"Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.
Cem anos atrás, um grande americano, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros.
Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre.
Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação.
Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade americana e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição.
De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes".
Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça.
Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo.
Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia. Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial.
Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.
Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação votar aos negócios de sempre.
Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar só.
E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há esses que estão perguntando para os devotos dos direitos civis, "Quando vocês estarão satisfeitos?"
Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não poderem ter hospedagem nos motéis das estradas e os hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza.
Eu não esqueci que alguns de você vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de você vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade lhe deixaram marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Você são o veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do norte, sabendo que de alguma maneira esta situação pode e será mudada. Não se deixe caiar no vale de desespero.
Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais.
Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.
Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livre. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.
"Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto.
Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos, de qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!"
E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.
E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire.
Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York.
Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania.
Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado.
Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.
Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.
Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee.
Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi.
Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.
E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro:
"Livre afinal, livre afinal.
Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal."
Imagem: Martin Luther King Jr., 28 de agosto de 1963, Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, uma gigantesca manifestação reunindo 250.000 pessoas pelo fim da segregação racial e em defesa dos Direitos Civis dos negros nos Estados Unidos.
O teólogo alemão proscrito Eugen Drewermann, médico e psicoterapeuta da escola freudiana, revela no seu célebre livro “Funcionários de Deus” as contradições de uma igreja que reprime a sexualidade e a liberdade do indivíduo, pela força da disciplina e do dogma; uma igreja que se alimenta da mentira, fundamentalmente ideológica, e cujos funcionários, padres e religiosas, são meros instrumentos, seres despersonalizados e sofredores, também eles sofrendo dos mesmos males do cidadão vulgar mas a uma maior escala, e como estes, experimentando a dúvida sexual, a homossexualidade, a masturbação, a pedofilia e… o aborto – fala a experiência clínica do psicoterapeuta.
Padres, casamento, aborto e masturbação
«Se aquele sacerdote de trinta e dois anos comunicasse no domingo de manhã aos seus paroquianos a sua decisão de se casar, e de tarde pudesse fazer as malas e ir embora, tudo teria acabado passadas vinte e quatro horas. Mas, enquanto houver a impressão (tal como deseja a Igreja) de que a heterossexualidade do pároco poderá ser "reversível", haverá sempre fiéis que julgam seu dever chamá-lo à razão; e sobretudo, atacarão a parte considerada mais fraca, ou seja, a mulher. Dirão que ela o terá seduzido de maneira indigna, astuciosa e desavergonhada; não se tomará em conta que, por razões de simples discrição, ela nem sequer se poderá defender, contando como os dois se conheceram. E se continuar sem dar provas de arrependimento, chamar-lhe-ão "concubina de padre", e por aí adiante; aos olhos de todos, será tida por uma mulher sem honra; deverá deixar de frequentar a igreja onde esse padre celebra a missa; seria mesmo dever do padre recusar-lhe a comunhão. E, se nada disto for suficiente, se os dois perseverarem no seu amor e ele abandonar demonstrativamente o seu ministério, a perseguição continuará. Os padres casados sentem-se muitas vezes sozinhos, abandonados por aqueles que haviam sido os seus melhores amigos; muitos notam mesmo uma certa alegria maligna por parte dos antigos confrades – não há nada que tanto lisonjeie a fortaleza do carácter próprio, como é a “fraqueza” dos outros.
O pior de tudo é a maneira como as angústias do superego, que continuam presentes, se vêm a conjugar com o sistema da punição social. Basta às vezes a silenciosa falta de contacto por parte dos amigos de outrora, ou o murmúrio dos colegas desiludidos, ou a aversão aberta daqueles que "já imaginavam isso há muito tempo", para subjectivamente se darem os mais violentos abalos, capazes de perturbar a longo prazo a recente relação amorosa. Há padres casados que, mesmo passados alguns anos, não se arriscam ainda a pôr os pés na sua antiga paróquia ou na sua cidade episcopal. Em oposição a todas as regras da razão humana, eles sentem-se ainda, de acordo com as regras da Igreja, como pessoas expulsas e desprezadas, marginais da comunidade católica.
Mas também isto não é suficiente para satisfazer o furor de castigo por parte da Igreja católica. É aqui que ela deixa cair o resto da máscara que encobre o seu fanatismo e o seu desprezo pelos homens. Partamos do princípio de que esse sacerdote de trinta e dois anos, apesar dos seus escrúpulos de consciência e de todas as ameaças de punição social, terá tido a coragem de não se deixar intimidar. Resta ainda um último trunfo, que a Igreja Católica jogará sem escrúpulo nem vergonha: a dependência económica. Intimidados por esse motivo, muitos são os sacerdotes que mantêm em segredo os seus amores. Segundo o primeiro parágrafo do cânone 1395 do Direito Canónico, "se um sacerdote viver maritalmente ou se persistir e der escândalo com qualquer outro pecado contra o sexto mandamento da Lei de Deus, deverá ser punido com suspensão, podendo seguir-se gradualmente outras sanções se, após admoestação, persistir no seu delito". Mas há que escutar a lei com "ouvidos de Roma": "se persistir e der escândalo". Quer dizer: não havendo escândalo, não haverá sanções! É precisamente esta situação que Ursula Goldmann-Posch apresenta, quando escreve: "Se um padre e uma mulher vivem ‘em concubinato' poderá isso ser uma coisa moralmente condenável, mas, do ponto de vista canónico, o assunto só é relevante ‘se a falta for comprovada'. Se os dois quiserem pôr fim ao lamentável estado do concubinato e, não podendo casar pela Igreja, acabarem por contrair casamento civil, isto é considerado um ‘acto público' com as consequências apontadas. Um professor de Teologia alemão, vivendo havia quinze anos com uma mulher, fala por experiência própria: 'Há bispos que aconselham o padre em questão a viver com a mulher. Ele, como bispo, tolera. Só no caso de casamento civil é que se verá obrigado a tomar medidas.' Trata-se pura e simplesmente de manter uma determinada disciplina. Desde o momento em que o sistema não seja posto em causa, podem admitir-se excepções em casos particulares. Muitas vezes tenho a impressão de que a Igreja é uma instituição que tem por fim manter o celibato e a ordem."' Sim, na verdade, a Igreja é obrigada hoje em dia a admitir muitas excepções.
É evidente que o interdito pode ser uma sobrecarga enorme para relações assim. Partamos do princípio que o padre em questão não utiliza o pretexto de não poder casar publicamente para poder continuar livre e poder acabar a "relação" quando muito bem entender; partamos do princípio que a confiança da mulher apaixonada por ele é suficientemente forte para poder manter perante a sua consciência e perante Deus essa "união sem casamento". Resta ainda a obrigação de manter segredo: não é possível, como fazem os outros, irem de mão dada pela rua, darem um beijo onde os vejam, ou trocarem em público olhares ou palavras de ternura. A mulher terá que renunciar a ser mãe, isto é, terá que viver com o medo constante perante a catástrofe de ficar grávida, ou tem que utilizar aquilo que a Igreja Católica severamente condena, que são os contraceptivos. O pior é quando, apesar de tudo, "isso" acaba por acontecer. Poucos serão os párocos que, definitivamente instalados numa bela residência paroquial, estarão dispostos a renunciar a tudo e a tomar o caminho do deserto. Evidentemente que não há estatísticas sobre a frequência do aborto no caso de relações com sacerdotes; mas, considerando a relativa inexperiência dos padres nesse ponto, e considerando a dependência das mulheres, que não quererão arruiná-los, e considerando ainda a enorme pressão das sanções eclesiásticas, e que os sacerdotes possuem um superego mais severo mas não são por isso pessoas melhores do que as outras, é de supor também o número de abortos não será menor.
Mas, pior que tudo isso, é ainda o cinismo insidioso, feito de falsidade e duplicidade. "Quem provocar um aborto é punido com a pena de excomunhão" (cânone 1398 do Direito Canónico). Quantos serão os sacerdotes excomungados? Confiando na misericórdia de Deus, que é maior do que o seu coração, e maior com toda a certeza do que a sua Igreja, eles são obrigados, dia após dia, a celebrar a missa e a administrar os sacramentos, e no princípio da Quaresma terão mesmo que ler a carta pastoral do seu bispo contra as ligações ilícitas dos jovens, contra ligações sexuais extraconjugais, contra os contraceptivos e contra o aborto – e não terão o direito de dizer como todas essas directivas e todos esses ensinamentos são ridículos e absurdos, quando confrontados com a vida real. Obrigados a representar uma Igreja em que deixaram de acreditar, a consolação de dizer que sempre valerá mais continuar na Igreja e ajudar os outros, em vez de sair dela e ficar só, é humanamente compreensível, mas não impede que se pergunte de que vale uma ajuda comprada e vendida pelo preço de tantas mentiras.
Apesar de tudo, antes a mentira e a duplicidade, do que renegar o amor! Antes mentir a uma Igreja que quer a mentira, do que atraiçoar quem, pelo seu amor e pela sua confiança, mereceu uma fidelidade sem reserva.
Quando Albine, a heroína de Zola, depois da frustrada tentativa de ir buscar o seu amigo à igreja, regressa à beleza outonal do "Paradou", o sacerdote luta sozinho até às fronteiras da loucura; nele vence finalmente a virtude, desaparecendo o desejo voluptuoso do amor. E agora, livre de qualquer sentimento, impelido apenas pelo desejo da penitência, vai ter com Albine, e ambos verificam que tudo morreu à sua volta. É em vão que Albine o conduz aos lugares do antigo amor, é em vão eles terem jurado um ao outro fidelidade eterna. "Se procuro o meu coração, já o não encontro; dei-o a Deus, e ele o tomou." O mais terrível de tudo isto é o facto de Serge o dizer com o orgulho de um santo vitorioso, sem saber o que diz. "'E a nossa vida juntos, e a nossa felicidade, e os nossos filhos?', pergunta Albine. Depois ele gritou: 'Não posso! Não posso!' Ela não disse mais nada. Abraçou-o loucamente. Os seus lábios comprimiram-se a este cadáver, tentando ressuscitá-lo para a vida. Depois de um longo silêncio disse-lhe, com desprezo e decisão: 'Vai!' Serge levantou-se a custo, pegou no breviário, e desapareceu."
Na República Federal da Alemanha, mais de duzentas mulheres organizaram uma liga contra o celibato eclesiástico. Exigem a abolição do celibato, incompatível com o Novo Testamento. O que nós precisamos na Igreja Católica não é de modificar este ou aquele parágrafo mas de uma mudança de todo o comportamento religioso, e de uma nova definição daquilo que se deve compreender por "ideal"; precisamos de descobrir uma forma mais integral de viver, de amar, de rezar, de dançar, de sonhar, de sofrer e de ser felizes – e encontrar a unidade daquilo que foi separado: criação e graça, Igreja e sociedade, eclesiástico e leigo, padre e homem, santidade e responsabilidade no mundo, alma e corpo, sensibilidade e intelecto, mulher e homem, natureza e cultura. Deus só se encontra onde a pessoa humana se reconciliou consigo mesma.»
*
«Quanto ao tema da masturbação, a Sagrada Congregação da Fé fornece-nos o que a Teologia católica tem de mais recente na matéria: a masturbação é "um acto gravemente oposto à ordem", na medida em que o uso livremente consentido da sexualidade, fora das relações conjugais normais, e seja qual for o motivo, se opõe fundamentalmente à sua finalidade, uma vez que lhe falta a relação sexual exigida pela ordem moral. A Sagrada Congregação reconhece que determinados factores podem limitar a liberdade de um acto por si imoral, e eis que começa de novo o velho e desconcertante jogo entre o Céu e o Inferno: foi um acto livre, um pecado mortal, ou até que ponto não chegou a ser inteiramente livre, sendo portanto um pecado venial …?
Mas entretanto já não se fica por aqui. Muitos deles, de acordo com a concepção moral burguesa, julgam preferível cair-se na masturbação, em vez de, como muitos confrades, se ter uma ligação ilegal com uma mulher. Na linguagem grosseira do Irmão Archangias, Émile Zola exprimiu assim há cem anos esta posição: "É melhor um homem treinar-se de costas, do que tomar por colchão a pele das mulheres. Durante uns momentos a gente é um animal, esfrega-se, e desfaz-se da porcaria. Faz bem. Nessas alturas eu imagino que sou o cão de Deus, e que todo o paraíso se põe às janelas a rir de mim." O grande perigo desta posição é o seu cinismo e o desprezo ilimitado perante a própria pessoa. E a isto acresce ainda, não raras vezes, o problema da desmedida.
Se a masturbação é já por si um acto extremamente carregado de desvairamentos, há ainda toda uma indústria pornográfica que vem em ajuda da imaginação. E torna-se então quase verdade a maligna suposição de que a maior impureza moral se encontra precisamente naqueles que, sob a capa da pureza, pretendem ser os representantes do mais alto nível de moral idade. "Jazigos caiados", teria dito Jesus do seu estado de alma (Mt 23, 27); mas esta situação não é culpa do indivíduo, senão do sistema impenitente que é a Igreja Católica.
"Tenho vergonha de o confessar", dizia-me há pouco um sacerdote, "mas cada vez sinto mais que a luxúria não está ligada a uma fraqueza da carne, mas que provém de uma atitude espiritual. É a minha cabeça que me força a andar atrás de ocasiões propícias para me excitar sexualmente. É como se obedecesse a um comando superior." É assim, pouco mais ou menos, que se queixam aqueles a quem foi proibido travar conhecimento do amor, e que acabaram por descobrir que lhes foram envenenadas as fontes da vida. Perderam a força de querer apaixonadamente qualquer coisa, de amar e desejar. Não são mais que cinza fumegante, vítimas de um sistema que gera a morte em nome da vida.
Mas a Igreja quer que tudo assim continue. Há tempos contava-me um sacerdote que, sem esperança de conseguir levar à frente o seu processo de laicização, acabara por resolver casar, e se fora despedir do seu bispo. "Lembre-se de que vive em pecado mortal", comentava Sua Eminência, ao fim de vinte anos de sacerdócio. "Mas o que eu queria era fugir ao pecado", respondeu ele, na esperança de poder ter, pela primeira vez na vida, uma conversação pastoral com o seu chefe espiritual. E acrescentou corajoso: “Penso que será melhor amar uma mulher, do que masturbar-me." "Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra", respondeu o bispo. "Olhei-o de frente, e gostava de lhe ter dito: também o fazes." Infelizmente, na Igreja Católica, o que é verdadeiro e importante fica sempre por dizer. Vale mais uma vida na masturbação, do que seduzir uma mulher, ou pior ainda, deixar-se seduzir por ela.»
“Funcionários de Deus” de Eugen Drewermann, edição da Editorial Inquérito, Lisboa, 1994)
Lições de auto-sabotagem ocidental da Guerra da Ucrânia
O dramaturgo britânico e vencedor do Prémio Nobel Harold Pinter foi um dos primeiros críticos da decisão do governo Bush, endossada pelo primeiro-ministro britânico Tony Blair, de declarar uma guerra mundial contra o terrorismo islâmico após o 11 de setembro. No outono de 2002, Pinter foi convidado a apresentar seu caso contra a guerra na Câmara dos Comuns. Ele começou a palestra com um pouco da história britânica embelezada sobre uma onda anterior de terror na Irlanda:
Há uma velha história sobre Oliver Cromwell. Depois que ele tomou a cidade de Drogheda, os cidadãos foram levados para a praça principal. Cromwell anunciou a seus tenentes: 'Certo! Mate todas as mulheres e estupre todos os homens. Um de seus auxiliares disse: 'Com licença, general. Não é o contrário? Uma voz da multidão gritou: 'Sr. Cromwell sabe o que está fazendo!
A voz na multidão na narrativa de Pinter era de Blair, mas hoje poderia ser o chanceler alemão Olaf Scholz, que manteve silêncio sobre quando e o que sabia sobre a decisão do presidente Biden de mutilar a economia da Alemanha destruindo os oleodutos Nord Stream em setembro passado.
Havia dois conjuntos de oleodutos, ambos parcialmente financiados por oligarcas russos que estavam em dívida com o presidente Vladimir Putin . O Nord Stream 1 entrou em operação em 2011 e, em dez anos, a Rússia estava fornecendo à Alemanha mais da metade de suas necessidades gerais de energia, com a maior parte do gás barato direcionado para uso industrial. O Nord Stream 2 foi concluído no verão de 2021, mas nunca foi colocado em uso. Em fevereiro de 2022, no início da guerra, Scholz interrompeu o processo de certificação do oleoduto. O Nord Stream 2 foi carregado com gás destinado à entrega na Alemanha, mas sua enorme carga foi bloqueada na chegada por Scholz, obviamente a pedido do governo Biden.
Em 26 de setembro passado, os dois oleodutos foram destruídos por bombas subaquáticas. Não se sabia na época quem foi o responsável pela sabotagem, em meio às costumeiras acusações ocidentais contra a Rússia e negações russas. Em fevereiro, publiquei um relato detalhado do papel da Casa Branca no ataque, incluindo uma afirmação de que um dos principais objetivos de Biden era impedir que Scholz revertesse sua decisão de interromper o fluxo de gás russo para a Alemanha. Minha conta foi negada pela Casa Branca e até hoje nenhum governo assumiu a responsabilidade.
A Alemanha atravessou o inverno excepcionalmente quente do ano passado, enquanto o governo fornecia generosos subsídios de energia para residências e empresas. Mas, desde então, a falta de gás russo tem sido o principal fator no aumento dos custos de energia que levaram a uma desaceleração da economia alemã, a quarta maior do mundo. A crise econômica resultou em um aumento da oposição política à coalizão política liderada por Scholz. Outra questão polêmica é o aumento constante de pedidos de imigração do Oriente Médio e da África e os mais de um milhão de ucranianos que fugiram para a Alemanha desde o início da guerra na Ucrânia.
As pesquisas na Alemanha têm consistentemente mostrado enorme descontentamento com a crise econômica que enfrenta. Uma pesquisa analisada pela Bloomberg no mês passado descobriu que apenas 39% dos eleitores alemães acreditam que o país será uma nação industrial líder na próxima década. O despacho citou especificamente disputas políticas internas sobre as políticas de subsídios para aquecimento doméstico e comercial, mas não mencionou uma das principais causas da crise - a decisão de Biden de destruir os oleodutos Nord Stream.
Uma análise das reportagens recentes sobre a crise econômica alemã em publicações de negócios alemãs, americanas e internacionais - muitas delas excelentes - não produziu uma única citação da destruição do oleoduto como uma das principais razões para o pessimismo nacional. Não pude deixar de me perguntar o que Pinter teria dito sobre a autocensura.
Em julho, o Politico noticiou que Robert Habeck, vice-chanceler e ministro da economia alemão, membro do Partido Verde, alertou que o país certamente enfrentará uma economia em retração e uma transição para a energia verde que “sobrecarregará” a população . Em maio, o governo alemão anunciou que o país havia entrado em recessão. Algumas das empresas do país, segundo o Politico, começaram a abandonar a Pátria, provocando temores de desindustrialização.
Habeck disse que a crise econômica pode ser explicada pelos altos preços da energia, que a Alemanha sentiu mais intensamente do que outros países “porque dependia do gás russo barato”. O artigo não explica por que não há mais gás russo fluindo para a Alemanha.
A recusa da Casa Branca ou de qualquer uma das nações escandinavas - Noruega, Suécia e Dinamarca - que forneceram apoio à sabotagem americana secreta dos oleodutos em aceitar a responsabilidade por suas ações acabou sendo um trunfo importante para Scholz, que se reuniu com Biden na Casa Branca em fevereiro de 2022, quando Biden ameaçou diretamente destruir o Nord Stream 2. Questionado sobre como ele responderia se a Rússia invadisse, Biden disse,
Se a Rússia invadir. . . não haverá mais um Nord Stream 2. Vamos acabar com isso.
Scholz não disse nada em público e voltou à Casa Branca no inverno passado para uma visita privada de dois dias - seu avião não levava nenhum membro da mídia alemã com ele - que incluiu uma longa sessão individual com Biden. Não houve jantar de Estado nem coletiva de imprensa, a não ser uma breve troca de banalidades com o presidente diante da assessoria de imprensa da Casa Branca, que não teve permissão para não fazer perguntas.
É impossível não perguntar mais uma vez se Biden informou o chanceler sobre a operação pendente em fevereiro passado e também o avisou com antecedência sobre a destruição do oleoduto em setembro passado. O silêncio contínuo de Scholz sobre um ato de violência contra seu estado só pode ser descrito como mistificador, especialmente porque a crise energética se intensificou nos últimos meses a ponto de o povo alemão estar sofrendo. O fim dos gasodutos também eliminou um potencial dilema político desastroso para o chanceler: se os gasodutos ainda estivessem intactos, mas desligados sob seu comando, a pressão teria sido grande para que ele abrisse as válvulas e deixasse o gás fluir daqueles que acreditavam manter o povo alemão caloroso e próspero era mais importante do que apoiar a Casa Branca, a OTAN e Volodymyr Zelensky, o presidente ucraniano, em uma guerra que não precisava ter sido travada.
Pode ser que a Casa Branca, ao mantê-lo informado, o tenha salvado de um dilema que acabaria com sua carreira: apoiar a OTAN e os Estados Unidos na guerra ou proteger seu povo e a indústria alemã.
Em outubro passado, Lisa Hänel, reportando para Deutche Welle, uma rede de televisão estatal, apontou para um custo social imediato da falta de gás russo para a classe média alemã: assistentes sociais alemães regionais disseram a ela que “mais pessoas estão preocupadas que eles não pode mais lidar com o aumento dos preços e custos de energia.” Discutindo o impacto da falta de gás russo barato nas classes de renda baixa e média, que inclui 18 milhões de pessoas na Alemanha que lutam para se manter aquecidas e bem alimentadas, ela escreveu que elas “poderiam ser duramente atingidas pela inflação e pelo crise de energia."
Adam Button, um analista econômico canadense que escreve para ForexLive.com, publicou um ensaio no mês passado sob o título “ Os pilares da economia da Alemanha estão desmoronando. Três motivos para preocupação . Suas três razões: a produção industrial está em declínio; os déficits estão aumentando; e os custos de energia estão aumentando.
A produção e exportação de automóveis “estão no centro da economia alemã”, escreve Button. “Suas máquinas”, escreve ele,
têm impulsionado a Europa e sido um concorrente digno dos EUA e do Japão. Mas há um novo rival: a China. O crescente setor de fabricação automotiva na China está chegando para todos, mas o modelo sensível à exportação da Alemanha pode estar em maior risco com os EVs da China. Na melhor das hipóteses, é uma formidável onda de competição que prejudica as margens e enfraquece a Alemanha. Na pior das hipóteses, esvazia a principal indústria de altos salários da Alemanha.
O fornecimento de energia barata, produzido pelo Nord Stream I, entra em jogo na análise de Button:
O modelo econômico da Alemanha é a exportação de produtos manufaturados, tendo a China como mercado-alvo. A concorrência da China já é um grande obstáculo, mas é agravada pelo aumento dos custos de energia. A Alemanha sobreviveu ao inverno de 2023 melhor do que eu esperava, mas com pesados subsídios e bom tempo.Essa não é uma fórmula para o longo prazo e, além da conversa fiada sobre hidrogênio, não vejo uma maneira de a Alemanha fugir do caro GNL importado [gás natural liquefeito].
Na semana passada, o ministro da economia alemão, Robert Habeck, revelou uma dura verdade. Ele disse que a Alemanha enfrenta cinco anos difíceis de desindustrialização devido aos altos preços da energia. Ele pediu mais subsídios para a energia como uma ponte para cerca de 2030, quando estima que a energia verde assumirá o controle.
O problema para isso é orçamentário. Os países da zona euro estão sujeitos a défices inferiores a 3%. A Alemanha está atualmente em 4,25%, ante 2,6% há um ano. O Ministério das Finanças estima que o déficit caia para 0,75% em 2026, mas isso pressupõe que todos os subsídios à energia sejam encerrados. Aí está o problema: ou eles cortam os subsídios e perdem a indústria ou subsidiam e quebram as regras do déficit.
Durante anos, a Alemanha foi a polícia do sistema deficitário e os países periféricos podem querer devolver-lhe algum do seu próprio remédio e o público alemão também é notoriamente austero. O problema é que, mesmo que os altos subsídios permaneçam, a indústria alemã está sob forte pressão. No mínimo, os subsídios precisam ser intensificados…
Há uma janela para grandes subsídios, mas o governo deve decidir se essa munição fiscal deve ser gasta para subsidiar a indústria, a transição verde ou alguma combinação de ambos. Idealmente, as torneiras estariam totalmente abertas, mas temo que os velhos instintos de gastar vençam, condenando a economia da Alemanha.
A perda do barato gás russo também afetou a multinacional alemã produtora de produtos químicos BASF, que emprega mais de 50.000 pessoas em seu país de origem. A empresa anunciou uma série de cortes desde que os oleodutos foram demolidos. Milhares de trabalhadores foram demitidos e a empresa fechou uma de suas principais instalações. Um relato de notícias do setor sobre seus cortes explica que a guerra na Ucrânia “reduziu drasticamente o fornecimento de gás natural na Europa e aumentou a conta de energia da BASF no continente em US$ 2,9 bilhões em 2022”.
O artigo de Button, como todos os analisados para este relatório, não mencionou a principal causa da redução da oferta de gás natural. Tampouco disse que foi a destruição dos oleodutos que forçou a BASF a mudar seus planos de investimento de US$ 11 bilhões em um complexo de última geração que aclamava como o padrão-ouro para a produção sustentável. O projeto será construído na China.
“Estamos cada vez mais preocupados com nosso mercado doméstico”, explicou o presidente-executivo Martin Brudermüller aos acionistas em abril passado. “A lucratividade não está mais perto de onde deveria estar.” Ele acrescentou que a empresa perdeu cerca de US$ 143 milhões na Alemanha no ano passado, após muitas décadas de lucro constante. Pinter, que morreu em 2008, teria gostado da ironia do governo Biden, em sua tentativa de proteger seu investimento político e econômico em o esforço de guerra ucraniano contra a Rússia, pode ter dado à China, outro inimigo da Casa Branca, uma mão amiga.
O autor deseja agradecer a Mohamed Elmaazi, de Londres, por sua excelente pesquisa.
Como se aclara o mistério do assassinato do presidente do Banco Ambrosiano
"Monsenhor" Marcinkus
Por Lisandro Otero
Nas últimas semanas a morte de João Paulo II e a eleição de Bento XVI ocuparam todas as páginas da imprensa mundial dedicadas ao Vaticano. Talvez por isso uma notícia no diário “La Republica”, a 4 de Maio, teve tão pouca atenção. A notícia era a seguinte: «o ex-contabilista da máfia, Pippo Calo, o negociante Flavio Carboni e a sua amiga Manuela Kleinzig, assim como o chefe da banda Magliana, Ernesto Diotavelli, foram enviados ao juiz para responder pelo assassinato do presidente do Banco Ambrosiano Roberto Calvi, morto em 18 de Junho de 1982 ao ter sido lançado da ponte de Blackfriars em Londres».
O corpo do proeminente banqueiro italiano apareceu lançado da ponte tendo-se inicialmente julgado que se tinha suicidado, mas, como a policia revelou, o seu corpo não apresentava as escoriações típicas que se produzem em tais factos e nas suas mãos não apareciam vestígios da corda que o matou.
O mistério manteve-se até há três anos quando surgiram novas provas devido a uma autópsia ordenada por uns juízes de Roma, tendo a família autorizado a exumação do cadáver. O falecido, Roberto Calvi, tinha o sobrenome de “o Banqueiro de Deus” por dirigir um banco do Vaticano. Desde então se dizia que tinha sido assassinado pela Mafia por não ter podido desembolsar os fundos que os gangsters napolitanos tinham depositado nos cofres da Igreja Católica.
O promotor do ministério público, Salvatore Vecchione, revelou que os médicos forenses chegaram à conclusão pela primeira vez que se tinha tratado de um assassinato.
O filho do banqueiro declarou ao periódico “La Republica” que o seu pai foi liquidado pela máfia que por sua vez executou esse trabalho que lhe tinha sido encomendado por uma terceira parte.
Roberto Calvi esteve envolvido no colapso do banco Ambrosiano que teve perdas de mil milhões de dólares. O caso foi um dos maiores escândalos de Itália. Calvi era membro da logia secreta P-2, à qual pertencia o actual Primeiro-ministro Berlusconi, que realizou uma meteórica ascensão financeira graças aos créditos para os seus negócios da Banca Nazionale del Lavoro y del Monte del Paschi di Siena.
Corpo de Roberto Calvi retirado da ponte do Tamisa
Em 26 de Janeiro de 1978 Berlusconi inscreveu-se na Logia P-2 com o número de 1816. A P-2 era uma organização secreta que começou, em 1963, com Licio Gelli, que recrutava altos membros do exército italiano e dos serviços secretos, assim como importantes industriais e banqueiros. Gelli foi oficial da División Herman Goering das SS alemãs, durante a Segunda Guerra Mundial, também pertenceu ao Batalhão das Camisas Negras de Mussolini. Depois da guerra, organizou as linhas de fuga para altos oficiais nazis para América do Sul, entre os quais Klaus Barbie. A P-2 chegou a constituir um estado dentro de outro estado e chegou a acariciar a ideia de efectuar um golpe para levar os neofascistas ao poder.
Gelli tinha importantes conexões com o Papado através do Cardeal Paolo Bertoli e do Arcebispo Paul Marcinkus, director do banco do Vaticano desde 1971. A partir da eleição de Wojtyla, Marcinkus foi o homem chave do papa tendo enviado mais de cem milhões de dólares ao Movimento Solidariedade para ajudar ao desmoronamento do socialismo na Polónia.
Essa é a organização financeira na qual o siciliano Michael Sindona, associado à família mafiosa dos Gambino nos Estados Unidos, chegou a ser o principal operador das transacções “offshore” do Vaticano. Amigo íntimo do cardeal Montini converteu-se numa importante personalidade na sede de São Pedro quando aquele foi eleito Papa com o nome de Paulo VI.
Roberto Calvi, gerente do Banco Ambrosiano, também propriedade da Igreja Católica, apareceu enforcado quando desapareciam mil milhões de dólares das arcas dessa instituição.
Toda esta história que parece matéria de um filme de acção, já foi rodada por Francis Coppola e pode ver-se na terceira parte do filme “O Padrinho”.
Membro distinguido e favorito dentro desta urdidura de interesses, de irmandades secretas, de confrarias, de conspiradores, de “capos” mafiosos, de defraudadores financeiros associados ao Vaticano e a ex-líderes militares do nazi-fascismo, Berlusconi é o novo Padrinho, o chefe supremo de todas as famílias mafiosas, o “capo di tutti capi” e Calvi fica só como uma sombria recordação de um passado obscuro. Agora vinte e três anos passados descobriram-se e enclausuraram-se os seus perpetradores. Segredos da Mafia e do Vaticano!
O livro de Rupert Connwell, que põe a nu as ligações ínvias do Vaticano com a Mafia e a Maçonaria.
Jovens mostram os despojos depois de terem assaltado as guaritas da polícia no Rossio - Lisboa, principio do século XX
As elites nacionais, e os seus órgãos de propaganda, costumam apresentar o povo português como um povo de brandos costumes, que aceita as contrariedades com a maior das resignações, incluindo as políticas de austeridade em tempo de vacas magras ou de crise, ora a história diz-nos exactamente o contrário. O povo português sempre aceitou mal a autoridade do Estado, nunca gostou da conscrição e revoltou-se frequentemente contra o aumento dos impostos, a escassez dos cereais e o aumento do custo de vida em geral.
Estas revoltas, motins e assuadas foram constantes ao longo do século XIX, especialmente durante a segunda metade depois do fim da guerra civil, e ao longo de toda a I República e parte do Estado Novo. A repressão se por vezes demorava por dificuldade das vias de comunicação era quase sempre implacável, apesar de raramente o estado de sítio com a correlativa suspensão das garantias constitucionais ser imposto, com o resultado inevitável de feridos e mortos.
Os textos que iremos publicar são retirados da obra de investigação de Diego Palacios Cerezales (um estrangeiro) que está publicada em “Portugal à coronhada – Protesto popular e ordem pública nos séculos XIX e XX” pela editora Tinta da China e FCSH-IHC, Lisboa-2011.
*
«Durante a segunda metade do século XIX, era habitual invocar a suposta «índole pacífica do povo português» para explicar a tranquilidade do país. A vida política alcançou paz, sem guerras civis, insurreições, revoluções ou pronunciamentos. Essa tranquilidade contrastava com a turbulenta vida política do vizinho espanhol e, também, com a do próprio Portugal das décadas anteriores.
As cortes portuguesas aboliram, em 1852, a pena de morte para os delitos políticos e, em 1867, para os penais, numa decisão pioneira de que se orgulhavam os liberais lusos. Na Espanha de Isabel II, pelo contrário, os militares intervinham frequentemente na política, a ameaça armada do carlismo mantinha-se latente, os caminhos, apesar do desenvolvimento da Guarda Civil, estavam infestados de bandoleiros e, quando havia protestos populares, as capitanias gerais assumiam as tarefas de ordem pública, suspendiam as garantias constitucionais e recorriam ao fuzilamento, frequentemente à revelia dos direitos e liberdades garantidos pelas constituições. Nada de semelhante ocorria em Portugal, o que indicava, para muitos comentaristas, a natureza distinta dos dois povos. Como gostavam de afirmar os liberais lusos, Portugal era um «enclave europeu na África que começa nos Pirinéus» 2.
A imagem de um povo português pacífico e respeitador da lei e da autoridade não era partilhada por outros observadores da época. Para Oliveira Martins, um dos intelectuais mais influentes da geração de 1870, os portugueses tinham um temperamento «Violento e ardente», como demonstrava a instabilidade política das décadas de 1830 e 1840; para o historiador Alexandre Herculano, albergavam a «impaciência e impetuosidade própria das raças latinas» enquanto, para o rei D. Pedro V «o primeiro instinto» dos portugueses era «resistir à autoridade» 3.
Para lá dos debates sobre o carácter nacional, oscilando entre a docilidade e a revolta, a segunda metade do século XIX português está recheada de episódios de protesto popular semelhantes aos de outros países. Também se registaram diversos casos de violência social que provocaram o escândalo no Parlamento, como o saque dos barcos que encalhavam nos areais de Aveiro e o assalto aos náufragos por parte das comunidades de pescadores 4. Numa perspectiva mais abrangente, constata-se que boa parte da conflituosidade social portuguesa foi uma resposta à carestia ou escassez de trigo e de outros víveres, mas, acima de tudo, que houve tensões, mobilizações e protestos de resistência ao Estado, às suas imposições normativas e inovações na cobrança fiscal. Para protestar, os portugueses do século XIX costumavam recorrer a formas de acção locais e comunitárias provenientes do Antigo Regime: as pessoas reuniam-se ao toque dos sinos, interpelavam as elites das localidades para que exercessem uma função mediadora junto das autoridades nacionais, atacavam os funcionários do poder central e saqueavam os edifícios e arquivos públicos. A par da permanência desse repertório tradicional de protesto, os portugueses adoptaram, ao longo do século XIX, novas formas de mobilização, características da política moderna: apresentaram petições, recolheram assinaturas, organizaram comícios, percorreram as cidades em cortejos multitudinários, concentraram-se em praças a exigir trabalho e, sobretudo no último quartel do século, entraram em greve. Estas novas formas de acção adaptavam-se às transformações do espaço político e económico, que acompanharam o desenvolvimento demográfico e económico ao longo do século, com a urbanização e a proletarização, mas que também correspondiam à importação de experiências dos movimentos sociais de outros países 5.
Independentemente das causas de cada mobilização, os episódios de conflitualidade alteravam aquilo a que as autoridades chamavam «ordem pública», ou seja, essa «situação e estado de legalidade normal em que as autoridades exercem as suas funções e os cidadãos respeitam e obedecem sem protestos». Para que os cidadãos cumprissem as obrigações que lhes eram impostas, os governantes utilizavam os meios coercivos do Estado e, como Portugal era o único país da Europa continental que, durante a segunda metade do século XIX, não contava com um corpo de gendarmeria, isso significava mobilizar o exército. A afirmação da autoridade estatal apresentava geralmente problemas logísticos. Quando os protestos tinham lugar longe dos quartéis, as tropas costumavam chegar demasiado tarde para os conter, já que as comunicações eram más e, apesar dos esforços governamentais, a ferrovia e o telégrafo se desenvolviam lentamente. Era frequente, como aconteceu em muitos lugares em 1862, 1867, ou até 1908, que os registos de propriedade ou do recrutamento militar já tivessem sido incendiados aquando da chegada dos soldados, paralisando a vida administrativa, ao mesmo tempo que uma lei do silêncio protegia posteriormente os responsáveis. «Os raios do poder central {chegavam} frouxos e descorados às extremidades», queixava-se um governador civil em 1858 6.
Outros problemas surgiam quando os destacamentos militares chegavam finalmente ao local do motim. Era então comum que a multidão os recebesse com vivas ao exército e gritos de «os soldados não dispararão contra o povo». De qualquer forma, se as pessoas continuassem aglomeradas em bandos vociferantes, a ilusão de que «os filhos do povo não feririam as suas mães e irmãos» desvanecia-se e, obedecendo às ordens, os agentes da autoridade disparavam contra a multidão, provocando mortos e feridos, ainda que por vezes a única justificação fosse a de que «era necessário manter o prestígio da autoridade».
Notas:
O Nacional (Porto), ano XXI, nº34, 10-11-1867, PI;
H ERCULANO (1980:35); Martins (1996b:33); Mónica (2000:13 e 140);
DCD, 05-04-1878, p 942;
Sobre as noções de repertório de protesto «antigo» e «moderno», cf. Tilly (1986 e 2004); TARROW (1997). V. também THOMPSON (1971); RUDÉ (1994).
REAP, 1858, Aveiro.
(“Portugal à coronhada – Protesto popular e ordem pública nos séculos XIX e XX”. Diego Palacios Cerezales. Tinta da China e FCSH-IHC. Lisboa. 2011).
Quando saiu da prisão de Burgos, no início de 1962, Fernando Macarro Castillo cumprira 23 anos atrás das grades, tendo-se desenvencilhado de duas penas de morte. O táxi que o levava a Madrid foi obrigado a parar várias vezes porque ele enjoava continuamente. Os horizontes abertos entonteciam-no, desabituado que estava dos amplos espaços da liberdade. Uma intensa campanha internacional levara Franco a fazer um decreto não dirigido nominalmente a ele, mas em que ele era o único contemplado, o único a quem se franqueavam as portas do cárcere!
Fernando Macarro, mais conhecido no universo político e literário pelo pseudónimo Marcos Ana, nasceu a 20 de Janeiro de 1920, em Ventosa del Rio Al Mar, uma aldeiazinha de cinquenta ou sessenta casas, a uma vintena de quilómetros de Salamanca. Contava seis anos quando o pai, camponês sem terra, arranjou trabalho de hortelão em Alcalá de Henares, perto de Madrid. Aí obteria também o único emprego da sua vida, numa sapataria. Militou nas Juventudes Católicas e aos 15 anos foi distribuir uns folhetos a um comício das Juventudes Socialistas (JS).
«Ao ouvir um orador, dei conta que aquilo é que era mesmo comigo! Produziu-me uma impressão muito forte. Os meus pais, a principio, não entendiam o que se passava. Aliás, eu vivia numa contradição imensa, pois sem deixar de ser católico, passara logo para as JS. Quando, anos mais tarde, mataram meu pai, durante um bombardeamento da Legião Condor, em Alcalá de Henares, a minha mãe contou-me que nas eleições de Fevereiro de 1936, as que deram a vitória à Frente Popular, sabendo a minha orientação política e, ao mesmo tempo, pressionados pelo patrão, meus pais hesitaram muito quanto ao voto. Por fim concordaram em votar, mas um à direita e o outro à esquerda!»
Pouco depois, como se sabe, estalou a guerra.
«Alistei-me logo num batalhão de milicianos chamado Liberdade. Avançámos imediatamente para a Serra. Deram-me uma espingarda, que era mais alta que eu! Mas, pouco depois, quando as milícias se constituíram em Exército Popular, mandaram-me embora com os de menor idade...»
Entretanto, a 7 de Novembro de 1936, com Santiago Carrillo e muitos outros, Fernando entra para o Partido Comunista de Espanha (PCE), pois «era a organização que revelava melhor consciência política na situação então vivida».
Regressado a Alcalá de Henares, Femando Macarro coordena as Juventudes Socialistas Unificadas, desenvolvendo intensa actividade. Mas não tarda a haver necessidade de homens para as frentes. E Marcos Ana integra-se no conjunto de catorze mil jovens voluntários. O ministro da Guerra, Indalecio Prieto, inicialmente renitente, acaba por aceitá-los, mas fá-los distribuir por diversas unidades.
«Com 18 anos, escrevia para jornais e, dava formação política, pelo que passei logo a comissário na 44ª Brigada, que operava na zona de El Pardo, defendendo Madrid. Recordo-me da primeira noite de sentinela, pois creio que então se me abriu o espírito poético».
Nasceria ali o poeta de nomeada internacional íntimo de Neruda e de Alberti? Aliás este, na carta com que o saudou como homem finalmente livre, dizia:
«O teu nome passou de boca em boca, desde a Universidade à pequena reunião de vizinhos.»
Os primeiros versos de Marcos Ana sairiam clandestinamente da prisão e foram publicados primeiro com o pseudónimo Cela 42, a do seu isolamento, aquela em que mais tempo esteve encerrado pesando-lhe uma condenação à morte, e depois coma composição dos nomes de seus pais, Marcos Ana, pelo qual hoje continua a responder. É este poeta que, aos 78 anos, está a organizar, enfim ele próprio, o seu verdadeiro primeiro livro de poemas! É que a obra poética de Marcos Ana está espalhada por livros, antologias, folhetos e discos, um pouco por toda a parte, mas quase tudo quanto publicou escapado ao seu controlo ou revisão. Mostra-me um LP com as vozes de Alberti e Maria Teresa León dizendo os seus poemas.
Quando começou a escrever? Digamos que a sua mão começou a fazer-se num encontro com os poemas que lhe mandaram, ocultos na palha de um colchão, quando ele estava numa cela de castigo que penetrou na prisão. Eram folhas arrancadas de livros. Sentiu então que tinha algo dizer. Assim, tal como entravam livros e cartas, saíam das cadeia poemas que o aparelho comunista distribuía pelo mundo.
«Em Burgos, Alberti foi dos primeiros apoios que tive enquanto escritor. Ali passei os últimos 18 dos 23 anos de cadeia.»
«Como o prenderam?»
«Ao terminar a guerra, disseram-nos que em Alicante havia barcos ingleses e franceses para nos evacuarem. Lá fui com outros camaradas, já saíra o último! Ficámos uns 35 mil, acabando presos pela Divisão Littorio. Foi em Abril de 1939, e não voltei a ser livre até 1962. Dali levaram-nos ao campo de concentração de Albatera, em Orihuela. Fuzilavam os que tentavam fugir. E foi mesmo durante uma execução que aproveitei para me escapar. Prenderam-me dois meses depois em Madrid, por denúncia. Entrei então para a cadeia de Porlier, também aqui na capital. Era uma antiga casa de padres.»
«Como é que se livrou de uma das condenações à morte?»
«Eu tinha muita actividade e procuravam afastar-me dos outros para não os influenciar. Mas nesta prisão não havia celas de castigo e meteram-me numa sala onde estavam maçons . Havia ali muita gente importante. Sendo o mais novo, era o rapaz . E quando, por causa de um jornal clandestino na cadeia me condenaram à morte, criou-se ali uma comissão para me salvar a vida.»
Explica:
«Havia um auditor geral no activo, aqui em Madrid, que era maçon , mas os franquistas não sabiam. Assim, deram-me uma carta para ele, que fiz sair clandestinamente. Então, o meu irmão foi a casa do auditor que, perante a carta, se pôs nervoso e disse-lhe: Vou fazer o que puder, mas não passe mais por aqui, hem? O certo é que fui indultado. Estava em Ocaña, e nas prisões quando um processo de grupo de preso se resolvia, liam os nomes dos que tinham sido comutados. Os outros já sabiam que seriam fuzilados. Foi a 5 de Abril de 1946, chamaram-nos, disseram os nomes dos outros, mas o meu não. Então, passei a noite a escrever cartas à família, ao Partido e escondia-as nos lugares donde seriam recolhidas. Ouvia as portas de outros camaradas que levavam a fuzilar, as botas dos guardas, as chaves nas fechaduras, as grades a abrirem. Amanheceu e ninguém me chamou.
Quando, de manhã, saímos ao pátio, chegou um telegrama com o meu indulto. Foi o que fez o auditor, à última hora propôs o meu indulto, alegando que as minhas faltas haviam sido cometidas em menor idade. No código há o Artigo 211 que diz que pelo cometido entre maior de 16 e menor de 18 a pena baixa um grau, e foi de pena de morte a cadeia perpétua. Mas houve camaradas meus de menor idade que foram fuzilados...»
Fig: Livro com poemas de Marcos Ana, edição argentina. (Foto in “Trincheiras”)
«Um pedacinho de céu...»
Quando Marcos Ana foi posto em liberdade, do formidável coro daqueles que montaram a campanha para a sua libertação, destacam-se duas cartas. Qualquer delas é a exaltação do Homem, do Combatente e do Poeta. Uma, procedente do Chile, era subscrita por um dos nomes que mais prestigiaram o Prémio Nobel de Literatura, Pablo Neruda, e a outra por Rafael Alberti e Maria Teresa León, nomes fundamentais da Literatura Espanhola.
Neruda, comovido e comovente:
Desde aqueles dias em que perdemos – os povos e os poetas – a guerra, perdemos também todos grande parte da poesia e muitos perderam a vida e a liberdade. Assim morreram-me muitos poetas e também nós sofremos tormento e morte. Acrescentamos uma e outra cruz à necrologia deste tempo e trazemos estas cruzes no nosso próprio peito para que não possam ser esquecidas. Reprovamos a todos o esquecimento que não aceitamos, nós os que continuamos feridos.
Exaltando Marcos Ana:
Por isso, quando sais a respirar a pobre liberdade espanhola que pouco significariam estas palavras não levassem nelas a tua própria paixão, a mesma luta tua e nossa comum esperança. Tu és o rosto que esperávamos, ressurrecto, resplandecente como se em ti voltassem a viver lutando os que tombaram.
E a terminar:
Recebemos-te na ardente poesia militante que continuará lutando porque não só tem sílabas como sangue. Abraçamos-te com infinita ternura e com a viva fraternidade de quem sempre te esperou.
Maria Teresa León e Rafael Alberti:
Hoje sabemos o que é o júbilo. Estamos contentes. Saíste dos anos amargos com a tua juventude intacta. Estreias a vida. Entraste pela porta grande no amor da tua gente: a tua gente somos nós, a tua família, a que sofria esperando.
E fico a pensar na resposta de Marcos Ana, de coração apertado, a estes dois escritores seus amigos, quando lhe perguntaram como era a vida na prisão:
A minha vida Posso contá-la em duas palavras:
Um pátio.
E um pedacinho de céu onde às vezes passam uma nuvem perdida e algum pássaro fugindo das suas asas.
(Texto retirado da obra de José Viale Moutinho “Trincheiras”, editora Ausência, Vila Nova de Gaia, 2003. Um livro a ler, assim como toda a obra de Viale Moutinho sobre a Guerra Civil de Espanha; o escritor português que mais se tem dedicado a deixar ficar na memória colectiva escrita a terrível guerra civil que fez mais de 1 milhão de mortos, e que a actual classe política espanhola pretende apagar e absolver.)
Ontem às onze fumaste um cigarro encontrei-te sentado ficámos para perder todos os teus eléctricos os meus estavam perdidos por natureza própria
Andámos dez quilómetros a pé ninguém nos viu passar excepto claro os porteiros é da natureza das coisas ser-se visto pelos porteiros
Olha como só tu sabes olhar a rua os costumes O público o vinco das tuas calças está cheio de frio é há quatro mil pessoas interessadas nisso
Não faz mal abracem-me os teus olhos de extremo a extremo azuis vai ser assim durante muito tempo decorrerão muitos séculos antes de nós mas não te importes muito nós só temos a ver com o presente perfeito corsários de olhos de gato intransponível maravilhados maravilhosos únicos nem pretérito nem futuro tem o estranho verbo nosso
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O regresso de ulisses
O HOMEM É UMA MULHER QUE EM VEZ DE TER UMA CONA TEM UMA PIÇA, O QUE EM NADA PREJUDICA O NORMAL ANDAMENTO DAS COISAS E ACRESCENTA UM TIQUE DELICIOSO À DIVERSIDADE DA ESPÉCIE. MAS O HOMEM É UMA MULHER QUE NUNCA SE COMPORTOU COMO MULHER, E QUIS DIFERENCIAR-SE, FAZER CHIC, NÃO CONSEGUINDO COM ISSO SENÃO PRODUZIR MONSTRUOSIDADES COMO ESTA FAMOSA «CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL» SOB A QUAL SUFOCAMOS MAS QUE, FELIZMENTE, VAI DESAPARECER EM BRVE.
PELO CONTRÁRIO, A MULHER, QUE É UM HOMEM, SOUBE SEMPRE GUARDAR DISTÂNCIAS E NUNCA PRETENDEU SUBSTITUIR-SE À VIDA SISTEMATIZANDO PUERILIDADES, COMO FILOSOFIA, AVIAÇÃO, CIÊNCIA, MÚSICA (SINFÓNICA), GUERRAS, ETC… ALGUNS PEDANTES QUE SE TOMAM POR LIBERTADORES DIZEM «ESCRAVA DO HOMEM» E ELA RI ÀS ESCÂNCARAS, COM A SUA CONA, QUE É UM HOMEM.
DESDE O INÍCIO DOS TEMPOS, ANTES DO ROBOTSTÓNICA GREGA, OS ÚNICOS HOMENS-HOMENS QUE APARECERAM FORAM OS HOMENS-MEDICINA, OS HOMENS-XAMÃS (HOMOSSEXUAIS ARQUIMULHERES), ESSES E AS AMAZONAS (SUPER-MULHERES-HOMENS). MAS UNS E OUTRAS ERAM DEMAIS, E DESDE O INÍCIO DOS TEMPOS ERAM DEMAIS DEMAIS. E DESDE O INÍCIO DOS TEMPOS QUE PENÉLOPE ESPERA O REGRESSO DE ULISSES. MAS O REGRESSO DE ULISSES É O HOMEME QUE É UMA MULHER E A MULHER QUE É UMA MULHER QUE É UM HOMEM.
*
Lembra-te
Lembra-te que todos os momentos que nos coroaram todas as estradas radiosas que abrimos irão achando sem fim seu ansioso lugar seu botão de florir o horizonte e que dessa procura extenuante e precisa não teremos sinal senão o de saber que irá por onde fomos um para o outro vividos"
Pena Capital (Assírio & Alvim, 2004)
*
História de cão
eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento
tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros
entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada
depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou
ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia
estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar
e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo
o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória
dos lados não ficou nada
*
Em forma de poema
dou os meus prantos às procelas para que cessem e me deixem dou os meus sonhos às estrelas para que os meus sonhos não se queixem
fico só como o lobisomem na estrada sem forma e sem fundo meus sonhos no ar dormem dormem à espera da manhã do mundo
vê tu se nesta alegoria descobres porque estou inteiro e nunca terei agonia sem fartar meus sonhos primeiro
*
o futuro rei rapAz de espadas
Morfologia psicológica:
a coroa – o sexo
o ceptro – a vírgula
as asas – as garras
as pernas – o fogo
a cabeça – o túnel
a mão esquerda – a gruta
a pata direita – a lua
os pés – o desejo
as membranas – o olhar
Primeiro surgimento experimentado:
o caso Mirin Dajos, na Holanda.
Mário Cesariny (1923-2006) Manual de Prestidigitação (Assírio & Alvim, 2005)
Publicado pela primeira vez em 11 de agosto de 2022
A decisão do presidente Harry S. Truman de lançar bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki estabeleceu as bases para uma era de hegemonia global dos EUA e enriqueceu corporações como General Electric, DuPont, Union Carbide, Bechtel e Westinghouse, que faturaram centenas de bilhões de dólares desenvolvendo geração após geração de armas nucleares de “primeiro ataque”.
Os líderes dos EUA, com a intenção de provocar guerras com a China e/ou a Rússia, parecem dispostos a usar essas armas novamente – se não os impedirmos.
Os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, há 78 anos, marcaram a virada crucial na história do século XX . No final da Segunda Guerra Mundial, a Europa, a União Soviética e o Império Japonês estavam em ruínas, e os Estados Unidos estavam em uma posição de poder sem precedentes com a posse exclusiva da Bomba.
Infelizmente, os EUA usaram esse poder para lançar a Guerra Fria contra a União Soviética e iniciaram uma construção nuclear que empobreceu o mundo inteiro e nos levou à beira do esquecimento nuclear. A questão permanece: por que o governo dos EUA decidiu iniciar a Guerra Fria com os bombardeios atômicos em vez de seguir um curso de diplomacia e acordo negociado?
Há um amplo consenso entre os historiadores sérios de que os bombardeios atômicos não foram necessários para acabar com a guerra com o Japão. Em 1945, o Japão era uma nação destruída e faminta que buscava desesperadamente uma rendição negociada e a União Soviética se preparava para entrar na guerra do Pacífico no início de agosto, eliminando a necessidade de uma invasão do continente japonês. Para o governo Truman, o uso da bomba serviu a dois propósitos: uma demonstração do terrível poder do átomo dividido contra o mundo inteiro e um meio de negar à União Soviética um papel importante no acordo do pós-guerra.
Em 6 de agosto às 8h15 (5 de agosto, 19h15 EDT), Hiroshima foi aniquilada instantaneamente por uma única bomba de urânio.
Três dias depois, em 9 de agosto, e um dia depois que os soviéticos entraram na guerra do Pacífico, Nagasaki foi igualmente erradicada por uma bomba de plutônio.
Mais de 200.000 civis japoneses e trabalhadores coreanos foram massacrados desnecessariamente para acelerar a promoção da política externa dos EUA em todo o mundo.
Mas para entender verdadeiramente a decisão de usar a bomba e iniciar a Guerra Fria, é crucial entender quem se beneficiou mais.
Os grandes vencedores foram a claque de corporações que se levantaram para “fazer uma matança” se os EUA iniciassem uma construção nuclear massiva e lançassem uma Guerra Fria. Corporações lideradas pela General Electric, DuPont, Union Carbide, Bechtel e Westinghouse ganharam centenas de bilhões de dólares desenvolvendo geração após geração de armas nucleares de “primeiro ataque” e armas “convencionais”.
Todo o espectro da América corporativa aplaudiu a política do governo de usar força militar e ameaças nucleares para obter um suprimento confiável de mão de obra barata, recursos naturais baratos e mercados, principalmente de nações empobrecidas do Hemisfério Sul.
Técnicos de produção da Pantex preparam B61s para testes de vigilância. A bomba nuclear B61 é a principal arma termonuclear no estoque duradouro dos EUA . A Pantex é uma das seis instalações de produção da “Nuclear Security Enterprise” da National Nuclear Security Administration. Corporações como a Pantex fizeram uma matança com a corrida armamentista nuclear desencadeada pelo lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. [Fonte: nukewatch.org]
Em 1945, os EUA lançaram um primeiro ataque com armas atômicas contra Hiroshima e Nagasaki para consolidar e avançar sua posição sem precedentes de poder econômico, político e militar.
Hoje, os EUA continuam resolutamente preparados para fazer exatamente o mesmo!
Sua estratégia foi e continua sendo ameaçar o uso de armas nucleares para promover os interesses dos EUA e, se necessário, lançar um primeiro ataque. Nas palavras da refutação do Joint Chiefs of Staff à proposta de Jimmy Carter em 1977 de reduzir o arsenal nuclear dos EUA para 200 ogivas,
“A estratégia nuclear dos EUA mantém força militar suficiente… [1]
E, na Revisão da Postura Nuclear de 1977, apresentada em 14 de janeiro de 1977, o secretário de Defesa cessante, Donald Rumsfeld, escreveu:
“A estratégia mais ambiciosa (limitadora de danos) determina uma capacidade de primeiro ataque contra as forças ofensivas estratégicas de um inimigo que procura destruir o máximo possível de sua megatonagem antes que ela possa ser colocada em jogo. A retaliação residual de um inimigo, presumivelmente dirigida contra alvos urbano-industriais, seria atenuada ainda mais por uma combinação de defesas ativas e passivas, incluindo ASW (anti-submarino), ABMs, defesas antibombardeiros, defesa civil, estoques de alimentos e outros essenciais, e até mesmo a dispersão e endurecimento da indústria essencial.” [2]
Depois de Hiroshima e Nagasaki, a política nuclear dos EUA continuou a ser o primeiro ataque, pelo menos até a assinatura dos tratados do Míssil Antibalístico (ABM) e da Força Nuclear de Alcance Intermediário (INF) que, pela primeira vez, realmente levantaram o limite para o uso de armas nucleares. Os tratados ABM e INF foram, indiscutivelmente, os tratados de controle de armas mais importantes porque ambos elevaram o limiar para a guerra nuclear e, naquela época, marcaram o início de uma tentativa de retirada de uma estratégia de primeiro ataque. Não é coincidência que ambos os tratados de redução de risco nuclear tenham sido revogados pelos EUA em sua busca pela hegemonia global em face de um mundo multipolar emergente rapidamente.
Analistas como Arjun Makhijani, Daniel Ellsberg e Michio Kaku apontaram que o governo dos EUA ameaçou usar armas nucleares dezenas de vezes desde Nagasaki, geralmente contra nações do Terceiro Mundo que exercem seus direitos à autodeterminação. Eles argumentam que, desde o início, a função central das armas nucleares dos EUA tem sido um instrumento primário de política externa, e não de dissuasão.
Elsberg explica:
“De novo e de novo, geralmente em segredo do público americano, armas nucleares foram usadas: … da maneira precisa que uma arma é usada quando você a aponta para a cabeça de alguém em um confronto direto, quer o gatilho seja puxado ou não.” [3]
Por que Hiroshima e Nagasaki são hoje importantes
Embora o número de armas nucleares tenha sido reduzido para cerca de 13.000, as armas de hoje são muito mais precisas, sofisticadas e utilizáveis. Os cientistas estimam que mesmo uma pequena fração dessas armas, apenas uma centena, se detonadas contra cidades resultariam em um inverno nuclear global e incontáveis mortes.[4]
Atualmente, o Relógio do Juízo Final do Boletim dos Cientistas Atômicos está definido para 100 segundos para a meia-noite, o mais próximo de todos os tempos. Isso se deve em parte à ameaça existencial representada pelas mudanças climáticas, mas também ao atual limite radicalmente reduzido para a guerra nuclear representado por uma série de fatores, incluindo a guerra por procuração EUA-Rússia na Ucrânia, a rápida deterioração das relações EUA-China, o surgimento de uma economia global multipolar substituindo rapidamente a hegemonia dos EUA, o fim da era de combustíveis fósseis abundantes e baratos e outros recursos críticos, e a ausência dos tratados ABM e INF. Nas palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres, falando durante as cerimônias de abertura da Conferência de Revisão do TNP de 2022,“Hoje, a humanidade está a apenas um mal-entendido, um erro de cálculo da aniquilação nuclear.” [5]
A guerra nuclear é mais provável devido às intervenções militares causadas pelo aumento das guerras e conflitos regionais por recursos, como o atual conflito na Ucrânia. À medida que os recursos diminuem, podemos esperar ver mais e mais conflitos regionais, qualquer um dos quais pode evoluir rapidamente para uma guerra nuclear. Sem os dois tratados de armas nucleares mais importantes, e o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (NPT), atualmente em revisão, há pouco para impedir que um conflito regional “torne-se nuclear”.
A ausência dos tratados ABM ou INF e a expansão da OTAN até as fronteiras da Rússia deixa os EUA/OTAN e a Rússia cara a cara, cada lado com armas nucleares prontas para serem lançadas em alerta. Se algum dos lados se sentisse ameaçado o suficiente para lançar um míssil nuclear, o tempo de alerta seria de cerca de cinco minutos. A Rússia considera esta situação existencial para sua sobrevivência e deixou clara esta “Linha Vermelha” nos últimos 30 anos, inclusive sob Yeltsin.
As sanções impostas à Rússia pelos EUA e pela OTAN desde 24 de fevereiro de 2022 tinham como objetivo o colapso rápido da economia russa e isolar a Rússia do resto do mundo. Os resultados tiveram um efeito oposto espetacular. Embora o valor do rublo tenha se fortalecido dramaticamente, a Rússia procurou nações como China, Índia, Irã e outras para estabelecer novos acordos comerciais e acordos alternativos de pagamento.
Enquanto isso, a União Européia está sofrendo um golpe econômico com as sanções, com o aumento da inflação e a perspectiva de um inverno gelado sem combustível acessível. A emergência inexorável de um mundo multipolar para substituir a hegemonia dos EUA foi acelerada pelas sanções. É extremamente improvável que os EUA aceitem de bom grado essa mudança no status quo global, uma probabilidade que pressagia confrontos futuros.
A mudança climática global aumenta a instabilidade política e, por si só, reduz o limiar para a guerra nuclear. Os cientistas alertam que, a menos que ocorram reduções radicais nas emissões de gases de efeito estufa na próxima década, as consequências serão catastróficas. Já vemos milhões de refugiados climáticos cruzando fronteiras políticas para escapar da mudança climática.
Parece que todos os dias há uma nova inundação, seca, furacão ou outro evento de “mil anos”. Com nações adversárias como a Índia e o Paquistão, cada uma possuindo centenas de armas nucleares, e Israel possuindo centenas de armas nucleares e um sofisticado sistema de entrega para ameaçar seus vizinhos e até mesmo Moscou, o menor incidente pode desencadear um ataque nuclear. (Jonathan Pollard foi condenado por espionagem e preso por fornecer a Israel informações ultrassecretas sobre a União Soviética.)
Finalmente, as relações políticas e econômicas entre os EUA e a República Popular da China estão se deteriorando rapidamente. Após anos de hostilidade em relação à China, desde o “pivô para a Ásia” de Obama até a cúpula de 18 de março de 2021, que terminou em um confronto tenso, até a recente visita de Nancy Pelosi a Taiwan, os EUA aumentaram constantemente sua hostilidade em relação à China.
Um editorial de 3 de agosto no Global Times destaca a gravidade da situação: “As contramedidas da China não serão pontuais, mas uma combinação de ações de longo prazo, resolutas e de avanço constante”. [6]
Imediatamente após a polêmica visita de Pelosi, a China respondeu anunciando o estabelecimento de seis grandes zonas de exclusão ao redor de Taiwan a partir de quinta-feira e com duração de quatro dias. Em um movimento sem precedentes, três das seis zonas penetram no limite de 12 milhas de Taiwan. Como observa o editorial do Global Times, esta será a primeira de, sem dúvida, muitas respostas à visita de Pelosi à China. Esse choque crescente de titãs econômicos pode facilmente levar a outro ponto de inflamação nuclear.
O desafio para os movimentos de paz, justiça e meio ambiente é organizar rapidamente uma ampla base política capaz de desafiar a atual estrutura de poder empresarial vigente. Seu controle corporativo quase absoluto sobre a mídia, incluindo a transmissão pública, complica nossa já difícil tarefa, uma tarefa ainda mais difícil pela captura corporativa sem precedentes de ambos os partidos políticos.
Para educar e mobilizar o público, devemos adotar estratégias que reflitam as atuais realidades políticas e técnicas, enfatizando cada vez mais a interconexão das questões e a importância do trabalho em rede.
Protestos como este em Nova York, em 2 de agosto, precisam continuar. O homem no centro segurando a placa, com camisa azul e chapéu azul, é um Hibakusha, um sobrevivente do bombardeio atômico dos EUA em Hiroshima e Nagasaki. Ele tinha nove meses na época. [Fonte: Michaela Czerkies/Brooklyn For Peace]
A chave para impedir o uso de armas nucleares – um ato que inevitavelmente terá consequências calamitosas para o mundo inteiro – está na capacidade dos movimentos antinuclear, antiguerra, de justiça social e ambiental de entender que suas questões estão inextricavelmente ligadas . A melhor estratégia para abolir as armas nucleares é ampliar e fortalecer o movimento popular para desafiar todos os aspectos do estado corporativo imperial.
Em Dialética da Guerra, Martin Shaw escreve:
“No momento em que a guerra nuclear é provável, a resistência à guerra pode estar em grande parte fora de questão. A resistência à guerra nuclear deve ser bem-sucedida no período de preparação geral para a guerra. A questão chave é a relação entre militarismo e antimilitarismo, e as lutas sociais mais amplas da sociedade na qual a guerra nuclear é preparada”. [7]
Cada aniversário dos bombardeios atômicos nos oferece uma oportunidade única de estudar e refletir sobre os horrores de uma possível guerra nuclear e a destruição maciça já provocada pela busca da loucura nuclear.
Os Hibakusha (sobreviventes vivos de Hiroshima/Nagasaki) nos lembram que qualquer uso de armas nucleares não pode ser limitado e não será possível sobreviver. A mensagem deles é especialmente urgente quando o mundo enfrenta a “catástrofe sem paralelo” profetizada por Albert Einstein no alvorecer da Era Nuclear.
*
John Steinbach: ativista e autor, escreveu extensivamente sobre questões ambientais, econômicas, energéticas, de justiça social e de energia nuclear. Seus trabalhos incluem o mapa e banco de dados Radiation Hazards USA em co-autoria com sua falecida esposa Louise Franklin-Ramirez. O artigo de Steinbach de 2002 no CovertAction Quarterly (CAQ) , “ Palestina na mira: a política dos EUA e a luta pela nacionalidade ”, recebeu o prêmio Project Censored em 2004. John vive e trabalha em Prince William County, Virgínia. Ele é ativo em várias organizações de paz e justiça e recebeu o Prêmio Príncipe William de Direitos Humanos de 2007. John pode ser contatado em johnsteinbach1@verizon.net .
Notas
Michio Kaku e Daniel Axelrod, To Win A Nuclear War: the Pentagon's Secret War Plans (Boston: South End Press, 1987), p. 184.
Robert Aldridge, The Counterforce Syndrome: A Guide to US Nuclear Weapons and Strategic Doctrine (Washington, DC: Transnational Institute, 1978), p. 9.
Daniel Ellsberg, “A Call to Mutiny,” Protest and Survive, EP Thompson e Dan Smith, Eds. (Nova York: Monthly Review Press, 1981), p. 1.
Compartir redes sociais, homofobia, machismo, apego ao dinheiro, religião interferindo no Estado. Os motivos que inspiram o “Fora Feliciano”* se aplicam ao papa. Com o agravante de que ele é bem mais poderoso.
Papa Francisco é um Feliciano muito mais poderoso. Os evangélicos estão sendo injustiçados. O tsunami de críticas que atingiu Marco Feliciano, Silas Malafaia e demais líderes evangélicos fundamentalistas se aplica ao papa Francisco e à Igreja Católica.
Explico: as mesmas bandeiras conservadoras levantadas pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos do Congresso estão no centro da atuação da igreja católica há séculos. E o argentino Mario Bergoglio, agora chamado de Francisco, comunga destes ideais e não se mostra disposto a alterá-los. Pelo contrário. Vamos por partes:
1- Primeiro, a homofobia
Muito se reclamou da atuação de Feliciano contra os direitos fundamentais dos homossexuais. A coleção de frases e a atuação do pastor não deixam dúvidas quanto à sua posição. Como é sabido, a igreja católica igualmente condena a homossexualidade, e considera pecado o amor da população LGBT.
O próprio Francisco, pessoalmente, demonstra preocupação com o que chama de “lobby gay” no Vaticano. Conforme revelou o site católico Reflexión y Liberación, o pontífice afirmou o seguinte em uma audiência recente com a diretoria da Confederação Latino-Americana e Caribenha de Religiosos: “Na Cúria há gente santa de verdade. Mas também há uma corrente de corrupção, é verdade. Fala-se de lobby gay, e é verdade, ele está aí… temos que ver o que podemos fazer”.
2- Segundo, os direitos da mulher
Em entrevista para o livro “Religiões e política”, o deputado do PSC-SP afirmou o seguinte: “Quando você estimula uma mulher a ter os mesmos direitos do homem, ela querendo trabalhar, a sua parcela como mãe começa a ficar anulada, e, para que ela não seja mãe, só há uma maneira que se conhece: ou ela não se casa, ou mantém um casamento, um relacionamento com uma pessoa do mesmo sexo; [assim] você destrói a família, cria-se uma sociedade só com homossexuais, e essa sociedade tende a desaparecer, porque ela não gera filhos”.
A igreja católica sempre tratou a mulher de forma diferenciada. A começar pelo fato de que elas não podem ser ordenadas. Aos homens (padres) cabe orientar os fiéis, ditar os rumos da igreja e do mundo. Às freiras cabem tarefas como cuidar dos enfermos e necessitados e, por exemplo, cozinhar, lavar e passar para o “homem simples de fala mansa” que está entre nós.
Mais: estão sendo distribuídas 2 milhões de cópias de um Manual de Bioética (em PDF) durante a visita do papa ao Brasil, sendo quase a metade da tiragem a versão em português, segundo informações da Confederação Nacional de Bispos Brasileiros. De suas 72 páginas, praticamente a metade traz pilhas de informações “científicas” e julgamentos morais contra o aborto. O restante divide-se entre a condenação de pesquisas com células-tronco, a condenação da inseminação artificial e a condenação da eutanásia.
O direito sobre o próprio corpo, uma questão que o movimento feminista do mundo todo considera vital desde a década de 1960, é classificado como “crime” em diversos pontos do texto. De acordo com o manual, mesmo em caso de estupro ou de inviabilidade do feto, a interrupção da gravidez não pode ser sequer aventada: “O direito de matar o próprio filho não pode ser fonte de liberdade nem de realização pessoal”. Todos os métodos contraceptivos, pílula e DIU inclusive, são considerados abortivos e criminosos.
3- Em terceiro lugar, o apego ao dinheiro
Causou espécie um vídeo que circulou recentemente, no qual o pastor Marco Feliciano pedia a senha de um cartão de crédito para um fiel, dizendo que, caso a senha não fosse revelada, “o milagre não viria”. Costuma ser igualmente criticada a cobrança do dízimo por parte de igrejas evangélicas –como se a igreja católica não o fizesse.
Tudo isso, contudo, é esmola perto do patrimônio misterioso e incalculável da igreja católica. A revista Exame fez umareportagem bastante reveladora sobre o Banco do Vaticano. Entre diversos casos de lavagem de dinheiro, escândalos sexuais, corrupção e má administração relatados pela publicação, destaco uma informação: o banco gere cerca de 6 bilhões de euros em ativos. Vou repetir: 6 bilhões de euros.
Isso sem contar as milhares de propriedades da igreja católica ao redor do globo todo. Não sou um estudioso do cristianismo, mas acredito que valores como ajuda ao próximo, desapego e amparo aos pobres não combinam com a acumulação de fortunas dessa grandeza. Mesmo que o chefe da instituição prefira andar num fiat “sem luxo” e dormir num “quarto simples”.
4- Em quarto lugar, a promiscuidade com o poder público
Muito se critica Feliciano e a bancada evangélica por usarem o poder público que detêm para obter vantagens para suas instituições. O que afronta o conceito de estado laico. O catolicismo faz o mesmo.
O amplo uso de estruturas e verbas públicas durante a visita de Francisco; o mesmo lobby para isenções fiscais e outras benesses financeiras; a mesma submissão dos governantes (de Dilma ao vereador de Pindamonhangaba). Mais: há crucifixos em repartições públicas (desrespeitando os evangélicos, inclusive) e mensagens religiosas nas notas de dinheiro, que são um símbolo nacional. E por aí vai. (Parênteses: pedofilia)
Aqui não há o paralelo com Feliciano, mas vale lembrar das inúmeras acusações de abuso sexual contra padres no mundo inteiro, muitas cometidas contra menores e encobertas pelo Vaticano. A situação é tão grave que a ONU pediu, agora no começo de julho, esclarecimentos sobre os crimes cometidos por padres em todo mundo. Como o vaticano é membro das Nações Unidas e tem a falta de transparência como uma de suas marcas, a ONU quer saber o que a Igreja Católica têm feito de efetivocontra os criminosos que foram descobertos em suas fileiras.
5- Por fim, o apoio da mídia
Aqui, uma das maiores injustiças com Marco Feliciano. O pastor é hostilizado por todos, TV Globo inclusa. Suas posições, conforme demonstrado, são irmãs siamesas das defendidas por Francisco e pela religião que comanda. E dos dogmas vindos de Roma ninguém reclama.
Pior: a maior TV do país (bem como quase todos os outros veículos de imprensa) ajoelha-se ao mandatário da tv católica. E não acredito ser esta uma decisão baseada somente pela audiência. A missa de domingo está na grade da Globo há décadas –atualmente é celebrada ao vivo pelo Padre Marcelo. E a emissora, apenas recentemente, de olho na perda de audiência e de dinheiro, começou um flerte institucional com os evangélicos, inaugurado com o festival de músicas gospel Promessas.
Pare finalizar, deixo vocês com algumas frases do primeiro bloco do Jornal Nacional desta segunda-feira. Tentem imaginar Marco Feliciano ou qualquer outro líder evangélico sendo tratado desta forma pelo noticioso visto por quase metade da população brasileira toda noite:
“De papamóvel, fez um passeio que vai ficar na memória dos fieis” “Distribuiu simpatia” “Mais perto do povo, do jeito que o papa Francisco gosta”
Fiel: “Foi um presente de Deus, eu consegui estar perto dele e pude constatar que ele realmente é esse pastor humilde, amigo do povo e que veio pra resgatar mais fieis pra igreja católica” “Deixou uma legião de fieis encantados” “Santo, abençoado, humilde… os elogios vão brotando”
Fiel: “Ele é gente como a gente” “A cada esquina ele faz novos amigos” “Os gritos pareciam saídos de um show de rock” “Se fosse só isso, já valeria a pena, e o papa Francisco acabou de chegar”.
Quando o papa Bento XVI (Joseph Ratzinger) foi obrigado a ceder o lugar ao actual papa Francisco (Mario Bergoglio)
por Eduardo Febbro
Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa Bento XVI decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de sua viagem ao México e a Cuba. Naquele momento, o papa, que encarna o que o diretor da École Pratique des Hautes Études de Paris (Sorbonne), Philippe Portier, chama "uma continuidade pesada" de seu predecessor, João Paulo II, descobriu em um relatório elaborado por um grupo de cardeais os abismos nada espirituais nos quais a igreja havia caído: corrupção, finanças obscuras, guerras fratricidas pelo poder, roubo massivo de documentos secretos, luta entre facções, lavagem de dinheiro. O Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato sem limites nem moral alguma onde a cúria faminta de poder fomentava delações, traições, artimanhas e operações de inteligência para manter suas prerrogativas e privilégios a frente das instituições religiosas.
Muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob o mandato de Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do planeta. Joseph Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro dos padres pedófilos, mas não o de modernizar a igreja ou as práticas vaticanas. Bento XVI foi, como assinala Philippe Portier, um continuador da obra de João Paulo II: "desde 1981 seguiu o reino de seu predecessor acompanhando vários textos importantes que redigiu: a condenação das teologias da libertação dos anos 1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a propósito da doutrina da igreja sobre os temas da vida; o Splendor veritas, um texto fundamental redigido a quatro mãos com Wojtyla". Esses dois textos citados pelo especialista francês são um compêndio prático da visão reacionária da igreja sobre as questões políticas, sociais e científicas do mundo moderno.
O Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa desde 2003, tem em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo de um dragão que simboliza a lealdade o lema diz "dar testemunho da verdade". Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente. Depois do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do papa e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como faria qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos modernos. Para isso contratou o jornalista estadunidense Greg Burke, membro da Opus Dei e ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da cadeia Fox. Burke tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da igreja. "Minha ideia é trazer luz", disse Burke ao assumir o posto. Muito tarde. Não há nada de claro na cúpula da igreja católica.
A divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada pelo mordomo do papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi uma operação sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo misteriosos: operação contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone, conspiração para empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um italiano na tentativa de frear a luta interna em curso e a avalanche de segredos, os vatileaks fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a Greg Burke. Um inferno de paredes pintadas com anjos não é fácil de redesenhar.
Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou. Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor Lefebvre, saudaram a figura do Papa. Não é para menos: uma das primeiras missões que Ratzinger empreendeu consistiu em suprimir as sanções canônicas adotadas contra os partidários fascistóides e ultrarreacionários do Mosenhor Levebvre e, por conseguinte, legitimar no seio da igreja essa corrente retrógada que, de Pinochet a Videla, apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo.
Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a respeito que o papa "se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado". E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira. O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas maquiadas e o dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por João Paulo II, que, para muitos especialistas, explica a crise atual.
Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi para o posto de presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante do Banco Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi participou da preparação da encíclica social e econômica Caritas in veritate, publicada pelo papa Bento XVI em julho passado. A encíclica exige mais justiça social e propõe regras mais transparentes para o sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como objetivo ordenar as turvas águas das finanças do Vaticano. As contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro cujas origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo norteamericano Paul Marcinkus, o chamado "banqueiro de Deus", presidente do IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na época.
João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro "não contabilizado" do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade, algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais. Marcinkus terminou seus dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco buraco negro de perdas e investimentos mafiosos, além de vários cadáveres. No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais conhecida como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.
Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e só permaneceu três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma fulminante em 2012 por supostas "irregularidades" em sua gestão. Tedeschi saiu do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do Papa, justamente no momento em que o Vaticano estava sendo investigado por suposta violação das normas contra a lavagem de dinheiro. Na verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio da guerra entre facções no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou a elaborar um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo: contas secretas onde se escondia dinheiro sujo de "políticos, intermediários, construtores e altos funcionários do Estado". Até Matteo Messina Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no IOR por meio de laranjas.
Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o Vaticano diz que o banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por conselheiros do banco com o respaldo do secretário de Estado, Monsenhor Bertone, um inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão de cardeais que fiscaliza o funcionamento do banco. Sua destituição veio acompanhada pela difusão de um "documento" que o vinculava ao vazamento de documentos roubados do papa.
Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no qual vivemos: corrupção, capitalismo suicida, proteção de privilegiados, circuitos de poder que se autoalimentam, o Vaticano não é mais do que um reflexo pontual e decadente da própria decadência do sistema.