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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Cesário Verde

25.02.23 | Manuel

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Ecos do Realismo – Proh Pudor

Todas as noites ela me cingia
Nos braços, com brandura gasalhosa;
Todas as noites eu adormecia,
Sentindo-a desleixada a langorosa.

Todas as noites uma fantasia
Lhe emanava da fronte imaginosa;
Todas as noites tinha uma mania,
Aquela concepção vertiginosa.

Agora, há quase um mês, modernamente,
Ela tinha um furor dos mais soturnos,
Furor original, impertinente...

Todas as noites ela, ah! sordidez!
Descalçava-me as botas, os coturnos,
E fazia-me cócegas nos pés...

22 de Janeiro de 1874

(Poesias Dispersas)

*

Lúbrica

Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

3 de Dezembro de 1873

(Poesias Dispersas)

*

Desastre

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.

A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: «Homem não desfaleça!»
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.

Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,

Corriam char-à bancs cheiros de passageiros

E ouviam-se canções e estalos de chicotes,

Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.

 

Viam-se os quarteirões da Baixa. Um bom poeta,

A rir e a conversar numa cervejaria,

Gritava para alguns: «Que cena tão faceta!

Reparem! Que episódio!» Ele já não gemia.

Findara honrosamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
«Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!»

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!

Um fidalgote brada e duas prostitutas:
«Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!»
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.

Depois da cesta, um pouco estonteado e fraco,

Sentira a exaltação da tarde abafadiça;

Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco

E o fato remedado e sujo da caliça.

 

Gastara o seu salário – oito vinténs ou menos –

Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!

«Os vultos, lá em baixo, oh!, como são pequenos!»

E estremeceu, rolou nas atracções da queda.

O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir - ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.

Anoitecia então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: «Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio?»

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
– Conservador, que esmaga o povo com impostos –
Mandava arremessar – que gozo! estar solteiro! –
Os filhos naturais à roda dos expostos...

 

Mas não, não pode ser… Deite-se um grande véu…

De resto, a dignidade e a corrupção… que sonhos!

Todos os figurões cortejam-no risonhos

E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.

 

E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,

Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:

Isto porque o patrão negou-lhes a licença,

O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.

 

E antes, ao soletrar a narração do facto.,

Vinda numa local hipócrita e ligeira,

Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:

«Morreu! Pois não caísse! Alguma bebedeira!»

 30 de Outubro de 1875

(Poesias Dispersas)

*

O Sentimento dum Ocidental

A Guerra Junqueiro

I - Avé Marias

     Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

     O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

     Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

     Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

     Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

     E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

     E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

     Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

     Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

     Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

     Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

10 de Junho de 1880

(Naturais)

Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde', Círculo de Leitores, 1986.

Rosalía de Castro

23.02.23 | Manuel

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Probe Galicia, non debes
chamarte nunca española
Qu'España de ti s'olvida
cando eres ¡ai! tan hermosa.

O primeiro poema que Rosalía publicou em galego saiu à luz em 1861. O mesmo parte da quadra popular: “Adeus, rios; adeus fontes; adeus, regatos pequenos; adeus, vista dos meus olhos; não sei quando nos veremos”. E continua com os versos:

“Minha terra; minha terra,

terra onde me eu criei,

hortinha que quero tanto,

figueirinhas que plantei.

Prados, rios, arvoredos,

pinheirais que move o vento,

passarinhos piadores,

casinha do meu contento.

Moinho dos castanhais,

noites claras de luar

sinozinhos timbradores

da igrejinha do lugar.

Amorinhas das silveiras

que eu lhe dava ao meu amor;

caminhinhos entre o milho,

adeus para sempre, adeus!

Adeus glória, adeus contento!

Deixo a casa onde nasci,

deixo a aldeia que conheço,

por um mundo que não vi.

Deixo amigos por estranhos,

deixo a veiga pelo mar;

deixo, enfim, quanto bem quero…

Quem pudera não deixar!…

(…)

Não me esqueças, queridinha,

se a saudade me matar…

Tantas léguas mar adentro…

Minha casinha, meu lar!”

Nota: O poema completa-se com outras 8 estrofes. É muito lindo escutá-lo cantar por Amáncio Prada.

*

Do poemário Folhas Novas, o poema “Negra sombra”:

“Quando penso que te foste,

ao pé do meu travesseiro

tornas fazendo-me troça.

Quando imagino que és ida,

no sol mesmo te me mostras,

e tu és a estrela que brilha,

e tu és o vento que zoa.

Se cantam és tu que cantas;

se choram és tu que choras;

e és o murmúrio do rio

e és a noite e és aurora.

Em tudo estás e tu és tudo,

p´ra mim e em mim mesma moras,

nem me abandonarás nunca,

sombra que sempre me assombras.”

*

CANÇÃO DE NINAR

Para Rosalía de Castro, morta

Ergue-te, minha amiga,
Que já cantam os galos do dia!
Ergue-te, minha amada,
Porque o vento muge como uma vaca!

Os arados vão e vêm
De Santiago a Belém.

De Belém a Santiago
Um anjo chega num barco.
Um barco de prata fina
Trazendo a dor de Galícia.

Galícia deitada e queda
Transida de tristes ervas.
Ervas que cobrem teu leito
E a negra fonte dos teus cabelos.
Cabelos que vão ao mar
Onde tem as nuvens ninho pombal!

Ergue-te, minha amiga!
Que já cantam os galos do dia!
Ergue-te, minha amada
Porque o vento muge como uma vaca!

Frederico Garcia Lorca

______

Rosalía de Castro (Santiago de Compostela, 23 de Fevereiro de 1837 - Padrón, 15 de Julho de 1885)

Escritora galega. Descendente, por parte de sua mãe, de uma família da velha nobreza, o facto de ser filha ilegítima de um sacerdote marca-a profundamente desde muito jovem. Escreve em galego e em castelhano e acaba por se tornar um elemento preponderante do «Resurdimento Galego». Aos vinte anos publica “La flor”, seu primeiro livro de versos.

A ver: http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/espanha/rosalia_de_castro.html

https://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/10174/14954/1/Joao%20Sousa%20-%20Construçao%20simbolo%20patria.pdf

Igreja Católica, Poder, Violência e Sexo

18.02.23 | Manuel

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A nossa sociedade é uma sociedade violenta e onde o sexo ocupa uma posição central. A violência surge como meio de conquista de poder e de recursos e o sexo acaba por ser também um recurso, no caso, a mulher reprodutiva, visto que a sociedade é patriarcal. A situação agrava-se atendendo que a economia se baseia na obtenção de património, riqueza sob diversas formas, e é a economia que molda a sociedade com as suas instituições, costumes e ideias dominantes. Aquilino Ribeiro dizia que o português vivia obcecado pela propriedade e lhe moldava, e pelos visto ainda molda, o carácter. Quanto à violência, “a melhor maneira de compreender a guerra será, assim, a que consiste em entendê-la como uma forma letal de competição por recursos escassos entre grupos autónomos” (Harris, 1989, p.218), o que “deverá ser completado pela observação de que a lista dos bens disputados não abrange apenas territórios… mas eventualmente fertilidade das mulheres ou o estatuto social” (Voland, 1993, p.150).

ICAR, poder e riqueza

Os abusos sexuais dentro da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) são frequentes porque o clero, como classe social, possui poder económico e político. Agora são as violações de crianças e de jovens, contudo, em épocas passadas, e basta ler Alexandre Herculano, os abusos eram sobre as mulheres, padres que possuíam várias mulheres, casavam-se em segredo, tinham filhos em barda, por exemplo, o prior do Crato, abade, pai de Nun’Álvares Pereira, o Condestável, teve 32 filhos de várias mulheres. Por decisão dos concílios de Latrão, século XII, os padres deixaram de poder casar ou de ter “relações com concubinas” como forma de evitar que os bens da Igreja católica fossem esbulhados através da herança; no entanto, sendo solteiros, ficaram também mais livres para levar a cabo os seus devaneios sexuais, a mancebia nunca foi proibida. A história da ICAR mostra bem que poder, riqueza e sexo sempre estiveram ligados.

Pode-se ir buscar outros factores que poderão explicar as perversidades do sexo dos ministros de Deus: uma sexualidade recalcada, falta de educação para a saúde, onde se inclui a actividade sexual, celibato obrigatório, no entanto, e por ironia, os padres são os que mais aconselham sobre a relação entre as pessoas, os problemas familiares, a educação dos filhos… e as relações sexuais dentro do casal heterossexual. A homossexualidade para a ICAR não é crime, mas ainda é pecado, o que revela que o sexo ainda é uma questão mal resolvida e sempre considerada dentro de um contexto de poder. Não deixa de ser importante para a compreensão deste fenómeno de desvio do objecto sexual de muitos clérigos o facto de a Igreja Católica ser uma agremiação de homens, velhos (especialmente no topo da hierarquia), celibatários, e monárquica: o Papa Francisco acaba de referir que deve levar o mandato até morrer, como qualquer monarca. A ICAR concentra em si todas as idiossincrasias da velha sociedade burguesa, capitalista e patriarcal.

O poder confere impunidade… para manter os “bons costumes”

É a impunidade, que lhe vem do poder, político e económico (a ICAR é a única religião do mundo que possui um estado, o Vaticano, criado por Mussolini, e mantido e respeitado pelos vencedores da guerra), que explica a continuidade dos abusos sexuais, e não só. Assim, se percebe que a ocultação dos abusos pela Igreja terá pretendido preservar os "bons costumes" e o "bom nome" da Igreja, segundo as palavras da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja; comissão esta que foi constituída por iniciativa da própria Igreja pela simples razão de que a isso foi obrigada e já não podia fugir, a Igreja portuguesa foi a última a fazê-lo. Como se vê, o clero português, alegando aparentemente boas razões, quis sob a capa dos bons costumes esconder os seus velhos maus costumes. É a hipocrisia clerical no seu melhor, bem conhecida popularmente pelo adágio: “Bem prega Frei Tomás, olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz”.

Esta situação de impunidade sai reforçada com a Concordata assinada pelo estado português e o Vaticano, que impede que os membros do clero possam ser interrogados por magistrados ou outras autoridades "sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério", a par de benefícios fiscais e outras regalias. A Igreja Católica comporta-se como estado dentro de estado. Assim se compreende igualmente os sucessivos dislates proferidos pelo bispo do Porto sobre os casos de pedofilia que vinham a público, inclusivamente com a recusa de se constituir uma comissão que viesse a investigar os abusos, até à presente choradeira hipócrita: "sofro e choro pelas vítimas". A impunidade dá coragem à hipocrisia e à mentira.

A Igreja que condenava as bruxas à fogueira teme agora a caça às ditas

Percebe-se por que razões o bispo Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o comité central da ICAR nacional, diz que “não quer caça às bruxas”. O que não deixa de ser irónico vindo de quem vem, ou seja, de um representante máximo de uma Igreja cuja história está recheada de perseguição às bruxas (mulheres independentes que se destacaram em algum ramo do saber e que metiam medo à igreja patriarcal), enviando-as para a fogueira, onde eram queimadas vivas – não sabemos se haverá um castigo físico pior do que este. A hierarquia católica conta já com a benevolência dos juízes quando os 25 casos, os poucos que ainda não prescreveram, forem levados a julgamento, como até contado até aqui com a colaboração das autoridades policiais, sendo notícia recente: «A pedido da Igreja, GNR encobriu padre pedófilo que abusava de raparigas “com certa violência” e ordenava aos rapazes que se despissem».

Os bispos, que esconderam os milhares de casos durante muitas décadas, esperam que o escândalo morra no esquecimento das pessoas e dos responsáveis políticos, que os processos se arrastem nos tribunais por muitos anos e que muitos dos padres venham a apanhar penas leves ou sejam até absolvidos, ou fujam de cumprir a pena como aconteceu com o padre Frederico, de cujo caso já poucas pessoas se lembram. O padre Frederico Marcos da Cunha, protegido do bispo do Funchal, foi condenado a 13 anos de prisão por homicídio, em 10 de Março de 1993, cinco anos depois fugiu da prisão com o auxílio, referido na altura, de pessoas eventualmente próximas da Igreja. Nunca foi expulso da Igreja nem as autoridades judiciais portuguesas reclamaram a sua extradição. Os padres abusadores, mais de cem, uma percentagem elevada considerando o universo dos padres no país, cerca de 4000, sempre estiveram no activo, alguns terão mudado de paróquia, mas mantiveram o contacto com jovens e crianças. Natural que, aquando da entrevista pela Comissão, os 19 bispos inquiridos só denunciassem 13 casos; ora, encobrir um crime também é crime.

Inversão dos papéis, os abusadores passarão a vítimas e os abusados, pertencentes a classes sociais baixas, serão os maus da fita

A pedofilia é uma parafilia – tempos atrás era considerada «aberração», «perversão» ou «desvio», com conotações abertamente morais e sociais –, ou seja, é uma doença mental, que é definida, pelo Diagnostic Statiscal Manual (DSM-IV), como uma “síndrome de disfunção do individuo nas suas componentes comportamental, psicológica e biológica”; como doença deve ser tratada. Mas, muitos dos padres abusadores não serão só pedófilos, serão agressores sexuais, visto que o seu interesse sexual é por jovens com idade superior aos 13 anos e de ambos os sexos – segundo o DSM-IV, a pedofilia é considerada quando o abusador possui o mínimo de 16 anos e a vítima o máximo de 13 anos, para excluir os casos de atracção sexual entre crianças e adolescentes com idades equivalentes. Muitos dos padres sofrerão de distúrbios de personalidade, e por isso refractários ao tratamento psiquiátrico, serão sempre criminosos imputáveis.

Quase que somos levados a crer, olhando para a forma como o Estado tem tratado estes casos no passado e à cobardia dos dirigentes políticos do país em enfrentar o poder da Igreja, porque cobiçam sempre os milhões de votos do eleitorado católico, que a montanha irá parir um rato. E perguntamos: a actuação do poder judicial será diferente da do poder político, será imune às pressões do clero? Também temos sérias dúvidas atendendo à sua posição elitista e de classe. Os julgamentos ainda não começaram e já se assiste a um processo de inversão de papeis, os abusadores serão apresentados como vítimas e as vítimas irão ser apontadas como eventuais difamadores ou aproveitadores com intenção de obter ganhos secundários.

A habilidade dos advogados em levar um dos padres, acusado de cinco crimes de abuso sexual de crianças e que andaria fugido à polícia, a apresentar-se à PGR em Lisboa, sabendo-se que o local não era o indicado, permitiu iniciar uma campanha na imprensa de que os acusados são pessoas de bem, dispostas desde o início em colaborar com a justiça, a justiça é que é excessivamente burocrática; se não funciona como deve ser, muito provavelmente também não será competente a julgar – é a imagem subliminar que ficará na cabeça de muitas pessoas, principalmente na dos crentes católicos. Para mais, as vítimas são jovens e crianças pertencentes a classes sociais baixas que se encontravam sob a protecção da Igreja, não consta que filhos de famílias ricas tenham sido vítimas de assédio ou de abuso, os padres terão tido o cuidado de selecionar os mais vulneráveis em todos os aspectos.

Desvalorizar a pedofilia porque é "transversal à sociedade"

Nos últimos dias, surgiram artigos de opinião (feitos por encomenda ou não, não sabemos, mas a coincidência é grande) sobre o facto de que a maior parte dos casos de pedofilia ocorre dentro da família; que a percentagem de abusadores dentro da Igreja não será superior à encontrada na sociedade; se há pedofilia dentro da igreja também a há nos ginásios, nos clubes, nos internatos de colégios não religiosos, etc.. Começou o processo de desculpabilização da ICAR e dos seus funcionários e não tardará muito que passará a banalizar-se o crime da pedofilia.

E quanto a indemnizações, os senhores bispos tudo farão para não abrir os cordões à bolsa para ressarcir os lesados, e se as houver serão irrisórias e ninguém se admire que se arranje um pretexto qualquer para que seja, no final de tudo, o estado a pagar os desmandos dos senhores padres com a sexualidade mal resolvida e a precisarem antes de mais de tratamento psiquiátrico. Aliás, será até de estranhar que estes doentes, para além de criminosos, ainda antes de começarem os julgamentos, já deveriam ter sido internados compulsivamente. Afirma Daniel Sampaio, que fazia parte da Comissão que investigou os abusos dos senhores priores: “Se fosse bispo e tivesse ocultado casos [de abusos], resignaria”; ora, não só os bispos ainda o não fizeram, porque a sua honestidade intelectual não lhes permite e sentem-se seguros da impunidade já que controlam o poder político, como os padres abusadores, sentindo-se protegidos, esperam apenas que a tempestade passe.

Não se espere que o Papa, quando aí chegar em Agosto para o festival da juventude católica, vá alterar ou resolver o que quer que seja pela razão de que ele move-se, primeiro de tudo, no sentido de salvar a face e impedir que a sua Igreja se afunde ainda mais nestes tempos conturbados. Os abusos sexuais de crianças dentro da ICAR têm o condão de, por um lado, revelar a decadência e a hipocrisia dos valores, a começar pela sua moral; por outro, acelerar a desilusão e o subsequente afastamento de muitos crentes. O declínio do Ocidente também é o declínio da sua religião oficial, exactamente como aconteceu com o Império Romano – a falência é total.

Imagem: Caricatura do padre Frederico por António

Bibliografia consultada:

- Elementos de Sociologia, Eckart Voland. Instituto Piaget, 1993.

- Minorias Eróticas e Agressões Sexuais, Afonso de Albuquerque. Edições Dom Quixote, 2006

O imperialismo ‘desperto’

12.02.23 | Manuel

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Chris Hedges

A diversidade é importante. Mas quando é desprovida de uma agenda política, recruta um pequeno segmento daqueles marginalizados pela sociedade em estruturas injustas para ajudar a perpetuá-la.

O brutal assassinato de Tyre Nichols por cinco policias negros em Memphis, Tennessee, deve ser suficiente para implodir a fantasia de que a política de identidade e a diversidade resolverão a decadência social, económica e política que assola os Estados Unidos. Não são apenas os ex-agentes negros, mas o departamento de polícia da cidade é chefiado por Cerelyn Davis, uma mulher negra. Nada disso ajudou Nichols, outra vítima de um linchamento policial moderno.

Os militaristas, corporativistas, oligarcas, políticos, académicos e conglomerados dos media defendem a política de identidade e a diversidade porque não fazem nada para enfrentar as injustiças sistémicas, a desigualdade social e loucura imperial ou o flagelo da guerra permanente que assolam os EUA. Ela ocupa os liberais e os educados com um ativismo de butique, que não é apenas ineficaz, mas exacerba a divisão entre os privilegiados e a classe trabalhadora em profunda dificuldade económica. Os ricos repreendem os pobres por suas más maneiras, racismo, insensibilidade linguística e berros, enquanto ignoram as causas profundas de seu sofrimento económico. Os oligarcas não poderiam estar mais felizes.

A vida dos nativos americanos melhorou como resultado da legislação que obrigava à assimilação e à revogação dos títulos de terras tribais impostas por Charles Curtis, o primeiro vice-presidente nativo americano? Estamos melhor com Clarence Thomas, que se opõe à ação afirmativa, na Suprema Corte, ou Victoria Nuland, um falcão de guerra no Departamento de Estado? É a nossa perpetuação da guerra permanente mais palatável porque Lloyd Austin, um afro-americano, é o secretário de Defesa? Os militares são mais humanos porque aceitam soldados transgéneros?

A desigualdade social e o estado de vigilância que a controla melhoraram porque Sundar Pichai – que nasceu na Índia – é o CEO do Google e da Alphabet? A indústria de armas melhorou porque Kathy J. Warden, uma mulher, é a CEO da Northop Grumman, e outra mulher, Phebe Novakovic, é a CEO da General Dynamics?

As famílias trabalhadoras estão em melhor situação com Janet Yellen, que promove o aumento do desemprego e a “insegurança no emprego” para reduzir a inflação, como secretária do Tesouro? A indústria cinematográfica é aprimorada quando uma diretora, Kathryn Bigelow, faz “Zero Dark Thirty”, que é um agitprop para a CIA? Dê uma olhada neste anúncio de recrutamento divulgado pela CIA. Isso resume o absurdo em que acabamos:

https://youtu.be/X55JPbAMc9g

Iamgem de destaque: "Política Identitária", desenho do cartunista Mr. Fish, que ilustra o artigo de Hedges originalmente publicado no portal Scheer Post.

Via Daqui

Chris Hedges: Vencedor do prémio Pulitzer em 2002, Hedges tem uma impressionante trajetória de correspondente de guerra, tendo coberto a Guerra das Malvinas, a guerra suja dos EUA na América Central (Nicarágua, El Salvador e Guatemala) na década de 1980, a Guerra do Golfo – chefiava o escritório do New York Times no Oriente Médio – e a Guerra na Iugoslávia.

De volta aos EUA, ao longo de duas décadas foi colunista do Truthdig e, depois, do Scheer Post. De 2016 a 2022 Hedges apresentou o programa de televisão On Contact para a RT America. Desde abril passado, ele apresenta The Chris Hedges Report na The Real News Network.

Seus livros incluem War Is a Force that Give Us Meaning [A Guerra é uma Força Que Nos Dá Significado], de 2002; American Fascists: the Christian Right and the War Against America [Fascistas Americanos: A Direita Cristã e a Guerra Contra a América], de 2007; e Days of Destruction, Days of Revolt [Dias de Destruição, Dias de Revolta], de 2012, escrito com o cartunista Joe Sacco.

GIORDANO BRUNO (1548-1600)

07.02.23 | Manuel

 

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A 8 de Fevereiro, Giordano foi publicamente degradado e excomungado do seio da Igreja. De pés descalços, ajoelhado, com a cabeça inclinada para o chão, ele ouviu, perante a assembleia solene dos cardeais, inquisidores e teólogos, presidida pelo papa e pelo governador de Roma, o veredicto há tanto tempo esperado. Seria queimado vivo, no Campo dei Fiori, oito dias mais tarde.

Erguendo-se em desafio, no fim da sentença, gritou alto e forte: «Vós que pronunciais essa sentença, estareis porventura mais assustados do que eu que a cumprirei.»

Uma última vez, era-lhe dado a exprimir a noção de reviravolta, que invertia os papéis. Gelou o sangue nas veias dos acusadores. Como Acteon, ao surpreender a divindade, já não tinha de procurá-la fora de si próprio.

Imediatamente, braços vigorosos apoderaram-se dele. Mas era a sua última rebelião. A partir de agora, já não ofereceria mais resistência do que as suas cinzas, em breve deitadas ao vento, «de maneira, disseram-lhe, que dele apenas restaria, à superfície da terra, a memória da sua execução».

Todos os seus livros que o tribunal da Inquisição conseguira reunir já tinham ardido num enorme auto-de-fé, em frente de São Pedro de Roma. O que tinha acontecido a As Sete Artes Liberais que queria dedicar ao papa, e ao seu Livro das Conjurações confiscado por Giovanni Mocenigo, em Veneza, e provavelmente entregue aos juízes? Talvez um dia alguém os encontrasse nos arquivos do Santo Ofício de Roma...

Mas então, que ódio teria provocado para que a Igreja o conservasse assim durante anos nos seus tenebrosos calabouços? E verdade que lhe fora concedida uma última oportunidade de sobrevivência. Os inquisidores propuseram-lhe a liberdade em troca do repúdio das suas blasfémias e das suas teorias sobre a pluralidade dos mundos. Com um gesto, recusou-se a falar. Nunca ninguém o censurou pelas suas actividades de hermetista ou pelos seus manuscritos sobre a magia. O crime de abjuração e de ruptura com os juramentos monásticos era secundária. Com efeito, amaldiçoavam-no porque tivera a ousadia de afirmar que a alma podia migrar para outro corpo, num outro sistema solar perdido no universo infinito. Heresiarca, aceitava acabar como pressentira, antes de provocar o mecanismo veneziano. O monte Cicala da sua infância, em frente do Vesúvio, bem lhe tinha dito: «Um dia, voltarás a encontrar o vulcão, e nunca mais o abandonarás».

As suas cinzas confundir-se-iam com a poeira da cidade das sete colinas – presente de diminuto valor, em relação à alegria que sentiria a fundir-se naquela Natureza que cantara com tanta alegria. Não arderia sozinho: os seus livros e os ramos do sobreiro acompanhá-lo-iam na futura fogueira.

Antes da madrugada, mãos febris prepararam a fogueira. Depois o silêncio abateu-se na multidão. Ricos e pobres surgiam de todo o lado, para assistir às festas do Jubileu. Entre eles encontravam-se vários protestantes, nomeadamente o príncipe Frederico de Wurtemburgo.

O pasmo que antecede por vezes as execuções capitais, pairou sobre Roma, solidificou-se em redor do prisioneiro, como uma segunda parede a forrar a sua jaula de cristal.

Em breve, bateriam à porta de Giordano, arrancar-lhe-iam as roupas e enfiar-lhe-iam o sinistro san-benito, camisa de enxofre em forma de escapulário ornado com a cruz de Santo André, de faíscas e de demónios. Furar-lhe-iam a língua, como a tantos outros, para que não fizesse o sermão do seu suplício às testemunhas? A última frase que lançara aos seus juízes fazia-o recear.

Já a carroça que o levava para o Campo dei Fiori se tinha posto em movimento. Na sua grande compaixão, o céu puro que Giordano tanto amara não deixava prever nenhum sinal de chuva. Mantinha-se muito direito, sem ver os milhares de olhares cravados em si. Como Hermes Trismegisto, sabia que a morte era apenas uma passagem para a luz e para a vida, esquecimento das nossas metamorfoses.

Os vivos não morrem, mas, sendo corpos compostos, dissolvem-se. Ora, essa dissolução, não está morta, mas dissolução de uma mistura. E soe se dissolvem não é para serem destruídos, mas para se renovarem.

Qual é de facto a energia da vida? Não será o movimento? Ora, o que existe no mundo que seja imóvel?

Ele pensou: rodopiante nos espaços incomensuráveis, nada se perde, tudo se transforma. Que deslumbramento, no dia em que tivera a certeza de que a matéria não era uma extensão geométrica, mas uma substância manifestada exteriormente sob a forma de espaço e que, na realidade, era apenas puro espírito...

Uma voz ergueu-se do povo, clamando que justiça era feita aos inimigos da Igreja. Giordano sorriu de maneira extática: fora por vezes colérico, ímpio, libertino. Mas não renegava a sua conduta. A sua fé na religião da Natureza, da Luz e do Amor ajudou-o a superar os tormentos que, como a sua obra, se exprimiam com frequência em forma de diálogo, traindo o confronto de pensamentos abundantes nele.

Agora, essas tomadas de consciência contraditórias resolviam-se, com a aproximação da grande clareza na qual se dissolveria. Nele, os gémeos fundiam-se. Castor e Pólux combinavam-se por fim, o mortal e o imortal, o partidário da ordem humana e da ordem celeste. De que furioso combate fora ele o teatro antes que os Dióscoros, reconciliados, se reunissem no mesmo ovo cósmico, para uma viagem fantástica?... Realizava-se finalmente a conjunção dos contrários, sonho das Crianças de Hermes, dos místicos e dos loucos de amor. Mas era preciso permanecer lúcido, até ao momento de levantar voo.

Giordano já vivera aquela morte, ao escrever profeticamente nos Os Furores Heróicos , para Morgana, no qual era Acteon. Sim, era de novo o caçador transformado em veado e devorado pelos seus cães, porque tinha ousado surpreender a divindade na sua nudez. Ao mesmo tempo, os seus pensamentos divinizavam-se; tomava-se a criança perturbada com a louca paixão pela prima Giulia, no cimo do monte das Cigarras.

Aquela que ao mais alto amor elevava o meu pensamento, aquela que devolveu a meus olhos uma outra divindade vil e vã, aquela em que unicamente e tão puramente se manifestam a soberana beleza e o soberano bem.

Foi ela que vi sair da floresta, Diana, a minha caçadora, escoltada por belas ninfas lançadas no meu encalço, para as terras douradas da Campânia. Então disse ao Amor: a esta entrego as minhas armas.

Nonos de Panapolis descrevera exactamente a morte de Acteon, nas suas Dionisíacas: E a Deusa imagina um outro suplício: abrandar as mandíbulas dos cães, e fazer pouco a pouco devorar Acteon vivo, conservando a sua consciência.

Desta feita, por acreditar no que não se pode contemplar, desposava uma imortal. Com a condição de permanecer totalmente consciente, como no amor, apenas até estar uno com a luz infinita.

Com a sensação repentina de submergir de um sonho acordado, Giordano viu-se rodeado por chamas. Então vislumbrou uma outra vida a cintilar ao longe, entre constelações cuja claridade ainda não iluminara os homens. Quantos astros mortos cruzaria ainda, cujo clarão de luz se desloca tranquilamente? Para onde? Ela tem a eternidade para ela. Pensava que era aí, entre entrelaçados de fulgurâncias, as cavalgadas de relâmpagos, tão mais numerosos que os espíritos dos desaparecidos errando desde que o mundo é mundo, sim, era aí, nessa reserva de centelhas sem limites que estava ocultada a Razão. Sentiu fugazmente a nostalgia de Nola, paraíso da sua infância onde o ar cheirava a resina dos pinheiros quentes, a laranja da imortalidade da Arábia feliz e do jardim das Hespérides. Depois pronunciou a fórmula Magico , a do ardente amor mágico e uniu-se em pensamento a Morgana, tão distante e tão próxima. Mas entre esse éden e as suas encarnações futuras, eram só pré-histórias...

As almas delicadas constataram que o filósofo fora «entregue a Vulcano», segundo a fórmula elegante. Um espírito forte, Fusilius, exclamou: «Assim, queimado vivo, este homem padece miseravelmente, para que possa contar, aos outros mundos por ele inventados, de que maneira os Romanos tratam os blasfemadores». E acrescentou: «Não morremos consumidos pelo fogo, mas sufocados pelo fumo, pois o fogo é mais frio do que quente».

Reuniram-se vários luteranos no meio da populaça. Perdidos na multidão do Campo dei Fiori, dois giordanisti murmuraram que a morte do seu mestre era o símbolo de todos os crimes contra o Espírito. Como Giordano lhes ensinara, eles mudariam a sua identidade, apagariam os seus passos, e legariam uma herança ao mundo.

Nesse fim de tarde, o sol ainda ficou mais avermelhado no céu de Roma.

(Ver in “O HOMEM DE FOGO”, Romance histórico sobre a extraordinária vida de GIORDANO BRUNO” de Francesca Y. Caroutch. Ed. Esquilo. 2004)

NOTA: Em Portugal, da bibliografia de Giordano Bruno, apenas se encontra publicada a obra Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos com a chancela da Fundação Calouste Gulbenkian.

Almeida Garrett 

02.02.23 | Manuel

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Destino

Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta «Florece!»
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai!, não mo disse ninguém.

Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino .
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.

*

Este Inferno de Amar

Este inferno de amar - como eu amo! -
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'

Mais umas poucas Dúzias de Homens Ricos

Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu, tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. - No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? - Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já deve de andar orçado o número de almas que é preciso vender ao Diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro - seja o que for; cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.

Almeida Garrett, in 'Viagens na minha Terra'

('Folhas Caídas'. Círculo de Leitores, 1970 e 'Viagens na minha Terra'. Publicações Europa-América, 1972)

*

Nau Catrineta

Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.

Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.

Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.

- "Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal!"

- "Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar."

- "Acima, acima, gageiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal!"

- "Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal!"
Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar."

- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-se casar."

- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar."

- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar."

- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar."

- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."

- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."

- "Dar-te-ei a Nau Catrineta,
Para nela navegar."

- "Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar."

- "Que queres tu, meu gageiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?"

- "Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar!"

- "Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar."

Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;

E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.

(Almeida Garrett, ‘Romanceiro’)

Nota:

A Nau Catrineta é um poema romanceado por um anónimo, relativo às viagens para o Brasil ou para o Oriente. Segundo Almeida Garrett, o romance popular A Nau Catrineta terá sido baseado no episódio sobre o Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Coelho, vindo do Brasil, no ano de 1565, que integra a História Trágico-Marítima. Este poema, que Garrett incluiu no seu Romanceiro (1843-1851), foi bastante difundido pelos países setentrionais.
Diz a lenda que decorria o ano de 1565 quando saiu de Pernambuco a nau "Santo António" com destino a Lisboa, levando a bordo Jorge de Albuquerque Coelho, filho do fundador daquela cidade.

­­João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (Porto, 4 de Fevereiro de 1799; Lisboa, 9 de Dezembro de 1854) - Escritor e dramaturgo romântico, orador, par do reino, ministro e secretário de estado honorário português. Grande impulsionador do teatro em Portugal, uma das maiores figuras do romantismo português, foi ele quem propôs a edificação do Teatro Nacional de D. Maria II e a criação do Conservatório de Arte Dramática. (Infopedia)