse mais santa do que a criada de hoje, não. Mas contentava-se com o menino da casa, uma ou duas vezes por semana, e, conservando-se anos e anos na mesma casa, de lá saía para casar... em segunda mão, mas feliz, farta e anafada.
Seria porque nesse tempo eram raríssimos em Lisboa esses tais antros de perdição a que damos o nome de Hospedarias? Seria porque houvesse então mais respeito, mais honestidade, mais vergonha? Não sei, mas o caso dava-se.
A criada antiga, tinha quando muito um namorado; a criada tem, quando menos, dois amantes, um em casa, outro fora.
Mas, muito tenho já dito da criada e ainda nada do assunto a que dedico particularmente este capítulo: As hospedarias para pernoitar.
Há-as aí por todos os cantos, como atestam as lanternas
penduradas às janelas, com as competentes letras pretas nos vidros a indicarem que ali se ama desde o preço de seis vinténs por par, e que de noite são iluminadas por um mísero coto de vela. De quantas desgraças tem sido esse pequeno coto a sua má estrela! ...
Logo à porta da rua entra-nos pelas narinas um cheiro nauseabundo a urina podre e... adjacentes líquidos e sólidos.
Enchamo-nos de coragem, tapemos o nariz e... avante.
Os degraus da negra escada carunchosa, meios comidos pelas contínuas subidas e descidas dos seus numerosos frequentadores gemem a cada passo dado neles, produzindo-nos a impressão que tudo aquilo se vai desconjuntar e, como nas antigas mágicas, se abrirão aos nossos pés enormes alçapões onde desapareceremos para sempre. Mais um esforço e eis-nos chegados ao patamar do segundo andar. A porta, geralmente está sempre encostada, empurra-se e ela ao abrir-se faz soar uma campainha que mais parece um chocalho pelo barulho que faz, capaz de acordar um surdo pegado no primeiro sono.
Saída, não sabemos de onde, pois nunca se lhe ouvem os passos, surge ante nós a aparição de uma velha desgrenhada, tipo perfeito das megeras dos antigos dramalhões, empunhando na mão direita uma palmatória de folha com a quarta parte de uma vela, que nunca poderá dar luz para mais de meia hora, e na esquerda um pano dobrado em quatro (paródia à recepção dos reis antigos quando os alcaides lhes vinham entregar, reverentes, as chaves da cidade). São objectos indispensáveis a uma alcoviteira que se preze, para bem receber os seus visitantes. Esta criatura, depois da entrega solene dos ditos apetrechos, faz sempre a pergunta sacramental: De quanto? – refere-se ao preço do quarto; conforme é a resposta, assim é a porta que abre. Entra o par e ela aí vai outra vez munir-se de novo pano e vela, desaparecendo para só voltar, ou à saída dos que entraram, ou a novo toque do chocalho.
Os quartos geralmente só variam no preço, a mobília é quase sempre a mesma; uma cama de ferro de onde a tinta já quase desapareceu por completo, com um colchão duro como paus, travesseiro e almofada na mesma, coberta de chita a tapar a cor mais do que duvidosa dos lençóis, uma mesa geralmente coxa, uma cadeira sua irmã gémea no defeito físico, um lavatório de ferro com uma minúscula bacia onde mal se poderá lavar bem as pontas dos dedos e... disse. As paredes que separam este ninho de amor, do ninho vizinho, têm a espessura, quando muito, de umas delgadas tábuas forradas, quando o são, a papel berrante de 60 reis a peça.
Escusado será dizer que o mais pequeno movimento do vizinho é ouvido aqui como se estivessem na mesma cama.
O cheiro que lá dentro existe é único destas casas. Li algures, que o pecado tem um cheiro inconfundível e estou em crer que assim seja, pois que em parte alguma se encontra o perfume que estas casas emanam.
E é ali, naquele antro, quase sempre escuro, onde, ao entrar, se sente a sensação fria de que a vida nos ficou para trás, naquelas camas imundas onde tantíssimos corpos, mais imundos ainda, têm estremecido, saltado, berrado de luxúria reles feita de amor e vinho, que milhares de raparigas têm perdido o que de mais caro, mais belo, de mais rico a mulher tem: a honra do corpo e a pureza da alma!
Temos agora a casa de passe; é destinada ao mesmo fim do que a hospedaria reles que atrás deixo descrita; a sua diferença está apenas no mobiliário, no amável da recepção e na subida do preço.
A escada é limpa, bem esfregada, não se sentindo ao entrar o cheiro pestilento dos mictórios públicos.
Os degraus não gemem, a porta não tem chocalho mas sim campainha eléctrica, quem nos aparece não é a velha desgrenhada da palmatória e paninho; é: ou uma criadinha ladina, que sorrindo como que a dar-nos coragem, nos vai abrir a porta da alcova, ou a própria dona da casa, muito séria e imponente na sua abundância de carnes criada à custa da carne alheia no seu nojento mister (quase sempre são gordas e anafadas estas alcofas humanas).
Ali o mobiliário é outro. A cama de madeira esconde-se sob os cortinados espessos, como que a envergonhar-se do ofício a que a destinaram, o chão desaparece sob o felpudo tapete, o toillete quase sempre colocado em frente da cama, mostra-nos o seu espelho brilhante onde tantos corpos nus se têm reflectido dando prazer aos olhos e de mistura ao corpo.
Como o sofá ou chaise-longue, as cadeiras são estofadas; tudo ali mostra luxo, desde o mobiliário ao fim a que o destinaram.
Mas apesar de tanto luxo, o fim é o mesmo e o mesmo é também o tal cheiro que os perfumes caros das deusas que os frequentam, não conseguem apagar. Assim como num talho, por mais lavado que seja, existe sempre o cheiro da carne, ali existe sempre, apesar de fortes perfumarias, o mesmo cheiro que se encontra na hospedaria baixa de seis vinténs o par... amoroso.
Assim como as primeiras são escolhidas para os amores sopeirais, as segundas são preferidas pelas costureirinhas, classe que não pequeno contingente tem dado para a legião de infelizes cujos nomes estão inscritos do livro negro que a sanitaria possui. Enquanto que às primeiras é o vício quem primeiro as arrasta para esse caminho, às segundas é o luxo que as atrai, as empurra e as despeja por fim no meio das mundanas da alta. Uma saia de seda, um chapéu da moda, casaco de veludo, transformando-lhe tão por completo a cabeça que, a maior parte das vezes, sem mesmo pensarem na gravidade do passo que vão dar, atiram-se sedentas desse mesmo luxo para os braços do primeiro que lho pode satisfazer, esquecendo tudo, desde o amor santo dos pais à paixão louca do namorado, honrado operário para quem a imagem, o pensamento dela, é o único amparo, a única força, o único talismã que lhe dá coragem para subir, apenas com o fito de afazer subir também.
Mas a escada por onde sobe o operário leva tempo e por isso a maior parte das vezes elas abandonam essa que é a da honra e portanto de difícil ingresso, e descem a passos largos, saltando às vezes os degraus a três e três, a da vergonha que as conduz quase sempre ao lupanar, única porta que encontram aberta depois que se lhes fechou a dos pais, cujas cancelas cobriram de vergonha apenas pelo luxo, a maior perdição da mulher.
Mas sedas, veludos, pedrarias, tudo isso espremido o suco é... lodo!
Imagem: Prostitutas (algumas ainda crianças) em Lisboa no princípio do século XX.
(Hospedarias para pernoitar (II) - “O Vício Em Lisboa”, Fernando Schwalbach. Parceria A.M.Pereira, 1912)
Joseph Ratzinger faleceu aos 95 anos. Ele é conhecido basicamente como Papa, mas as suas principais realizações devem ser encontradas no período em que foi Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Aliás, este cargo foi o arquitecto de uma das maiores campanhas ideológicas e políticas do pós-guerra, a chamada "Restauração". Vejamos uma breve visão geral.
Neoconservadorismo
Em 1978 Karol Wojtyla (nome do Papa João Paulo II) foi nomeado para liderar a maior comunidade religiosa do mundo. Ele se vê diante de uma igreja pós-conciliar em profunda crise: frequência de missas e vocações continuam em queda livre, alevado número de divórcios entre católicos, rejeição da autoridade papal sobre controle de natalidade; um mundo cheio de heresia.
Ele quer uma mudança radical. Acabarão as falésias nas vivências, acabarão as reflexões e os debates. Do Concílio Vaticano II (1962-1965) provavelmente se conservam os textos, mas o fundamento está enterrado. O Papa prepara-se para uma política eclesiástica centralizada e ortodoxa, acompanhada de um rearmamento moral e espiritual.
Para isso, joga com maestria com o clima da época, que, por lá, tem muitas semelhanças com o atual. Em meados da década de 1970, uma profunda crise econômica começou. O clima espiritual otimista dos anos 1960 oscilava e se caracterizava por uma aspiração de segurança e proteção, um desejo de autoridade - de preferência carismático -, um despertar ético, uma fuga para um reino privado e irracional, etc.
É neste contexto que o "conservadorismo" se desenvolve. Esse novo conservadorismo não se limita mais à defensiva, mas lança uma ofensiva política e ideológica.
Várias personalidades "fortes", como Ronald Reagan e Margaret Thatcher, apoiam essa tendência. Utilizando habilmente os meios de comunicação de massa, interpretamos uma tendência mundial de abraçar uma Salvador, com uma visão simplista do mundo que irradia segurança e otimismo, etc.
Rottweiler de Deus
Uma dor de cabeça ainda maior para o Papa é a ascensão de uma igreja popular progressista na América Latina. Wojtyla é polonês e anticomunista até ossos; Um de seus objetivos na vida é combater vigorosamente o marxismo e o comunismo no mundo.
Como a influência do marxismo na igreja popular e na teologia da libertação é inegável, ele colocará todos os seus esforços para restaurar a ordem no continente. Para isso, conta com Ratzinger que é nomeado Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé em 1981, algo como o Ministério de Ideologia e Informação do Vaticano. Ele exerce esse mandato por um quarto de século e dele fará bom uso para imprimir sua marca nos acontecimentos mundiais.
Ratzinger torna-se o arquiteto de uma grande ofensiva pastoral e eclesial que ele chama de “Restauração”, cujo objetivo é fortalecer o aparato central de gestão e desmembrar todas as formas de dissensão dentro da igreja. Ratzinger logo se revela um verdadeiro e grande inquisidor, o que lhe valerá o apelido de "Rottweiler de Deus".
Toda a Igreja Católica está na mira, mas as flechas são direcionadas principalmente para a América Latina, onde o impacto político é muito mais importante, então a partir de agora nos limitaremos a este continente neste artigo.
A Aniquilação da Igreja do Povo e a Teologia da Libertação
O primeiro passo é a criação de um banco de dados de conferências episcopais, teólogos da libertação, religiosos progressistas, projetos pastorais suspeitos, etc. Em quase todas as dioceses, são nomeados bispos e cardeais ultraconservadores e abertamente de direita.
Só no Brasil, cerca de cinquenta bispos conservadores são nomeados. No final da década de 1980, cinco dos 51 bispos peruanos eram membros do Opus Dei. Chile e Colômbia seguem o mesmo caminho. Os bispos dissidentes estão sob pressão, alguns recebendo cartas de advertência, outros proibidos de viajar ou chamados a prestar contas.
Esta política de nomeação é ainda mais grave porque o episcopado desempenha um papel importante naquele continente. Em muitos casos, é a única oposição possível à repressão militar, à tortura, etc. Se os bispos do Brasil e do Chile tivessem se calado, como fizeram os da Argentina, o número de vítimas da repressão teria sido muito maior.
A depuração também é feita em níveis inferiores. A formação de novos padres está sendo trabalhada novamente, pressionando seminários e institutos de teologia, reorientando-os ou datando-os. Procuram controlar melhor os religiosos que muitas vezes tendem a ser os protagonistas da igreja da liberdade. Atenção especial é dada aos teólogos. A partir daí, eles são limitados, obrigando você a fazer o novo juramento de fidelidade.
Em 1984, Ratzinger redirecionou para "Instrução da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé sobre alguns aspectos da 'Teologia da Libertação'", na qual atacou frontalmente os teólogos da liberdade, especialmente os da América Latina. Um ano depois, Leonardo Boff, uma das principais figuras desse movimento, foi autorizado a se manifestar. O controle sobre os jornais católicos é intensificado e, quando julgado necessário, eles são censurados, o conselho editorial é substituído ou eles são colocados sob pressão financeira.
Os projetos pastorais progressivos são controlados ou mesmo trancados. Considerada muito progressista, em 1989 a Associação Internacional da Juventude Católica deixou de ser reconhecida pelo Vaticano e teve que dar lugar ao antiesquerdista e confessional CIJOC.
Junto com a destruição de tudo o que é progressivo, são lançados projetos gigantescos cujo objetivo é colocar os fiéis no caminho certo. Evangelização 2000 e Lumen 2000 são projetos de grande porte para a América Latina, que dispõem de pelo menos três satélites. Esses projetos são elaborados por indivíduos e grupos ultraconservadores de direita: Comunione e Liberazione, Acción Maria, Renovación Católica Charismática, etc. Os colaboradores desses gigantes da mídia comparam suas atividades a algum tipo de novo “poder da luz”.
As pessoas que sabem ler são inundadas com livros religiosos de edição barata. Alguns padres e freiras estão aposentados. A liderança da Igreja Católica conta com o apoio financeiro do mundo empresarial para esses projetos.
Cruzada anticomunista
Nada é deixado ao acaso. Um de todos os pilares da igreja popular na América Latina é eliminado. Falam de observadores sobre ou desmantelamento de uma igreja.
Esta é uma das campanhas ideológicas e políticas mais importantes do pós-guerra. Esta campanha é compatível com a cruzada anticomunista da Guerra Fria. Também pode ser visto como uma compensação para os EUA pela perda de energia nos anos anteriores.
Durante as décadas de 1960 e 1970, os países do terceiro mundo fortaleceram sua posição no mercado mundial. Eles impuseram preços mais altos para as matérias-primas, aumentando assim seu poder de compra no mercado mundial. O clímax é a crise do petróleo de 1973.
Em 1975, o Vietnã infligiu uma derrota esmagadora aos EUA. Pouco tempo depois, a Casa Branca foi humilhada duas vezes, primeiro pela revolução sandinista em seu quintal (1979) e depois pelo drama dos reféns no Irã (1980). Quando Reagan chegou ao poder, ele também se sentiu ameaçado pela atitude de independência econômica de Estados tão importantes quanto o México e o Brasil.
A Casa Branca não desistiu e lançou uma contra-ofensiva em várias frentes. A Teologia da Libertação foi um dos objetivos mais importantes. No final dos anos 1960, a teologia da libertação, ainda em fase embrionária, era considerada uma ameaça aos interesses geoestratégicos dos Estados Unidos, como demonstra o relatório Rockefeller.
Na década de 1970, foram criados centros teológicos que deveriam iniciar a luta contra a Teologia da Libertação.
Mas foi sobretudo a partir dos anos 80 que esta contra-ofensiva atingiu o seu ponto mais alto. Os EUA pagaram bilhões de dólares para apoiar a contrarrevolução na América Latina.
Esta guerra suja deixou dezenas de milhares de vítimas. Esquadrões da morte, paramilitares e também o exército regular fizeram o trabalho sujo. Muitos mártires caíram nas fileiras dos movimentos cristãos de libertação. Os mais conhecidos são Monsenhor Romero e os seis jesuítas de El Salvador.
Para combater a Teologia da Libertação em seu próprio terreno, seitas protestantes foram introduzidas, recebendo forte apoio financeiro dos Estados Unidos. Essas seitas tiveram que tentar atrair os crentes por meio de slogans cativantes e mensagens sentimentais. Meios eletrônicos caros foram usados para mantê-los longe da influência perniciosa da Teologia da Libertação.
Nesse caso, a religião acaba sendo o ópio do povo em sua forma mais pura. Nesta guerra religiosa o exército também está mobilizado. Oficiais de alto escalão das Forças Armadas latino-americanas redigiram um documento para dar consistência ao "braço teológico" das Forças Armadas.
Missão cumprida
Os esforços conjuntos de Ratzinger e da Casa Branca valeram a pena. Na década de 1990, um golpe impiedoso foi dado à igreja de base na América Latina. Muitos grupos de base deixam de existir ou funcionam com dificuldade por falta de apoio pastoral, por medo da repressão, porque não acreditam mais no progresso esperado ou simplesmente porque foram fisicamente liquidados.
O otimismo e o ativismo das décadas de 1970 e 1980 suscitaram dúvidas e reflexões. A análise da sociedade perde peso em favor da cultura, da ética e da espiritualidade, o que beneficia totalmente os planos de Ratzinger.
Globalmente, o centro de gravidade passa da libertação à devoção, da oposição à consolação, da análise à utopia, da subversão à sobrevivência. A história do Êxodo dá lugar ao Apocalipse e aos Apóstolos.
No final do século, a igreja popular não é mais uma ameaça para a classe dominante. No momento, tanto o Vaticano quanto o Pentágono e as elites locais da América Latina têm uma preocupação a menos. Essa trégua acaba logo com a eleição de Chávez à Presidência da Venezuela, mas isso é outra história.
Em 2005, Ratzinger é recompensado por seu bem-sucedido trabalho de restauração e é eleito chefe da Igreja Católica, mas é muito menos brilhante como líder do que como inquisidor. Em suma, ele é um papa incompetente.
Ele deixa uma instituição enfraquecida, ameaçada pela escassez de padres, pela perda de fiéis no Ocidente e pelos repetidos escândalos. Ele falhou em trazer ordem aos assuntos do Vaticano. Talvez esta seja uma das razões pelas quais ele abdicou em 2013.
Ratzinger, que foi membro da Juventude Hitlerista e soldado nazista, fatos hoje ocultos, entrará para a história sobretudo como aquele que realizou a restauração conservadora da Igreja Católica e neutralizou a Igreja dos povos da América Latina. Não há méritos desprezados.