Hoje Bradley Manning, um denunciante [de actos criminosos], foi culpado por um tribunal militar em Fort Meade por 19 transgressões relativas ao fornecimento de informação à imprensa, incluindo cinco alegações de "espionagem". Ele agora enfrenta uma sentença máxima de 136 anos.
A acusação de "ajudar o inimigo" foi abandonada. Ela apenas foi incluída, parece, para fazer com que chamar o jornalismo de "espionagem" parecesse razoável. Não é.
As alegadas revelações de Bradley Manning mostraram crimes de guerra, atearam revoluções e induziram a reformas democráticas. Ele é a quinta-essência do denunciante.
Esta é a primeira vez que se acusa de espionagem a um denunciante. Trata-se de um perigoso precedente e um exemplo de extremismo em segurança nacional. Trata-se de um julgamento de vistas curtas que não pode ser tolerado e deve ser revertido. Nunca se pode considerar que transmitir informação verdadeira para o público seja "espionagem".
O presidente Obama iniciou mais processos de espionagem contra denunciantes e editores de publicações do que todos os presidentes anteriores somados.
Em 2008 o candidato presidencial Barack Obama concorria com uma plataforma política que louvava a denúncia como um acto de coragem e patriotismo. Aquela plataforma foi completamente traída. O seu documento de campanha descrevia os denunciantes como vigilantes que alertam (watchdogs) quando o governo abusa da sua autoridade. Isto foi removido da internet na semana passada.
Ao longo do processo judicial tem havido uma ausência notável: a ausência de qualquer vítima. O processo não apresenta prova de que – ou mesma uma afirmação de que – uma única pessoa tenha sido prejudicada devido às revelações de Bradley Manning. O governo nunca afirmou que o Sr. Manning estava a trabalhar para uma potência estrangeira.
A única "vítima" foi o orgulho ferido do governo estado-unidense, mas o abuso deste jovem nunca foi o meio de restaurá-lo. Ao invés, o abuso de Bradley Manning deixou o mundo com um sentimento de desgosto ao ver quão baixo caiu a administração Obama. Isso não é um sinal de força e sim de fraqueza.
O juiz permitiu que a acusação alterasse significativamente as acusações depois de a defesa e a acusação terem preparado seus casos, autorizou 141 testemunhas e extensos testemunhos secretos. O governo manteve Bradley Manning numa jaula, retirou-lhe as roupas e manteve-o nu e isolado a fim de quebrá-lo, um acto formalmente condenado pelo Inspector-Geral das Nações Unidas como tortura. Isto nunca foi um julgamento justo.
A administração Obama tem estado a escavar liberdades democráticas nos Estados Unidos. Com a sentença de hoje, Obama cortou muito mais. A administração está concentrada em impedir e silenciar denunciantes, concentrada no enfraquecimento da liberdade de imprensa.
A primeira emenda [da Constituição] declara que "O Congresso não fará qualquer lei... restringindo a liberdade de discurso ou de imprensa". Será que Barack Obama não entendeu a parte do "não"?
Com o título: 'Diário da Guerra no Afeganistão', o site wikileaks.org publicou no domingo, 25 de Julho, mais de 91 mil relatórios que cobrem a guerra no Afeganistão entre os anos de 2004-2010. O arquivo pode ser acessado na página especial: http://wardiary.wikileaks.org/.
"Os relatórios, embora escritos por soldados e oficiais da inteligência, descrevem principalmente acções militares letais envolvendo o exército dos Estados Unidos, também inclui informações de inteligência, relatórios de encontros com personalidades políticas e outros detalhes relacionados.", diz a nota no site. Eles também avisam que há mais 15.000 relatórios que estão sendo analisados no momento e que serão publicados em breve.
Até agora, esse é o relato mais completo que se pode obter sobre a guerra no Afeganistão. São cerca de 140 incidentes com milhares de mortes de civis inocentes. Numa rápida análise dos documentos já é possível identificar casos onde civis foram mortos e o caso mantido em segredo. Por exemplo, em Junho de 2007, numa operação do comando Task Force 373 para capturar/matar um líder do Taliban, o documento classificado como 'secreto' relata que 7 crianças foram mortas nesta operação.
Agora essa informação está livre e na internet, são mais de 200.000 página disponíveis para qualquer pessoa pesquisar e aprender a verdade sobre a guerra no Afeganistão. O jornal The Guardian, criou uma página na internet com várias formas para visualizar os dados dos mais de 91 mil registros publicados. Há um mapa interativo que você pode visualizar o local onde cada incidente ocorreu. Na pagina especial do site WikiLeaks há várias formas de você pesquisar os dados, por tipo de relatório, categoria, gravidade (medida pela quantidade de mortos), data, região e afiliação.
Mais uma vez o site WikiLeaks prova que sua existência é de extrema importância para a população mundial, para que essa tome conhecimento de crimes como estes que muitas vezes não são noticiados nos grandes meios. É provável que se não fosse a existência de um lugar como a WikiLeaks na internet, que proporcione uma infraestruturas para aqueles que querem denunciar tais crimes, demoraríamos décadas para descobrir a verdade sobre as guerras no Afeganistão e no Iraque e sobre outros casos também.
Rosario, dinamitera, sobre tu mano bonita celaba la dinamita sus atributos de fiera. Nadie al mirarla creyera que habia en su corazón una desesperación de cristales, de metralla ansiosa de una batalla, sedienta de una explosión.
Era tu mano derecha, capaz de fundir leones, la flor de las municiones y el anhelo de la mecha. Rosário, buena cosecha, alta como un campanario, sembrabas al adversário de dinamita furiosa y era tu mano una rosa enfurecida, Rosário.
Buitrago ha sido testigo de la condición de rayo de las hazafias que callo y de la mano que digo. Bien conoció el enemigo la mano de esta doncella, que hoy no es mano porque de ella, que ni un solo dedo agita, se prendió la dinamita y la convirtió en estrella!
Rosário, dinamitera, puedes ser varón y eres la nata de las mujeres, la espuma de la trinchera. Digna como una bandera de triunfos y resplandores, dinamiteros pastores, vedla agitando su aliento y dad las bombas ai viento del alma de los traidores.
Miguel Hernández
Não é «alta como um campanário», mas da manga direita do vestido emerge um coto, o da mão que se «transformou em estrela»! Esta mulher passou a maior parte do seu tempo na Guerra Civil no mítico Quinto Regimento, pertencendo à divisão do Campesino .
Aos 17 anos, Rosário era a única mulher da sua unidade e na trincheira cumpria os seus deveres de soldado da Segunda República Espanhola. Estava ali, de espingarda em punho, com o mesmo espírito com que o pai, em Sudrés Sanchez, Villarejo de Sabanés, nos arredores de Madrid, arrancava as placas toponímicas que exaltavam quem não representasse o espírito do povo. «Mas porque é que este gajo está aqui?» resmungava ele.
Um dia, nos finais do ano de 1935, autorizada pelos pais, Rosário foi, da sua aldeia para a capital, viver em casa de uma família amiga. Queria aproveitar o Curso de Corte e Confecção que era ministrado gratuitamente no Círculo Cultural Aida Lafuente, organizado pelas Juventudes Socialistas Unificadas.
«Cortávamos em papel seda e as professores eram profissionais. Sabe que ainda vive em Barcelona uma delas?»
Sorri continuamente e, daí a pouco, conta que no 18 de Julho, apesar da sublevação ser conhecida, apresentou-se no curso, como se nada tivesse acontecido. E na sala onde as raparigas tinham as suas aulas compareceu um jovem das Milícias Operárias a apelar para que quem pudesse fosse para a Frente. E havia uma frente ali nos arredores de Madrid.
«E as raparigas também podem ir?»
«Sim, podem.»
«Então aponta-me.» E lá foi. No dia seguinte, logo às oito da manhã, cinco camiões e autocarros cheios de gente de todas as idades, entusiasmados, a caminho da frente. Entretanto, haviam passado pelo Quartel da Montanha, no centro da capital, a recolher armamento. Eram todos jovens e cantavam hinos revolucionários. Rosário não era, como não se tomou, militarista, mas o seu sentido cívico estimulou-a para a única atitude possível. É que imediatamente se sentiu responsável pelo que poderia acontecer se os sublevados fascistas levassem a sua adiante. «Estava convencida de que se não se travavam os franquistas ficaríamos sujeitos a uma ditadura e seríamos nós, os trabalhadores, que passaríamos pior».
Recorda Rosário que durante a viagem, um jovem lhe perguntou o nome, mas logo a seguir quis saber se se aborrecia que lhe chamasse apenas Chacha. Não havia outra moça naquele transporte e Chacha, afinal, era o diminutivo de muchacha, rapariga. E esse foi o seu nome de guerra até que ganhou direito a que lhe chamassem dinamitera.
«Afinal, eu era ali a única rapariga. Ao meu lado, os rapazes mais novos diziam: Vamos lá depressa que se em casa dão pela minha falta, não me deixam ir!»
Quando chegaram aos arredores de Madrid, em Buitrago de Lozoya, apearam-se os jovens e, tal como a todos, a Rosário deram-lhe uma espingarda, cartucheiras, um prato, uma colher, uma manta, fato-macaco, um barrete.
«Recebíamos aquilo, estávamos muito contentes de irmos para a Frente mas, na verdade, não sabíamos bem ao que íamos! Ah, e também ninguém sabia nada de armas... Era uma ilusão ir defender a República. Depois tivemos quem nos desse aulas de política e nos ensinasse a disparar. E não tardou que fossemos todos para a Frente, para o fogo!»
E essa primeira frente em que teve o baptismo do fogo foi na chamada Pena del Alemán. E Rosário Sánchez recorda as palavras do seu instrutor de arma:
«Para aprender a disparar bastam três minutos. Toda a gente cai de costas quando dispara a primeira vez, depois já está.»
«Ferimentos?»
«A única vez foi quando fiquei sem a mão.»
«E o Campesino , o seu comandante, como era?»
«Era da Extremadura, muito valente, muito bom homem, muito de esquerdas e muito boa pessoa. Bem, isto apesar do que dizem... Na verdade, a Direita sempre tentou desprestigiá-lo...»
«No próprio PCE, de que ele era militante, a partir de certa altura, diziam dele cobras e lagartos...»
«Isso foi porque ele se demarcou de Estaline!»
E, por fim, a pergunta:
«Rosario, Dinamitera , porquê?»
«Ah, porque na unidade me nomearam a mim e a mais sete ou oito camaradas para dinamiteiros.»
«E o que faziam?»
«Bombas, claro. E atirávamos essas bombas ao inimigo! É que não tínhamos espingardas para toda a gente. Por exemplo, estive muito tempo a disparar com um mosquetão de cavalaria, que pesava sete quilos! Tínhamos uns quantos, que apareceram numa dependência do Quartel da Montanha. E em dada altura, um capitão asturiano de Sarna de Langreo, Emilio Gonzalez, que fora mineiro, disse ao Campesino que se os milicianos comessem leite condensado poderíamos fazer umas bombas e atirá-las. Não pareceu mal a ideia e logo na manhã do dia seguinte o pequeno almoço foi leite condensado com água e as latas aproveitadas para fabricarmos as bombas tal como nos ensinou esse capitão. Bem, nós preparávamos o explosivo e ele colocava, com os dentes!, a mecha e o fulminante. Poderia ter-lhe voado a cabeça em qualquer momento, mas tudo foi correndo bem. E, depois, nós, os dinamiteiros, atirávamos aquelas bombas na primeira linha de fogo.»
«Medo, alguma vez o sentiu?»
«Claro, mas só quando fazia de sentinela. Nas noites de lua, era tudo sombras ameaçadoras. E nas outras, é verdade que não se via nada! Mas nas sombras há vozes, quebram-se ramos e o ar também faz barulho, vê-se inimigos por toda a parte! Mas ninguém se recusava. Olhe, havia entre nós apenas um relógio de pulso que andava de mão em mão. As mais perigosas vigias eram as da meia-noite junto da linha da Frente.»
«E como ficou sem a mão?»
«Com uma bomba, evidentemente. Uma das vezes, mas em manobras, ao fazermos uma descarga cerrada, a que mais medo metia ao inimigo, eu era a última do grupo, houve uma hesitação e lá foi. Levaram-me para um hospital em Buitrago. Eu estava lá internada quando o filósofo José Ortega Y Gasset, que andava a visitar as linhas, soube que uma rapariga combatente ficara sem uma mão e foi-me ver. Os médicos estavam admirados de o terem ali! Perguntou-me quantos anos tinha e respondi-lhe que dezassete. Quis também saber se os meus pais já sabiam e eu disse-lhe que não, nem queria que eles soubessem. É curioso porque foi ele próprio que deu a notícia do acidente aos meus pais. – Conta-se que o pai, serenamente comentou: «Tenho cinco filhos e se cada um perder a mão pelo que esta a perdeu, bem perdidas estavam!» – E no dia seguinte voltou ao hospital a levar-me uma caixa de bombons e um frasco de água de colónia. Eu não queria aceitar nada. Porém, ele insistiu que aceitasse alguma coisa. E então eu pedi-lhe uma pulseirinha feita de balas como a que usava um que vinha com ele e parecia ser seu secretário...»
Passado pouco tempo, Rosário Sánchez abandonou o hospital e, embora pudesse regressar a sua casa dado ter ficado mutilada, a verdade é que se apresentou no Quinto Regimento, «pronta a fazer o que fosse preciso». O acidente registou-se em Buitrago e, segundo soubemos por outras fontes, a hesitação fatal para a mão de Rosário deveu-se ao facto desta querer dar tempo a que os seus camaradas se conseguissem pôr a salvo antes que a bomba estourasse. Só que mal teve tempo de a largar.
«Fui integrada como telefonista e depois passei a encarregar-me de uma unidade para feridos de guerra convalescentes, «El Hogar del Soldado», em Fresno de Torote.»
Fresno de Torote situa-se a 36 quilómetros de Madrid. A propósito, o coronel Pedro Mateo Merino, a cuja amizade devo o contacto de Rosário, no seu livro de memórias Por vuestra libertad y la nuestra (1986) descreve uma visita que então ali e fez:
...em Fresno de Torote, onde se encontrava o hospital de recuperação, visitámos os feridos convalescentes da brigada, entre eles muitos do quarto batalhão. Alojados no antigo palácio do marquês, desfrutavam de excelentes condições para o seu restabelecimento, especialmente no que se refere à higiene, à alimentação e à assistência médica. A directora do Centro era Rosário Sánchez Mora, La Chacha, uma jovem heróica, veterana lutadora de Somosierra, inválida de guerra, uma mulher cheia de coragem e inteireza, que havia sabido criar uma instituição modelo ao serviço dos combatentes. Depois regressaria à Frente, como telefonista, e responsável do correio de campanha divisionária. Dela fala Miguel Hernández no seu famoso poema Rosario, La Dinamitera.
Conforme refere o coronel Mateo Merino, Rosário passou a encarregar-se da distribuição do correio porque esse serviço estava um caos e era preciso resolvê-lo porque dele dependia em boa parte a moral dos combatentes, tanto mais que se travava a batalha de Brunete. Deram-lhe o posto de sargento.
«Tínhamos tropas em Quijorne e em Brunete e era preciso resolver...»
«Receou o serviço?»
«Não, nada. Mas nunca pensei que fosse tão perigoso! Eram duas enormes sacas de correio. Levava-as numa furgoneta preta de sete lugares. Ia eu e o motorista, além de um outro camarada, o Fita, muito culto, que só recebia as quotas partidárias. Diariamente saíamos às oito da manhã do nº l0 do Paseo del Prado, pela estrada de Fuencarral, atravessávamos EI Pardo e lá íamos até Quijorna. Aí encontrava-me com os carteiros das brigadas e entregávamos a cada um a saca de correspondência que lhe cabia, devidamente organizadas pelas nossas camaradas de Madrid. Uma vez um caça atacou-nos e fugimos os três da furgoneta. Os outros dois abrigaram-se logo e chamaram-me, mas eu seguia a pé ao longo de uma eira. Cuidava escapar melhor na vertical do que deitada. Mas o caça baixou, sempre a disparar, e acabei por me atirar para o abrigo deles, que estavam cobertos com uma manta. E ali estive até que o avião se afastou. Então tirei a manta de cima de nós e comecei a falar-lhes: Vamos, rapazes! E, de repente, apercebo-me que eram ambos cadáveres!»
(…)
No nº 39 do jornal de trincheiras Ayuda , datado de 23 de Janeiro de 1937, o poeta Miguel Hernández escreve:
Entre a dúzia de mulheres (algumas mais há) que leva a Brigada (a la Brigada Móvel de Choque, do Quinto Regimento, comandada por Valentín González, El Campesino) nas suas filas, destacam-se Rosário e Felisa. As duas são raparigas de dezoito anos: aquela, morena de olhos negros, e esta morena de olhos transparentes. Rosário tem um temperamento fogoso que se desafogou no Guadarrama fazendo bombas e lançando-as contra o inimigo. Envergonha-se que muitas mulheres vão presumir e a namoriscar às trincheiras. A dinamite comeu-lhe a mão direita, e ela diz que ainda lhe tem a esquerda para continuar a fazer bombas, trabalho que aprendeu com um mineiro asturiano, que deu a vida pelo povo nos barrancos da serra. Não pode estar quieta, inactiva. É mais útil com a única mão que lhe ficou do que muitos homens com duas e uma espingarda. Discute com o Campesino porque ele não a deixa aproximar-se das trincheiras, onde ela queria estar metida a todas as horas. Dá-me cá uma raiva não ser homem! – disse-me com a sua sinceridade de camponesa pura. E vi-a mais mulher do que nunca.
A cada 18 de Julho as memórias agitam-se de novo. O tempo não lavou ainda o horror, a raiva e os silêncios doridos. Setenta anos depois, a Guerra Civil de Espanha continua a alimentar polémicas e paixões.
Este ano o aniversário do Alzamiento do general Franco contra a República espanhola assume um significado particular. Não por se tratar de uma data redonda, mas porque Espanha deu finalmente um passo há muito adiado para romper o silêncio e enfrentar as chagas ainda mal saradas do conflito que ensanguentou o país entre 1936 e 1939.
O governo de Madrid aprovou em Junho deste ano a Lei da Memória Histórica – “Lei de reconhecimento e extensão dos direitos das vítimas da Guerra Civil e da ditadura”, na versão definitiva – um documento longamente aguardado, e que se propõe pôr finalmente termo àquilo que muitos denunciam como uma “conspiração do silêncio” sobre os dramas da Guerra Civil e da ditadura franquista.
A transição em Espanha – o período iniciado em 1975 com a morte de Franco, e concluído com a aprovação da Constituição em 1978 –, apontado como um exemplo pelos historiadores, teve como preço o silêncio sobre a Guerra Civil e a longa ditadura do caudilho. O risco de despertar os fantasmas do passado e reacender velhos ódios era demasiado elevado. A democracia espanhola optou por enterrar o passado e aprovou leis destinadas a amnistiar os responsáveis da ditadura.
O silêncio dos vencidos não impediu os protestos e as manifestações da direita e da extrema-direita, que reivindicava ruidosamente a herança de Primo de Rivera e Francisco Franco, nem a tejerada de 23 de Fevereiro de 1981. A democracia acomodou-se mesmo a conviver com a memória da repressão e da ditadura. Os nomes e os símbolos dos vencedores de 1939 continuavam a ornamentar ruas e praças públicas e placas comemorativas nas igrejas.
Nos últimos anos, os filhos e netos das vítimas do franquismo decidiram que era tempo de romper o pacto de silêncio. Mobilizaram-se em várias iniciativas cívicas para “recuperar a memória” e exigir o apuramento da verdade e a reabilitação das vítimas da Guerra Civil e da longa tirania do generalíssimo.
JUSTIÇA E RECONCILIAÇÃO
O governo socialista de José Luis Zapatero decidiu-se enfim a assumir o risco de arriscar abrir a “caixa de Pandora”. A Lei da Memória Histórica propõe-se «fechar feridas ainda abertas nos espanhóis e dar satisfação aos cidadãos que sofreram […] as consequências da tragédia da Guerra Civil ou da repressão da ditadura». A verdade e a justiça serão afinal a condição da reconciliação e um sinal de maturidade da democracia.
O documento aprova uma série de medidas visando a reabilitação de todas as vítimas da Guerra Civil, dos dois lados do conflito, e da ditadura do generalíssimo, reconhecendo a injustiça das condenações, das prisões e de todo o cortejo de violências que marcaram a guerra e os anos dramáticos que se seguiram.
A administração pública espanhola será chamada a cooperar nos esforços de localização dos restos de muitas vítimas desaparecidas sem deixar rasto, através da busca em cemitérios e da abertura de valas comuns para onde foram atirados os cadáveres de antigos combatentes ou dos milhares de pessoas fuziladas sumariamente nas prisões de Madrid ou condenadas em tribunais militares instituídos ad hoc pelos sequazes do caudilho. A reabilitação individual das vítimas será decidida caso a caso por um Conselho de Notáveis composto por cinco personalidades eleitas pelo Congresso.
As disposições da lei prevêem também que todos os símbolos que exaltam ainda a Guerra Civil – estátuas, insígnias, placas comemorativas – deverão ser retirados do espaço público, ameaçando assim numerosos monumentos ao franquismo, e em particular o controverso Valle de los Caídos, local de culto dos nacionalistas.
A Lei da Memória Histórica foi finalmente aprovada pelas Cortes em Abril último, ao cabo de ano e meio de preparação, e depois de um longo debate e de numerosas emendas e reformulações – ao ponto de a esquerda parlamentar, a quem se deve a iniciativa, não se reconhecer na versão final do documento. Os cuidados postos na elaboração do documento não lograram impedir uma série de críticas e resistências à esquerda e à direita.
O líder do Partido Popular, Mariano Rajoy, protestou contra a aprovação da lei e denunciou como um «erro» a reabertura de questões sensíveis e capazes de reacender tensões e conflitos. À esquerda a lei foi acolhida com decepção. A Izquierda Unida considerou-a «insuficiente», a Esquerra Republicana de Catalunya chamou-lhe «ópera bufa», e as diversas associações constituídas para defesa das vítimas do franquismo não escondem a sua desilusão.
SILÊNCIOS PERSISTENTES
As medidas aprovadas reconhecem a ilegitimidade das condenações pronunciadas pelos tribunais franquistas, mas não vão ao ponto de anular formalmente as sentenças dos tribunais e conselhos de guerra franquistas, como muitos exigiam.
A Associação para a Recuperação da Memória Histórica considera vergonhoso que o Estado não assuma inteiramente as suas obrigações, limitando-se a facilitar a acção de particulares em questões como a exumação dos cadáveres dos desaparecidos. A lei limita-se a recomendar – não a impor – a retirada dos símbolos públicos comemorativos da vitória dos nacionalistas de Franco.
A Amnistia Internacional, que tem vindo a promover em Espanha uma campanha sob o lema “Pôr fim ao silêncio e à injustiça”, considera que as medidas aprovadas não vão suficientemente longe para «salvaguardar as normas internacionais de direitos humanos».
A questão prende-se uma vez mais com a interminável controvérsia em torno da responsabilidade que cabe aos dois lados nos crimes perpetrados durante a Guerra Civil de Espanha. Ambos os lados se entregaram a vinganças e ajustes de contas sangrentos. Mas, pelo menos durante os anos que se seguiram, a repressão foi monopólio dos franquistas. O triunfo militar dos nacionalistas inaugurou uma era de terror que fez 200.000 vítimas e que se arrastou durante anos depois de terminada a guerra.
A MEMÓRIA DO SÉCULO
A Guerra Civil de Espanha foi um momento fundador na história do século findo. Foi ali, nas trincheiras de Espanha, que se ensaiaram as manobras políticas e diplomáticas e as estratégias militares que conduziram à Segunda Guerra Mundial. Como se o confronto político e ideológico e as paixões que polarizaram a Europa e o Mundo na época tivessem escolhido o conflito espanhol para um ajuste final…
Quando, a 18 de Junho de 1936, o general Francisco Bahamondes Franco proclama a insurreição contra a República em Melilla, as chancelarias dão o alarme, pressentindo que os destinos da paz e da guerra no Velho Continente poderão decidir-se ali, nas terras de Espanha. Uma gigantesca ponte aérea de Junkers alemães transporta tropas de Franco do Marrocos espanhol para o continente.
As diplomacias mobilizam-se para impedir o alastramento do conflito. Em Setembro é criado um Comité de Não-Intervenção constituído pela França, Alemanha, Itália, União Soviética, Reino Unido e Portugal para velar pela neutralidade das potências, estabelecer um embargo à venda de armas aos dois contendores e proibir a participação de países estrangeiros no conflito.
Mas a internacionalização da Guerra de Espanha era já intravável. As potências do Eixo tinham já unidades militares no terreno. O conflito espanhol serviu a Hitler de laboratório para as novas armas e doutrinas que o Terceiro Reich iria pôr em prática na Segunda Guerra Mundial. A “Legião Condor” testa em Espanha as tácticas da Blitzkrieg . Guernica e Madrid serviram de banco de ensaio aos Heinkel e aos Junker 87 “Stuka”.
Em Portugal, o Estado Novo sente que é o seu próprio destino que está em jogo no conflito. Salazar presta um importante apoio político, diplomático e financeiro aos insurrectos. Jorge Botelho Moniz mobiliza os microfones do Rádio Clube Português ao serviço da propaganda nacionalista e organiza grupos de voluntários – os famosos “Viriatos” – para combaterem em Espanha.
OS EQUÍVOCOS DA NÃO-INTERVENÇÃO
É pela costa e pelo território português que transita parte das armas fornecidas pela Alemanha nazi e pela Itália fascista às forças de Franco. A retaguarda portuguesa é vital para a conquista de Badajoz, em Agosto de 1936 – vitória decisiva para o avanço dos insurrectos e para o cerco a Madrid e à República.
A União Soviética mobiliza-se por sua vez para apoiar o lado republicano, enviando conselheiros militares com todo o tipo de equipamento militar e organizando o recrutamento de voluntários para combater em Espanha através do Komintern.
O conflito de Espinha contagia o Mundo inteiro. Em França e Inglaterra intelectuais mobilizam-se perante a passividade dos governos. André Malraux, Ernest Hemingway, George Orwell, Stephen Spender e H. W. Auden e outros artistas e intelectuais acorrem a Espanha. As Brigadas Internacionais trazem a Espanha dezenas de milhares de homens oriundos de mais de 40 países – de toda a Europa, dos Estados Unidos, do Canadá, da Austrália… – para defenderem a República.
As esperanças republicanas de que as potências ocidentais acabariam por despertar para a ameaça nazi e fascista esgotam-se. A política de não-intervenção deixa as mãos livres à Alemanha e à Itália. O apoio de Hitler a Franco será decisivo nos momentos cruciais da batalha, em particular com a contra-ofensiva do Ebro, no Verão de 1938 – o último grande esforço da República para inverter o curso da guerra.
Na realidade, várias figuras do governo de Londres nunca esconderam que preferiam claramente uma vitória dos nacionalistas. A atitude das potências ocidentais de “apaziguamento” de Hitler levará rapidamente à capitulação de Munique…
Tudo isso deixará marcas nas memórias – em Espanha, como por toda a Europa, e em particular em Portugal. A sangrenta cruzada de Franco contra os ateus, ímpios, separatistas e rojos e a cumplicidade de Salazar serão recompensadas quando, no final da Segunda Guerra, e contrariando as esperanças das oposições, as democracias ocidentais protegem os regimes ditatoriais ibéricos em nome da resistência ao comunismo.
PANFLETOS E MEMÓRIAS
À polémica histórica e política junta-se a dimensão mítica. Trata-se de um dos raros conflitos em que se combateu verdadeiramente por ideias. Em Espanha – como por todo o mundo – o conflito de 1936 continua a alimentar debates apaixonados.
A bibliografia dedicada à Guerra Civil é virtualmente inesgotável, e enriquece-se continuamente com novos títulos. O 70.º aniversário do início do Alzamiento inspirou novos trabalhos ou o relançamento de títulos anteriores sobre o conflito que ensanguentou Espanha entre 1936 e 1939.
O mercado editorial português não podia ficar indiferente à data, assinalada com o lançamento ou a reedição de alguns títulos dedicados ao conflito: A Guerra Civil de Espanha , de Paul Preston, lançado pela Ulisseia; e Breve História da Guerra Civil de Espanha , de Helen Graham, com a chancela da Tinta da China. Trata-se de duas obras de síntese, assinadas ambas por nomes com créditos firmados na historiografia da Guerra Civil de Espanha.
A Guerra Civil de Espanha, a União Soviética e o Comunismo , de Stanley G. Payne, outro historiador de referência na matéria, aborda a problemática particularmente controversa do papel da União Soviética no conflito e dos choques ideológicos que suscitou no campo republicano, gerando sérias resistências, nomeadamente entre as correntes trotskistas.
Assinale-se enfim a reedição da obra de Varela Gomes – Guerra de Espanha 70 anos depois – Achegas ao Redor da Participação Portuguesa , que regressa ao mercado vinte anos depois da primeira edição, agora com a chancela das Edições Fim de Século.
O autor, figura grada da resistência ao regime salazarista, um dos líderes da Revolta de Beja de 1962 e figura destacada no PREC, assume abertamente «partido pelo campo republicano, pelo campo da revolução e do socialismo» e reivindica para o seu trabalho a condição de «panfleto», mais do que de «manual de divulgação histórica». O livro é no fundamental dedicado à memória dos portugueses que se mobilizaram para defender a República espanhola, quer alistando-se como combatentes nas fileiras republicanas, quer empenhando-se em Portugal na resistência ao regime salazarista – outra frente do mesmo combate, afinal.
«PERMANENTE ACTUALIDADE»
O empenhamento português, de um e outro lado, na Guerra Civil de Espanha, constitui um capítulo crucial na evolução do país e marca ainda muitas memórias. O triunfo de Franco representou igualmente uma vitória para Salazar, desempenhando um papel crucial na consagração definitiva do Estado Novo e no esmagamento de quantos lhe resistiam ainda.
Varela Gomes considera que o processo revolucionário e a guerra que abalaram Espanha é ainda hoje («tal como a Revolução portuguesa de 1974-1975») tema de «permanente actualidade» e que continua a provocar «empenhamento e paixão» – em Espanha, em Portugal e por todo o mundo.
A acesa polémica a que se tem assistido em Espanha e as memórias azedas que afloraram nos últimos meses as páginas dos jornais mostram bem o peso que o conflito de 1936-39 tem ainda em muitas memórias. Em Espanha, há mesmo quem recorde o clima de medo vivido durante muitos anos no país e quem tema o regresso de um clima de vingança e de ajuste de contas.
É certo que as gerações mais marcadas pela memória da Guerra Civil e pelos anos dramáticos que se seguiram vão desaparecendo. Mas a memória desses anos de fogo e de sangue continuam a estigmatizar Espanha. A memória histórica é politicamente delicada. Daí a extrema sensibilidade da nova lei e as críticas que provoca.
A herança franquista pesa ainda em sectores da direita espanhola – como bem o recordam as manifestações que continuam a assinalar a vitória nacionalista de 1939. E as paixões que marcaram a guerra continuam presentes na agenda política.
Os sonhos de emancipação do País Basco ou da Catalunha estiveram sempre presentes, a par de projectos políticos e paixões ideológicas em choque, na batalha entre republicanos e nacionalistas. A questão assume de novo uma actualidade escaldante em Espanha, e as memórias da Guerra Civil continuam muito vincadas nessa matéria.
Nem a erosão do tempo nem a dolorosa catarse a que Espanha parece finalmente decidida lograrão assim saciar as paixões e sarar de vez as chagas do conflito de 1936-1939. A Lei da Memória Histórica promete ainda alimentar muita controvérsia.
(Publicado em Le Monde diplomatique – edição portuguesa . Dezembro de 2006
Imagem de destaque: Espanha: A sucessão "democrática"
Diz o actual dirigente do PSD que o governo do PS/Costa está a “desfazer-se aos bocados”, então, será bom relembrar quando o governo do PSD/PP/Coelho/Portas estava igualmente a desfazer-se. Crónica de Novembro de 2014 perfeitamente actual.
O ministro das polícias demitiu-se, ou foi obrigado a demitir-se, para defender o governo, serviu de escudo ao chefe, e, eventualmente, para não ser preso juntamente com os outros onze elementos do gangue, um deles chefe de uma das polícias do regime. Não foi a demissão do governo, como se imponha pela política que tem aplicado contra o povo português porque o único apoio sólido que ainda desfruta é o que lhe é oferecido pelo Silva de Boliqueime. Foi, então, a 11ª remodelação. Um governo mais que remendado que ainda vai contando, como oxigénio que se dá a doente em respiração assistida, com a benevolência dos partidos da dita “oposição”.
A política deste governo de coligação fascista PSD/CDS-PP encontra-se isolado perante os trabalhadores, a sua base de apoio mesmo entre a classe média nunca esteve tão estreita como agora, como a confiança entre as elites jamais esteve tão em baixo, basta ouvir um dos caciques da partido, o advogado Miguel Veiga (um dos que nos bastidores, como o “especialista” em segurança Ângelo Correia, decide sobre quem é quem dentro do partido) dá como certo e conveniente a “entrega” da vitória das eleições ao PS, como comissão para os próximos 4 anos (de preferência) para gestão dos negócios dos capitalistas nacionais.
A falência da política do governo é evidente, se os mais ricos de Portugal estão mais ricos e os compromissos para com a banca internacional estão a ser respeitados, ninguém assegura que no futuro, e num futuro próximo, haja garantia de que a dívida será paga e as taxas de acumulação capitalista estejam acautelados. E os números estão aí, entre outros: Portugal teve o 5º maior défice comercial da União Europeia até o mês de Agosto, ou seja, um saldo negativo de 6,8 mil milhões de euros, mais 900 milhões de anos em relação ao mesmo período do ano de 2013, segundo o Eurostat.
Enquanto a economia vai estagnando, os sacrifícios impostos continuam, mostrando que por muito que o povo se sacrifique a economia capitalista não desloca, por força das suas contradições internas, e as “gorduras” do estado longe de diminuírem têm vindo constantemente a aumentar: desde 2007 até 2015, as tais ditas “gorduras” aumentaram 11%, isto é, cerca de mil milhões de euros. O combate do governo ao “despesismo” faz-se sentir essencialmente na redução das despesas do estado com o pessoal (-3,3 mil milhões de euros), devido não só aos cortes dos salários como também à enorme redução do número de trabalhadores, só nos últimos três anos foram mais de 40 mil funcionários que foram enfiados na reforma antecipada, não contando com os da dita “requalificação profissional”, dos quais 27 mil professores.
E, embora não sendo dinheiro do estado, o combate às “gorduras” foi a retirada do abono de família a mais de 52 mil e 500 crianças, em apenas dois meses (Agosto a Outubro), e do rendimento social de inserção a quase 5 mil pessoas, no mesmo período de tempo. Contudo, as rendas orçamentadas para as PPP no OE-2015 atingem os 1 400 milhões de euros e o recurso a serviços privados por parte do Estado é cada vez mais frequente e oneroso – diz o estudo apresentado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra há poucos dias; o governo justifica com os 75% da despesa pública com rubricas rígidas, resultantes do “elevado endividamento e da dinâmica demográfica negativa” (!?), como se estas duas realidades não fossem consequência directa de toda a política seguida pelos governos dos partidos do bloco central.
Enquanto o povo português se encontra mergulhado em miséria cada vez mais negra, dois deputados dos tais partidos “responsáveis” (Couto dos Santos e José Lello) entenderam apresentar a proposta de levantamento da suspensão do pagamento das pensões vitalícias aos antigos políticos, ao que parece, em número de cerca de meio milhar; os chulos do regime estão em perigo de falência! Só o BE fez um “bonito” repudiando a medida e até exigindo o fim de todas as pensões vitalícias para os políticos, até o PCP teve uma posição cautelosa, porque também mama na mesma teta e aprovou a medida em tempos idos, e os partidos da coligação até puderam dar uma “de esquerda” inviabilizando a proposta, na medida em que o momento nem é oportuno, a caça ao voto já começou. É com esta e com outras que os partidos do regime o vão desacreditando, e foi uma dita “independente” do PS, completamente histriónica, que mais protestou pela tentativa frustrada de se aumentar os rendimentos dos políticos aposentados, uma tal que fez umas “flores” em defender a adopção por casais homossexuais.
Este regime de democracia de opereta não vai lá com desculpas nem com medidas regeneradoras. Paulo Morais, o homem da “Associação Integridade e Transparência”, defende que Passos C oelho deveria pedir desculpa ao país pelo escândalo que levou à detenção de 11 pessoas, entre as quais altos quadros do Estado, por suspeitas de corrupção no âmbito da atribuição dos vistos gold e que o programa de atribuição é “pernicioso”, escamoteando que para o capitalismo não existe ética, a única ética, o único código de conduta para qualquer capitalista é aquele que lhe permite maior e mais rápida acumulação de capital.
O capitalismo não tem ética ou moral, é o que é em termos objectivos, todas as regras que se lhe queiram impor irão ser removidas porque a dinâmica do capitalismo assim o exige, caso contrário implode. A lavagem de dinheiro faz parte do sistema, faz parte da sua alimentação, embora neste caso só para uma pequena parte, a especulação imobiliária, o que faltará saber neste esquema, agora sob investigação policial, quais as comissões recebidas por cada interveniente.
Não constitui motivo de espanto que um secretário de estado (Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações) venha perorar que o que interessa não é a “origem” do dinheiro mas o “projecto”, ao referir-se à solução salvífica da PT. E se a polícia interveio é porque alguém, descontente com o quinhão que lhe calhou, botou a boca no trombone, porque é sempre assim, não foram as autoridades judiciais, o tal poder “independente”, que actuaram de motu proprio.
O governo português é considerado um dos mais corruptos do mundo, só ultrapassado por uma República Checa ou uma Lituânia, onde os índices de corrupção são maiores. A corrupção está fortemente instalada nos partidos, no aparelho do estado, desde policias e autoridades judiciais a autarcas, quase que fazendo parte da “cultura nacional”. Mas, vendo bem, esta cultura não é a do povo apesar de fortemente contaminado, basta ver que a “cunha” é quase uma instituição nacional, mas a da classe dominante, consolidada ao longo dos tempos e dos sucessivos regimes políticos, e que constrange os próprios trabalhadores por falta de uma forte consciência de classe e espírito reivindicativo.
É considerado “normal” que políticos passem para as administrações das grandes empresas que tiveram negócios com o Estado depois de se retirarem da vida política activa, ou façam o percurso inverso para os facilitar, e que a Assembleia da República, a dita “casa da democracia”, seja um «escritório de representação» de interesses económicos e de que o «lóbi é feito dentro do parlamento pelos próprios deputados», não sendo por acaso que, na atual legislatura, metade dos deputados - «117 dos 230» - tenham optado pelo regime de acumulação, que «lhes permite manterem a atividade profissional pública e privada». A isto chama-se corrupção .
Não é preciso o estudo da TIAC (Transparência e Integridade - Associação Cívica) "Lóbi a Descoberto: O Mercado de Influências em Portugal", mostrar que os políticos portugueses (do sistema) “são permeáveis a influências de grupos de interesses”, com os sectores financeiro, da energia e da construção civil "os mais envolvidos em práticas de lóbi pouco transparentes". De entre estes sectores, "a banca, em particular, tem-se destacado na criação de empregos para responsáveis públicos: 230 pessoas ocuparam um total de 382 cargos em instituições financeiras antes ou depois de terem desempenhado funções no Governo". Ao todo, 54% dos membros dos Governos desde o 25 de Abril desempenharam funções na banca; além disso, desde 1986, todos os governantes do Banco de Portugal tinham anteriormente ocupado posições na banca", revela o relatório.
Quando dirigentes do BE e do PCP, e outras boas almas, vêm denunciar que se torna imperioso a regeneração do regime, que urge separar a economia da política, que esta não pode continuar refém do poder económico, é razão para sorrir, ou são idiotas ou querem fazer o povo estúpido. Ora, o regime da democracia burguesa é o regime da ditadura do capital sobre o trabalho em moldes humanizados e civilizados, utilizando o engodo de se enfiar um papel dobrado de 4 em 4 anos, com a condição de se dar a vitória aos mesmos partidos da ordem. Ora, o Estado, com a sua máquina administrativa, aparelhos repressivos, policial e judicial, e demais órgãos de propaganda e controlo das massas, é uma Estado de classe, é uma máquina de exploração e de repressão das elites económicas sobre as demais classes sociais. Ora, é isto que os partidos reformistas e social-democratas, mesmo que agitando a bandeira do comunismo, escondem aos olhos dos trabalhadores e do povo.
Na capital, a posição de Junot deteriorava-se. As comunicações com a Espanha tinham sido cortadas por levantamentos populares, deixando-o encalhado na costa Atlântica sem perspectiva de auxílio da França. Portugal, como a Espanha, estava em revolta aberta. O Porto, que tivera uma guarnição espanhola, fora libertado e mesmo em Lisboa, a desobediência civil estava a ficar fora do controlo de Junot. Nesse ano, a procissão do Corpo de Deus degenerou em motim. "Quando a procissão passava, levantou-se grande tumulto", escreveu a testemunha presencial Harriot Slessor. "Pernas e braços partidos. Pobres senhoras... com roupa meio arrancada pelas costas pediam socorro; outras desmaiavam." Junot pôs mesmo a questão de retirar, mas decidiu em vez disso concentrar as suas forças dentro e em redor de Lisboa. Os regimentos franceses estacionados na província retiraram, saqueando e matando à medida que abriam caminho até à capital.
Duas escaramuças ligeiras deram início àquilo que acabaria por ser a campanha de cinco anos de Wellesley na península, quando as tropas inglesas se encontraram com posições avançadas dos franceses no trajecto, pela costa portuguesa, em direcção a Lisboa. Os exércitos confrontaram-se primeiro em Roliça, mas foi. no Vimeiro, uma pequena vila a três dias de viagem de Lisboa, que o encontro decisivo teve lugar. Aí, Wellesley notabilizou-se, suplantando Junot e conseguindo a primeira vitória inglesa significativa no continente, em mais de meio século. Os franceses retiraram destroçados e Wellesley reagrupou os seus homens para marchar sobre Lisboa, agora um alvo acessível, mas nesse preciso momento viu-se arredado do comando das tropas. O recém-chegado, Sir Hew Dalrymple, e o seu ajudante de campo, Sir Harry Burrand, optaram pela prudência. Junot, vendo uma escapatória, decidiu reduzir as baixas e rendeu-se a 22 de Agosto de 1808. Os erros tácticos do lado britânico agravaram-se com a assinatura da Convenção de Sintra – um armistício que permitiu ao estropiado exército de Junot partir intacto com o seu equipamento e artilharia para França, a bordo de barcos ingleses.
Houve indignação quando as notícias do acordo chegaram a Londres. O Convénio, escrevia o Observer de Londres, só era "honroso para o inimigo". A "ruína total de uma grande causa", era a conclusão da Edinburgh Review, enquanto que William Wordsworth ficou tão furioso que escreveu um apaixonado tratado sobre o cinismo do acordo. Wellesley também era atacado na imprensa – "toda a Inglaterra se enganou na sua opinião acerca de Sir Arthur Wellesley", declara o Times – embora tenha saído relativamente incólume quando respondeu mais tarde a um inquérito em Londres.
Os lisboetas foram obrigados a assistir às forças francesas derrotadas a carregarem barcos ingleses com bens que tinham roubado durante a estadia – uma repetição ridícula da precipitada partida da corte portuguesa menos de um ano antes. Uma vez mais as docas se encheram de pilhas de caixotes; uma vez mais peças escolhidas da rica herança cultural da cidade eram enfiadas à socapa em porões de navios que partiam para o estrangeiro. Na própria cidade, as tropas de Junot tinham deixado a sua marca. As bandeiras francesas podiam ser arrancadas, mas as fachadas dos edifícios estavam desfiguradas – frontões com as armas reais picadas, insígnias oficiais tiradas dos portões dos palácios, estátuas vandalizadas.
Também havia consternação no Rio. Os ingleses não tinham esperado pela autorização da corte no Brasil, onde D. João e os seus conselheiros tomaram conhecimento da campanha e do seu resultado através de notícias dos jornais e de correspondência privada, semanas depois do acontecimento. Estavam nervosos com as intenções do governo britânico e queixavam-se do número exagerado de tropas estrangeiras em solo português, mas pouco podiam fazer além de apresentar queixas oficiais e esperar por mais relatórios da frente de batalha com um mês de atraso.
Com a libertação de Portugal, chegaram mais tropas britânicas e a Guerra Peninsular começou a sério. Houve uma sucessão de compromissos complexos e muitas vezes inconclusivos – acordos caóticos que tiveram um preço elevado para todos os envolvidos. Ao longo dos anos os franceses empregaram enormes recursos bélicos na península, para se atolarem num conflito que não podiam ganhar. Foram confrontados com um desorientador leque de forças: tropas espanholas mal treinadas e por vezes erráticas, forças portuguesas mais profissionais, preparadas pelos ingleses, o próprio exército britânico e a furtiva mas constante acção de guerrilha, protagonizada por civis revoltados. Para fazer piorar as coisas, os franceses dividiam-se muitas vezes em disputas mesquinhas entre marechais que eram deixados demasiado à vontade pelo poder de Paris.
O que tinha sido previamente visto como uma campanha rápida, começou a arrastar-se. Uma vez e outra, os invasores apercebiam-se que conquistavam território, mas não tinham meios de o conservar. Pilhavam as zonas rurais mas, ao contrário do que se passava no resto da Europa, não obtiam comida suficiente para alimentar os exércitos. As baixas fora de combate aumentavam; a fome e a doença matavam aos milhares. Vagueando por um país regionalizado, as tropas deNapoleão viam-se enredadas em disputas locais, emboscadas por chefes militares que defendiam avidamente os seus feudos contra todos os invasores. Tinham-se preparado para batalhas travadas em campo aberto, mas eram arrastados para uma campanha de guerrilha gerida por combatentes camponeses com um conhecimento muito superior do terreno.
A guerra tornou-se suja, mesmo para os padrões da época, com as atrocidades levadas a cabo pelas forças francesas esfomeadas, mais do que vingadas pelas guerrilhas portuguesa e espanhola. Os franceses tentaram espalhar o medo entre a população rural com execuções exemplares, assassínios e violações, mas, em troca, acabaram eles mesmos aterrorizados por algumas práticas mais imaginativas, para não dizer medievais. Histórias bem fundadas de crucificações, garroteamentos e incinerações no poste estavam permanentemente presentes no espírito dos homens de Napoleão à medida que avançavam por território desconhecido. Aí, encontravam combatentes camponeses armados de forquilhas, armas de caça, até mesmo utensílios de cozinha. Foi um modelo para muitas futuras guerras deste tipo, uma tragédia, uma lição da história a que não se prestou a devida atenção.
A invasão de Junot foi apenas o primeiro de três assaltos que Portugal sofreria às mãos dos franceses. O segundo chegou no fim de Março de 1809, na sequência da evacuação da Corunha das tropas comandadas por Sir John Moore que, com quarenta e oito anos, tinha tomado o comando das forças britânicas em Portugal das mãos de Dalrymple. Em Outubro de 1808 foi-lhe ordenado que levasse para Espanha um exército de 23 mil homens. Chegou a Salamanca e, com as notícias que conseguiu obter de atrasos na chegada de reforços, aliadas a uma grande contra-ofensiva francesa, bateu rapidamente em retirada para o porto galego da Corunha. Foi perseguido, durante algum tempo, pelo próprio Napoleão na sua primeira e única aparição nas campanhas peninsulares, mas mal percebeu que o exército de Moore não podia ser impedido de chegar ao porto, entregou o comando da perseguição ao marechal Soult..
Na noite de 11 de Janeiro de 1809, os ingleses chegaram esgotados e andrajosos à Corunha. "Tínhamos a barba comprida e desgrenhada," recorda o atirador Hibbert Harris. "Quase todos estávamos descalços; muitos tinham a roupa e equipamento em farrapos e a cabeça envolvida em trapos velhos." O embarque desenvolveu-se ao som dos canhões franceses que ecoava pelas ruas da cidade. A retaguarda britânica manteve-os afastados o tempo suficiente para os barcos largarem, mas só um quinto das forças de Moore conseguiu sair de Espanha. Num dos últimos confrontos, Sir John Moore foi abatido por uma bala de canhão e sangrou até à morte no campo de batalha. Os restos do exército desembarcaram exangues em Portsmouth, chocando um público recentemente entusiasmado com a recaptura de Portugal.
As forças do marechal Soult avançaram para sul e dirigiram-se ao Porto. A cidade foi atacada em finais de Março de 1809, as defesas de emergência esboroaram-se e os que fugiam das tropas invasoras caíram numa chuva de metralha quando tentavam atravessar o rio Douro. As tropas de Soult, cansadas de guerra, reagruparam-se na cidade, mas a sua conquista seria de curta duração. Wellesley voltou a Lisboa, a 22 de Abril de 1809, com ordens para recapturar o norte e depois de um impressionante ataque de surpresa bem sucedido, o exército de Soult foi expulso do Porto em Maio.
A segunda invasão francesa fora breve, mas destrutiva. Um oficial inglês, regressando à casa de um nobre português onde estivera hospedado em 1808, descreveu assim o que encontrou:
«as belas balaustradas [estavam] partidas; os lustres e espelhos em pedaços... os quadros de grande qualidade, estavam desfigurados e as paredes mais pareciam de um quartel francês que da casa de um fidalgo português, dadas as pinturas obscenas que as cobriam. O lindíssimo jardim fora totalmente vandalizado; os encantadores caminhos e os caramanchões aromáticos destruídos e demolidos; as fontes partidas aos bocados.»
Na província estava patente a prova macabra das mortes por vingança que ocorreram durante a retirada francesa: soldados pregados às portas dos celeiros, cadáveres com os órgãos genitais amputados. Um ano e meio apenas depois do início da guerra, os portugueses tinham já sido brutalizados pela violência que lhes batera à porta.
(“Império à Deriva – A Corte portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821” de Patrick Wilcken. Livraria Civilização Editora. Porto, 2005)
Imagem: Gravura representando um soldado francês a agredir um camponês aquando da invasão napoleónica da Península Ibérica.
Homem, 45 anos, solteiro, em situação carcerária, autor confesso de múltiplos crimes de abuso sexual infantil, foi ele próprio vítima de forma continuada de abuso sexual na infância. É visto, a seu pedido, por sentir necessidade de ajuda, tendo aceite a nossa proposta de iniciar o tratamento psicológico por uma primeira fase de «exposição em imaginação». Foi-lhe assim sugerido, desde a primeira entrevista, que procurasse recordar-se o melhor possível de todos os acontecimentos traumáticos da infância.
Fez este relato circunstanciado da sua vivência traumática pela primeira vez na sua vida, ao longo de cinco entrevistas individuais, inicialmente sob grande pressão emocional, que se foi gradualmente esbatendo.
As interrupções por crises de choro convulsivas foram também diminuindo. Decidimos seleccionar apenas a parte mais relevante do seu relato. Tentámos aqui transcrevê-lo utilizando o discurso directo porque nos parece reproduzir melhor para o leitor o forte impacte emocional com que estas entrevistas também marcam os entrevistadores...
Também dispusemos por ordem cronológica as suas recordações, porque o seu relato era por vezes fragmentado e só se foi tornando gradualmente mais preciso com a repetição das recordações, como é de resto típico na narração das memórias traumáticas.
Relato:
«Chamei mãe à Casa Pia, é onde me lembro de ter sido criado, mal me lembro de andar ao colo de uma senhora, não sei se era minha mãe, sei que tenho uma irmã mais velha do que eu, mas não sabia da sua existência, pois só a conheci há pouco tempo. Entrei aos 4 anos na Casa Pia e aos 4 anos e meio comecei a ser violado por dois monitores, depois por dois professores, pelo padre do colégio e por alunos mais velhos. Tenho dificuldade em falar disso ainda agora, dormíamos em camarata, éramos 60, em camisa, sem cuecas, os monitores aproveitavam-se de mim, faziam penetração anal. Também faziam o mesmo com outros três ou quatro miúdos.
Havia dois monitores, tinham dois quartos, um em cada ponta da camarata, levavam dois de nós de cada vez, um ficava à porta à espera que o outro saísse e depois entrava, fui sempre o 1.º ou o 2.º, nunca fui o último, não sei porquê, e dois ou três dias depois éramos levados para o quarto do outro monitor, eles combinavam um com o outro, usavam só um quarto de cada vez. Atavam-me com corda fina, que usavam para os trabalhos manuais, tipo nylon, punham-me panos nos pulsos para não deixarem marcas, também nos tornozelos, carregavam com os joelhos nas pernas para não me poder mexer, punham-me um trapo na boca para não gritar e uma toalha de rosto ou um lençol à volta da cabeça para não os ver e faziam penetração anal durante 15 ou 20 minutos, não ejaculavam, limpavam o pénis a uma toalha, depois vinha o outro, fazia a mesma coisa... Passados uns dias, faziam no outro quarto, para não dar tanto nas vistas aos rapazes mais velhos, mas estes sabiam... Voltava para a cama para dormir, mas arrastava os pés por causa das dores no ânus e nas pernas, dormia muito mal a pensar naquilo, sentia tristeza e chorava muito porque não tinha ninguém, sentia raiva, as camisas de noite ficavam sujas com sangue, quantas vezes ficava com sangue no ânus, passava para a camisa, tenho ainda marcas no pénis (quer que eu lhe mostre?) porque às vezes punham-me uma corda amarrada ao pénis, que apertavam se eu chorasse. Tinha dores no corpo, dificuldade em andar e obrar, ainda agora tenho prisão de ventre por causa disso, não conseguia ir nas procissões porque me custava andar e me sentia fraco, um deles teve de fugir porque levou porrada de um irmão de uma das crianças, eu, como não tinha ninguém, não me podia defender, era dos mais atacados, estas violações eram semana sim, semana não...
... os rapazes mais velhos também nos violavam, eram seis ou sete, tinham 17 ou 18 anos, esses era durante o dia, mais ao sábado e ao domingo, ainda até há pouco tempo os mais velhos violavam os mais novos, agora penso que isso já acabou com a nova Provedora...
... partiram-me a cabeça à pedrada sete ou oito vezes (mostra duas cicatrizes no couro cabeludo), estou lá sempre a tocar (cicatrizes), lembro-me e sinto raiva por aquilo que me fizeram, os monitores tinham medo dos mais velhos, não havia praticamente vigilância a seguir à hora do jantar...
... agarraram-me nos balneários, eram quatro, enquanto dois agarravam os braços, os outros abusavam...
... tinha 5 anos ia às aulas de religião, o padre sabia que os monitores me faziam aquilo na camarata, levou-me para a sacristia, que era perto da sala de aulas, disse-me para pôr as mãos para a frente em cima da secretária, não me amarrou, disse que me dava rebuçados e que não dissesse a ninguém, despiu-me as calças, penetrou-me analmente, disse-me para eu não olhar para trás para ele, mas eu vi que ele estava vestido com a casaca (sotaina?) e o colarinho, fiquei ainda pior, por ser o padre, eu não esperava aquilo, mas sei que ele fez a mais crianças e até às miúdas de St.ª Clara, contei a uma professora, que está em Oliveira do Hospital, ela sabe disso...
… no ginásio, eu tinha 6 anos, fui violado uma vez, íamos ver jogar basquete, chamaram-me para segurar as toalhas no banho, houve três que me agarraram e um penetrou-me, sentia muita raiva porque eu era sempre a vítima, com os outros três miúdos mais novos...
... aos 5 ou 6 anos, o professor Gonçalo levou-me a casa dele, mostrou-me revistas com mulheres nuas e masturbou-se mas não me penetrou, depois, na sala de aula onde se equipavam, estávamos sozinhos, fechou a porta à chave, agarrou-me, mandou-me baixar os calções e violou-me, depois deu-me 7$50, eu não esperava aquilo, fiz queixa ao chefe de disciplina, que não fez nada...
... um outro professor, o «zarolho», eu tinha 6 anos, na sala de aulas, fechou a porta e pediu-me para o masturbar, não me fez mais nada mas ameaçou-me com pancada se eu contasse a alguém...
... uma vez cortei um pé de propósito, tinha 6 ou 7 anos, fui suturado no Hospital, contei ao chefe de disciplina e ao director para acabar com os abusos, mas nada aconteceu...
... tinha sonhos de noite, em que via a cara do padre, dos monitores, dos professores e dos mais velhos, de todos os violadores, que foram doze, nunca lhes aconteceu nada, acordava e ficava sentado na cama, enrolado no cobertor, a tremer e a doer-me o corpo...
...ninguém me prestava atenção a não ser a mãe Mariana (funcionária), que me levava para casa aos fins-de-semana, com os filhos, alguns da minha idade, comecei-lhe a chamar mãe, vi que ela tinha conhecimento do que se passava mas naquele tempo do Salazar era muito difícil arranjar trabalho na função pública...
... desde os 6-7 anos que fugia com os outros miúdos pela janela da camarata, descíamos o poste da electricidade da Carris, ia dormir na rua, era melhor do que ficar lá, deixei de fugir aos 11 anos depois de conhecer a D. Mariana, não tem conta as vezes que fugi, lá fora passava fome, apanhava chuva, eu não conhecia bem os sítios, lembro-me que ficava às vezes debaixo de um toldo, aos 8 anos fugi durante 14 dias mas não saí daquela zona, fui encontrado pelos mais velhos, deram-me murros e pontapés em todo o corpo, até na cara, e os educadores proibiram-me as saídas como castigo, às vezes fugia e ia andar de barco {cacilheiro) à borla, outra vez, aos 7 anos, fui com dois colegas, também abusados como eu, ao Cais do Sodré, um deles atirou-se vestido à água mas foi salvo, um outro, o Gonzaga, vi-o há tempo na «sopa dos pobres» (Anjos), falei com ele, vive na rua, arruma carros, já foi pedir comida à Casa Pia, ninguém nos ajudou, os outros não sei deles...
... tinha 7 ou 8 anos, lembro-me de uma senhora que me foi visitar e levou bolos e rebuçados, fiquei sempre a pensar que era a minha mãe mas ela não disse quem era, a assistente social disse-me que também não sabia, ainda hoje penso que era a minha mãe mas não tenho a certeza...
... agarraram-me e encostaram-me à parede, tinha 11 anos, ao pé da sala do «oculista», que estava em obras, eles eram muitos, mas só um é que me violou, os outros agarravam-me os braços e o cabelo, empurravam-me a cara contra a parede, para eu não ver quem era...
... aos 13 anos e 4 meses, quis-me matar, à noite o monitor viu a janela aberta, apanhou-me já pendurado, para me atirar para alinha do comboio, já havia pessoas em baixo a ver, na passagem dos peões, eu gritava que me queria matar, ele puxou-me para dentro por uma perna, a partir daí todos os violadores souberam que me quis matar, e nunca mais tentaram nada, ainda fiquei até aos 16-17 anos na mesma camarata onde fui violado, com os mesmos monitores, mas comecei a sentir-me já um rapaz crescido, com força, nem sequer lhes falava, eles tinham já medo de mim e por isso nunca mais voltaram a violar-me...»
Nota final
Este relato foi no essencial confirmado em entrevistas a duas testemunhas-chave que o acompanharam de perto durante essa época (mãe e irmã adoptivas).
In Afonso de Albuquerque, “Minorias Eróticas e Agressões Sexuais” (Edições Dom Quixote. Lisboa, 2006).
Relembrar o passado para compreender o presente ou como as nossas elites defensoras da guerra, como agora contece em relação à guerra na Ucrânia, quando o país é invadido, a primeira atitude é fugir, deixando o povo à sua sorte. Depois, é este que organiza a defesa com o sacrifício da sua segurança e da própria vida.
À meia noite de 24 de Novembro, o oficial de diligências Joaquim José de Azevedo foi acordado por um mensageiro e convocado de imediato ao palácio. Quando se aproximava da sala de reuniões do Conselho de Estado, viu através de uma porta semi-aberta um grupo de conselheiros, de cabeleira, em agitada discussão. Mandaram-no entrar na sala e, inusitadamente, recebeu ordens do príncipe regente em pessoa para começar a organizar o embarque da família real e dos dignitários do Estado. Outros funcionários puseram-no a par dos preparativos já em curso. O Almirante da Armada tinha elaborado uma série de pormenorizados diagramas, esboçando a distribuição espacial de pessoas e bens abordo da esquadra portuguesa. Os escolhidos para acompanhar a família real receberam passes para si mesmos, para a respectiva família e bagagens, que tinham de mostrar no cais. A partida estava marcada para a tarde de 27 de Novembro, o que dava a Azevedo menos de três dias para completar a sua tarefa.
Antes de partir para as docas, assegurou a sua própria passagem para o Brasil e depois alertou elementos-chave da Casa Real – o Camareiro-mor, o Controlador das Provisões da Casa Real – funcionários do Tesouro e dirigentes da Igreja. Quando chegou ao porto, descobriu que estava a fervilhar de funcionários públicos, trabalhadores das docas e uma multidão de mirones. Debaixo dos chuviscos daquela madrugada, chegavam agora carruagens de todos os cantos da cidade, abrindo caminho entre os caixotes, as bagagens e as barricas de água que enchiam o cais. Ao longo, no amplo estuário do Tejo, bergantins transportavam mercadorias para a frota, onde se avistavam pequenas figuras trepando aos navios, levando a cabo reparações de última hora. Azevedo assentou quartel no cais, e aí trabalhou toda a noite e pelo dia seguinte adentro, até de madrugada.
O arquivista Cristiano Müller foi também acordado naquela noite e recebeu ordens para empacotar os volumosos registos do Ministério de Estado que andava a preparar, para uma eventual retirada, nos últimos meses. Conferenciando com Araújo, finalizou os preparativos para trinta e quatro grandes caixas de papelada, que deveriam ser despachadas para o Brasil, abordo da fragata portuguesa Medusa . Entretanto, as residências reais de Queluz e Mafra eram evacuadas. Os corredores de Mafra fervilhavam com criadas de copa, pajens e valetes que trabalharam toda a noite a desmantelar ornamentos do palácio, a despir a basílica de todo o ouro e prata e a carregar pinturas a óleo para o exterior sob a chuva de Outono. Daí, o recheio do mosteiro foi carregado em centenas de carruagens e transportado para o cais. O pessoal do palácio desfez a segunda residência principal da família real, Queluz, enfiando antiguidades, porcelanas, pratas e todos os valores móveis numa série ainda maior de coches. Foi aqui que os outros membros da família real, D. Maria I, mãe de D. João, a Rainha louca a sua minúscula mulher espanhola, D. Carlota e os seus oito filhos, se juntaram ao êxodo para o porto.
Embora os planos tenham sido pensados ao longo de vários meses, a evacuação rapidamente se desorganizou, como descreve um cortesão:
"Se olhássemos para um lado poderíamos ver uma grande quantidade de bens exposta às forças da natureza, do outro, carruagens ornadas esperavam a família [real], rodando sem destino, ignorando o protocolo normalmente respeitado nestas ocasiões, alguns não querendo separar-se da sua bagagem e criados... outros desejosos de partir... temendo estar a ficar sem tempo... Foi assim que deixámos Queluz..."
Quando a última carruagem saiu do pátio de entrada de Queluz, o que um dia fora um retiro sagrado da realeza começou a ganhar o ar de edifício condenado. Da coluna em movimento lento, o palácio via-se cada vez mais ao longe, as paredes molhadas pela chuva já não pareciam imponentes, as sebes aparadas, a intrincada escultura de arbustos, as fontes e as estátuas esvaziadas de poder simbólico.
Na cidade, um enorme número de pessoas movimentava-se entre o emaranhado de ruas, pelas escadarias em caracol e estreitas calçadas íngremes que desciam das colinas para o porto. Apinhava-se nos cais, onde os ânimos estavam exaltados. Depois de meses de preparativos em segredo, os bens eram agora carregados às claras para a frota que aguardava e os dignitários abriam caminho por entre a multidão hostil para embarcarem. António de Araújo estava numa posição particularmente vulnerável, conhecido como era pelas suas simpatias francófilas e considerado por alguns como tendo sido conivente com Napoleão ao longo de todo o processo. Descoberto, quando tentava entrar no cais, a sua carruagem foi apedrejada, danificando a cabina e ferindo o cocheiro. Conseguiu sair ileso e foi enfiado num esquife que o levou até ao Medusa .
Os que estavam prestes a ser abandonados ao invasor francês olhavam, incrédulos, à medida que as dimensões da deserção se tornaram evidentes. Era uma operação com grande escala. O tesouro real – metade da moeda em circulação no país àquele tempo – e uma enorme quantidade de diamantes do Brasil tiveram prioridade. Caixas sem conta de documentos estatais contendo registos com muitos séculos eram carregados nos porões dos navios. Uma nova impressora, recentemente entregue em Lisboa, vinda da Grã Bretanha, foi embarcada na frota, ainda na sua embalagem original. A biblioteca pessoal de António de Araújo, uma impressionante colecção acumulada durante as suas viagens diplomáticas, foi também içada para bordo, enquanto que os sessenta mil volumes da Biblioteca Real da Ajuda se mantinham encaixotados nas docas. Parafernália religiosa, relíquias de família e mobílias provenientes de Mafra acompanharam a caravana. Depois de longas filas para entrar no porto, as carruagens chegavam à zona das docas onde se acumulava uma imensidade de bagagens mais pequenas -caixas de artigos pessoais, comida e peças de linho. A chuva persistente dificultava a operação, o cais estava agora saturado e os coches tinham dificuldade em abrir caminho na lama.
Qualquer esperança de que a fuga pudesse ser evitada desvaneceu-se na manhã de 27 de Novembro, quando o próprio D. João chegou às docas, acompanhado pelo Infante espanhol, Pedro Carlos, um favorito do príncipe regente que foi criado na corte portuguesa. Por recomendação dos seus conselheiros, que receavam actos de violência, o príncipe regente deslocara-se para o porto numa carruagem não identificada, com o cocheiro vestido à paisana. Tinha sido decidido que um discurso de despedida seria inapropriado naquelas circunstâncias e, em vez disso, o príncipe regente deixou instruções escritas sobre o tratamento a dar aos franceses quando chegassem à cidade. Deviam ser recebidos por uma assembleia de regência – o conselho de governadores – nomeada por D. João, que tinha ordens estritas para cooperar com Junot e aquartelar as suas tropas. A saída do príncipe regente seria discreta, o próprio embarque uma experiência pouco edificante para um soberano habituado a gozar de exuberantes demonstrações de devoção. No porto não houve baldaquinos, colgaduras ou tapetes de flores para o monarca de partida, apenas uma passadeira rudimentar – um par de pranchas de madeira, estendidas sobre a lama – que levava da carruagem à beira do cais. D. João estava visivelmente abatido pela provação e teve de conter as lágrimas quando embarcou no esquife debaixo de chuva torrencial.
A mulher de D. João, D. Carlota, chegou pouco depois numa carruagem menos discreta, de oito lugares, com os seus dois filhos, Pedro e Miguel, que tinha então seis anos, juntamente com criados e uma ama de leite para a Infanta Ana de Jesus Maria, de onze meses. Chegaram depois mais coches com as suas outras cinco filhas: Maria Teresa, já adolescente, e as irmãs Maria Isabel (de dez anos), Maria Francisca (de sete), Isabel Maria (de seis) e Maria d'Assunção (de dois).
A seguir chegou a mãe de D. João, a Rainha D. Maria I, de setenta e três anos, que estava louca há mais de dez anos, e que era dada a ataques súbitos e irracionais. Quando o seu coche se aproximava das docas, diz-se que gritou: "Não vão tão depressa! Eles vão pensar que estamos a fugir!" Ao chegar ao porto, recusou-se a deixar a carruagem, forçando o capitão da frota real, num momentâneo lapso de decoro cortês, a tirá-la à força da cabina, levá-la ao colo pelo cais e depositá-la a bordo da galera que a esperava. A cunhada de D. João, Maria Benedita, de sessenta e um anos, e a tia, Maria Anna, de setenta e um, completavam o grupo prestes a partir de três gerações da dinastia de Bragança.
Junot deixou para trás, no interior do país, o grosso das suas tropas, abandonou a artilharia pesada e fez uma incursão sobre Lisboa com a guarda avançada. Os seus homens estavam agora atolados em lama, com os uniformes a desfazerem-se exaustas de semanas de marcha. Ainda assim, a sua reputação assegurava-lhes a passagem a salvo. Os camponeses observavam em silêncio esta coluna desalinhada, que prosseguia penosamente a sua marcha através dos campos alagados, em direcção a Lisboa.
Com as notícias de que as forças francesas estavam a apenas dois dias de distância, os últimos vestígios de ordem e organização evaporaram-se no porto de Lisboa. Eusébio Gomes, o fiel de armazém real, foi apanhado no turbilhão : "Toda a gente queria embarcar, as docas estavam cheias de caixas, caixotes, baús, bagagens – mil e uma coisas. Muitas pessoas foram deixadas para trás no cais enquanto que os seus pertences iam para bordo; outros embarcavam, acabavam por verificar que a sua bagagem não os podia acompanhar." Os que tinham qualquer hipótese de conseguir uma beliche debatiam-se com os funcionários; brigas indecorosas estalaram entre nobres menores que faziam valer os seus direitos a um lugar nos navios já sobrelotados.
Enquanto muitos com apenas ténues ligações à corte e ao governo conseguiram forçar a sua entrada na frota nas derradeiras horas, outros não tiveram tanta sorte. Entre estes contava-se Lourenço de Caleppi, de sessenta e sete anos, o núncio apostólico junto do Palácio da Ajuda. Tinha-lhe sido prometido um lugar pelo próprio D. João, mas foi-lhe barrada a passagem por não apresentar o passe real. Bernardo José Farto Pacheco, Estribeiro-mor do Rei, foi outro alto funcionário deixado para trás devido a minudências burocráticas. Um regimento inteiro que deveria acompanhar a corte acabaria também por ficar em Lisboa, porque não foi possível encontrar espaço para os soldados a bordo. Para muitos destes homens, foi um dia fatídico. Estavam destinados aos trópicos, mas acabariam por ser integrados no exército francês e anos mais tarde morreriam de frio nos campos de batalha da Rússia.
O próprio Joaquim José de Azevedo quase que ficou em Lisboa, preso por multidões em fúria, como mais tarde contou já no Brasil:
"... no meu regresso das docas de Belém fui apanhado por um grande número de cidadãos que falavam todos ao mesmo tempo, pedindo notícias do seu chefe, do seu príncipe, do seu pai, e perguntando como é que ele podia estar por trás de um plano que os deixava em tão má situação. Apresentei desculpas oficiais, protestando sinceramente que não tinha qualquer influência sobre os acontecimentos, mas nada parecia aplacá-los... Não conseguindo chegar ao aquartelamento, fui levado pela multidão; no meio do tumulto, entrevi um guarda que se encaminhava para a saída e pedindo a sua protecção tentei acalmar as pessoas uma vez mais, protestando a minha inocência e afirmando que não iria embarcar, uma vez que acabava de ser nomeado chefe de pessoal de Junot."
Azevedo estava a mentir. Mas com este estratagema conseguiu libertar-se da multidão. Embarcou à meia-noite, deixando ficar o chapéu, dinheiro e documentos na sua cocheira nas docas.
No meio do ajuntamento de pessoas, um jovem olhava em volta. Nobre de nascimento, José Trazimundo, o futuro marquês de Fronteira, tinha apenas cinco anos quando a corte deixou Lisboa. Ficaria em Portugal, mas vários membros da sua família partiram nos navios para o Brasil. Mais tarde recordaria a perturbação emocional desse dia, com as famílias a dividirem-se e os amigos separados, alguns para nunca mais se reverem. "As minhas tias enviaram imediatamente duas carruagens para nos levar sem demora para as docas de Belém", recordava Trazimundo, mas foram bloqueadas pela multidão, por outros coches e pela montanha de bagagens da coroa "praticamente abandonada no meio da rua" . "Ao ouvir uma salva da esquadra, soubemos que o Príncipe tinha entrado a bordo. O meu tio, o Conde de Ega, abeirou-se dos nossos coches e disse-nos que a esquadra ia levantar ferro e tentar sair a barra, mas que duvidava muito devido ao mau estado do tempo... Nunca me hei-de esquecer das lágrimas que vi correrem, tanto das pessoas como dos criados reais e dos soldados que estavam na praça de Belém". Destroçados, os familiares de Trazimundo retiraram-se para casa do Conde da Ribeira, onde "as salas estavam cheias de parentes que compartilhavam o nosso infortúnio de não ter conseguido dizer o seu último adeus aos que emigravam."
Strangford desembarcou furtivamente bastante tarde, na noite de 28 de Novembro . "Soube que a maior parte da Família Real e da Nobreza Portuguesa já tinha embarcado", escreveu mais tarde num relatório dos Negócios Estrangeiros para Londres, "que os franceses estavam em Portugal e que Sua Alteza Real estava extremamente desejosa de me ver, de forma a ouvir da minha boca se as intenções dos britânicos eram a de o tratar como Amigo ou Inimigo." Tentou contactar António de Araújo, mas deu com a sua casa trancada e aferrolhada. "Lisboa estava num estado de tristeza medonha, demasiado terrível para ser descrito" , prosseguia o relatório. "Viam-se grupos de gente desconhecida e armada a vaguear pelas ruas, no maior silêncio, sem objectivo legal ou óbvio em mente; e tudo parecia indicar que a partida do Príncipe, se não se efectuasse instantaneamente, seria atrasada por tumultos populares, até se tornar impraticável pela chegada dos franceses." As forças de Junot aproximavam-se de facto muito rapidamente da capital, mas continuava a soprar um vento adverso que mantinha a frota ancorada. Os navios portugueses, agora perigosamente sobrelotados, balançavam para um lado e para o outro. Um medo indizível espalhava-se pelo convés das embarcações – o da possibilidade muito real de serem apanhados no porto pelos franceses.
Caminhando cautelosamente pelas ruas, Strangford regressou às docas e embarcou no navio português da frente, o Príncipe Real. Aí, segundo a sua versão dos acontecimentos, descobriu o príncipe regente ainda indeciso mas conseguiu convencê-lo. "Tudo dependia do grau de encorajamento e consolo oferecido a Sua Alteza Real", escreveu Strangford no seu mais controverso relatório , "a cuja mente era constantemente necessário apresentar a Decisão sob as mais cativantes e agradáveis formas... para destruir todas as esperanças de compromisso com o invasor, aterrorizá-lo com descrições sinistras da capital que acabava de abandonar e depois ofuscá-lo de súbito com as brilhantes perspectivas que se lhe abriam..." Outras testemunhas da cena contestariam mais tarde o relato de Strangford. Nesta última fase, já teria com certeza sido tomada uma decisão definitiva; estava tudo pronto para a partida, só o tempo o impedia.
Na manhã de 29 de Novembro o vento mudou. Às sete da manhã foi dada ordem para levantar âncora. Parara de chover e, com céu limpo, os navios, balanceando, desceram o Tejo até à barra. Para os que ficavam em Lisboa, foi um momento pungente, como recorda José Trazimundo:
"O vento soprava forte, do lado da barra e por isso... ouvimos uma salva à distância. Era do esquadrão do almirante inglês Sidney Smith que saudava o pavilhão real do navio que transportava o príncipe regente e nesse momento... deixava o porto. Mesmo que, dada a minha tenra idade, não pudesse avaliar a gravidade da crise em que o país e sobretudo a capital estavam mergulhados, com o exército francês a duas léguas das portas da cidade, recordo-me que fiquei impressionado com a expressão no rosto dos meus parentes e dos que nos rodeavam."
A frota passou perto de uns navios russos que tinham aportado por engano algum tempo antes, mas cuja pólvora tinha sido confiscada pelas nervosas autoridades portuárias. Atrás de si, o esquadrão real deixava um cenário desolador: bagagens, papéis ensopados em água e caixotes abandonados espalhavam-se pelo cais; a lama, muito pisada, começava a secar, deixando marcas da recente agitação – um caos de pegadas, torrões e linhas em espiral. Entre os detritos jaziam artigos inestimáveis do património da coroa, deixados para trás na pressa de partir. Coches luxuosos com arreios em belíssimo estado, muitos ainda cheios de valores retirados dos palácios, estavam parados nas docas vazias; catorze carradas de prata das igrejas foram abandonadas aos franceses e os sessenta mil volumes da biblioteca real da Ajuda espalhavam-se na lama. Algures, no meio dos caixotes de livros largados ao acaso no cais, encontravam-se edições quinhentistas raríssimas da Bíblia, mapas em pergaminho datados da "Era das Descobertas", primeiras edições de Os Lusíadas e livros com iluminuras de grande beleza e valor.
(“Império à Deriva – A Corte portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821”. Patrick Wilcken. Civilização Editora. 2005)
Foi há 15 anos mas não deixa de ser oportuno quando é notícia a violência policial em França
Na qualidade de jurista da ACED, Dr. Marcos Aragão Correia inquiriu o caso das alegações de tortura a Leonor Cipriano pela Polícia Judiciária. Concluiu, como é do domínio público, pela existência de vários sinais e testemunhas da brutalidade e irracionalidade dos métodos de investigação admitidos nesta polícia. Lembramo-nos da defesa dos acusados ameaçadora contra as instituições públicas feita por organizações de colegas dos visados por tortura e do facto de agentes envolvidos neste caso terem sido mobilizados para trabalhar em casos de elevada delicadeza nacional e política, sem nenhuma espécie de pudor.
Para além do que comenta o nosso jurista, verifica-se também poder existir em Portugal a possibilidade de certos estabelecimentos públicos de saúde serem capazes de encobrir ou não denunciar práticas de tortura contra doentes que lhe são apresentados, a organização de negócios de envolvimento de agentes de segurança do Estado com o fito de encobrir práticas de tortura, a existência de tortura denunciada – por via da coragem de um agente do Estado, mas a existência de não denúncias em situações equivalentes noutros estabelecimentos prisionais, onde eventualmente o negócio terá sido bem sucedido. Que se trocará em tais pérfidos negócios?
A ACED não tem, é bom de ver, meios para confirmar ou infirmar aquilo que se deduz poder ser a situação portuguesa no campo das práticas de tortura policial. Mas o Estado português assinou e é depositário de compromissos internacionais a que, imaginamos, não quer escapar. Por isso enviamos este relatório às autoridades portuguesas, na esperança que o nome de Portugal possa deixar de estar ligado a tais vergonhas.
A Direcção
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RELATÓRIO SOBRE TORTURA DE LEONOR CIPRIANO PERPETADA PELA POLÍCIA JUDICIÁRIA PORTUGUESA
Entidade investigadora: ACED – Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento;
Na sequência das conhecidas alegações de tortura sobre Leonor Cipriano, cometidas pela Polícia Judiciária em Setembro de 2004, actualmente cumprindo uma pena de prisão de 16 anos e 8 meses no Estabelecimento Prisional de Odemira, a ACED – Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento decidiu averiguar com mais detalhe as respectivas alegações, tanto mais quando premente se tornou a situação de esclarecer até que ponto a Polícia Judiciária faz-se valer de métodos medievais de investigação criminal, cujos seriam apenas contidos no caso mais recente da menina Madeleine Beth McCann, pela posição social dos pais da mesma, rigorosamente oposta à de Leonor Cipriano.
Deste modo, e após recolher a generosa autorização do Colega mandatário de Leonor Cipriano, o Exmo. Dr. João Grade dos Santos, desloquei-me ao citado estabelecimento prisional, em Odemira, no Alentejo, tendo chegado pouco depois das 9 horas da manhã do dia de hoje (8 de Abril de 2008).
Nº1
Leonor Cipriano foi chamada, tendo aceite falar comigo, na sala reservada aos advogados para o efeito. Manteve, de forma convicta e emocionada, que não teve qualquer intervenção na morte da sua filha Joana, da qual desconhece o paradeiro desde o dia 12 de Setembro de 2004, altura em que por ela foi vista pela última vez cerca das 20 horas. Residentes na Aldeia da Figueira, em Mexilhoeira Grande, próximo de Portimão, havia pedido a Joana que se deslocasse a uma mercearia de nome "Pastelaria Célia" sita a mais ou menos 500 metros da residência, mercearia propriedade de uma Sra. Alfélia, a fim de comprar alguns bens alimentares, como aliás era hábito fazê-lo. Passados cerca de 10 minutos e porque Joana não regressava, dirigiu-se à citada mercearia com o objectivo de indagar pela filha, o que lhe foi respondido pela proprietária que efectivamente Joana estivera lá, mas saíra logo após efectuar as poucas compras que lhe foram pedidas pela mãe. Ainda Leonor tentou procurar pela filha nas redondezas, mas em vão, pelo que pediu, por ter o seu telemóvel sem carga, que a Sra. Alfélia ligasse para a GNR a pedir auxílio, o que esta fez de imediato, tendo a Guarda Nacional Republicana comparecido no local pelas 21 horas do mesmo dia. Joana Cipriano tinha então 8 anos de idade, nascida em 31 de Maio de 1996, e frequentava o 2º ano de escolaridade.
Nº2
Leonor Cipriano conta ainda que tem 6 filhos, incluindo Joana. A mais velha, Dina Maria, tem actualmente 18 anos, logo abaixo Marco António, com 12 anos, Joana que agora tem ou teria 11 anos, André Filipe que tem 8 anos, Ruben que tem 6, e Lara Sofia, que tem 4 anos de idade. Apesar de toda a difamação pública de que Leonor foi vítima, foi quase sempre omitida, deliberadamente ou não, a opinião dos filhos mais velhos sobre o comportamento da mãe. Frutos de relações diferentes, Leonor afirma gostar de todos os filhos do mesmo modo, e o mesmo diz se passar deles em relação a ela. O actual companheiro de Leonor, agora separado pela força das grades que imperaram sobre Leonor, era o pai das duas crianças mais novas, mas tratava Joana como sua própria filha, habitando os cinco na mesma casa. De seu nome António Leandro David Silva, sempre alegou que Leonor Cipriano era incapaz de fazer mal a qualquer um dos seus seis filhos.
Nº3
Presa preventivamente a 25 de Setembro de 2004, Leonor Cipriano deu entrada no Estabelecimento Prisional de Odemira, reservado exclusivamente a reclusas. No dia imediatamente consecutivo é levada por diversos inspectores da Polícia Judiciária para as instalações da directoria de Faro da mesma polícia. É aqui que o inferno de Leonor se agrava. As lágrimas corriam-lhe abundantemente na minha presença. Habituado a exercer quase exclusivamente no foro penal, julgo que posso afirmar com bastante convicção que as lágrimas eram genuínas. Leonor chorava pela associação que os inspectores da Polícia Judiciária fizeram no interrogatório, entre ela e a filha, como causa directa da morte desta, e consecutivo esquartejamento para dar de alimento aos suínos. Leonor recusou de imediato tais acusações. Sem provas nenhumas, nomeadamente o material utilizado para o alegado esquartejamento, ou os ossos deixados pelos suínos, ou mesmo os próprios suínos, os inspectores, cerca de cinco, exaltam-se, e aos gritos, tratando-a por "tu", tentam persuadi-la a confessar o que queriam. Leonor recusa. Então a tortura propriamente dita inicia-se. Inspectores da Polícia Judiciária colocam dois cinzeiros de vidro no chão e obrigam Leonor a se ajoelhar sobre eles. Não permitiam que ela se levantasse até confessar. Leonor relata as dores de ter permanecido horas naquele estado. Mostrou-me as cicatrizes nos joelhos; passados quase 4 anos ainda são visíveis, e provavelmente permanecerão para o resto da sua vida. São linhas brancas em ambos os joelhos que comprovam que foi vítima de tais sevícias, ou ao menos muito semelhantes. Constatando a inutilidade do procedimento, os inspectores da PJ sentam Leonor numa cadeira e metem-lhe na cabeça um saco de plástico verde, de supermercado. Aos gritos, tentando forçar uma confissão falsa, os inspectores começam a agredir Leonor na cabeça com um tubo de cartão duro, utilizado normalmente para enviar documentos enrolados por correio. O tubo, bastante duro, e manuseado com bastante força contra a cabeça de Leonor, provocou-lhe hemorragias que desceram até aos olhos. Se Leonor tentasse tirar o saco da cabeça, era imediatamente agredida nas mãos. Os inspectores gritavam sempre que ela só sairia dali viva se confessasse. Alternavam estas agressões físicas com outras formas de tortura. De vez em quando levantavam Leonor, algumas vezes mantendo o saco, outras sem o saco. Quando em pé, começavam a lhe dar fortes socos e pontapés nos lados das costas. Isto repetiu-se inúmeras vezes. A tortura durou 2 dias. Leonor diz que tinha medo de morrer ali. Por isso assinou, sem sequer ler, o que eles queriam que ela assinasse.
Nº4
Na posse da falsa confissão, os inspectores devolvem Leonor ao estabelecimento prisional. Mas constatando que o seu estado de saúde era demasiado grave, decidem passar pelo Centro de Saúde de Odemira, a fim que o médico de serviço lhe receitasse (ou disfarçasse) alguma coisa. No entanto, curiosamente, vinham de Faro, e era em Faro que tinham os mais completos cuidados de saúde. Mas esperaram por Odemira. Avisaram antes Leonor para que dissesse ao médico e ao estabelecimento prisional que se tinha atirado das escadas abaixo na directoria de Faro da PJ, a fim de tentar o suicídio. Ameaçaram que se ela falasse alguma coisa das agressões, eles voltariam a levá-la para interrogatório e aí é que ela já não sairia viva. Leonor confirma o que os inspectores queriam enquanto na presença deles, mas mal estes abandonam o estabelecimento prisional, ela conta toda a verdade aos guardas e à Directora do Estabelecimento Prisional de Odemira. Esta, alarmada pelo estado lastimoso de saúde de Leonor Cipriano, manda que seja fotografada e enviada novamente ao Centro de Saúde de Odemira, mas desta feita para que lhe fosse efectuada uma perícia médico-legal.
Nº5
Após quase 2 horas a falar com Leonor Cipriano, tive logo a seguir o cuidado de pedir uma reunião com a Directora do Estabelecimento Prisional de Odemira, a fim de confirmar estes dados. Fui prontamente recebido pela mesma, com a qual conversei sobre este assunto durante quase 1 hora. De seu nome Ana Maria Calado, é licenciada em Sociologia, e frequentou ainda 4 anos do curso de Medicina. É Directora do Estabelecimento Prisional de Odemira há 7 anos. Confirmou-me com coragem o que Leonor Cipriano me relatara. Próprio duma pessoa que coloca os valores acima dos interesses corporativos, a Dra. Ana Maria Calado, afirma-me que ficara chocada com o estado em que Leonor entrara no estabelecimento prisional. As nódoas negras, hematomas e contusões, eram visíveis abundantemente na cara, principalmente à volta dos olhos, na cabeça, e nas costas, principalmente aos lados. Assegura-me, que fazendo uso dos seus conhecimentos de medicina, aliás confirmados pelas perícias médico-legais realizadas posteriormente a Leonor, tais marcas físicas indiciavam claramente agressões violentas, e nunca uma simples queda por uma escada abaixo. Eram inúmeras e bastante pronunciadas, acrescentou. Durante a nossa reunião, estranhou ainda vários factos: o facto da PJ, para além de não ter feito deslocar Leonor a um hospital de Faro, nunca ter enviado um delegado de saúde ao estabelecimento prisional a fim de tentarem provar que as marcas da reclusa seriam da pretensa tentativa de suicídio pelas escadas; estranha ainda o facto de a PJ ter escolhido os dias de interrogatório exactamente coincidindo com a sua semana de férias, dado que se estivesse em trabalho, nunca teria permitido o comportamento da PJ de ir buscar Leonor às 6 horas da manhã e devolvê-la pela meia-noite, sem que houvesse um pedido formal da direcção da PJ, o qual nunca existiu; estranha ainda mais o facto de, quando instaurado um processo interno de averiguações por parte da PJ e em relação à tortura de Joana, uma equipa de dois inspectores de Lisboa, em reunião privada com ela no estabelecimento prisional, terem tentado negociar uma repartição de culpas entre a PJ e o mesmo estabelecimento prisional em relação às agressões de Leonor. Como pessoa íntegra, a Dra. Ana Calado obviamente recusou compactuar sobre algo de que o seu estabelecimento não tinha qualquer responsabilidade. Afirmou ainda a Sra. Directora que o estado de saúde de Leonor Cipriano piorou ainda mais uma semana depois de ter sido torturada, dado que o sangue acumulado à volta das sobrancelhas era tanto, que fez descair as mesmas sobre os olhos de Leonor, fazendo que ficasse praticamente cega durante quase um mês. Só se arrepende hoje de não ter também mandado tirar fotografias a esse período da saúde de Leonor. A Dra. Ana Maria Calado afirmou-me ainda que Leonor Cipriano "em termos de postura e comportamento é uma das melhores reclusas que tive desde há muitos anos", e que não acredita minimamente que ela tenha tentado se suicidar, porque não só já teria muitas oportunidades para o fazer depois do fatídico interrogatório mas nunca o fez, como também não tem quaisquer antecedentes anteriormente à sua detenção. Reforçou ainda a excelente relação de Leonor com os guardas e as outras reclusas. Com um toque de humor, acrescentou que se o seu automóvel explodisse eu saberia já quem teria sido. Enfim, terminamos a nossa reunião, vindo a confirmar as excelentes referências que já tinha desta Sra. Directora.
Nº6
Relativamente a João Cipriano, 38 anos, irmão 1 ano mais velho de Leonor, esta afirma também que ele foi torturado separadamente, segundo o mesmo lhe relatara, mas que o estabelecimento prisional para onde o irmão foi deslocado não se dignou a efectuar as mesmas diligências probatórias das agressões como fizera Odemira. João Cipriano escreveu, posteriormente à sentença de ambos, uma carta a Leonor pedindo-lhe desculpas, mais concretamente para que a irmã lhe perdoasse todas as mentiras que ele foi forçado a dizer.
Nº7
Leonor Cipriano tentou identificar, a pedido do Ministério Público, os inspectores que a torturaram. Segundo a mesma, foi transportada a Évora em 2006 para tentar reconhecer algum dos torturadores de entre seis inspectores que lhe foram apresentados. Infelizmente, dado o lapso de tempo, o facto de muitas vezes estar com um saco na cabeça quando agredida, e ainda a possibilidade de não se encontrarem no local do reconhecimento todos os agressores, Leonor apenas foi capaz de afirmar com certeza absoluta que Gonçalo Amaral, então coordenador do DIC de Portimão, esteve presente durante o interrogatório, assistindo às torturas de forma perfeitamente complacente, porque todas as vezes que teve os olhos destapados e era agredida ele lá se encontrava, andando de um lado para outro, sem nunca ter tentado impedir as torturas levadas a cabo pelos seus subordinados.
CONCLUSÃO
Dada a elevada credibilidade do testemunho de Leonor Cipriano, corroborado agora por João Cipriano, por desde sempre António Leandro David Silva, e acima de tudo pelo depoimento absolutamente credível da Sra. Directora do Estabelecimento Prisional de Odemira, Dra. Ana Maria Calado, aliás atestado pelas perícias médico-legais mandadas efectuar pela mesma, estou convicto estarmos perante um caso que configura um crime de tortura perpetrado por agentes da Polícia Judiciária portuguesa sobre Leonor Cipriano. É inadmissível que agentes da autoridade continuem a usar de métodos medievais para arrancar confissões a todo o custo, mesmo que falsas, fazendo lembrar a máxima de um inquisidor de há 600 anos atrás que admitia que se fosse preciso até fazia o Papa confessar que era feiticeiro. Estes comportamentos de agentes de órgãos de polícia nacionais são altamente lesivos da imagem de Portugal, que se assume como Estado de Direito moderno, membro da União Europeia e defensor dos Direitos Humanos, e devem ser exemplarmente reprimidos sob pena de descredibilizar ainda mais a confiança dos cidadãos no sistema judicial português. Um agente da autoridade, por estar incumbido de fazer cumprir a lei, tem o dever acrescido, em relação a um cidadão comum, de dar o exemplo cumprindo ele mesmo a lei que pretende que os outros cumpram. Trata-se pois de um crime com especial censurabilidade moral e legal, nos parâmetros do Estado de Direito democrático que Portugal constitucionalmente consagra, sob pena de o nosso País voltar a ser classificado, nacional e internacionalmente, como País fascista, como já tem sido insinuado em alguma imprensa estrangeira.
Não podemos deixar de fazer realçar os paralelos do caso do desaparecimento de Joana Cipriano com os de Madeleine McCann. Ambas desapareceram a poucos quilómetros de distância, e ambos os casos foram investigados pelo mesmo Departamento de Investigação Criminal de Portimão da Polícia Judiciária. No primeiro caso, não foram recolhidas quaisquer provas válidas contra Leonor Cipriano. No segundo, e tanto quanto nos dizem as sucessivas e impunes fugas de informação advindas da própria PJ, e de acordo com a imprensa nacional quando afirma "fonte da PJ" ou "fonte próxima da investigação", no segundo caso dizia, o de Madeleine, não existe, apesar da poeira que persistentemente nos tentam atirar aos olhos, qualquer prova contra Kate e Gerry McCann, como aliás o próprio Director da instituição PJ o admitiu implicitamente, quando declarou que a constituição como arguidos destes últimos foi "apressada". No entanto, os arguidos estão proibidos de falar sobre o processo à imprensa, impedindo-os de exercer um legítimo direito de defesa em relação às calúnias seleccionadas para divulgação por "fontes próximas da investigação". Leia-se a propósito artigo bastante esclarecedor da autoria da Fondation Princesse de Croÿ, com o título bastante elucidativo "Madeleine McCann provavelmente comida por porcos portugueses" (em http://fondationprincessedecroy.over-blog.org/article-12736754.html ), artigo revelador de como Portugal está cada vez mais manchado a nível da sua imagem internacional. Cabe consequentemente que o Estado Português elimine de uma vez por todas os persistentes atentados aos Direitos Humanos que continuam a grassar impunemente, principalmente no seio daqueles que se afirmam como agentes da lei e defensores desses mesmos direitos a nível estatal. Esta acção deve revestir não só a punição dos prevaricadores, que só por si já constitui uma dimensão preventiva indirecta, como também uma acção preventiva directa, fazendo um esforço activo e salutar por eliminar da constituição dos órgãos de polícia criminal todos os elementos que não sejam portadores duma genuína formação técnica, disciplinar, legal e sobretudo moral, tanto nas suas componentes teórica como prática. Recomendo por isso à ACED, nova denúncia sobre o caso às autoridades nacionais, bem como à Human Rights Watch e à Amnistia Internacional.
Termino este relatório, divulgando mensagem de Leonor Cipriano, escrita e assinada pela própria na data de hoje, acedendo assim ao seu veemente e emocionado pedido neste sentido:
“Desejo que a minha filha Joana apareça não só para que possa estar junto dela de novo como também para mostrar ao mundo que os senhores inspectores da polícia judiciária que me torturaram é que são os verdadeiros monstros”. 8-4-2008. Leonor Cipriano. Nº34.
Porque é melhor um culpado em liberdade, do que um inocente em prisão.
Portimão, 08 de Abril de 2008
O Relator, Marcos Aragão Correia,
Advogado (Cédula Profissional de Advogado nº 427M), e Jurista da ACED – Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento).
(Relatório dirigido a: Presidente da República; Presidente da Assembleia da República; Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da A.R.; Procurador-geral da República; Ministro da Justiça; Provedor de Justiça; Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça; Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, em 8-04-2008. Pode ser encontrado em http://iscte.pt/~apad/ACED/ ).
Crónica de algum tempo, Maio de 2011, será sempre bom recordar…
O Tribunal da Relação do Porto, em Janeiro passado, reduziu a pena em um ano e oito meses a um homem de 43 anos condenado por violação na base do argumento de que violar com dedos não é tão grave e, agora, o mesmo tribunal considerou que o psiquiatra João Villas Boas não cometeu o crime de violação contra uma paciente sua, grávida de 34 semanas, pois os actos não foram suficientemente violentos, apesar de este forçar a vítima a ter sexo com base em empurrões e puxões de cabelo.
Perante tanta benevolência, a APAV considera que a absolvição de médico é uma aberração jurídica. Como é do costume, a Ordem dos Médicos guarda de Conrado a prudência e o silêncio e com certeza que não irá actuar porque, como também é usual, só intervém quando há condenação.
Num país civilizado o sr. Villas Boas não só seria despedido da função pública por justa causa como ficaria com a licença profissional cassada definitivamente, mas num país governado e nas mãos de toda a espécie de caciques é o que se vê. E num país civilizado não existe esta justiça nem juízes desta estirpe, próprios de uma sociedade patriarcal e de um regime não muito diferente do Antigo Regime – onde está o tão incensado Estado de Direito?
Mas vamos aos factos:
O Tribunal da Relação do Porto deu como provado os factos, que têm início com a vítima a começar a chorar na consulta e com o médico a pedir para esta se deitar na marquesa. O psiquiatra começou então «a massajar-lhe o tórax e os seios e a roçar partes do seu corpo no corpo» da paciente, como se pode ler no acórdão.
A mulher, que estava grávida e numa situação de fragilidade psicológica, levantou-se e sentou-se no sofá, tendo o médico começado a escrever uma receita. Quando voltou, aproximou-se da paciente, «exibiu-lhe o seu pénis erecto e meteu-lho na boca», agarrando-lhe os cabelos e puxando a cabeça para trás, enquanto dizia: «estou muito excitado» e «vamos, querida, vamos».
A mulher tentou fugir, mas o médico «agarrou-a, virou-a de costas, empurrou-a na direcção do sofá fazendo-a debruçar-se sobre o mesmo, baixou-lhe as calças (de grávida) e introduziu o pénis erecto na vagina, até ejacular».
O colectivo de juízes considera que o «empurrão» sofrido pela vítima por acção física do arguido não constitui «um acto de violência que atente gravemente contra a liberdade da vontade da ofendida» e, por isso, «impõe-se a absolvição do arguido, na medida em que a matéria de facto provada não preenche os elementos objectivos do tipo do crime de violação».
Estranho conceito de “violação”
Foi agora em Maio (Retirado de “DN” e “SOL”).
Em Janeiro passado, o mesmo Tribunal da Relação do Porto considerou que u m homem, de 43 anos, reformado, de Ovar, foi condenado a 9 anos e seis meses de cadeia pelos crimes de violação, rapto e posse de arma. As vítimas eram mulheres que conhecia em discotecas. O Tribunal da Relação do Porto reduziu a pena em um ano e oito meses.
Uma interpretação dos factos e da sua gravidade levou a Relação do Porto a considerar "excessivas as penas" que foram aplicadas ao homem que, desde o início do ano 2009, infernizava a vida às mulheres que tentava seduzir em discotecas de Ovar.
Os juízes-desembargadores justificaram a redução da pena, entre outras coisas, porque "a sua [do violador] actividade delituosa se prolongou 'apenas' durante alguns momentos", salientando ainda que "a violação (...) consumou-se, de uma forma grave - introdução dos dedos na vagina - mas de uma forma menos gravosa que por exemplo as situações de coito, sendo que o acto praticado aconteceu uma vez", lê-se no acórdão. Com base nesta argumentação, o TRP classificou a conduta do indivíduo com "grau de ilicitude médio/ baixo", reduzindo a condenação de cinco para quatro anos de cadeia.
A mesma classificação foi aplicada aos dois crimes de rapto, pelos quais o reformado tinha sido condenado, isto porque "a privação de liberdade das vítimas se cifrou em alguns momentos que não terão atingido uma hora" e o meio empregado "foi o mais suave, a astúcia (...). Desta forma, a pena foi reduzida de três anos e meio para dois anos e meio por cada um dos crimes. A condenação por detenção de arma proibida, um bastão extensível, foi também baixada de 18 para sete meses de prisão. Tudo resumido, o condenado irá passar menos um ano e oito meses na cadeia. (Do “DN”).
Conclusão:
Em Portugal compensa ser criminoso, e violador, em particular, porque as vítimas são-no porque se põem como que a jeito. Ninguém se admire que, neste país de pernas para o ar, o médico psiquiatra venha a exigir uma indemnização à cliente do seu consultório. Afinal, ele é que é a vítima.
Caro cidadão, pelas leis deste país entregue a bandidos, pode dedicar-se à violação desde que o faça “apenas durante alguns momentos” e com os devidos cuidados… médicos.