No primeiro dia de agosto de 1568 – era um domingo - Maria Antónia, Teodora Henriques, Antónia Nunes e Filipa Lourenço foram julgadas pelo Tribunal do Santo Ofício de Coimbra. Ouviriam juntas a leitura do auto de fé que as condenava.
Maria, judia, apenas foi liberada para poder cuidar do seu marido doente por dois meses em Buarcos, devendo voltar de imediato à prisão em Coimbra. Teodora, de Condeixa, seria instruída na fé católica. Antónia, acusada genericamente por blasfémias, teve de ouvir a sua punição com uma vela acesa a derreter na mão. Filipa, condenada a nunca mais sair de Coimbra, era moradora em Lamego, no norte do país; não mais veria seus amigos, vizinhos ou família. No seu processo, encontra-se a seguinte nota: "Tinha dentro um livro de poesia". Assim como não há história muda, não há arquivo mudo: Teodora, Antónia, Maria e Filipa não são uma ficção. Elas representam um recorte factual das mulheres existentes nos processos da Inquisição de Coimbra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT).
Aquilo que se denomina como autos de fé são, em consciência, autênticos autos sem fé. Cerimónias ritualizadas em nome da Igreja Católica. A Inquisição terá performado leituras públicas e comunitárias com os nomes destas mulheres para assim condená-las, mas, desta vez, recuperamos os seus registos, de forma também pública e comunitária, para celebrar a extinção do Tribunal do Santo Ofício e assinalar o Dia Nacional da Memória das Vítimas da Inquisição comemorado em 31 de março.
Atos de Pesquisa
Cobrindo o período de 1541 a 1821, os mais de 10 mil processos da Inquisição de Coimbra, sob a guarda do ANTT, estão descritos e disponibilizados em linha. A partir da análise de cerca de 500 documentos, foram selecionados aqueles mais representativos das mulheres sentenciadas, procurando ali mais do que o mero papel. A noção de rede é o nosso meio de transporte – uma rede na qual se desenlaçam e se relacionam traços biográficos bem como relações familiares e afetivas.
Iniciado em 2020, Autos sem fé é um projeto de investigação baseado na experimentação artística que se estrutura em três pontos: teórico, pela perspetiva histórica-crítico-feminista seguida de uma discussão sobre a material idade da cultura e a digitalização das humanidades; metodológico, pela pesquisa em arquivo, extração de informação e manipulação de dados; e artístico, pela vocalização do arquivo através de um ciclo de leituras encenadas, simultaneamente participativas e interventivas, no espaço público.
Este projeto integra o MatLitLab, o laboratório de humanidades do Programa de Doutoramento em Materialidades da Literatura, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Laboratório das Artes Vista Alegre
30 de março, quinta-feira, às 20h00 ílhavo
Igreja de São Bartolomeu
31 de março, sexta-feira, às 19h00 Praça do Comércio, Coimbra
O nome delas
Nome, idade, localidade
Ana Fernandes, 54, Coimbra
Ana Ferreira, 45, Guarda
Ana Gomes, 30, Lamego
Ana Henriques, Idade Incógnita, Braga
Ana Lopes, 30, Miranda
Ana Lopes, 50, Braga
Ana Luísa, 16, Lamego
Ana Pires, 60, Braga
Ana Rodrigues, 23, Bragança
Ana Sequeira, 15, Buarcos
Ângela Gomes Arrais, 16, Coimbra
Ângela Nunes, idade incógnita, Torre de Moncorvo
Antónia Cardoso, 26, Vinhais
Antónia Cardoso, 27, Lamego
Antónia Cardoso, 50, Vila Pouca do Campo
Antónia Coelho, 60, Barcelos
Antónia de Bastos, 22, Buarcos
Antónia do Campo, 35, Coimbra
Antónia Fernandes, 30, Buarcos
Antónia Gomes, 45, Lamego
Antónia Nunes, 65, Lamego
Antónia Nunes, 35, Vila Flor
Antónia Pessoa 45 Montemor-O-Velho
Antónia Soares 55 Coimbra
Apolónia Rebelo 18 Coimbra
Beatriz da Costa 50 Bragança
Beatriz Henriques 31 Torre de Moncorvo
Beatriz Rodrigues Porto
Branca 17 Viseu
Branca Cardoso 48 Mesão Frio
Branca Cardoso 85 Lamego
Branca Gomes, idade incógnita, Porto
Branca Mendes 45 Lamego
Branca Nunes 20 Viseu
Branca Nunes 24 Guarda
Branca Nunes 24 Torre de Moncorvo
Branca Nunes 60 São João da Pesqueira
Branca Rodrigues 22 Porto
Branca Rodrigues 50 Coimbra
Branca Rodrigues 60 Viseu
Brites de Oliveira 18 Miranda
Brites Gomes 28 Vila Real
Brites Lopes 28 Mogadouro
Brites Lopes 80 Braga
Brites Lourenço 37 Lamego
Brites Mendes 25 Lamego
Brites Nunes 13 Bragança
Brites Nunes 48 Bragança
Brites Pereira 32 Bragança
Brites Ribeiro 33 Lamego
Brites Ribeiro 40 Braga
Brites Rodrigues 13 Lamego
Brites Rodrigues 15 Lamego
Brites Rodrigues 65 Lamego
Catarina Álvares 50 Viseu
Catarina de Aguilar 22 Espanha
Catarina de Cárceres 66 Coimbra
Catarina de Leão 16 Lamego
Catarina de Leão 70 Braga
Catarina Dinis 19 Coimbra
Catarina Fernandes 17 Buarcos
Catarina Ferreira 17 Aveiro
Catarina Mendes 55 Lamego
Catarina Pereira 33 Bragança
Catarina Rodrigues 50 Barcelos
Catarina Travaços 60 Montemor-O-Velho
Catarina Vaz 22 Braga
Catarina Ximenes 20 Lamego
Cecília Cardoso 20 Lamego
Cecília Cardoso 60 Lamego
Cecília de Almeida 46 Lamego
Cecília Marques 22 Braga
Cecília Rodrigues 28 Lamego
Cecília Rodrigues 38 Lamego
Cecília Rodrigues 45 Lamego
Clara Gomes, idade incógnita, Oliveira do Conde
Clara Henriques 28 Buarcos
Clara Nunes 50 Viseu
Clara Rodrigues, idade incógnita, Lamego
Constança Gomes 65 Castela
Correia 20 Galiza
D. Isabel de Sã 18 Coimbra
D. Mariana de Sã 20 Tentúgal
Elvira Rodrigues 62 Lamego
Eufémia de Oliveira 40 Viseu
Eufémia Rodrigues 36 Bragança
Feliciana Fernandes 19 Miranda
Filipa Cardoso, idade incógnita, Lamego
Filipa da Costa 21 Lamego
Filipa de Mesquita 17 Lamego
Filipa Fernandes 45 Viseu
Filipa Lourenço 50 Lamego
Filipa Rodrigues, idade incógnita, Torre de Moncorvo
Florença de Carrião 20 Bragança
Florença Nunes 35 Bragança
Francisca da Costa 18 Miranda
Francisca da Silva 31 Torre de Moncorvo
Francisca da Silva 80 Vila Nova de Foz Côa
Francisca de Leão 22 Lamego
Francisca Henriques 30 Miranda do Douro
Francisca Lopes 55 Mogadouro
Francisca Pereira de Aça 42 Madrid
Francisca Rodrigues 24 Bragança
Francisca Rodrigues 30 Carção de Outeiro
Francisca Rodrigues 35 Mirandela
Francisca Vaz 38 Torre de Moncorvo
Freira Ana de São João 30 Leiria
Freira Catarina da Esperança 50 Coimbra
Freira Clara de Santa Maria 40 Montemor-O-Velho .
Freira Maria de Jesus 37 Lamego
Freira Violante da Silva 36 Coimbra
Guiomar da Fonseca 40 Évora
Guiomar de Brito 18 Coimbra
Guiomar de Contreiras 55 Buarcos
Guiomar de Leão 60 Bragança
Helena Fernandes 25 Viseu
Helena Luís 40 Miranda
Inês Simões Romão 45 Coimbra
Isabel 14 Ançã
Isabel Álvares 42 Torre de Moncorvo
Isabel Cardoso 50 Lamego
Isabel da Costa 40 Argozelo
Isabel de Brito, idade incógnita, Coimbra
Isabel de Castro 26 Sendim
Isabel de Negreiros 29 Montemor-o-Velho
Isabel de Oliveira 53 Coimbra
Isabel de Távora 60 Lamego
Isabel Dias 45 Vila Real
Isabel dos Anjos, idade incógnita, Coimbra
Isabel Fernandes 14 Miranda do Douro
Isabel Fernandes 60 Vila do Conde
Isabel Fernandes 70 Marialva
Isabel Ferro 40 Celorico
Isabel Henriques 16 Bragança
I Isabel Henriques 24 Porto
Isabel Lopes 33 Lamego
Isabel Lopes e Henrique de Tovar, idade incógnita, Valladolid, Espanha
Isabel Mendes 20 Miranda
Isabel Mendes 23 Miranda
Isabel Mendes 40 Almeida
Isabel Mendes 40 Coimbra
Isabel Nunes 30 Porto
Isabel Pinheiro 35 Bragança
Isabel Rodrigues 27 Bragança
Isabel Rodrigues 65 Bragança
Jana Garcia 70 Vila Real
Joana Maria Vilhegas 37 Viseu
Joana Teresa 33 Porto
Justa de Alvarenga 50 lamego
Leonor de Campos Currales 42 Castelo Branco
Leonor de Valença 13 lamego
Leonor Dias 37 Quintela de Lampaças
Leonor dos Anjos 23 Coimbra
Leonor Fernandes 23 Coimbra
Leonor Fernandes 26 Porto
Leonor Fernandes 36 Viseu
Leonor Nunes 17 Guarda
Lionísia da Costa 33 Faro
Luísa Antónia 30 Guarda
Luísa Pereira 58 Muxagata
Margarida Henriques 22 Almeida
Margarida Fernandes 30 Coimbra
Margarida Lopes 18 Miranda
Margarida Rodrigues 30 Porto
Maria 35 Braga
Maria Álvares 30 Bragança
Maria Antónia 12 Buarcos
Maria Antónia 13 Castela
Maria Antónia 50 Buarcos
Maria Antónia, idade incógnita, Buarcos
Maria Antunes 60 Pinheiro de Ázere
Maria Barreto 30 Coimbra
Maria Coelho 30 Montemor-O-Velho
Maria da Ascensão 30 Bragança
Maria da Fonseca 45 Viseu
Maria da Silva 50 Vila de Cambra
Maria de Almeida 33 Braga
Maria de Campos Currales 40 Celorico
Maria de leão, idade incógnita, Bragança
Maria de Mendonça e outros, idade incógnita,
Maria de Sá 45 Montemor-O-Velho
Maria Dias 50 Coimbra
Maria do Rosário, idade incógnita, Leiria
Maria dos Reis 58 Coimbra
Maria Fernandes 27 Mortágua
Maria Fernandes 40 Miranda do Douro
Maria Fernandes Paula 50 Braga
Maria Gomes 20 Almeida
Maria Gonçalves 20 Valladolid
Maria Gonçalves 53 Bragança
Maria Gonçalves 60 Braga
Maria Henriques 20 Mogadouro
Maria Lopes 26 Vila Real
Maria Lopes 35 Lamego
Maria Lopes 75 Braga
Maria Luís 38 Bragança
Maria Marques 19 Coimbra
Maria Mendes 42 Bragança
Maria Nunes 35 Almeida
Maria Pereira 20 Braga
Maria Pinto 40 Vila Nova de Foz Côa
Maria Ponces 30 Montemor-O-Velho
Maria Rebelo 30 Lisboa
Maria Rodrigues 24 Bragança
Maria Rodrigues 26 Montemor-O-Velho
Maria Rodrigues 32 Miranda do Douro
Maria Rodrigues 34 Castelo de Penalva
Maria Rodrigues 39 Muxagata
Maria Rodrigues 60 Miranda do Douro
Maria Soares 1 7 Lamego
Maria Soares 30 Viseu
Maria Vaz 16 Guimarães
Maria Vieira, idade incógnita, Guimarães
Mariana Antónia 60 Braga
Mariana Couceiro 40 Montemor-O-Velho
Mariana de Campos Currales 25 Torre de Moncorvo
Mariana Josefa 21 Porto
Mariana Mendes 30 Castela
Marta Mendes 36 Porto
Rosa Maria Pereira 38 Ponte de Lima
Sebastiana de Faria 35
Montemor-O-Velho Verride
Teodora Henriques 25 Condeixa
Teresa Gomes e Branca Cardoso, 16 e idade incógnita, Mesão Frio
Teresa Lobo 20 Montemor-O-Velho
Teresa Pinto 65 Peso da Régua
Violante [Serra] 28 Miranda
Violante Álvares 31 Vila Flor
Violante de Oliveira 33 Lisboa
Violante Henriques 40 Lamego
Violante Lopes 30 Vila Flor
Violante Mendes 26 Lamego
Ficha técnica
Título: Autos sem fé
Género: sessão com leitura participativa/leitura encenada
Duração: 01h30m (aprox.)
Coprodução: TAGV + 23 Milhas
Direção artística e científica do projeto: Elizama Almeida & Mafalda Lalanda
Acompanhamento científico: Grupo de estudos lacuna (Alice Jobim, Clara pereira, Milena Calassara, Joana Passi e Julia Barandier)
*Texto sobre a performance que lembrou as mulheres mortas pela Inquisição em Coimbra na data (31 de Março) em que esta instituição tenebrosa da ICAR foi oficialmente extinta.
Nota: Na sessão de 31 de Março de 1821, as Cortes Constituintes decretaram a extinção do Tribunal do Santo Ofício, criado em 23 de Maio de 1536, por ordem do papa Paulo III, bula "Cum ad nihil magis”, e a solicitação do rei D. Manuel.
Máximo Gorki foi um importante escritor russo, nascido a 1868, há 155 anos, tratando-se de um homem das letras universais, não se poderia deixar passar o ano sem falar no escritor que é, até certo ponto, identificado com a Revolução Bolchevique, apreciado por muitos amantes da literatura russa em todo o mundo e, em particular, em Portugal. Para além das biografias e panegíricos oficiais, uma outra faceta mais escondida será interessante desvendar um pouco.
Aleksei Maksimovich Peshkov era o verdadeiro nome do escritor que foi amigo de Lenine e que alguém acusa de ter sido assassinado a mando de Estaline. As suas novelas e peças de teatro (a sua obra poética é considerada menor) falam predominantemente de sectores pobre e marginais da sociedade com quem conviveu enquanto jovem e levou vida errante; grande parte da sua obra é indubitavelmente autobiográfica. É considerado o escritor que faz a ligação entre a velha Rússia czarista e a nova Rússia socialista. Mas há um aspecto da sua obra, e das suas ideias, que não obtêm o consenso dos críticos, que se prende como o conceito em que tinha os camponeses do seu tempo, em particular os mujiques, os camponeses pobres.
Gorki é apontado como pouco compreensivo quanto aos camponeses, considerando-os atrasados e incivilizados, incapazes de perceber e utilizar as benesses do progresso que lhes eram levadas pelo novo poder operário. Essa atitude de direita – como refere Bettelheim – manifestava-se por um desprezo profundo e que indiciaria um “apelo à união dos operários e intelectuais face a essa outra camada” social – uma das razões apontadas pelo mesmo autor como um dos fracassos do regime socialista no tempo de Estaline.
Máximo Gorki (inicialmente mostrou-se reservado quanto à revolução de Outubro, acabou por apoiar o poder soviético, gozando nos começos dos anos 30 de grande prestígio junto da maioria dos membros do Partido, especialmente da sua direcção) pinta o campesinato russo de forma negativa, opondo o camponês ao “citadino”, que ele descreve como o único capaz de “progresso” e de “razão”, qualquer que seja a camada social a que pertence. Em 1922, num texto intitulado “O camponês russo”, escreve: “O trabalho do citadino é diferente, sólido, duradouro… Ele já submeteu aos seus nobres fins às forças da natureza e elas servem-no, como os djinns dos contos orientais… Ele criou à sua volta a atmosfera da razão [...]” .
Segundo o seu modo de ver, o camponês, isto é, “o povo que comer o mais possível e trabalhar o menos possível, quer ter todos os direitos e nenhum dever”. Gorki considera que estas “características” existem no mais elevado grau nos camponeses russos que, além disso, se opõem a todo e qualquer progresso: “O campo acolhe com desconfiança e hostilidade aqueles que querem levar-lhe qualquer coisa de pessoal, de novo, e depressa se farta deles ou os rejeita do seu seio” .
Nas páginas seguintes da mesma obra, acumulam-se os traços de desprezo.Para Gorki, a “psicologia” do camponês russo exprime-se no ditado: “Não fujas ao trabalho, mas não o faças”. Cita um historiador russo que caracteriza os camponeses da seguinte maneira: “Mil superstições e nenhuma ideia”. E acrescenta: “Todo o folclore russo vem confirmar este triste juízo” . Segundo Gorki, o campesinato russo não tem qualquer espécie de memória histórica das suas próprias revoltas, esqueceu aqueles que o dirigiram, quer se tenham chamado Balotnikov, Stepan Riazine ou Pugatchev (dirigentes revolucionários camponeses) – “nada do que eles fizeram deixou qualquer traço nos costumes ou na lembrança dos camponeses russos”.
Encontram-se nos escritos de Gorki todas as ideias preconcebidas da burguesia e dos proprietários de bens de raiz aterrados pelo medo das revoltas camponesas. Nos escritos posteriores as fórmulas não são tão brutais, mas a sua ideologia continua a caracterizar-se pelo desprezo e pelo medo do campesinato. Para Bettelheim – e continuamos a citá-lo – é este mesmo desprezo e este mesmo medo do campesinato que se encontram em certos membros do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e que fizeram resvalar facilmente o partido de uma política anti-kulak (anti-latifundiário) para uma política de repressão contra o campesinato. Mudança de política que terá acontecido também devido à pressão da própria acumulação das dificuldades surgidas nas relações entre o campesinato e o poder soviético, especialmente quando os interesses das massas camponesas são sacrificados à vontade de realizar um ritmo máximo de industrialização – uma das razões do triunfo do capitalismo na ex-URSS e da falência do poder operário e socialista, segundo o mesmo autor. Mas esta questão será para outros fóruns que não este.
No dia 25 de Março de 1921, em pleno regime democrático, o povo da aldeia do Roxo, concelho de Penacova, localizada apenas a 10 quilómetros de Coimbra, na serra da Aveleira, revoltou-se contra a repressão da GNR. Esta fiscalizava uma jovem camponesa que levava um cântaro de azeite para venda na cidade, mas que não levava a, então denominada, “guia de trânsito”, o que significaria a fuga ao pagamento do imposto “ad valorem”, ficando com o cântaro de 20 litros de azeite apreendido.
Entretanto, a jovem, de seu nome Alexandrina, foi pedir ajuda ao namorado para reaver o que era seu, mas os militares da GNR, que ainda se encontravam junto ao cântaro, dão-lhes ordem de prisão; como defesa, o namorado manda tocar o sino a rebate e a população acode, juntando-se no largo e dando-lhes resposta adequada: foram corridos da aldeia, segundo relata um dos jornais da época, obrigando a patrulha da GNR a regressar ao posto de Penacova de onde era proveniente.
Mas a vingança não tardou e, “duas ou três horas depois”, veio outra força reforçada já com soldados de Vila Nova de Poiares, concelho vizinho, que terão entrado por outra via de acesso ao Roxo e, “sem meias medidas”, “dispararam sobre a população”, como conta Eduardo Ferreira, bisneto de uma das vítimas mortais, à publicação “Penacova Actual”.
A GNR justificou a acção com a hostilidade do povo, o comandante de posto de Poiares terá sido ferido na cabeça, os militares terão, então, atirado primeiro para o ar, mas como o povo não se amedrontou, então atiraram a matar sobre a população indefesa. Foram assassinados, nesse dia de Sexta-Feira Santa, José Luís da Fonte e Alípio Rodrigues Russo, tendo António Miguel, de 27 anos, sido ferido num braço e levado para o Hospital da Universidade de Coimbra, onde morreu algum tempo depois.
Ainda não satisfeita, no dia seguinte, a GNR aparece em força no Roxo, com 40 militares de infantaria e 60 de cavalaria “e varre a população toda”. “Entre 35 e 55 pessoas são levadas sob escolta para Coimbra onde são interrogadas, sendo depois libertas”, refere Eduardo Ferreira; 33 homens e duas mulheres diz a “Gazeta de Coimbra”. Seja como tenha sido, foi a sanha repressiva que atingiu toda a população de aldeia e de outros habitantes de aldeias vizinhas que terão respondido à chamada dos sinos.
Os representantes do governo e do poder local, com o auxílio da imprensa regional, logo trataram de denegrir o povo do Roxo, como povo de “de má raça”, estigma que parece ter perdurado no seio de alguma opinião pública mais moderada e influenciada pelo regime republicano em vigor. Foi um episódio de justa revolta contra os impostos lançados sobre uma população rural que simplesmente, como agora, lutava pela sua sobrevivência, e à semelhança do que acontecia nessa altura um pouco por todo o país contra a miséria e a reforma fiscal.
“Desde miúdo que conheço essa história e o Roxo sempre teve má fama. Lembro-me de ir trabalhar com 12 ou 13 anos para Coimbra e, quando dizia que era do Roxo, diziam logo: ‘Isso é má raça, isso é má terra, que até na Guarda batem’. Havia até uma lenda de que os canhões de Santa Clara, em Coimbra, estavam virados para o Roxo”, realçou Eduardo Ferreira ao “Penacova Actual”.
O episódio aconteceu a 25 de Março de 1921 foi comemorado no passado Sábado, dia 25 de Março de 2023, por iniciativa da própria população que desejou escrever a história tal como ela aconteceu e não a deixar ficar pela versão do poder, que é sempre a versão do vencedor. O momento, 102 anos passados, é de “solidariedade e de coragem”. “Passados mais de 100 anos, temos outra visão das coisas. Não estamos a pedir contas à GNR [os militares que mataram os três locais receberam louvores, na altura], mas sim comemorar um facto histórico e valorizar a solidariedade e a coragem que estas pessoas tiveram” (“Penacova Actual”).
Eduardo Ferreira: a aldeia tem de reclamar para si a história e orgulhar-se de “um ato espontâneo de revolta por ser dada ordem de prisão a uma rapariga pobre, que apenas queria vender o seu azeite para fazer face às necessidades”.
A GNR foi a primeira força policial a nível nacional, substituindo a antiga Guarda Municipal que só existia em Lisboa e era profundamente odiada devido aos desmandos e brutalidade exercidos sobre o povo, criada pela mão de Machado Santos, considerado “Herói da Rotunda” e “Fundador da República”, ministro do Interior do primeiro governo de Sidónio Pais, na I República.
Foi graças à GNR que a classe dominante conseguiu controlar a população, nomeadamente a rural, de norte a sul do país, e obrigar ao pagamento de impostos injustos e excessivos (Reforma Fiscal da I República), ao mesmo tempo que impunha a lei e a ordem republicanas – “Através da GNR que o Estado poderia abarcar todo o território e levar a República a cada aldeia” in Diego Palacios Cerezales, “Portugal à Coronhada – Protesto Popular e Ordem Pública nos Séculos XIX e XX”.
A GNR é uma força militar cuja principal missão consiste no policiamento e que, utilizada pelo regime fascista de Salazar, ficou tristemente célebre e, ao contrário do povo do Roxo, com inteira e justificada razão. Em relação à Monarquia, onde o exército levava a cabo operações de policiamento, a I República representa um “retrocesso” (Diego Palacios Cerezales) no que respeita à repressão sobre os trabalhadores, umas das razões que terá ajudado à sua queda em 1926, no golpe militar que veio a instaurar o Estado Novo.
Nesta II República que, em princípio, irá fazer no próximo ano meio século de existência, houve já tempo mais que suficiente para extinguir esta força repressiva e integrar os seus elementos, por exemplo, na PSP. Em democracia e em estado de direito não se compreende nem se justifica, só se for para manter a finalidade inicial, a existência de uma força militar com funções de polícia civil.
Crónica escrita há 3 anos, e perfeitamente actual, após Costa ter instituído o 1º estado de emergência por decreto
Caetano marcou o fim do fascismo e Marcelo assinará o fim da democracia saída do 25 de Abril
Depois do primeiro-ministro Costa ter lançado a requisição civil sobre os estivadores do Porto de Lisboa com a alegação de não estarem a cumprir os serviços mínimos, que muito justamente lutavam pelo pagamento de salários em atraso e contra o lock out dos patrões do sector e, aliás, tendo respeitado sempre os tais serviços mínimos, o monárquico PR Marcelo, depois de auscultar o seu conselho de senadores do regime, decretou o estado de emergência na República: a democracia está suspensa a partir de hoje até quando for preciso. A seguir à deriva austeritária, que o Governo do PS manteve em lume brando, vem agora a deriva autoritária, tão ansiada pelos partidos de direita e pelo próprio Marcelo. Como temos vindo a afirmar é a social-democracia que traz pendurado nas costas o fascismo quando a crise capitalista não se resolve rapidamente; a pandemia do coronavírus foi somente o pretexto. E como também já tínhamos denunciado, mal o Marcelo foi eleito PR, que ele iria ter um papel um pouco semelhante ao do seu padrinho, mas em sinal contrário: Caetano marcou o fim do fascismo, porque a isso foi obrigado, Marcelo, de livre e espontânea vontade, marcará o fim da democracia parlamentar burguesa saída do 25 de Abril. Esta é a primeira declaração, e imposição, do estado de emergência depois da dita “Revolução dos Cravos”, daqui para frente nada será como dantes, e parece que este regime durou menos que o fascismo, graças a todos os partidos com assento no Parlamento, também ele suspenso (reunirá 1 vez por semana e com apenas 20% dos deputados).
Marcelo e Costa são dois burgueses assustados
Dizia o poeta e dramaturgo que um burguês assustado é um fascista, Marcelo e Costa são dois burgueses assustados, com o primeiro refugiado em casa por duas semanas, tendo feito uma intervenção verdadeiramente patética por vídeo que mais parecia estar no bunker com medo de algum bombardeamento; e não havendo solução à vista para a crise sistémica do capitalismo nacional, é natural o medo da bancarrota e que o povo se revolte. Este período de quarentena forçada do povo português, que seria em princípio para prevenir algum alarme social, irá ter efeito contrário ao anunciado e, por outro lado, irá aumentar a pobreza e as desigualdades sociais e económicas entre os portugueses, com muita gente pobre a ter ainda mais dificuldades em aceder aos meios essenciais de sobrevivência e com milhares de trabalhadores a passarem a receber apenas dois terços do salários e outros, os a recibo verde, a receber um terço, de salários já de si bastante baixos e insuficientes para se poder levar uma vida minimamente digna.
O Costa poderá dizer o que quiser a respeito de não haver despedimentos por força do Covid-19, que até parece vir de propósito para justificar mais medidas de austeridade e de repressão sobre os trabalhadores, porque mais despedimentos irão acontecer forçosamente, nem que seja pela diminuição do consumo, com alguns já previstos há algum tempo, denunciando que a causa está para além da pandemia, sendo bem ilustrativo o exemplo da fábrica da alemã Continental, em Palmela há 25 anos, que irá encerrar até o final de 2021, quase de certeza que será antes, e lançar no despedimento 370 trabalhadores, ou a própria Autoeuropa, que foi das primeiras empresas a suspender a produção, que não irá ficar com o mesmo número de trabalhadores já que a crise irá fazer diminuir a procura de automóveis. Segundo estimativa da OIT (Organização Internacional do Trabalho) este surto do novo coronavírus pode levar à destruição de 25 milhões de empregos em todo o mundo e resultar numa perda de 3,4 mil milhões de rendimento para os trabalhadores.
Criminalização do mundo do trabalho e não do mundo predador do capital
Por força do estado de emergência, o Governo PS/Costa pode exercer todo o poder discricionário e ditatorial sobre os trabalhadores, não com certeza sobre os grandes grupos económicos e grandes capitalistas, são proibidas as greves, as reuniões e as manifestações, e trabalhadores que não respeitarem as indicações das autoridades incorrem em penas que poderão ir até 1 ano de prisão ou multa até 120 dias e os dirigentes dessas greves ou manifestações incorrerão no dobro das penas (artigo 304.º do Código Penal). Claro que esta criminalização é para ser feita contra o mundo do trabalho e não do capital, o povo e os trabalhadores é que são o verdadeiro alvo. O direito à greve está suspenso, tendo a CGTP suspendido as greves e manifestações ainda antes da declaração do estado de emergência, numa colaboração mais que suspeita, e é imposta a obrigatoriedade de qualquer trabalhador, não só do sector da saúde ou de prestação de socorro, de ir trabalhar em outro local, em outro tipo de actividade ou horário a critério da entidade patronal (nos hospitais do SNS já se prepara a aplicação do horário das 12 horas, exemplo, Hospitais da Universidade de Coimbra, e a empresa Hutchinson Borrachas, em Portalegre, decidiu obrigar os trabalhadores a laborar cinco horas seguidas sem poderem comer), e com salário reduzido, sem poder protestar ou reivindicar ou que quer que seja. São os direitos, garantias e liberdades do indivíduo que estão a ser coartados, mas principalmente do trabalhador assalariado, a requisição civil está a ser feita sobre a força do trabalho assalariado e não sobre o património ou a pessoa do capitalista, ainda estamos para ver a requisição dos hospitais privados, respectivo pessoal e equipamentos.
Pandemia como pretexto para o controlo social e a repressão
À pala do combate ao coronavírus, o Governo PS/Costa irá endurecer as medidas de controlo e, caso seja necessário, de repressão sobre os trabalhadores. Em relação ao controlo, as polícias portuguesas, assim como as da União, estão a preparar mecanismos de controlo facial, tal como já se faz na China social-fascista, tão criticada pelos órgãos de informação corporativos, e, ninguém se admira, que daqui a alguns dias alguém se lembre em instituir o que o governo israelita acaba de fazer: controlar os telemóveis para, alegadamente, combater o coronavírus, seguindo os movimentos das pessoas infectadas e localizar e alertar aquelas pessoas que estiverem próximas, o que permite criar uma base de dados, que o governo promete destruir logo que passada a pandemia; medida que foi de imediato contestada pela Association for Civil Rights in Israel e outros defensores dos direitos e liberdades dos cidadãos. Foi também com o pretexto da atacar e conter a pandemia que o governo de Macron proibiu as manifestações dos “coletes amarelos” que teimavam em eternizar-se e o ditador eleito Piñera, no Chile, decretou o Estado de Excepção Constitucional de Catástrofe por 90 dias e colocou a tropa na rua para travar as manifestações do povo revoltado e que ainda persistem, por sinal, no mesmo dia em que o Marcelo decretou o Estado de Emergência Nacional em Portugal. Depois de lançarem o pânico entre povo, eles ainda mais assustados, todos os reaccionários do mundo se unem.
Os idosos são um “peso” para a economia
A própria sobrevivência da União Europeia encontra-se em jogo, ela corre o risco de afundar-se a breve prazo. A saída da Grã-Bretanha, a estagnação económica da Alemanha e da França, forte endividamento da terceira economia da UE, a Itália, a falta de solidariedade dos países mais ricos em relação aos mais pobres e periféricos (a Alemanha proibiu a exportação de equipamento médico para combate ao vírus), o aumento de endividamento destes último países por força do esforço económico que agora será feito e por força da subida das taxas de juro sobre as dívidas soberanas que já se está a fazer sentir (em 4 dias a taxa de juro da dívida pública portuguesa a 10 anos subiu de 0,791% para 1,208%, em Fevereiro estava abaixo dos 0,3%, e a subida de 1% representará mais 3 mil milhões de euros) são factores endógenos e exponenciais que precipitarão o fim. Lagarde, presidente do BCE (Banco Central Europeu), foi clara, apesar de logo tentar emendar a mão, a boca fugiu-lhe irresistivelmente para a verdade: não é da competência do BCE reduzir os spreads da dívida pública na zona euro. Estamos ainda bem lembrados de outras palavras da mesma senhora quando era presidente da instituição benemérita FMI de que os idosos eram um peso para a economia; ora, são exactamente os idosos que estão a ser as principais vítimas do coronavírus (veja-se o que se está a passar em Espanha!). O dinheiro prometido para “estimular” a economia é para dar aos bancos que, por sua vez, irão continuar a lucrar com a dívida pública, Portugal já passou mais de 25 mil milhões da dívida pública externa para a banca dita "nacional", só entre 2015 e 2019, com o governo de Costa/Centeno, tendo atingido a dívida do Estado à banca o montante de 83.888 milhões de euros no fim de 2019.
As grandes empresas serão recapitalizadas
O dinheiro prometido às empresas e patrões, 3000 milhões de garantia aos créditos, para isso ainda teve que pedir autorização a Bruxelas, 5200 milhões na área fiscal e 1000 milhões na área contributiva, no total de 9200 milhões, são uma panaceia de que irão beneficiar apenas as grandes empresas, as pequenas irão ser condenadas à falência, e os trabalhadores nada receberão, apesar do Governo Costa/PS não se cansar de dizer que é dinheiro para ajudar as “famílias”, as famiglias serão outras, com certeza. O que se verificará na prática é que Portugal sairá mais endividado desta crise económica, destapada e de certo agravada pelo surto do Covid-19, mas já existente e que a todo o momento prometia rebentar, crise aguda dentro de crise crónica do capitalismo. E esta até seria, já que estamos em estado de emergência, uma excelente oportunidade para o Governo PS/Costa, caso tivesse tomates para tal, alterar alguma coisa na economia, como seja: desenvolver a produção por parte do Estado, e o Laboratório Militar até tem capacidade para tal, de medicamentos e desinfectantes, que estão a ser objecto de especulação verdadeiramente escandalosa; de equipamento de protecção; e de outros bens essenciais em situação de calamidade e de emergência; e nacionalizar todas as empresas, a começar pelos bancos, que entendesse para o bem do povo, o dito “interesse público”.
Auditoria cidadã à dívida impõe-se
O Governo Costa/PS pode suspender, caso queira, o pagamento da dívida soberana até que dure a crise pandémica e se realize uma auditoria cidadã à dívida que, toda ela ou quase, é ilegítima, ilegal e odiosa, porque não foi o povo que a contraiu nem dela beneficiou ou beneficia. Suspensão imediata do pagamento da dívida para que o dinheiro que tem sido gasto com ela, mais de 8 mil milhões por ano em média, seja todo aplicado no fortalecimento do SNS e, no imediato, na aquisição de bens e contratação de pessoal para o combate ao coronavírus. Aqui os partidos que se dizem de esquerda com assento parlamentar teriam uma palavra importante a dizer. Mas, infelizmente, nada disto acontecerá, porque temos um governo e partidos, que se arvoram do “comunismo” e de “esquerda”, e que estão completamente de acordo, e mais do que isso, integrados de alma e coração no salvamento da economia capitalista periclitante. Terão de ser os trabalhadores e o povo, um dia destes, a sair para a rua e exigir o que tem de ser exigido, nem que seja pela força das circunstâncias: o povo não se deixará matar nem pela fome nem pelo coronavírus.
1. Considerando nossa fraqueza os senhores forjaram Suas leis para nos escravizarem. As leis não mais serão respeitadas Considerando que não queremos mais ser escravos. Considerando que os senhores nos ameaçam Com fuzis e com canhões Nós decidimos: de agora em diante Temeremos mais a miséria do que a morte.
2. Consideramos que ficaremos famintos Se suportarmos que continuem nos roubando Queremos deixar bem claro que são apenas vidraças Que nos separam deste bom pão que nos falta. Considerando que os senhores nos ameaçam Com fuzis e canhões Nós decidimos, de agora em diante Temeremos mais a miséria que a morte.
3. Considerando que existem grandes mansões Enquanto os senhores nos deixam sem teto Nós decidimos: agora nelas nos instalaremos Porque em nossos buracos não temos mais condições de ficar. Considerando que os senhores nos ameaçam Com fuzis e canhões Nós decidimos, de agora em diante Temeremos mais a miséria do que a morte.
4. Considerando que está sobrando carvão Enquanto nós gelamos de frio por falta de carvão Nós decidimos que vamos toma-lo Considerando que ele nos aquecerá Considerando que os senhores nos ameaçam Com fuzis e canhões Nós decidimos, de agora em diante Temeremos mais a miséria do que a morte.
5. Considerando que para os senhores não é possível Nos pagarem um salário justo Tomaremos nós mesmos as fábricas Considerando que sem os senhores, tudo será melhor para nós. Considerando que os senhores nos ameaçam Com fuzis e canhões Nós decidimos: de agora em diante Temeremos mais a miséria que a morte.
6. Considerando que o que o governo nos promete Está muito longe de nos inspirar confiança Nós decidimos tomar o poder Para podermos levar uma vida melhor. Considerando: vocês escutam os canhões Outra linguagem não conseguem compreender Deveremos então, sim, isso valerá a pena Apontar os canhões contra os senhores!
Nota: Com o título “Resolução”, este poema encerra a seção 3 da peça Os dias da Comuna que Brecht escreveu em 1948-1949, traduzida para o português por Fernando Peixoto.
«O que é, pois, a Comuna, essa esfinge que põe tão duramente à prova o entendimento burguês?»
A Comuna devia ser, não um organismo parlamentar, mas um corpo activo, ao mesmo tempo executivo e legislativo.
Mas a classe operária não se pode contentar com tomar o aparelho de Estado tal como ele é e de o pôr a funcionar por sua própria conta.
O poder centralizado do Estado, com os seus órgãos presentes por toda a parte: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura, órgãos moldados segundo um plano de divisão sistemática e hierárquica do trabalho, data da época da monarquia absoluta, em que servia à sociedade burguesa nascente de arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo.
Em presença de ameaça de sublevação do proletariado, a classe possidente unida utilizou então o poder de Estado, aberta e ostensivamente, como o engenho de guerra nacional do capital contra o trabalho.
Na sua cruzada permanente contra as massas dos produtores, foi forçada não só a investir o executivo de poderes de repressão cada vez maiores, mas também a retirar pouco a pouco à sua própria fortaleza parlamentar, a Assembleia Nacional, todos os meios de defesa contra o executivo.
O poder de Estado, que parecia planar bem acima da sociedade, era todavia, ele próprio, o maior escândalo desta sociedade e, ao mesmo tempo, o foco de todas as corrupções.
O primeiro decreto da Comuna foi pois a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo em armas.
A Comuna era composta por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos diversos bairros da cidade.
Eram responsáveis e revogáveis a todo o momento.
A maioria dos seus membros era naturalmente operários ou representantes reconhecidos da classe operária.
Em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente despojada dos seus atributos políticos e transformada num instrumento da Comuna, responsável e revogável a todo o momento.
O mesmo se deu com os outros funcionários de todos os outros ramos da administração.
Desde os membros da Comuna até ao fundo da escala, a função pública devia ser assegurada com salários de operários.
Uma vez abolidos o exército permanente e a polícia, instrumentos do poder material do antigo governo, a Comuna teve como objectivo quebrar o instrumento espiritual da opressão, o "poder dos padres"; decretou a dissolução e a expropriação de todas as igrejas, na medida em que elas constituíam corpos possuidores.
Os padres foram remetidos para o calmo retiro da vida privada, onde viveriam das esmolas dos fiéis, à semelhança dos seus predecessores, os apóstolos.
Todos os estabelecimentos de ensino foram abertos ao povo gratuitamente e, ao mesmo tempo, desembaraçados de toda a ingerência da Igreja e do Estado.
Assim, não só a instrução se tornava acessível a todos, como a própria ciência era libertada das grilhetas com que os preconceitos de classe e o poder governamental a tinham acorrentado.
Os funcionários da justiça foram despojados dessa fingida independência que não servira senão para dissimular a sua vil submissão a todos os governos sucessivos, aos quais, um após outro, haviam prestado juramento de fidelidade, para em seguida os violar.
Assim como o resto dos funcionários públicos, os magistrados e os juízes deviam ser eleitos, responsáveis e revogáveis.
Após uma luta heróica de cinco dias, os operários foram esmagados.
Fez-se então, entre os prisioneiros sem defesa, um massacre como se não tinha visto desde os dias das guerras civis que prepararam a queda da República romana.
Pela primeira vez, a burguesia mostrava a que louca crueldade vingativa podia chegar quando o proletariado ousa afrontá-la, como classe à parte, com os seus próprios interesses e as suas próprias reivindicações.
E, no entanto, 1848 não passou de um jogo de crianças, comparado com a raiva da burguesia em 1871.
Proudhon, o socialista do pequeno campesinato e do artesanato, odiava positivamente a associação.
Dizia dela que comportava mais inconvenientes do que vantagens, que era estéril por natureza e até mesmo prejudicial, pois entravava a liberdade do trabalhador; dogma puro e simples...
E é também por isso que a Comuna foi o túmulo da escola proudhoniana do socialismo."
As coisas não correram melhor para os blanquistas.
Educados na escola da conspiração, ligados pela estrita disciplina que lhe é própria, partiam da ideia de que um número relativamente pequeno de homens resolutos e bem organizados era capaz, chegado o momento, não só de se apoderar do poder, mas também, desenvolvendo uma grande energia e audácia, de se manter nele durante um tempo suficientemente longo para conseguir arrastar a massa do povo para a Revolução e reuni-la à volta do pequeno grupo dirigente.
Para isso era preciso, antes de mais nada, a mais estrita centralização ditatorial de todo o poder entre as mãos do novo governo revolucionário.
E que fez a Comuna que, em maioria, se compunha precisamente de blanquistas?
Em todas as suas proclamações aos franceses da província, convidava-os a uma livre federação de todas as comunas francesas com Paris, a uma organização nacional que, pela primeira vez, devia ser efectivamente criada pela própria nação.
Quanto à força repressiva do governo outrora centralizado, o exército, a polícia política, a burocracia, criada por Napoleão em 1798, retomada depois com prontidão por cada novo governo e utilizada por ele contra os seus adversários, era justamente esta força que devia ser destruída por toda a parte, como o fora já em Paris."
"Para evitar esta transformação, inevitável em todos os regimes anteriores, do Estado e dos órgãos do Estado em senhores da sociedade, quando na origem eram seus servidores, a Comuna empregou dois meios infalíveis.
Primeiro, submeteu todos os lugares, da administração, da justiça e do ensino, à escolha dos interessados através de eleição por sufrágio universal e, evidentemente, à revogação, em qualquer momento, por esses mesmos interessados.
E segundo, retribuiu todos os serviços, dos mais baixos aos mais elevados, pelo mesmo salário que recebiam os outros operários. O vencimento mais alto que pagou foi de 6000 francos.
Assim, punha-se termo à caça aos lugares e ao arrivismo, sem falar da decisão suplementar de impor mandatos imperativos aos delegados aos corpos representativos.
Esta destruição do poder de Estado, tal como fora até então, e a sua substituição por um poder novo, verdadeiramente democrático, estão detalhadamente descritas na terceira parte de A Guerra Civil (Karl Marx).
Mas era necessário voltar a referir aqui brevemente alguns dos seus traços, porque, precisamente na Alemanha, a superstição do Estado passou da filosofia para a consciência comum da burguesia e mesmo de muitos operários.
Na concepção dos filósofos, o Estado é "a realização da Ideia" ou o reino de Deus na terra traduzido em linguagem filosófica, o domínio onde a verdade e a justiça eternas se realizam ou devem realizar-se.
Daí esta veneração que se instala tanto mais facilmente quanto, logo desde o berço, fomos habituados a pensar que todos os assuntos e todos os interesses comuns da sociedade inteira não podem ser tratados senão como o foram até aqui, quer dizer, pelo Estado e pelas suas autoridades devidamente estabelecidas.
E julga-se que já se deu um passo prodigiosamente ousado ao libertarmo-nos da fé na monarquia hereditária e ao jurarmos pela república democrática.
Imagem: Na alvorada de 18 de Março (1871), Paris foi despertada por este grito de trovão: VIVE LA COMMUNE!
“A Guerra Civil em França”, Karl Marx. Centelha, Coimbra, 1975.
Hipátia nasceu em Alexandria, Egito, por volta do ano de 370 d. C. Era filha de Theon, um matemático, filósofo e astrónomo conhecido no seu tempo; foi muito influenciada intelectualmente por seu pai, que foi o último diretor do Museu de Alexandria. Educada na escola neoplatônica, também foi líder das crenças neoplatônicas em Alexandria.
Ela nunca se casou, apesar de sua beleza e eloquência. Ela dedicou sua vida ao trabalho científico, declarando-se "casada com a verdade". Hipátia estudou em Atenas, Grécia, e de regresso à sua cidade natal tornou-se professora de Matemática e de Filosofia.
Hipátia é considerada a primeira mulher a ter trabalhos importantes na área das Ciências Exatas e, paralelamente, ter conhecimento em Filosofia e Medicina. Em Matemática, sua pesquisa foi apresentada em numerosos manuscritos, como “Comentários sobre a aritmética de Diofanto”. Cabe observar que Diofanto de Alexandria foi um importante matemático grego do século III a.C., considerado por muitos estudiosos como o "pai da álgebra”. Outra contribuição de Hipátia foi o lançamento de comentários sobre os “Elementos de Euclides”, que os fez juntamente com seu pai, Theon, que era especialista em trabalhos euclidianos. Ela também reescreveu um tratado sobre a obra“As Cônicas” de Apolônio [5]. Suas reinterpretações simplificaram os conceitos de Apolônio, usando uma linguagem mais acessível, tornando-o em um manual fácil de ser seguido pelo leitor interessado.
Infelizmente, muitas das contribuições de Hipátia foram perdidas. Graças a sua correspondência com seu aluno Sinésio de Cirene (mais tarde Bispo de Ptolemais, uma antiga capital da província romana de Cirenaica), conhecemos muitas de suas outras contribuições. Sinésio de Cirene compartilhou um gosto pela Matemática e Astronomia com sua tutora, mas tomou outra direção, tornando-se filósofo e bispo. Sinesio registrou a singularidade de Hipátia como intelectual. Ele afirma sua autoria na construção de um astrolábio, um hidrômetro e um higroscópico.
Hipátia também se destacou por suas habilidades como palestrante e por ser uma seguidora do neopitagorismo e neoplatonismo. Ela se tornou uma eminente professora de Matemática, dando aulas em sua casa a um grupo de aristocratas pagãos e cristãos. Sua inteligência a levou ao cargo de conselheira de Orestes, prefeito do Império Romano do Oriente, e também seu ex-aluno.
A natureza especial de Hipátia, tratando todos os seus alunos igualmente, sendo educada, tolerante e racional, desencadeou uma série de ciúmes que resultaram inimizades. Como pagã, defensora do racionalismo científico grego e de uma figura política influente, Hipátia sofreu uma intensa hostilidade. As acusações contra ela de blasfêmia e sentimentos anti-cristãos, simplesmente porque ela se recusou a trair seus ideais e abandonar o paganismo, levou à uma emboscada, onde foi brutalmente assassinada. Existem diversas versões do seu fim, sendo a mais difundida a de Edward Gibbon na obra O Declínio e a Queda do Império Romano, publicada em seis volumes entre 1776 e 1778. Segundo Gibbon, numa manhã da Quaresma de 415, Hipátia foi atacada na rua quando regressava a casa na sua carruagem. A multidão arrancou-lhe os cabelos e a roupa, depois os braços e as pernas e queimou o que restava do seu corpo. No entanto, Hipátia nunca proclamou sua aversão ao cristianismo. Simplesmente, com sua natureza liberal, ela aceitou todos os alunos, independentemente de suas crenças religiosas.
Hipátia foi um dos últimos intelectuais conhecidos a trabalhar na Biblioteca de Alexandria e a primeira mulher matemática que a história regista. Por isso, a sua morte violenta foi considerada o fim do período antigo da matemática grega. Hipátia foi imortalizada na parede do Museu do Vaticano pelo pintor renascentista Rafael Sanzio, no seu quadro “A escola de Atenas”. Voltaire e Bertrand Russell comentaram com apreço o seu trabalho. Hipátia foi tema de um romance de Charles Kingsley (Hypátia, 1853). Em 2011, o espanhol Alejandro Amenabar realizou um filme, Ágora, sobre a sua vida (https://www.youtube.com/watch?v=OD2VWJ97Fxg).
Referências Bibliográficas:
[1] Dzieslka, Maria de. Hipátia de Alexandria. Editora Relógio d’Água. 1ª Edição. 2009.
[2] Fernandez, José Carlos. Viagem iniciática de Hipátia: Na demanda da alma dos números, Edições Nova Acrópole. 1ª Edição. 2010.
Será aconselhável que um não especialista em assuntos económicos e sociais manifeste pontos de vista sobre o tema “socialismo”? Por várias razões, eu acredito que sim.
Comecemos considerando a questão pelo ponto de vista epistemológico [isto é, que analisa o próprio conhecimento científico]. Poderia parecer que não houvesse diferenças metodológicas essenciais entre a Astronomia e a Ciência da Economia: nos dois campos, os cientistas tentam descobrir leis que sejam aceitáveis de modo generalizado para um determinado grupo de fenômenos, com a finalidade de tornar compreensível a interconexão desses fenômenos do modo mais claro possível.
Na realidade, diferenças metodológicas existem. No campo da Economia, a descoberta de leis gerais é dificultada pela circunstância de que os fenômenos econômicos observáveis são com frequência afetados por muitos fatores que é muito difícil avaliar separadamente.
Além disso, como é bem sabido, a experiência acumulada desde o início do assim chamado período civilizado da história humana tem sido grandemente influenciada e limitada por fatores cuja natureza de nenhum modo é exclusivamente econômica.
Por exemplo, a maioria dos grandes Estados da história deveu sua existência à conquista. Os povos conquistadores estabeleceram a si mesmos, legal e economicamente, como a classe privilegiada do território conquistado; apossaram-se do monopólio da propriedade da terra e designaram uma classe sacerdotal a partir de suas próprias fileiras. Os sacerdotes, no controle da educação, fizeram da divisão da sociedade em classes uma instituição permanente, criando um sistema de valores pelo qual o comportamento social das pessoas passou a ser guiado desde então, em grande medida em nível inconsciente.
Mas a tradição histórica começou ontem, por assim dizer. Em nenhum lugar nós superamos de fato o que Thorstein Veblen chamou de “fase predatória” do desenvolvimento humano. Os fatos econômicos observáveis pertencem a essa fase, e as leis que podemos derivar deles não são aplicáveis a outras fases. Como o verdadeiro propósito do socialismo é precisamente superar a fase predatória do desenvolvimento humano e avançar para além dela, a Ciência Econômica em seu estado atual pode esclarecer bem pouco sobre a sociedade socialista do futuro.
Em segundo lugar, o socialismo se direciona para uma finalidade socioética. A ciência, no entanto, não tem o poder de criar finalidades, e muito menos de instilá-las nos seres humanos; a ciência pode, no máximo, fornecer os meios com que atingir certas finalidades. As finalidades são concebidas por personalidades com ideais éticos elevados – ideais esses que, quando não são natimortos e sim cheios de vida e vigor – são adotados e levados adiante por aquela multitude de seres humanos que, de modo parcialmente inconsciente, terminam por determinar a evolução da sociedade.
Por essas razões, deveríamos nos precaver no sentido de não superestimar a ciência e os métodos científicos quando o que está em questão são problemas humanos - e não deveríamos presumir que somente especialistas têm direito a se manifestar sobre as questões que afetam a organização da sociedade.
Incontáveis vozes vêm afirmando, já desde há algum tempo, que a sociedade humana está passando por uma crise; que sua estabilidade foi gravemente abalada. É característico dessa situação que os indivíduos se sintam indiferentes ou até mesmo hostis ao grupo a que pertencem, seja o pequeno grupo ou ao grupo de maior escala. Permitam-me recordar aqui uma experiência pessoal para ilustrar o que quero dizer: não faz muito, eu debatia com um homem inteligente e de boa disposição sobre a ameaça de mais uma guerra – o que, na minha opinião, poria em sério perigo a existência da humanidade – e observei que somente uma organização supranacional ofereceria proteção contra esse perigo. Nesse ponto o meu visitante me disse, com toda calma e indiferença: “Mas por que você se opõe tão profundamente ao desaparecimento da raça humana?”
Tenho certeza que apenas um século atrás ninguém teria declarado algo desse tipo com toda essa despreocupação. Temos aí uma declaração de um homem que lutou em vão para alcançar um equilíbrio interior e mais ou menos perdeu a esperança de alcançá-lo. É expressão de uma dolorosa solidão e isolamento, de que tanta gente sofre hoje em dia. Qual é a causa? Existe saída?
É fácil levantar essas perguntas, mas é difícil respondê-las com qualquer grau de segurança. No entanto eu preciso tentar, o melhor que puder, embora esteja bem consciente de que nossos sentimentos e aspirações são muitas vezes contraditórios e obscuros, e não podem ser expressos em nenhuma fórmula simples e fácil.
O homem é ao mesmo tempo um ser solitário e um ser social. Como ser solitário, ele tenta proteger sua própria existência e a dos que lhe são mais próximos, satisfazer seus desejos pessoais, desenvolver suas habilidades inatas. Como ser social, busca conquistar o reconhecimento e afeição dos seus companheiros de humanidade, compartilhar de seus prazeres, confortá-los em seus sofrimentos, melhorar suas condições de vida. Somente a existência dessas diferentes aspirações, muitas vezes conflitantes, já responde pelo caráter especial de uma pessoa, e sua combinação específica determina a medida em que o indivíduo consegue, por um lado, alcançar um equilíbrio interior e, por outro lado, consegue contribuir para o bem-estar da sociedade.
É bem possível que a intensidade relativa desses dois impulsos seja, em seu principal, determinada pela hereditariedade – mas a personalidade que termina emergindo é formada em ampla medida pelo ambiente em que acontece de a pessoa se encontrar durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que ela cresce, pela tradição daquela sociedade, e pelo valor que a sociedade atribui a este ou àquele tipo de comportamento.
Para o indivíduo humano, o conceito abstrato “sociedade” significa a soma de suas relações diretas e indiretas com os seus contemporâneos e com todas as pessoas das gerações anteriores. O indivíduo é capaz de pensar, sentir, aspirar e trabalhar por si mesmo; mas [ao mesmo tempo] ele depende tanto da sociedade – em sua existência física, intelectual e emocional – que é impossível pensá-lo ou entendê-lo fora da moldura que é o contexto social. É “a sociedade” o que lhe proporciona comida, roupas, um lar, a ferramentas do seu trabalho, a linguagem, as formas de pensar, e a maior parte do conteúdo do pensamento; a sua vida se faz possível mediante o trabalho e realizações dos muitos milhões, passados e presentes, que estão escondidos por trás da pequena palavra “sociedade”.
É evidente, portanto, que a dependência do indivíduo em relação à sociedade é um fato da natureza que não pode ser abolido – tanto quanto o é no caso das formigas e abelhas. No entanto, enquanto o inteiro processo de vida das formigas e abelhas é determinado nos mínimos detalhes por instintos hereditários rígidos, o padrão social e os inter-relacionamentos dos seres humanos são altamente variáveis e suscetíveis de mudanças. A memória, a capacidade de realizar novas combinações e o dom da comunicação verbal possibilitaram desenvolvimentos, entre os seres humanos, que não são ditados por necessidades biológicas. Tais desenvolvimentos se manifestam em tradições, instituições e organizações; em literatura; em realizações científicas e técnicas; em obras de arte. Isso explica como acontece de o ser humano ser capaz de, em certo sentido, influir em sua vida mediante a sua própria conduta, e de que nesse processo o pensamento e a vontade conscientes consigam desempenhar um papel.
O ser humano adquire ao nascer, através da hereditariedade, uma constituição biológica que precisamos considerar determinada e inalterável, inclusive os impulsos naturais que são característicos da espécie humana. Em acréscimo, ao longo de sua vida ele adquire uma constituição cultural que ele adota da sociedade por meio da comunicação e de muitos outros tipos de influências. É a sua constituição cultural que está sujeita a mudanças com a passagem do tempo, e que determina em vasta medida a relação entre o indivíduo e a sociedade. A antropologia moderna nos ensinou, através da investigação comparativa das culturas chamadas de primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode diferir grandemente, dependendo dos padrões culturais e dos tipos de organização que predominam na sociedade. Os que se empenham em melhorar a condição humana podem fundamentar suas esperanças nisso: seres humanos não estão condenados por sua constituição biológica a aniquilarem uns aos outros, nem a estar à mercê de um destino cruel autoinfligido.
Se nos perguntarmos de que modo a estrutura da sociedade e a atitude cultural do ser humano deveriam ser mudados para tornar a vida humana tão satisfatória quanto possível, deveríamos estar sempre conscientes de que há certas condições que somos incapazes de modificar. Como já foi mencionado, para todos os efeitos práticos a natureza biológica do ser humano não é modificável. Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos últimos séculos criaram condições que estão aqui para ficar. Em populações assentadas com considerável densidade, levando em conta os bens que são indispensáveis para a continuidade de sua existência, tornam-se absolutamente indispensáveis uma extrema divisão de trabalho e um aparato produtivo altamente centralizado. Foi-se para sempre o tempo – que, olhando-se para trás, parece tão idílico – em que indivíduos ou grupos relativamente pequenos podiam ser completamente autossuficientes. Há pouco exagero em dizer que a humanidade já constitui uma comunidade planetária de produção e consumo.
Cheguei agora ao ponto em que posso indicar brevemente o que, para mim, constitui a essência da crise do nosso tempo: refere-se à relação do indivíduo com a sociedade. O indivíduo se tornou mais consciente do que nunca de sua dependência da sociedade - mas sua experiência dessa dependência não é a de um bem positivo, um laço orgânico, uma força protetora, e sim a de uma ameaça aos seus direitos naturais, ou até mesmo à sua existência econômica. Além disso, o indivíduo está posicionado na sociedade de modo tal, que os impulsos egoístas da sua constituição recebem reforço constante, enquanto que os seus impulsos sociais, que por natureza já são mais fracos, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, qualquer que seja sua posição na sociedade, vêm sofrendo esse processo de deterioração. Prisioneiros de seu próprio egoísmo sem saber disso, sentem-se inseguros, sozinhos e privados de todo desfrute da vida que seja inocente, simples, não sofisticado. O ser humano somente pode encontrar sentido na vida, curta e arriscada como é, mediante sua dedicação à sociedade.
A anarquia econômica da sociedade capitalista como existe hoje é, na minha opinião, a verdadeira fonte do mal. Vemos diante de nós uma enorme comunidade de produtores cujos membros se empenham sem cessar em privar uns aos outros dos frutos de seu trabalho coletivo – não por força, mas em inteiro e fiel cumprimento de regras estabelecidas legalmente. A respeito disso, é importante dar-se conta [do papel do fato] de que os meios de produção – quer dizer, tudo o que dá capacidade de produzir bens para os consumidores, bem como bens de capital adicionais – possam ser propriedade privada de indivíduos (e de fato o sejam, em sua maior parte).
Pelo bem da simplicidade, na discussão a seguir chamarei de “trabalhadores” todos os que não têm parte na propriedade dos meios de produção – embora isso não corresponda com exatidão ao uso costumeiro do termo. O proprietário dos meios de produção está em posição de comprar a força de trabalho do trabalhador. Usando os meios de produção, o trabalhador produz novos bens que se tornam propriedade do capitalista. O ponto essencial deste processo é a relação entre o que o trabalhador produz e aquilo que lhe pagam, ambos medidos em termos de valor real. Na medida em que a contratação do trabalho é “livre”, o que o trabalhador recebe não é determinado pelo valor real dos bens que ele produz, e sim por quais são suas necessidade mínimas, bem como pela relação entre a demanda por força de trabalho por parte dos capitalistas e o número de trabalhadores que competem por empregos. É importante entender que nem mesmo na teoria o pagamento do trabalhador é determinado pelo valor do seu produto.
Capital privado tende a se concentrar em poucas mãos, em parte devido à competição entre os capitalistas, em parte porque o desenvolvimento tecnológico e o crescimento da divisão do trabalho estimulam a formação de unidades de produção maiores, em prejuízo das menores. O resultado desses desenvolvimentos é uma oligarquia do capital privado, cujo enorme poder não pode ser efetivamente controlado sequer por uma sociedade política democraticamente organizada.
Isso é assim porque os membros dos corpos legislativos são selecionados por partidos políticos, que são amplamente financiados, ou influenciados de algum outro modo, por capitalistas privados que, para todos os propósitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não protegem de fato e de modo suficiente os interesses dos setores menos privilegiados da população. Além disso, nas condições atuais os capitalistas privados inevitavelmente controlam, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). Torna-se assim extremamente difícil para o cidadão individual, e de fato impossível na maioria dos casos, chegar a conclusões objetivas e fazer uso inteligente dos seus direitos políticos.
A situação predominante em uma economia baseada na propriedade privada de capital caracteriza-se então por dois princípios centrais: primeiro, os meios de produção (capital) são possuídos privadamente, e os proprietários dispõem deles como acham melhor; segundo, a contratação de trabalho é livre [isto é, não regulada]. É claro que não há sociedade capitalista pura nesse sentido. Em especial, é preciso registar que os trabalhadores, através de longas e amargas lutas políticas, conseguiram assegurar uma forma um tanto melhorada de “livre contrato de trabalho” para algumas categorias de trabalhadores. Mas, tomada em seu conjunto, a economia atual não difere muito de um capitalismo “puro”.
A produção é realizada com a finalidade do lucro, não com a do uso. Não existem disposições para garantir que todas as pessoas capazes e dispostas a trabalhar sempre consigam achar emprego; quase sempre existe um “exército de desempregados”. O trabalhador está perpetuamente com medo de perder seu emprego. Devido ao fato de que desempregados e trabalhadores mal pagos não formam um mercado rendoso, a produção de bens de consumo é restrita, o que resulta em grandes privações. O progresso tecnológico resulta com frequência em mais desemprego, em lugar de aliviar a carga de trabalho para todos. O lucro como motivação, em conjunto com a concorrência entre os capitalistas, é responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização do capital, a qual leva a crises cada vez mais graves. A competição irrestrita leva a um gigantesco desperdício de força de trabalho, e também àquela deformação da consciência social dos indivíduos, que eu mencionei anteriormente.
Essa deformação dos indivíduos, eu a considero o pior dos males do capitalismo. Nosso sistema educacional inteiro sofre desse mal. Uma atitude competitiva exagerada é inculcada no estudante, que, como preparação para sua futura carreira, é treinado para idolatrar um sucesso aquisitivo.
Estou convencido de que existe apenas um caminho para eliminar esses graves males, e esse é o estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educacional orientado para objetivos sociais. Em uma economia tal, os meios de produção são propriedade da própria sociedade, e utilizados de modo planejado. Uma economia planejada, que ajusta a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre todos os capazes de trabalhar, e garantiria o sustento de cada homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, além de desenvolver suas próprias habilidades inatas, se empenharia em desenvolver nele um senso de responsabilidade por seus companheiros de humanidade, em lugar da glorificação do poder e do sucesso, como temos na sociedade atual.
Contudo é preciso lembrar que uma economia planejada ainda não é socialismo. Uma economia planejada pode ser acompanhada por uma escravização completa do indivíduo. A realização do socialismo requer a solução de alguns problemas sociopolíticos extremamente difíceis: como é possível, em face da centralização abrangente do poder político e econômico, impedir que a burocracia se torne todo-poderosa e prepotente? Como se podem proteger os direitos do indivíduo e garantir com isso um contrapeso democrático ao poder da burocracia?
A clareza quanto às metas e aos problemas do socialismo é da mais alta significação em nossa era de transição. Como, na conjuntura atual, a discussão livre e sem barreiras destes problemas se tornou um grande tabu, eu considero a fundação desta revista um relevante ato de interesse público.
A Poesia foi, para mim, corso: de quando em vez, fazia abordagens. Claro que trago comigo, como qualquer pirata que se preza, o mapa desse tesouro, onde ninguém o encontrará: na pala do olho direito – com o esquerdo, vi sempre melhor.
Dinis Albano Carneiro Gonçalves (Sebastião Alba)
Braga, 11 de Março de 1940 – Braga, 14 de Outubro de 2000
A 14 de Outubro (e poucos dias depois de ter revisto as primeiras provas desta antologia – Uma Pedra ao Lado da Evidência) morre, vítima de atropelamento (por condutor que se pôs em fuga): permanece sem identificar na morgue do Hospital de São Marcos durante três dias; vai enterrar em Torre de Dona Chama (Trás-os-Montes), pedido há muito dirigido à filha mais nova; a 7 de Outubro, deixa ao antologiador o seguinte bilhete: “Se um dia encontrarem morto ‘o teu irmão Dinis’, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá.” (Selecção, apresentação e notas de Vergílio Alberto Vieira)
[os poetas]
Com as polidas cintilações
das ondas eles enredam o mar
e aspam de brancura o voo das gaivotas
Sua íntima atitude
é a das estátuas por fora
como elas amam sem noções que lhe doam
O céu foi o seu fundo das pupilas
orto da Estrela da Manhã
Mas volvidos são das paisagens rumorosas
onde nem o corpo do vento se suprime.
[a Guerrilheira]
Eis a ocasião em forma de mulher com a ponte do lábio galgando a voz Seus cabelos ondulam por dentro das estrofes
Na mesma noite dividida ao meio como se um lado reflectisse no outro a sombra que na folha me adelgaça os dedos verte ainda alguns versos e pára
Para quê
Pergunta a sucessão dos meus perfis iluminados
pelo volteio das luzes contrárias
E desatam-se das luzes os seus reflexos
a noite desdobar-se em metades imperfeitas
*
Ninguém meu amor
Ninguém meu amor ninguém como nós conhece o sol Podem utilizá-lo nos espelhos apagar com ele os barcos de papel dos nossos lagos podem obrigá-lo a parar à entrada das casas mais baixas podem ainda fazer com que a noite gravite hoje do mesmo lado Mas ninguém meu amor ninguém como nós conhece o sol Até que o sol degole o horizonte em que um a um nos deitam vendando-nos os olhos.
O Ritmo do Presságio
*
Na sua primordial inocência a poesia deixar-me-á da ternura só o que é defensável
e à margem do papel em que escrevi as cidades e os campos através dos quais me acenou
apartará do meu paladar o sabor do sagrado com que ainda a nomeie
já não buscarei nos ensaios que cerco lhe moviam! e nos ideais por que alheada roçagou
que da janela eu não deslinde de um cão em paz a visagem ancestral e a minha emoção seja enfim sedentária
e recém-chegada a noite finde sem dar acordo de si.
*
[Lendo Álvaro de Campos]
A lua dissolve no azul o pigmento de estrelas
Se há em mim alguma correlação entre as qualidades e os defeitos não a acho Se há que se anulem que é como quem diz: que se lixe
Mas a poesia ainda vive
esquimó das minhas esperas árcticas
alvo da curiosidade à minha volta dêem-lhe na giba
Oh Álvaro na concha da minha paciência oceânica.
(“Sebastião Alba, Uma Pedra ao Lado da Evidência”. Campo das Letras, 2000)
O que é o dia da Mulher? É realmente necessário? Será que é uma concessão às mulheres da classe burguesa, às feministas e sufragistas? Será que é nocivo para a unidade do movimento operário? Estas questões ainda se escutam na Rússia, embora já não no estrangeiro. A vida mesma deu uma resposta clara e eloquente a tais perguntas.
O Dia da Mulher é um elo na longa e sólida cadeia da mulher no movimento operário. O exército organizado de mulheres trabalhadoras cresce cada dia. Há vinte anos, as organizações operárias não tinham mais do que grupos dispersos de mulheres nas bases dos partidos operários... Agora os sindicatos ingleses têm mais de 292.000 mulheres sindicadas; na Alemanha som à roda de 200.000 sindicadas e 150.000 no partido operário, na Áustria há 47.000 nos sindicatos e 20.000 no partido. Em toda a parte, em Itália, na Hungria, na Dinamarca, na Suécia, na Noruega e na Suíça, as mulheres da classe operária estão a organizar-se a si próprias. O exército de mulheres socialistas tem perto de um milhão de membros. Uma força poderosa! Uma força com a qual os poderes do mundo devem contar quando se põe sobre a mesa o tema do custo da vida, a segurança da maternidade, o trabalho infantil ou a legislação para proteger os trabalhadores.
Houve um tempo em que os homens trabalhadores pensavam que deveriam carregar eles sós sobre os seus ombros o peso da luta contra o capital, pensavam que eles sós deviam enfrentar-se ao "velho mundo", sem o apoio das suas companheiras. Porém, como as mulheres da classe trabalhadora vão entrar nas fileiras de aqueles que vendem o seu trabalho em troca de um salário, forçadas a entrar no mercado laboral por necessidade, porque o seu marido ou pai estava no desemprego, os trabalhadores vão começar a reparar em que deixar atrás as mulheres entre as fileiras dos "não-conscientes" era danificar a sua causa e evitar que se avançasse. Que nível de consciência possui uma mulher que se senta ao fogão, que não tem direitos na sociedade, no Estado ou na família? Ela não tem ideias próprias! Todo se faz conforme ordena o seu pai ou o marido...
O atraso e a falta de direitos sofridos pelas mulheres, a sua dependência e indiferença não são benefícios para a classe trabalhadora, e de facto são um mal directo para a luta operária. Mas, como entrará a mulher nesta luta, como acordará?
A social-democracia estrangeira não vai encontrar solução correcta imediatamente. As organizações operárias estavam abertas às mulheres, mas só umas poucas entravam. Por quê? Porque a classe trabalhadora, ao começo, não vai dar por si que a mulher trabalhadora é o membro mais degradado, tanto legal quanto socialmente, da classe operária, que ela foi espancada, intimidada, encurralada ao longo dos séculos, e que para estimular a sua mente e o seu coração necessita uma aproximação especial, palavras que ela, como mulher, entenda. Os trabalhadores não se vão dar conta imediatamente de que neste mundo de falta de direitos e de exploração, a mulher está oprimida não só como trabalhadora, mas também como mãe, mulher. Porém, quando membros do partido socialista operário entenderam isto, fizeram sua a luta pela defesa das trabalhadoras como assalariadas, como mães, como mulheres.
Os socialistas em cada país começam a demandar uma protecção especial para o trabalho das mulheres, seguranças para as mães e os seus filhos, direitos políticos para as mulheres e a defesa dos seus interesses.
Quanto mais claramente o partido operário percebia esta dicotomia mulher/trabalhadora, mais ansiosamente as mulheres se uniam ao partido, mais apreciavam o rol do partido como o seu verdadeiro defensor e mais decididamente sentiam que a classe trabalhadora também lutava pelas suas necessidades. As mulheres trabalhadoras, organizadas e conscientes, fizeram muitíssimo para elucidar este objectivo. Agora, o peso do trabalho para atrair as trabalhadoras ao movimento socialista reside nas mesmas trabalhadoras. Os partidos em cada país têm os seus comités de mulheres, com os seus secretariados e bureaux para a mulher. Estes comités de mulheres trabalham na ainda grande população de mulheres não conscientes, levantando a consciência das trabalhadoras em seu redor. Também examinam as demandas e questões que afectam mais directamente à mulher: protecção e provisão para as mães grávidas ou com filhos, legislação do trabalho feminino, campanha contra a prostituição e o trabalho infantil, a demanda de direitos políticos para as mulheres, a campanha contra a suba do custo da vida...
Assim, como membros do partido, as mulheres trabalhadoras lutam pela causa comum da classe, enquanto ao mesmo tempo delineiam e põem em questão aquelas necessidades e as suas demandas que lhes dizem respeito mais directamente como mulheres, como donas de casa e como mães. O partido apoia estas demandas e luta por elas. Estas necessidades das mulheres trabalhadoras som parte da causa dos trabalhadores como classe.
No dia da mulher as mulheres organizadas manifestam-se contra a sua falta de direitos. Mas alguns dizem, por quê esta separação das lutas das mulheres? Por quê há um dia da mulher, panfletos especiais para trabalhadoras, conferências e comício? Não é, enfim, uma concessão às feministas e sufragistas burguesas? Só aqueles que não compreendem a diferença radical entre o movimento das mulheres socialistas e as sufragistas burguesas podem pensar desta maneira.
Qual o objectivo das feministas burguesas? Conseguir os mesmos avanços, o mesmo poder, os mesmos direitos na sociedade capitalista que possuem agora os seus maridos, pais e irmãos. Qual o objectivo das operárias socialistas? Abolir todo o tipo de privilégios que derivem do nascimento ou da riqueza. À mulher operária é-lhe indiferente se o seu patrão é um homem ou uma mulher.
As feministas burguesas demandam a igualdade de direitos sempre e em qualquer lugar. As mulheres trabalhadoras respondam: demandamos direitos para todos os cidadãos, homens e mulheres, mas nós não só somos mulheres e trabalhadoras, também somos mães. E como mães, como mulheres que teremos filhos no futuro, demandamos uma atenção especial do governo, protecção especial do Estado e da sociedade.
As feministas burguesas estão lutando para conseguir direitos políticos: também aqui os nossos caminhos se separam. Para as mulheres burguesas, os direitos políticos são simplesmente um meio para conseguir os seus objectivos mais comodamente e com mais segurança neste mundo baseado na exploração dos trabalhadores. Para as mulheres operárias, os direitos políticos são um passo no caminho empedrado e difícil que leva ao desejado reino do trabalho.
Os caminhos seguidos pelas mulheres trabalhadoras e as sufragistas burguesas separaram-se há tempo. Há uma grande diferença entre os seus objectivos. Há também uma grande contradição entre os interesses de uma mulher operária e as donas proprietárias, entre a criada e a senhora... portanto, os trabalhadores não devem temer que haja um dia separado e assinalado como o Dia da Mulher, nem que haja conferências especiais e panfletos ou imprensa especial para as mulheres.
Cada distinção especial para as mulheres no trabalho de uma organização operária é uma forma de elevar a consciência das trabalhadoras e aproximá-las das fileiras de aqueles que estão a lutar por um futuro melhor. O Dia da Mulher e o lento, meticuloso trabalho feito para elevar a auto-consciência da mulher trabalhadora está servindo à causa, não da divisão, mas da união da classe trabalhadora.
Deixai que um sentimento alegra de servir à causa comum da classe trabalhadora e de luta simultaneamente pela emancipação feminina inspire os trabalhadores a unirem-se à celebração do Dia da Mulher.