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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Súplicas Atendidas

30.09.23 | Manuel

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Truman Capote

Um velho ditado texano: as mulheres são como as cascavéis — a última coisa a morrer é a cauda.

Algumas mulheres aguentam tudo durante toda a vida por uma foda: a miss Langman, segundo me contaram, era uma dessas entusiastas, até uma apoplexia a ter matado.

Todavia, como Kate McCloud tinha o costume de dizer: «Uma foda realmente boa vale uma viagem a volta do mundo — em mais do que um sentido.» E Kate McCloud, como todos nós sabemos, ganhou uma reputação: Virgem Santíssima, se a Kate tivesse tantas pichas a sair dela como as que já lhe enfiaram, pareceria um porco-espinho.

Mas Miss Langman, que Deus a guarde em paz, tinha cumprido a sua parte em A Historia de P. B. James — Um Exclusivo Paranóico em Associação com as Produções Priapus; pois P. B. já tinha encontrado o futuro. O nome dele era Denham Fouts - Denny, para os amigos, entre eles Christopher Isherwood e Gore Vidal, dos quais, depois da sua morte, o empalaram como personagem principal em obras da sua autoria, Vidal em Páginas de um Diário Abandonado e Isherwood num romance, Down There on a Visit.

Denny, muito antes de nos tornarmos compinchas, era uma  lenda que eu conhecia de cor e salteado, um mito intitulado: O Rapaz Mais Bem Sustentado do Mundo.

Quando Denny tinha dezasseis anos, vivia numa miserável aldeola perdida da Florida onde trabalhava numa padaria do pai. A salvação — ruína, para alguns — chegou certa manhã sob a forma de um milionário gorducho que guiava um descapotável Duesenberg, de 1936, novinho em folha e fabricado de encomenda. O tipo era um magnata da indústria de cosméticos cuja fortuna dependia, em grande parte, de um famoso óleo para bronzear; tinha casado duas vezes, mas a sua preferência eram rapazinhos entre os catorze e os dezasseis anos de idade. Quando viu Denny, deve ter sido como se um coleccionador de porcelana antiga se tivesse perdido num ferro-velho e desse de caras com um serviço de chá de Meissen: um choque de todo o tamanho! um arrepio de ganância! Comprou uns donuts e convidou Denny para dar uma volta no Duesenberg, até lhe passou o volante; e, nessa noite, sem sequer ter voltado a casa para mudar de roupa interior, Denny deu por ele a centenas de quilómetros de distância, em Miami. Um mês mais tarde, os seus pesarosos pais, já desesperados depois de infrutíferas buscas nos pântanos locais, receberam uma carta enviada de Paris, França. Essa carta foi a primeira de uma obra em vários volumes: «As Viagens Universais do Nosso Filho Denham Fouts».

Paris, Tunis, Berlim, Capri, St. Moritz, Budapeste, Belgrado, Cap Ferrat, Biarritz, Veneza, Arenas, Istambul, Moscovo, Marrocos, Estoril, Londres, Bombaim, Calcutá, Londres, Londres, Paris, Paris, Paris — e o proprietário original já tinha sido largado muito longe, oh, mais longe que Capri, meu lindo; pois foi em Capri que Denny foi caçado e fugiu com um bisavô de setenta anos que também era director da Dutch Petroleum. Este cavalheiro perdeu Denny em favor da realeza — príncipe Paulo, mais tarde rei Paulo, da Grécia. A idade do príncipe era mais próxima da de Denny e o afecto que os unia mais equilibrado, tanto assim que, certa vez, foram ver um tipo em Viena que lhes fez uma tatuagem idêntica — uma pequena insígnia azul acima do coração, embora não me recorde do que era ou do que representava.

Nem consigo lembrar-me de como o romance acabou, só que o Fim foi uma zanga provocada por Denny ter inalado cocaína no bar do hotel Beau Rivage, em Lausanne. Mas nessa altura, Denny, a exemplo de Porfírio Rubirosa, outro mito badalado do circuito europeu, tinha criado o sine qua non do aventureiro bem-sucedido: mistério e um desejo popular para investigar as origens. Por exemplo, tanto Doris Duke como Barbara Hutton tinham pago um milhão de dólares para saberem se outras senhoras estavam a mentir quando teciam elogios a essa pega de mercadoria encarapinhada, Sua Excelência, o embaixador dominicano, Porfírio Rubirosa, e suspiravam quanto a recheada eficácia dessa picha mulata, aparentemente uma ferramenta cor de café com leite de quase vinte e oito centímetros, tão grossa como um pulso de homem (segundo os manipuladores do produto, o único par do embaixador nesta parada de pichas era o xá do Irão). Quanto ao bom e defunto príncipe Ali Khan — que era homem de pau feito e grande amigo de Kate McCloud — a única coisa que essa brigada digna de Feydeau queria saber quando vasculhava os seus lençóis era a seguinte: é verdade que esse garanhão podia actuar durante uma hora, cinco vezes por dia, sem nunca se vir? Admito que conheça a resposta; mas se não a conhece, é sim - um truque oriental, virtualmente uma proeza de mágico, chamado karezza, e o ingrediente dominante não é resistência seminal, mas controlo da imaginação: uma pessoa chupa e fode enquanto vai imaginando uma caixa de papelão ou um cão a trotar. Claro que também convém estar empanturrado de ostras e caviar e não ter nenhuma profissão que interfira com comer, ressonar e concentrar-se em simples caixas de papelão.

Várias mulheres tiveram experiências com Denny: a honorável Daisy Fellowes, herdeira das máquinas de costura Singer, arrastou-o a volta do mar Egeu a bordo do seu pequeno iate, o Sister Anne, mas os que mais contribuíram para a conta bancária de Denny, em Genebra, continuaram a ser os mais ricos velhos caquéticos — um chileno da alta roda parisiense, Arturo Lopez—Willshaw, o principal abastecedor planetário de guano, caca de pássaro fossilizada, e o marquês de Cuevas, o Diaghilev do ballet itinerante. Mas, em 1938, numa visita a Londres, Denny encontrou o seu último e permanente patrono: Peter Watson, herdeiro de um magnata do óleo de margarina, não era apenas outro rico homossexual, mas — num estilo mesquinho, intelectual e acerbo — um dos tipos com mais pinta da Inglaterra. Foi graças ao seu dinheiro que a revista Horizon, de Cyril Connolly, foi fundada e subsidiada. O meio de Watson ficou boquiaberto quando o seu austero amigo, que normalmente olhava para os marujos de modo bastante convencional, perdeu a cabeça com o famoso Denny Fouts, um «playboy exibicionista», um drogado, um americano que falava como se estivesse a mastigar um quilo de papas de aveia do Alabama.

Mas era preciso ter experimentado o abraço mortal de Denny, uma pressão que quase punha a vitima num estado de torpor derradeiro, para apreciar a sua eficácia. Denny tinha jeito para um único papel, o de bem-amado, pois era tudo o que ele sempre tinha sido. Salvo as suas esporádicas trocas comerciais com o sector marítimo, este Watson tinha, até então, sido o bem-amado, um rapaz assediado cujo comportamento para com os seus admiradores tinha requintes que ultrapassavam Sade (uma vez, Watson partiu deliberadamente numa viagem de barco por metade do mundo com um jovem aristocrata perdido de amores a quem ele castigava não permitindo beijos nem carícias, embora todas as noites dormissem na mesma cama estreita — quer dizer, o Sr. Watson dormia enquanto o seu amigo, perfeitamente decente, mas a desintegrar-se, se remexia insone e com o escroto a doer).

É evidente que, a exemplo da maior parte dos sádicos, Watson também tinha paralelamente impulsos masoquistas; mas coube a Denny, com a sua intuição de putana para as necessidades inconfessáveis de um cliente envergonhado, adivinhar isso e agir em conformidade. Uma vez que os papéis se invertem, só a pessoa que humilha sabe apreciar os encantos da humilhação: Watson adorava a crueldade de Denny, porque Watson era um artista que reconhecia a obra de um artista superior, tarefa que deixou o elegantemente amargo Sr. W. prostrado em comas acordados de ciúme e delicioso desespero. O bem-amado até utilizava a sua dependência da droga para tirar vantagens sado-românticas, pois Watson, ao mesmo tempo que era obrigado a fornecer o dinheiro para sustentar um hábito que ele deplorava, tinha-se convencido de que somente o seu amor e tratos podiam salvar o bem-amado de uma sepultura de heroína. E, sempre que o bem-amado precisava de um chuto, ia à caixa dos remédios.

Foi aparentemente a sua preocupação quanto ao bem-estar de Denny que levou Watson a insistir, no início dos bombardeamentos alemães, para que Denny saísse de Londres e regressasse aos Estados Unidos — uma viagem que Denny fez com a mulher americana de Cyril Connolly, Jean, como dama de companhia. Esse casal nunca mais voltou a encontrar-se — Jean Connolly, uma espécie biológica muito pródiga, veio a morrer depois de uma foliona hégira através do país, juntamente com Denny, saturada de soldados, marinheiros e marijuana.

Denny passou os anos da guerra na Califórnia, vários deles preso num campo  para objectores de consciência; foi no inicio dessa época que conheceu Christopher Isherwood, então a trabalhar em Hollywood como argumentista. A partir do romance do acima citado Isherwood, livro que consultei esta manha na biblioteca, eis aqui uma descrição de Denny (ou Paul, como ele lhe chama): «Lembro-me de ter notado ao ver Paul pela primeira vez, no momento em que entrou no restaurante, que tinha uma maneira de andar estranhamente erecta; era quase como se estivesse paralítico de tensão. Sempre foi delgado, mas, dessa vez, parecia agarotadamente magro e estava vestido como um rapaz, com um exagerado ar de inocência que nos desafiava. O seu enxovalhado fato preto, apertado e sem enchumaços, camisa branca e gravata preta, dava-lhe a aparência de ter acabado de chegar à cidade vindo de um internato estritamente religioso. O seu modo de vestir tão jovem não me deu a impressão de ser ridículo porque se coadunava com os seus ares. No entanto, e como eu sabia que ele tinha vinte e muitos anos de idade, essa juventude tinha um efeito ligeiramente sinistro, como algo estranhamente conservado.»

Sete anos mais tarde, quando fui viver na Rua du Bac, numero 33, um apartamento que Peter Watson possuía em Paris no Quartier Latin, o Denham Fonts que lá encontrei, embora mais pálido do que o seu favorito cachimbo de ópio em marfim, não era muito diferente do amigo de Herr lssyvoo dos tempos da Califórnia: ainda parecia vulneravelmente jovem, como se a juventude fosse uma solução química na qual Fouts se encontrava permanentemente imerso.

Mas como foi P. B. Jones parar a Paris, um convidado no crepúsculo de altos tectos desses quartos fechados e labirínticos?

Um instante, por favor: vou lá abaixo tomar um duche. Há sete dias seguidos que faz um calor infernal em Manhattan.

Alguns dos sátiros cristãos do nosso estabelecimento tomam duches tão frequentemente e vagueiam pelos corredores durante tanto tempo que parecem bonecas índias encharcadas; mas são jovens e, em geral, bem constituídos. Todavia, o mais obcecado destes higiénicos tarados sexuais, bem como um incansável e sorrateiro frequentador dos dormitórios, era um gajo velho alcunhado de Gengivas. É coxo e zarolho, tem uma ferida a escorrer de pus no canto da boca e as bexigas esburacam-lhe a cara como uma tatuagem diabólica e pestilenta. Agora mesmo roçou a mão pela minha coxa e eu fingi não ter notado; esse toque, porém, provocou uma sensação de irritação, c0mo se os seus dedos fossem picadas de urtigas.

Havia já vários meses que Súplicas Atendidas tinha sido publicado quando recebi um lacónico bilhete de Paris: «Caro Sr. Jones, as suas histórias são esplêndidas. Assim como o retrato tirado por Cecil Beaton. Venha, por favor, ter comigo a Paris, como meu convidado. Junto envio uma passagem de primeira classe a bordo do Queen Elizabeth que partirá de Nova Iorque com destino a Le Havre no dia 24 de Abril. Se precisar de qualquer referência, pergunte ao Beaton: é um velho conhecido. Sinceramente, Denham Fouts.»

Como disse, tinha ouvido falar muito do Sr. Fouts — o bastante para saber que não era o meu estilo literário que o tinha motivado para escrever aquela ousada missiva, mas a fotografia que Beaton tinha tirado de mim para a revista de Boaty e que eu usara na contracapa do livro. Mais tarde, quando conheci Denny, percebi o que havia naquele rosto que o tinha impressionado ao ponto de correr o risco de enviar um convite e de subscrevê-lo com um presente acima dos seus meios — digo acima dos seus meios p0rque tinha sido abandonado por um tal Watson que se fartara dele, estava a morar no apartamento deste, em Paris, numa base instável e andava a viver a custa de amigos leais e de antigos admiradores meio pressionados pela chantagem. A fotografia dava uma noção da minha pessoa completamente errada — um moço transparente, cândido, puro, inocente e tão cintilante como uma gota de chuva em Abril. Ah ah ah.

Nunca me ocorreu não partir; nem dizer a Alice Lee Langman que ia partir — ao voltar do dentista descobriu que eu tinha feito as malas e ido embora. Não disse adeus a ninguém, apenas abalei. Pertenço ao género, um género de modo algum raro, que pode ser o seu amigo mais intimo, um camarada com quem fala todos os dias, contudo, se um dia não entrar em contacto comigo, não me telefonar, é o fim, nunca mais voltamos a falar-nos, pois eu nunca lhe hei-de telefonar. Tenho conhecido sangues de lagarto desses e nunca consegui compreendê-los, muito embora seja um deles. Apenas me fui embora, sim: parti à meia-noite com o coração a bater como gongos, como chaminés a uivar roucamente. Lembro-me de ter ficado a ver o brilho da meia-noite sobre Manhattan a tremeluzir e a escurecer através de serpentinas e confettis — luzes que não voltaria a ver durante doze anos. E também me lembro de ter escorregado em vómito de champanhe quando me dirigia aos tombos para uma cabina de classe turística (troquei a passagem de primeira classe e meti a diferença ao bolso) e ter deslocado o pescoço. Foi pena não o ter partido.

("Súplicas Atendidas", Truman Capote. Dom Quixote, 2008)

Soldados da República

28.09.23 | Manuel

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Dorothy Parker

Naquela tarde de domingo sentámo-nos com a rapariga sueca no grande café em Valência. Tomámos vermute em grossos copos de pé alto, cada um com um cubo de gelo cinzento, em forma de favo, lá dentro. O empregado estava tão orgulhoso daquele gelo que mal podia suportar o facto de ter de deixar os copos na mesa e assim separar-se dele para sempre. Foi aos seus afazeres – por toda a sala lhe batiam palmas e assobiavam para chamar a sua atenção – mas ainda olhou para trás por cima do ombro.

Estava escuro lá fora, daquele escuro ligeiro e novo que desce sem crepúsculo sobre o dia; mas, porque não havia luzes nas ruas, parecia tão instalado e velho como a meia-noite. Por isso, uma pessoa admirava-se de que todos os bebés estivessem ainda acordados. Havia bebés por toda a parte no café, bebés sérios sem solenidades e interessados de modo tolerante no que os rodeava.

Na mesa a seguir à nossa, estava um notavelmente pequeno; talvez tivesse seis meses. O pai, um homem baixo com um uniforme grande, que lhe arrastava os ombros para trás, segurava-o cuidadosamente sobre um joelho. O bebé não estava a fazer nada de especial, contudo ele e a mulher, magra e jovem, cuja barriga se via já novamente grande sob o vestido leve, estavam sentados a observá-lo numa espécie de admiração extasiada, enquanto os cafés arrefeciam à frente deles. O bebé estava de branco domingueiro; o seu vestido fora tão delicadamente remendado que poderia pensar-se que, na totalidade do tecido, os remendos não variariam em cambiantes de brancura. No seu cabelo havia um laço de fita azul nova, atado com equilíbrio absoluto de laçadas e pontas. A fita era desnecessária; não havia cabelo suficiente que merecesse estar preso. O laço era simplesmente um adorno, um pouco de ostentação calculada.

«Oh, por amor de Deus, pára com isso!» disse eu para mim própria. «Está bem, tem um pedaço de fita azul no cabelo. Está bem, a mãe dele andou sem comer para que pudesse estar bonita quando o pai viesse a casa de licença. Está bem, é lá com ela e não tens nada com isso. Está bem, então que motivos tens para chorar?» A sala grande e sombria estava cheia e animada. Nessa manhã, tinha havido um bombardeamento aéreo, ainda mais horrível por ter sido em pleno dia. Mas ninguém no café estava tenso ou constrangido, ninguém forçava desesperadamente o esquecimento. Toda a gente bebia café ou limonada engarrafada no agradável e merecido descanso da tarde de domingo, conversando sobre assuntos insignificantes e alegres, todos falando ao mesmo tempo, todos ouvindo e respondendo.

Havia muitos soldados na sala, no que pareciam ser os uniformes de vinte exércitos diferentes, até que se via que a variedade era devida aos diferentes modos em que o tecido estava puído ou desbotado. Apenas uns poucos haviam sido feridos; aqui e ali via-se algum a andar cautelosamente, apoiando-se numa bengala ou em duas muletas, mas tão perto da recuperação que o seu rosto tinha boa cor. Havia também muitos homens, à civil -alguns deles soldados em casa, de licença, outros funcionários do governo, outros ninguém sabia quem eram. Havia esposas roliças e tranquilas, ágeis com os seus leques de papel, e mulheres mais velhas tão sossegadas como os seus netos. Havia muitas raparigas bonitas e algumas beldades, a propósito das quais não se comentaria «Ali está uma encantadora mulher de tipo hispânico», mas dir-se-ia «Que bela rapariga!» As roupas das mulheres não eram novas e o seu material era demasiado humilde para ter alguma vez justificado um corte de especialista.

«É engraçado», disse eu à rapariga sueca, «quando num lugar ninguém está bem vestido, não se repara que toda agente o não está.»

«Como?» perguntou a rapariga sueca.

Ninguém, excepto um ou outro soldado, usava chapéu. Quando chegáramos pela primeira vez a Valência, eu tinha vivido num estado de confusão dolorosa, querendo saber porque é que toda agente nas ruas se ria de mim. Não era porque «West End Avenue» estivesse escrito na minha testa, como se tivesse sido ali deixado pelo gatafunho a giz de algum inspector de alfândega. Gostam dos americanos em Valência, onde viram bons exemplos -os médicos que deixaram de exercer e vieram ajudar, as enfermeiras serenas e jovens, os homens da Brigada Internacional 1). Mas, quando eu caminhava na rua, homens e mulheres colocavam delicadamente as mãos sobre os seus rostos abertos de riso e as crianças pequenas, demasiado inocentes para dissimularem, dobravam-se com regozijo e apontavam e gritavam «Olé!» Depois, bem mais tarde, fiz a minha descoberta e deixei o meu chapéu de lado; e nunca mais houve gargalhadas. E nem sequer era um desses chapéus cómicos; era apenas um chapéu.

O café ficou cheio até abarrotar e deixei a nossa mesa para ir falar com uma amiga do outro lado da sala. Quando regressei à mesa, seis soldados estavam lá sentados. Estavam apinhados e as suas cadeiras rangeram quando passei por eles para chegar à minha. Pareciam cansados e poeirentos e pequenos, do mesmo modo que os que acabaram de morrer parecem pequenos, e a primeira coisa que se reparava neles era os tendões do pescoço. Senti-me como se ganhasse um prémio por sordidez.

Estavam todos à conversa com a rapariga sueca. Ela sabe espanhol, francês, alemão, qualquer coisa em escandinavo, italiano e inglês. Quando tem tempo para remorsos, suspira que o seu holandês está tão enferrujado que ela já nem sabe falá-lo, apenas lê-lo, e que o mesmo se aplica ao seu romeno.

Eles contaram-lhe, disse-nos ela, que estavam no fim da licença de quarenta e oito horas das trincheiras e que, para esta folga, tinham reunido o dinheiro de todos para cigarros, mas que algo correra mal e que os cigarros nunca lhes tinham chegado às mãos. Eu tinha um maço de cigarros americanos – em Espanha, rubies 2) não são nada para eles – e deixei-o à vista e, através de sinais com a cabeça e sorrisos e uma espécie de natação de bruços, tornei claro que o estava a oferecer àqueles seis homens ansiosos por tabaco. Quando viram o que tencionava fazer, cada um deles levantou-se e deu-me um aperto de mão. Que querida sou, por partilhar os meus cigarros com os homens que estão de regresso às trincheiras. Pequena Lady Bountiful 3).Um prémio por sordidez.

Cada um deles acendeu o seu cigarro com uma engenhoca de corda amarela que cheirava mal quando incendiada e que também servia, como traduziu a rapariga sueca, para a ignição de granadas. Cada um deles recebeu o que tinha pedido, um copo de café, e cada um deles murmurou, apreciando a minúscula cornucópia de açúcar não refinado que o acompanhava. Depois conversaram.

Conversaram através da rapariga sueca, mas fizeram connosco aquilo que todos fazemos quando falamos a nossa própria língua com alguém que não a conhece. Olharam-nos firmemente nos olhos, e falaram lentamente e pronunciaram as suas palavras com elaborados movimentos dos lábios. Depois, quando as suas histórias surgiram, desabafaram-nas tão veemente, tão enfaticamente, que estavam certos de que íamos compreender. Estavam tão convencidos de que compreenderíamos, que ficámos envergonhadas por não compreendermos.

Mas a rapariga sueca traduziu-nos. Eram todos agricultores e filhos de agricultores, de uma região tão pobre que uma pessoa tenta nem se lembrar que existe aquele género de pobreza. A sua aldeia era a seguir àquela onde os velhos e os doentes e as mulheres e as crianças tinham ido, num feriado, à praça de touros; e os aviões tinham passado por cima e largado bombas sobre a praça de touros e os velhos e os doentes e as mulheres e as crianças seriam mais de duzentos.

Estavam todos, os seis, na guerra há mais de um ano, e a maior parte desse tempo tinham estado nas trincheiras. Quatro deles eram casados. Um tinha um filho, dois tinham três, um tinha cinco. Não sabiam notícias das famílias desde que haviam partido para a frente de batalha. Não houvera comunicações; dois deles tinham aprendido a escrever com homens que lutavam ao seu lado nas trincheiras, mas não se tinham atrevido a escrever para casa. Pertenciam a um sindicato e os sindicalistas, é claro, são executados se forem apanhados. A aldeia onde as suas famílias viviam havia sido tomada e, se a mulher de alguém recebe uma carta de um sindicalista, quem sabe se não lhe dão um tiro por causa desse vínculo?

Contavam como não tinham notícias das famílias há mais de um ano. Não o diziam galante, caprichosa ou estoicamente. Contavam-no como se – bem, olha: uma pessoa esteve nas trincheiras, a lutar, durante um ano. Não sabe nada da mulher nem dos filhos. Eles não sabem se se está morto ou vivo ou cego. Não se sabe onde estão, ou se estão. Tem de se conversar com alguém. Foi desse modo que contaram.

Um deles, uns seis meses antes, soubera notícias da mulher e dos três filhos – tinham uns olhos tão bonitos, disse ele – através de um cunhado, em França. Estavam todos vivos nessa altura, tinham-lhe dito, e tinham um prato de feijão por dia. Mas a mulher não se queixara da comida, segundo sabia. O que a preocupava era o facto de não ter linha para remendar as roupas esfarrapadas das crianças. Portanto, isso preocupava-o também.

«Ela não tem linha», continuava a repetir-nos. «A minha mulher não tem linha para remendar. Não tem linha.»

Estivemos ali sentadas e ouvimos o que a rapariga sueca nos contou que diziam. Subitamente, um deles olhou para o relógio e houve, depois, algum rebuliço. Levantaram-se de um salto, à homem, e houve chamamentos para o empregado e conversas rápidas com ele, e cada um deles deu um aperto de mão a cada uma de nós. Efectuámos mais alguns movimentos de natação para lhes explicar que levassem o resto dos cigarros – catorze cigarros para seis soldados levarem para a guerra – e apertaram-nos as mãos novamente. Depois, todas nós dissemos «Salud!» tantas vezes quantas possíveis, sendo seis deles e rês de nós, e depois enfileiraram-se para sair do café, os seis, cansados e poeirentos e pequenos, como pequenos são os homens de uma poderosa horda.

Apenas a rapariga sueca falava, depois de terem partido. Ela tem estado em Espanha desde o começo da guerra. Tem cuidado de homens com estilhaços, transportado macas para as trincheiras e, carga mais pesada, de regresso ao hospital. Tem visto e ouvido demasiado para ficar atordoada até ao silêncio.

Nesse momento era altura de ir e a rapariga sueca elevou as mãos acima da cabeça e bateu palmas duas vezes para chamar o empregado. Ele veio, mas apenas abanou a cabeça e a mão e afastou-se.

Os soldados tinham pagado as nossas bebidas.

Notas:

1) Grupo de voluntários estrangeiros que interveio ao lado das forças republicanas contra os nacionalistas, na Guerra Civil espanhola (1936-39).

2) Referência à marca de cigarros Ruby Queen.

3) Personagem abastada de The Beaux' Stratagem (1707), última comédia de George Farquhar (?1677-1707)

(“Soldados da República – Contos” de Dorothy Parker. Ed. Relógio D'Água. 2007)

A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro

24.09.23 | Manuel

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Antonio Tabucchi

Provou um pedaço do bacalhau e disse:

— Acho que este prato esta divino, e você, o que lhe parece?

— Muito bom, respondeu Firmino, mas estava-me a falar da sua infância.

— Pois bem, continuou o advogado, aquela casa está desabitada, com todas as recordações daquela senhora marquesa que à sua maneira fez de minha avó: os seus retratos, os seus móveis, as suas colchas de Castelo Branco e as suas árvores genealógicas. Digamos que é a minha infância que está fechada lá dentro como num cofre. Há uns anos ainda lá ia para consultar os arquivos de família, mas não sei se reparou bem na Rua do Ferraz, para chegar ao topo seria preciso um teleférico, com a minha corpulência não tenho hipótese, teria de chamar um táxi para percorrer quinhentos metros, por isso há sete anos que não ponho lá os pés. E portanto resolvi vendê-la, entreguei-a a uma imobiliária, é bom que as imobiliárias engulam as infâncias, é a maneira mais esterilizada de nos vermos livres delas, e você nem lhe passa pela cabeça a quantidade de burgueses endinheirados, daqueles que fizeram fortunas nos últimos tempos com os subsídios da comunidade europeia, que gostariam de ficar c0m aquela casa. Sabe, é um lugar que segundo a mentalidade deles lhes daria o status de que andam desesperadamente à procura, o construir uma vivenda moderna com piscina nas zonas residenciais esta ao alcance deles, mas um palacete do século XVIII esá uns largos degraus mais acima, capta a ideia?

— Capto a ideia, assentiu Firmino.

— De maneira que decidi vendê-la, disse  advogado.

O pretendente mais sôfrego vem da província. É o típico representante da sociedade em que vivemos hoje em dia.

O pai dele era um modesto criador de gado. Ele começou com uma pequena actividade comercial no ramo do calçado ainda durante o salazarismo. Na realidade fabricava sobretudo sapatos de má qualidade com a ajuda de um par de operários. Depois em setenta e quatro veio a revolução e ele aderiu às ideias cooperativistas, deu até uma entrevista quase revolucionária num quotidiano inflamado. E depois, a seguir às ilusões revolucionárias, veio o neoliberalismo desenfreado, e ele fez a opção que lhe convinha. Resumindo, é um dos que se soube governar. Hoje, é dono de quatro Mercedes e de um campo de golf no Algarve, é um grande accionista da construção civil no Alentejo e se calhar também em Troia, é daqueles que se dão bem com todos os partidos da bancada constitucional, dos comunistas até à direita, e é evidente que a sua fábrica de sapatos está florescente, exporta principalmente para os Estados Unidos. Agora diga lá, faço ou não faço bem em vender-lha?

— A casa?, perguntou Firmino.

— Pois, a casa, respondeu o advogado. Se calhar vendo mesmo. Há uns dias, a mulher dele, que aliás me parece ser a única alfabeta da família, veio falar comigo. Poupo-lhe a descrição da elegância da senhora. Mas subi as cotações, porque disse que só vendia a casa com os móveis antigos e com os quadros nobres, e perguntei-lhe: o que é que uma família como a sua, estimada senhora, faria com uma casa destas sem os móveis antigos e os quadros nobres? Você o que é que acha, rapaz, acha quefiz bem?

— Acho que fez muito bem, respondeu Firmino, já que quer a minha opinião, digo-lhe que fez muito bem.

— Então, concluiu o advogado, informe o seu director que as despesas do caso do Damasceno Monteiro ficam mais que pagas por dois quadros do século XVIII da minha casa da Rua do Ferraz, e que por favor não me venha falar dos meus honorários.

Firmino não replicou e continuou a comer. Provara timidamente o arroz de feijão e tinha-o achado delicioso, e por isso servira-se doutra dose. Apetecia-lhe dizer uma coisa, mas não sabia como dizê-la. Por fim tentou formulá-la.

— O meu jornal, gaguejou, bem, o meu jornal é o que é, quero dizer, o senhor conhece bem o estilo dele, é o estilo com que procuramos captar os nossos leitores, enfim, é um jornal popular, talvez corajoso, mas é um jornal popular, tem de fazer as suas concessões para aumentar a tiragem, não sei se me faço entender.

O advogado parecia ocupado com os petiscos e não respondeu. Agora estava totalmente absorto a comer o bacalhau.

— Não sei se capta a ideia, disse Firmino recorrendo à fórmula do advogado.

— Não, não capto a ideia, respondeu o advogado.

— Enfim, continuou Firmino, o que eu quero dizer é que o meu jornal é aquilo que o senhor sabe, e o senhor, bem, o senhor é um advogado importante, tem o apelido que tem, enfim o que eu quero dizer é que o senhor tem uma reputação a defender, não sei se me faço entender.

— Ó rapaz, você continua a desiludir-me, respondeu o advogado, procura a todo o custo ser inferior a si próprio, nunca devemos ser inferiores a nós próprios, o que é que disse a meu respeito?

— Que tem uma reputação a defender, respondeu Firmino.

— Olhe, murmurou o advogado, acho que não nos estamos a entender, vou-lhe dizer uma coisa de uma vez por todas, mas abra bem esses ouvidos. Eu defendo os desgraçados porque sou igual a eles, a verdade é essa. Da minha nobre estirpe utilizo apenas o património material que me deixaram, mas tal como os desgraçados que defendo acho que conheci as misérias da vida, que as compreendi e que até as assumi, porque para perceber as misérias da vida é preciso meter as mãos na merda, desculpe o termo, e sobretudo ter consciência disso. E não me obrigue a ser retórico, porque é retórica barata.

— Mas o senhor em que é que acredita?, perguntou Firmino.

Não saberia dizer o que o levou a fazer aquela pergunta ingénua, e no preciso momento em que a formulava pareceu-lhe ser uma daquelas perguntas que se fazem na escola à colega de carteira e que fazem c0rar quem as faz e quem as ouve. O advogado ergueu a cabeça do prato e fixou-o c0m os seus olhinhos inquisitoriais.

— Está a fazer-me uma pergunta pessoal?, perguntou com evidente enfado.

— Estou, sim, respondeu Firmino corajosamente, é uma pergunta pessoal.

— Porque é que me faz essa pergunta?, insistiu o advogado.

—Porque o senhor não acredita em nada, exclamou Firmino, a impressão que eu tenho é que o senhor não acredita em nada.

O advogado sorriu. A Firmino pareceu-lhe um sorriso contrafeito.

— Poderia acreditar, por exemplo, numa coisa que talvez a si lhe pudesse parecer insignificante, respondeu.

— Explique-me, dê-me um exemplo, insistiu Firmino, uma coisa que seja convincente.

Agora que se tinha metido naquela embrulhada queria ir até ao fim.

—Um poema, por exemplo, respondeu o advogado, uns versos, pode parecer um disparate, mas também pode ser uma coisa fundamental, oiça: «Tudo aquilo que conheci / tu me escreverás para mo lembrares / com cartas. E assim também eu / te direi todo o passado».

O advogado calou-se. Tinha afastado o prato e a sua mão martirizava o guardanapo.

— Hölderlin, continuou. É uma poesia intitulada Wenn aus der Ferne, quer dizer "Se da lonjura", uma das suas últimas poesias. Digamos que pode haver pessoas que esperam cartas do passado, parece-lhe uma coisa plausível em que se possa acreditar?

— Talvez, respondeu Firmino, é possível que seja plausível, mas gostaria de perceber melhor.

— E simples, murmurou o advogado, cartas do passado que nos expliquem um momento da nossa vida que nunca compreendemos, que nos dêem uma explicação qualquer que nos faça entender o sentido de tantos anos passados, daquilo que então nos escapou, você é jovem, você espera cartas do futuro, mas suponha que haja pessoas que esperam cartas do passado, e que se calhar eu sou uma delas, e que até talvez me atreva a imaginar que um dia elas vão chegar.

Fez uma pausa, acendeu um dos seus charutos e perguntou:

— E sabe como imagino que vão chegar?, faça um esforço.

— Não faço a mínima ideia, respondeu Firmino.

— Pois bem, disse o advogado, num embrulhinho atado com uma fita cor-de-rosa, assim mesmo, e com perfume a violetas, como nos piores romances de cordel. E nesse dia vou aproximar o meu narigão ao embrulhinho, vou desatar a fita cor-de-rosa, vou abrir as cartas e vou perceber com uma clareza meridiana uma história que nunca antes tinha percebido, uma história única e fundamental, repito, única e fundamental, uma c0isa que só nos acontece uma vez na vida, que os deuses sé permitem que aconteça uma vez na vida, e à qual não prestamos a devida atenção, precisamente porque éramos uns idiotas presunçosos.

Fez outra pausa, desta vez mais prolongada. Firmino olhava para ele em silêncio, observava as suas bochechas gordas e descaídas, a boca carnuda quase repulsiva, aquela expressão perdida nas suas lembranças.

— Pois, continuou o advogado em voz baixa, que faites-vous des anciennes amours? Pois é, também eu pergunto, que faites-vous des anciennes amours? E um verso de um poema de Louise Colet que continua assim: les chassez-vous comme dcs ombres vaines? ils ont été ces fantômcs glacés, coeur contre coeur, une part de vous méme. E certamente dirigido a Flaubert. É preciso dizer que Louise Colet escrevia poemas lamentáveis, coitada, apesar de se achar uma grande poetisa e de querer fazer figura nos salões literários parisienses, os seus versos eram realmente medíocres, não há dúvida. Mas estes poucos versos são um espinho no flanco, parece-me, pois o que havemos de fazer com os amores passad0s?, vamos arrumá-los numa gaveta com as meias rotas?

*

Nota

As personagens, os lugares e as situações aqui descritas são fruto da fantasia romanesca. Mas real foi o episódio bem concreto que despoletou essa fantasia: na noite de 7 de Maio de 1996, Carlos Rosa, cidadão português, de vinte e cinco anos de idade, foi morto numa esquadra da Guarda Nacional Republicana de Sacavém e o seu corpo foi encontrado num jardim publico, decapitado e com sinais de sevícias.

No que se refere a alguns aspectos jurídicos deste livro, foram para mim fundamentais as conversas que tive com o meu amigo Antonio Cassese, Presidente do Tribunal Penal Internacional da Haia, bem como as reflexões que me suscitou o seu livro Umano—Disumano. Comissariati e perigioni nell’Europa di oggi, Laterza, 1994 1.

De certa maneira, este livro é também credor daquele a quem chamo Manolo o Cigano, personagem de ficção, ou melhor, entidade colectiva coagulada em entidade individual numa história a que ele pessoalmente é alheio, mas que participa de algumas histórias inesquecíveis que ouvi da boca de velhos ciganos numa tarde longínqua em Janas, durante a cerimonia da bênção do gado, quando o povo nómada ainda possuía cavalos.

Agradeço a Danilo Zolo todas as informações preciosas sobre Filosofia do Direito que generosamente me forneceu, e a Paola Spinesi e Massimo Marianetti o cuidado e a paciência com que transformaram o manuscrito original em texto dactilografado.

Resta-me dizer que Damasceno Monteiro é o nome de uma rua de um bairro popular de Lisboa onde morei por uns tempos, e que as primeiras frases do discurso do advogado Lóton pertencem ao filósofo Mario Rossi. O resto do seu discurso pertence apenas à cultura e as convicções da minha personagem.

1 Trad. inglesa: Inhuman States. Imprisonment, detention and torture in Europe today; Polity Press, Cambridge 1996.

A. T.

(“A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro”, Antonio Tabucchi. D. Quixote, 2022.)

Guerra Civil Espanhola

20.09.23 | Manuel

O surgimento das guerrilhas em Galiza e Leão e o apoio dado pelas populações portuguesas raianas

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 Nos montes de Ferradillo, alguns dos guerrilheiros da Federación de Guerrillas de León-Galícia, no dia da sua fundação:

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1. José Vega Seoane, Animas; 2. Pedro Voces Canóniga, Pitaciega ; 3. Guillermo Móran; 4. Eduardo Pérez Vega, Tameirón ; 5. Mário Morán; 6. Marcelino de la Parra Casas; 7. Antolín Murias, Paciencia ; 8. César Ríos; 9. Marcelino Fernández Villanueva, El Gafas ; 10. Abel Ares Pérez; 11. Pedro Lamas Cerezales, Pedrín ; 12. Victorino Nieto Rodríguez; 13. Cuñeira ; 14. Abelardo Macías Fernández, El Liebre ; 15. Manuel Girón Bazán; 16. Enrique Oviedo Blanco , El Chapa . (Foto de Arcádio Ríos, outro dos fundadores).

 Enquanto isto, o Gafas retomava a ideia de imprimir alguma ordem e unidade na anarquia reinante entre os guerrilheiros, para ali cada um a puxar para seu lado ao sabor das circunstâncias e do improviso.

A ideia foi aceite pela maioria e César Ríos e Marcelino de la Parra encarregados da redacção dos estatutos. Aí se regulamentava, preto no branco, tudo o que a um guerrilheiro diz respeito: comandos, fardas, distintivos, armas, tácticas de sobrevivência, defesa e ataque, ética profissional, regras de comportamento, em todas as situações e lugares.

Um perfeito Manual do Guerrilheiro de cujos itens menciono apenas três: tribunais para julgar os prevaricadores, com penas que podiam ir até ao fuzilamento (1); obrigação de cada guerrilheiro apresentar um rol dos gastos da semana, de modo a conter as despesas e não sobrecarregar os «enlaces» ou apoiantes e diminuir os golpes económicos ou multas a curas, falangistas e outros fascistas, sempre susceptíveis de acarretar, sobre a guerrilha, a desconfiança das populações; no sentido de obediência aos partidos políticos, tanto as milícias como os guerrilheiros, são apolíticos. «O nosso lema é: união de esforços antifascistas.»

Em 2 de Abril de 1942, vinte e quatro delegados, reunidos nos montes Ferradilho, termo de Ponferrada, aprovavam os estatutos e elegiam a direcção. Assim nasceu a Federación de Guerrillas de León-Galícia, mais tarde subdividida em quatro agrupamentos: 1.º- León; 2.º- Ourense; 3.º- Lugo; 4.º- Corunha.

Lá estavam os nossos conhecidos Marcelino Villanueva, o Gafas , os irmãos César e Arcádio Ríos, os manos Mário e Guillermo Morán, Manuel Girón, Eduardo Pérez Vega, o Tameirón, Hilário Álvares Méndez, o Hilário.

O Gafas foi eleito comandante-chefe. Para lugares-tenentes, indicados Marcelino de la Parra, anarco-sindicalista, César Ríos e Mário Morán, socialistas.

A esse tempo, os comunistas não tinham peso nem representação na guerrilha galaico-leonesa. Apareceram mais tarde, aí por 1944, como adiante se dirá.

Nesse mesmo ano de 1942 se deu um facto de grande importância na vida dos guerrilheiros. «Enlaçaram» com Alexander Easton, engenheiro electrotécnico, natural de Edimburgo, encarregado da mala diplomática dos consulados de Vigo, Corunha e Gijon, proprietário duma vasta quinta entre Caracedo e Cacabelos e, ao que tudo indica, agente dos serviços secretos britânicos.

De início, El inglês ou El amigo , como os guerrilheiros lhe chamavam, pediu apoio numa cadeia de solidariedade que, a partir da fronteira francesa, ajudava a «passar» por Portugal evadidos do regime nazi. Os guerrilheiros disseram imediatamente que sim e ainda colaboraram na fuga de dois aviadores ingleses, cujos aviões haviam sido deitados abaixo na França. Breve, porém, El inglês se apercebeu, face à perseguição de que a guerrilha estava a ser alvo, do perigo que representava para os evadidos, viajarem em tal companhia.

Prescindiu da colaboração, mas continuou a dar-lhes apoio. Forneceu-lhes rádios para eles irem seguindo o desenrolar da Segunda Guerra Mundial; máquina de escrever para dactilografarem e distribuírem propaganda antifascista; uma enfermaria clandestina nuns anexos da quinta, onde os guerrilheiros feridos podiam ser tratados por médicos de confiança; uma multicopiadora para a confecção de um jornal, cujo primeiro número saiu em 1 de Abril de 1943. Chamava-se El Guerrillero e era impresso em casa da senhora Angustias Vidal, lugar de Santalla, em cujo rés-do-chão funcionava um bar e se davam bailes aos domingos e dias santos.

Os guerrilheiros aproveitavam o barulho da música e dos bailões para abafarem o ruído da impressora.

Os colaboradores habituais eram o Gafas , César Ríos, Mário Morán e um jornalista profissional oriundo de Madrid mas exilado em Toral de los Vados. Por razões óbvias, todos assinavam com pseudónimos.

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Grupo de Socialistas evacuado pelo porto de Luanco em 1948, entre eles, o Gafas (1), César Ríos (2) e Antónia Rodriguez López (3).

 Nesse mesmo ano começaram a aparecer as «contrapartidas», ou pseudoguerrilhas, compostas por falangistas, cadastrados, presidiários, desertores, marginais e outros que tais, dirigidos pela guarda-civil.

As forças da repressão sabiam que os guerrilheiros, sem o apoio das populações, estavam irremediavelmente perdidos. Por isso, deram ordens às pseudoguerrilhas para cometerem barbaridades: roubos, incêndios, violações, sevícias, assassinatos. Depois lá estava a propaganda oficial para atribuir esses crimes aos guerrilheiros e desacreditá-los perante a opinião pública.

Nos estatutos da Federação ficara estipulado que os guerrilheiros reuniam em congresso ordinário uma vez por ano e extra sempre que as circunstâncias o exigissem.

O primeiro realizou-se em Abril de 1943, nos montes Ferradilho. Para além de acertos de comando e de táctica, os congressistas deram especial atenção aos «enlaces», apoiantes ou colaboradores, a que eles chamavam «milícias passivas». Eram pessoas em cujas casas os guerrilheiros podiam pernoitar, comer, vestir-se de lavado, abastecer-se de víveres; mulheres de limpeza dos quartéis da guarda-civil; donos ou donas de bares, cafetarias, restaurantes e similares, sempre de ouvido atento, à cata de informações que depois passavam à guerrilha. Houve até o caso dum radiotelegrafista da guarda-civil que transmitia aos guerrilheiros as ordens e mensagens que lhe passavam pelas mãos. Toda essa gente era, sobremaneira, vulnerável. A guarda-civil, a polícia, o exército, os falangistas, os sometens, ceifavam neles como seitoira afiada em seara madura.

Andam por aí relatados inúmeros casos em que as forças repressivas, após a denúncia de algum chibato , termo espanhol que equivale mais ou menos ao nosso bufo, cercavam casas onde sabiam estar guerrilheiros. Começavam por intimar os sitiados à rendição. Claro que eles não se rendiam. Estabelecia-se o tiroteio. Salvo raras excepções, os guerrilheiros conseguiam romper o cerco e retirar, com ou sem baixas e feridos de parte a parte. Uma coisa era certa. Os agressores acabavam sempre por incendiar as casas e ferirem de morte quem nelas encontrassem. Desapareceram, por este processo, famílias inteiras. Caso elucidativo e comovente, o de uma senhora (2) que tinha guerrilheiros em casa e foram cercados. Ela pediu uma carabina e disse aos hóspedes que fugissem enquanto ela os protegia. A casa tinha várias janelas. Ela corria duma à outra, de modo a dar ao inimigo a ilusão de vários atiradores.

Às tantas, acabaram-se-lhe as munições e calou-se.

Os sitiantes avançaram. Ela recebeu-os de arma na mão. Perguntaram-lhe pelos «bandoleiros».

- Aqui não está ninguém.

- Então quem atirava?

- Eu.

- Só tu?

- Só eu, cobardes.

Crivaram-na de balas.

- Viva a República! - gritou ela antes de tombar no limbo dos mártires da liberdade.

Por esta e outras é que os delegados ao segundo congresso sentiram a necessidade de proteger as milícias passivas, também designadas por Combatientes de Llano sem as quais a sobrevivência da guerrilha seria impossível.

Posto o assunto à discussão, foi deliberado o seguinte: dar-lhes um estatuto semelhante ao da Federação, isto é, agrupá-las em zonas estratégicas, cada qual com os seus dirigentes, e criar um comando ambulatório que percorresse toda a zona e orientasse táctica e ideologicamente todos aqueles que estivessem dispostos a colaborar no derrube do Caudilho , eliminar, sem apelo nem agravo, denunciantes e traidores, de um modo especial os antigos «enlaces» entretanto passados ao serviço do inimigo; manter os guerrilheiros sempre informados das aldeias e das casas de confiança e daqueloutras onde era expressamente proibido pôr os pés; recorrer aos apoiantes o mínimo possível, de modo a não lhes complicar a vida.

Esta a génese da organização que passou à história com o nome de SIR (Serviço de Informação Republicana) na qual colaboraram milhares de pessoas de todas as categorias sociais.

Em meados de Abril de 1943, Alexander Easton, no regresso de uma das suas habituais viagens diplomáticas a Madrid, disse aos guerrilheiros que um indivíduo chamado Pepe queria falar com eles. Viesse lá o Pepe. E ele veio. Ao apresentar credenciais revelou chamar-se José Maria Urquiloa Iglesias, o Chema , operário metalúrgico de Oviedo e dirigente do partido comunista das Astúrias. Mas não era nesse papel que ele ali estava. Era noutro. E gostaria de ter os guerrilheiros todos juntos para lhes falar no assunto.

Responderam-lhe que os guerrilheiros andavam dispersos por montes e povoados de várias comarcas e era praticamente impossível juntá-los. Quando muito, poder-se-ia tentar reunir os chefes ou quem eles designassem. O Chema concordou. E os guerrilheiros convocaram um congresso, o segundo, para ouvir o que o homem tinha para lhes dizer.

Reuniram de novo nos montes Ferradilho. Corria o mês de Junho.

O Chema falou-lhes detalhadamente da União Nacional, organismo de matriz soviética e difundido pela Internacional Comunista, criado oficialmente em Novembro de 1942, no congresso de Grenoble, França, por representantes dos partidos comunista e socialista, da UGT, da CNT, republicanos, todos os quadrantes da esquerda e até alguns da direita, entretanto desiludidos com a política do caudilho. Que a dita União Nacional estava a despertar grande interesse nos espanhóis exilados, principalmente nos da América Latina. Que ele, Chema, tinha credenciais, cujas exibiu, para negociar com os guerrilheiros de León-Galícia, a sua, deles, adesão.

Os congressistas congratularam-se com a existência de uma frente comum de combate à ditadura, mas aquela história da União Soviética e da Internacional Comunista, deixava-os de pé atrás. Precisavam de amadurecer o assunto. E marcaram novo congresso para Setembro, no mesmo local.

Compareceram com a lição estudada. Adeririam à União Nacional, sim senhor, mas com uma ressalva: continuarem a reger-se pelos estatutos da Federação e a orientar-se pelas directrizes do seu Estado Maior.

Chema anuiu. E, antes de se despedir, confessou-se impressionado com a sólida estrutura da Federación de Guerrillas de León-Galícia e do SIR e pediu cópia dos respectivos regulamentos para fornecer, como exemplo e modelo, a todos os guerrilheiros de Espanha.

Por esses dias, chegavam aos montes da Galiza notícias animadoras. Hitler estava a perder terreno no norte de África e na Rússia. As guerrilhas gregas, jugoslavas e demais países ocupados estavam a dar água pela barba aos usurpadores alemães. Circulavam boatos de que as tropas aliadas iam desembarcar algures, na Europa. Tudo indicava que o terceiro Reich ia perder a guerra.

Ora tendo Franco subido ao poleiro apoiado em Hitler e Mussolini, tinha uma certa lógica pensar que os Estados Unidos, a França e a Inglaterra, depois de se terem desfeito do Führer alemão e do Duce italiano, se iriam desfazer também do Caudillo espanhol.

Fiados nesta hipótese, a todos os títulos aceitável, os guerrilheiros começaram a orientar a sua acção em dois sentidos. Primeiro, intensificar a luta, de modo a transmitir aos Aliados a ideia de que a Guerra Civil espanhola continuava. Segundo, prepararem-se para tomar conta do poder, não propriamente eles, mas o Governo Republicano no exílio. Curioso é que, também entre os partidários de Franco, a provável derrota de Hitler principiava a causar desassossego. Os que haviam aproveitado a transição da República para a ditadura para subir na vida, começavam agora a preparar-se para fazer o trajecto inverso. Muitos daqueles que, em 1936, haviam corrido a filiar-se na Falange, rasgavam agora os cartões. Pertencer à Falange, já não dava poder nem prestígio a ninguém. Pelo contrário, o que estava a conferir importância social e política a um fabiano, era uma ligação evidente à guerrilha ou a um partido de esquerda. Até as forças repressivas comungavam do mesmo sentimento. Daí uma espécie de tratado de não agressão entre elas e a guerrilha.

Quando a Guarda-Civil recebia ordens de passar busca a determinada aldeia ou monte, ao aproximar-se do local, fazia sinais de tiros ou toques de buzina de carro para os guerrilheiros retirarem. Estes aproveitaram esta espécie de tréguas para se dedicarem a actos de sabotagem e propaganda antifranquista. Rebentaram com vias-férreas, linhas de alta tensão, telégrafos e telefones, instalações mineiras, centrais eléctricas. Entravam nas povoações à luz do dia, reuniam o povo, faziam-lhes prédicas.

Notas:

1) Eram considerados crimes graves: a deserção, a denúncia, o uso de armas contra companheiros ou apoiantes, assaltos a pessoas afectas aos guerrilheiros e, o pior de todos, a violação, sempre punida com a pena capital. Uma das cláusulas mais simpáticas dos estatutos era a que estipulava um subsídio aos companheiros feridos ou inutilizados.

2) Manuela Sánchez, de 53 anos, residente em S. Vicente de Carres, Cesures, a quem Rafael Alberti dedicou um poema:
Sangre de Manuela Sánchez!
Sangre preciosa de España!

Juntamente com ela, a guarda-civil assassinou mais três pessoas: Jacinto, Maria e Manuel, respectivamente pai, irmã e marido da heroína.

(Capítulo “O nascimento da Federación de Guerrillas de Léon-Galícia e do jornal “El Guerrillero” do livro “Guerrilheiros anti-franquistas em Trás-os-Montes de Bento da Cruz, Editora Âncora, 2003. Lisboa)

A Torre de Babel ou a Porra do Soriano

16.09.23 | Manuel

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Poema de Guerra Junqueiro

Pedro Soriano foi o herói de um casamento simulado que houve em Lisboa. Tinha o membro viril desenvolvidíssimo. Uns amigos de Junqueiro encarregaram-se de lhe apresentar o Soriano porque, tendo contado a Junqueiro a enormidade do membro, ele dissera que exageravam. Junqueiro viu e exclamou: «Tamanho membro merece um poema».

Esse poema é o que se segue:

Eu canto do Soriano o singular mangalho!
Empresa colossal! Ciclópico trabalho!
     Para o cantar inteiro e para o cantar bem
precisava viver como Matusalém.
     Dez séculos!
          Enfim, nesta pobreza métrica
cantemos essa porra, porra quilométrica,
donde pendem colhões que ideia vaga
das nádegas brutais do Arcebispo de Braga.

Sim, cantemos a porra, o caralho iracundo
que, antes de nervo cru, já foi eixo do Mundo!
     Mastro de Leviathan! Iminência revel!
     Estando murcho foi a Torre de Babel
     Caralho singular! É contemplá-lo
                                                               É vê-lo teso!
Atravessaria o quê?
                                  O sete estrelo!!
Em Tebas, em Paris, em Lagos, em Gomorra
juro que ninguém viu tão formidável porra
          É uma porra, arquiporra!
                                                 É um caralhão atroz
que se lhe podem dar trinta ou quarenta nós
e, ainda assim, fica o caralho preciso
para foder a Terra, Eva no Paraíso!!
          É uma porra infinita, é um caralho insone
que nas roscas outrora estrangulou Le Comte.

Oh, caralho imortal! Oh glória destes lusos!
Tu podias suprir todos os parafusos
que espremem com vigor os cachos do Alto Douro!
Onde é que há um abismo, onde há um sorvedouro
que assim possa conter esta porra do diabo??!
          Marquês de Valadas em vão mostra o rabo,
em vão mostra o fundo o pavoroso Oceano!
          – Nada, nada contém a porra do Soriano!!

Quando morrer, Senhor, que extraordinária cova,
que bainha, meu Deus, para esta porra nova,
esta porra infeliz, esta porra precita,
judia errante atrás duma crica infinita??
– Uma fenda do globo, um sorvedouro ignoto
que lhe dá de abrir talvez um dia um terramoto
para que desague, esta porra medonha,
em grossos borbotões de clerical langolha!!!

A porra do Soriano, é um infinito assunto!
Se ela está em Lisboa ou em Coimbra, pergunto?
          Onde é que ela começa?
                                               Onde é que ela termina
essa porra, que estando em Braga, está na China,
porra que corre mais que o próprio pensamento
que porra de pardal e porra de jumento??
     Porra!
                Mil vezes porra!
                                      Porra de bruto
que é capaz de foder o Cosmo num minuto!!!

*

O Casamento Simulado

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 Ao apresentar o retrato de Maria Eugénia conjuntamente com a sua predilecta amiga de então, Leopoldina, vamos descrever os mais pronunciados traços fisionómicos daquela suposta mártir, em vista dos quais facilmente se compreende e conclui a devassidão de tal rapariga.

A facilidade com que aos dezassete anos se prestava a fotograr-se em variadíssimos costumes já de per se é indício frisante de que lhe era agradável a variedade.

Pois mostrará bom senso quem admitir que a mulher cujo olhar astucioso e sensual, que ali se divisa, seja a adolescente e pudica menina que, três anos depois, dizem que foi enganada a um terceiro andar persuadida de que era uma igreja, casada religiosamente às 11 horas da noite, em uma capela fingida, sendo o celebrante fingido, o noivo fingido, fingidas as testemunhas, tudo fingido?

Não, mil vezes não.

Naquela idade revelou logo Maria Eugénia querer com a sua fatal beleza angariar amantes com quem pudesse saciar os furores da sua sensualidade, desprezando as considerações do mundo pela virtude, adquiridas pela honestidade.

Todo o sou empenho, todo o seu cuidado era fazer conquistas, e ciente de que era desejada, espicaçar com atractivos c ciúmes o coração dos desgraçados que a requestassem. E para isso, para alcançar esse fim, era preciso um qualquer meio para apresentar-se a curiosidade pública, sempre ávida de sensações. A fotografia foi o expediente tomado.

Seria exposta à venda, comprada, mostrada e, assim, tornando-se conhecida e tendo antes tido o cuidado de haver ocultado convenientemente alguns traços quo pudessem compromete-la a, os concorrentes pululariam de todos os lados.

Arrojou-se até a ir tirar o retrato quo apresentamos, estando grávida, o que bem se reconhece ao mais simples relancear de olhos e ainda pela circunstância de se ter colocado por detrás de uma decoração qualquer. Como já no começo da vida havia tanta perversão na sua alma!

O sou olhar provocador, a sua pose, a companhia igualmente desacreditada que escolhera para com ela se retratar em grupo, são provas evidentíssimas de que o seu temperamento extraordinariamente sensual estava muito longe do recato, da decência e do decoro, qualidades inerentes às meninas honestas, cuja educação seja atendida pelas mães.

Tem Maria Eugénia as características de todas as mulheres libertinas: colo saliente, lábios grossos e boca esponjosa, raiz nasal encovada, testa curta, o cabelo corredio, tez pálida.

Todas as mundanas, as mais perigosas, reúnem aqueles sinais de depravação, o orgulho, a astúcia, e a tendência para o galanteio, todos os ardis de concupiscência. Maria Eugénia usa destes naturais predicados com requintada hipocrisia e não menus rara inteligência, mais de admirar em uma mulher boçal, tornada não se sabe como em emérita comediante.

O embuste de que tão fina e habilmente se revestiu no papel de ingénua, iludindo autoridades e o público com as suas falsas declarações, é a prova mais cabal de que possui mais uma infame qualidade miseravelmente vingativa.

Tão nojenta é a sua índole que nem mesmo respeitou um sentimento que as mais abjectas prostitutas conservam para com as suas infelizes companheiras de infortúnio, e a que elas, no meio do seu enlameado viver, classificam de decoro, compromisso tácito que todas guardam para com aquelas a quem têm por amigas, não as traindo com os seus amantes. Pois nem isso mesmo Maria Eugénia respeitou, pois que atraiçoou a sua predilecta amiga Leopoldina roubando-lhe o amante. Comprovaremos este acto.

*

Entre os muitos documentos que obtivemos e para o diante publicaremos, vamos dar a primazia a uma carta que o inapreciável dr. João de Deus dirigiu à respeitabilíssima mãe de Pedro Soriano algum tempo depois de ele ter favorável decisão no agravo que subiu à Relação de Lisboa.

Não há aí ninguém que deixe de reconhecer os sublimes dons de alma do admirável poeta, a bonomia do mestre estimadíssimo, as prodigalidades do mais útil e generoso esmoler da civilização popular, as suas inexcedíveis qualidades de homem de bem e pai exemplar, o integérrimo carácter inconcusso daquele coração nobre e puro, intransigente um ápice sequer com a mais leve acção menos digna; por isso, embora companheiro de Coimbra, patrício e amigo dedicado de Pedro Soriano, seria incapaz de faltar à verdade e a sua consciência, e não diria, a não ser com a mais intima e profunda convicção, que sente tamanho infortúnio como se o Pedro fosse pessoa da sua família.

(“A Torre de Babel ou a Porra do Soriano”, Guerra Junqueiro. Tinta da China, 2011)

Imagem de destaque: Pedro Soriano, retrato em Galeria de Criminosos Célebres. História da Criminologia Contemporânea, Lisboa, Empresa do Almanaque Palhares, 1908, Volume VII.

NATÁLIA CORREIA — CEM ANOS

13.09.23 | Manuel

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NATÁLIA CORREIA

Natália de Oliveira Correia nasceu em 1923 na ilha de São Miguel (Açores), vindo criança para Lisboa, onde fez os seus estudos liceais.

Frequentemente arrumada pela crítica no cacifo surrealista, tem a autora a esclarecer que, se semelhante arrumo quadra à comunidade dos nossos fazedores de génios, de forma alguma define a sua poesia. Trata-se de um equívoco em que facilmente resvalam quantos não discernem a poesia senão através de esquemas. A verdade apresenta um aspeto totalmente inverso desta interpretação. Entendendo a poesia como substância mágica desorbitada da sua funcionalidade primitiva, que o poeta desespera por restituir  sua natureza orgânica primordial, a fim de a tornar eficaz na recriação do Mundo, por esta linha, «ante» e «pós» surrealista, se presta a poesia de Natália Correia a ser integrada num movimento que não inventou mas apenas focou esta intrínseca constante do fenómeno poético.

Publicou teatro, ensaio e os seguintes livros de poesia: Poemas (1954), Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1960) e Cântico do País Emerso (1961).

O erotismo, como ressumbração de uma vivência amorosa individual, esta longe de caracterizar a obra desta poetisa. Todavia, no sentido lato de um universo erotizado, animado pela impaciência genesíaca de sucessivamente se exceder, é-lhe gradual o desenvolvimento da perspetiva erótica, que se afirma, sobretudo, em Cântico do País Emerso. Esta evolução corresponde a um aprofundamento do mistério telúrico da mulher, que é a própria jornada da sua poesia, resultando no comprazimento de se observar como força genesíaca, deslumbradamente atuante na cópula primordial que a terrena espelha.

COSMOCÓPULA

I

Membro a pino

dia é macho

submarino

é entre coxas

teu mergulho

vicio de ostras.

II

O corpo é praia a boca é a nascente

e é na vulva que a areia é mais sedenta

poro a poro vou sendo o curso de água

da tua língua demasiada e lenta

dentes e unhas rebentam como pinhas

de carnívoras plantas te é meu ventre

abro-te as coxas e deixo-te crescer

duro e cheiroso como o aloendro.

(Inédito)

(“Antologia de Poesia Portuguesa – Erótica e Satírica” de Natália Correia. Ponto de Fuga, 2019)

*

DA CLARA À NEGRA CIÊNCIA

Uma laranja cai

E o chão impede

Que ela infinitamente caia.

Impedimento

Ou o invento

De uma ciência

Que já foi gaya

E agora é triste-

Mente astronómica.

Raios a partam

A bomba atómica!

*

DURANTE O DEBATE DA LEI CONTRA O ALCOOLISMO

Num pais de beberrões

Em que reina o velho Baco

Se nos tiram os canjirões

Ficamos feitos num caco.

 

E querem os deputados

Com um ar de beatério

Que fiquemos desmamados

Quais anjos num baptistério.

 

Se o verde e o tinto são

As cores da nossa bandeira,

Ai, lá se vai a nação

Se acabar a bebedeira.

 

De abstemia não se faça

A lex neste plenário

Que o direito à vinhaça

Esse é consuetudinário.

*

NO SERVO ANINHA—SE O DÉSPOTA

A um deputado do PSD, ferozmente anti-comunista que, no seu fanatismo partidário, batia o mais grosseiro estalinista

Do pequeno-burguês tem, na medula,

A vérmina sabujo-partidária.

A fossanguice teimosa tem da mula

Em estalinismo de instrução primária.

 

Só perante o patrão é mole, é lula

Sua mínima alma funcionária.

Mas com a vara na mão, o vilão pula

E dá ordens em couces de alimária.

 

Comigo tal marmanjo baixe a bola

Que a palmatória desse mestre-escola

Eu lha faço engolir pelo bocal

 

Por onde expulsa asneiras a vapor;

Pois versos não me faltam nem humor

Para, com sátiras, forrar este animal.

*

«O acto sexual é para fazer filhos»

disse ele

Um poema de Natália Correia

A João Morgado (CDS)

 

«O acto sexual é para ter filhos» — disse, com toda a boçalidade, o deputado do CDS no debate anteontem sobre a legalização do aborto. A resposta em poema, que ontem fazia rir todas as bancadas parlamentares, veio de Natália Correia. Aqui fica:

 

«Já que o coito — diz Morgado —

tem como fim cristalino,

preciso e imaculado

fazer menina ou menino;

e cada vez que o varão

sexual petisco manduca,

temos na procriação

prova de que houve truca-truca.

Sendo pai só de um rebento,

lógica é a conclusão

de que o viril instrumento

só usou — parca ração! ­—

uma vez. E se a função

faz o órgão — diz o ditado —

consumada essa excepção,

ficou capado o Morgado.»

in Diário de Lisboa, 5 de Abril de 1982

*

UMA SÓ VOZ DE INUMERÁVEIS BOCAS?

De Eva a mulher astronauta

vivo todas as idades,

um fausto de lua lauta

no brilho das brevidades.

 

Canta-me um louco na pauta,

demónios e divindades

compartilham essa flauta

das minhas variedades.

 

O universo inventado

de noutros me perceber.

Tanto tempo utilizado

numa manhã, por nascer!

 

Sujeitos a estranhas leis

com a sua loucura a sós

solitários como os reis

os poetas dizem: nós.

 

E pela mesma magia

que ainda ninguém entendeu,

no côncavo da poesia

um deus que falta diz: eu.

 (“O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II”, Natália Correia. Projornal, 1993)

Matar sem prazer

10.09.23 | Manuel

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Ernest Hemingway

Jordan podia verificar com o binóculo a identidade dos aviões, mas preferiu não o fazer. Pouco se lhe dava naquela noite que fossem amigos ou inimigos e a verificação podia decepcionar o seu companheiro. Voavam na direcção de Segóvia e não pareciam ser os aviões verdes de asas vermelhas, adaptação russa dos Boeing P-32 a que os espanhóis chamavam Moscas . As cores não eram visíveis àquela hora, mas a linha dos aparelhos indicava isso. Sim. Era uma patrulha fascista que regressava.

A sentinela permanecia de pé na outra guarita, de costas para eles.

– Vamos – disse Jordan, e começou a galgar a subida, sempre cautelosamente.

Anselmo seguia-o, a uns cem metros de distância. Quando perderam a ponte de vista o rapaz parou à espera do velho, o qual lhe ganhou a dianteira e retomaram a subida já dentro da escuridão nocturna.

– Temos uma aviação formidável – observou o guia radiante.

– Sim, temos.

– E havemos de vencer.

– É preciso que vençamos.

– E depois de termos vencido, voltarás cá para caçar.

– Caçar o quê?

– O javali, o urso, o lobo, o cabrito montês...

– Gostas de caçar?

– Sim, homem. Mais do que tudo. Na minha aldeia todos caçamos. E tu?

– Não – disse Robert Jordan. – Não gosto de matar animais.

– Comigo dá-se o contrário – murmurou o velho. – O que não gosto é de matar homens.

– Ninguém gosta, a menos que se tenha a cabeça perturbada – volveu Jordan. – Mas sendo necessário pouco se me dá... sendo pela causa.

– Sim, é coisa diferente – assentiu Anselmo. – Na minha casa, quando eu tinha casa, porque hoje é coisa que não tenho, havia as presas dos javalis que matei na floresta lá em baixo. E peles de lobos que abati no Inverno, caçando na neve. Nos arredores da aldeia matei, numa noite de Novembro, quando regressava a casa, um lobo enorme. Havia quatro peles de lobo no soalho da minha casa. Já estavam gastas pelo uso, mas eram peles de lobo. Havia também os chifres de um cabrito montês que matei no alto da Sierra e uma águia de asas abertas e os olhos amarelos, iguais aos olhos verdadeiros de uma águia viva. Coisa muito bonita e que dava prazer olhar.

– Sim – concordou Jordan.

– Na porta da igreja da minha aldeia pregaram a pata de um urso que matei na Primavera. Encontrei-o numa colina coberta de neve, virando um tronco de madeira com a pata.

– Quando foi isso?

– Há uns seis anos atrás. E cada vez que eu via aquela pata, tal qual a mão de um homem, só com garras compridas, seca e pregada pela palma à porta da igreja, sentia um verdadeiro prazer.

– Orgulho, não é?

– Orgulho de me lembrar do encontro com o urso na montanha, nesse começo de Primavera. Mas matar um homem, que é um homem como nós, não é coisa que me dê orgulho.

– Não se lhe pode pregar a pata na porta da igreja – disse Robert Jordan.

– Não. E uma barbaridade tão grande que nem se pode pensar nela. No entanto a mão do homem parece-se com a pata do urso.

– Também o peito do homem é igual ao peito do urso – disse Jordan. – Tirada a pele do urso, as semelhanças musculares são notáveis.

– Sim. Os ciganos acreditam que o urso é irmão do homem.

– Os índios da América também – observou Jordan. – Quando matam um urso, pedem-lhe desculpa e perdão. Penduram-lhe a cabeça numa árvore e pedem-lhe perdão antes de se retirarem.

– Os ciganos acreditam que o urso é irmão do homem porque, tirada a pele, tudo é igual e também porque o urso bebe cerveja, gosta de música e sabe dançar.

– O mesmo pensam os índios.

– Os índios serão ciganos?

– Não, mas em relação ao urso pensam como os ciganos.

– Compreendo. Os ciganos também acham que o urso é irmão do homem porque gosta de roubar.

– Tens sangue cigano?

– Não, mas conheço-os bem. Lidei muito com eles, principalmente depois do movimento. Há muitos nas montanhas. Para os ciganos não é pecado matar fora da tribo. Eles negam que seja assim, mas é verdade.

– São como os mouros.

– Sim, mas os ciganos têm um ror de leis secretas que negam ter. A guerra tornou-os maus como dantes eram.

– Eles não compreendem as razões da guerra. Não sabem a razão por que combatemos.

– É verdade – confirmou o velho. – Só sabem que há guerra e que por isso podem matar como antigamente, sem que ninguém lhes peça contas.

– Tu já mataste alguém? – inquiriu Jordan animado pela intimidade que a escuridão favorecia e por um dia passado em comum.

– Sim, muitas vezes. Mas nunca me senti satisfeito. Para mim matar um homem é pecado. Mesmo quando são fascistas que é preciso matar. Eu, por mim, acho grandes diferenças entre um homem e um urso e não acredito nessa bruxaria dos ciganos a respeito da fraternidade com animais. Não. Eu sou contrário à matança de homens.

– E, no entanto, mataste.

– Sim. E voltarei a matar. Mas se escapar com vida hei-de fazer o possível por viver de modo a não fazer mal a ninguém, a fim de ser perdoado.

– Por quem?

– Quem é que sabe? Desde que não há Deus, nem Filho, nem Espírito Santo, quem pode perdoar ? Eu não sei.

– Então já não tens Deus?

– Não, homem. E certo que não. Se houvesse Deus ele nunca permitiria que visse o que tenho visto com estes que a terra há-de comer. Podemos deixar-lhes o Deus.

– Eles reclamam-no.

– É claro que Ele me faz falta, pois fui educado com religião. Mas agora um homem tem que ser responsável por si.

– Nesse caso és tu que tens de perdoar-te pelas mortes feitas.

– Creio que sim – concordou Anselmo. – lá que pões a questão nesse ponto, parece-me que deve ser assim. Mas, com ou sem Deus, estou convencido de que matar é pecado. Para mim tirar a vida de outra pessoa é coisa de muita gravidade. Fá-lo-ei sempre que for necessário, mas não sou da raça de Pablo.

– Para vencer uma guerra é preciso matar os inimigos. Isto sempre foi uma verdade.

– Está claro. Na guerra temos de matar. Mas eu tenho ideias muito esquisitas – volveu Anselmo. Os dois continuaram a subir na escuridão, muito próximos um do outro; o velho falava mansamente voltando a cabeça de quando em vez.

– Eu não mataria nem um bispo. Não mataria qualquer espécie de proprietário. Obrigá-los-ia, sim, a trabalhar no campo, e nas montanhas diariamente, como nós trabalhamos e pelo resto das suas vidas. Então saberiam para que tinha nascido o homem. Teriam de dormir onde nós dormimos. Comer o que nós comemos. Mas antes de mais nada, teriam que trabalhar. Haviam de aprender.

– Deste modo sobreviveriam e voltariam a escravizar-te.

– Mas não é matando-os que eles aprenderão – respondeu Anselmo. – Tu não podes exterminá-los porque da semente nasceria ainda mais ódio. A prisão não adianta nada. A prisão só faz aumentar o ódio. E o que os nossos inimigos precisam é de aprender.

– Mas apesar disso tu mataste.

– Sim – respondeu Anselmo. – Matei e voltarei a matar. Mas nunca por prazer e considerando isso um pecado.

– E a sentinela? Divertiste-te muito ao fingir que ias matá-la.

– Sim, mas brincava. E matarei a sentinela. Sim, considerando isso uma obrigação e pensando na nossa missão. Mas sem prazer.

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Fuzilamento de trabalhadores comunistas pela tropa nacionalista de Franco, em Llerena, perto de Badajoz, Estremadura. Data provável: 5 ou 6 de Agosto de 1936. (Foto de colecção particular, retirado do "Estudos sobre a Guerra Civil Espanhola" de Tiago Barbosa Ribeiro)

(“Por quem os sinos dobram” de Ernest Hemingway. Edição Livros do Brasil. Lisboa).

*

Ernest Miller Hemingway (Oak Park, 21 de julho de 1899 — Ketchum, 2 de julho de 1961). Escritor. Trabalhou como correspondente de guerra em Madrid durante a Guerra Civil Espanhola (1936–1939). Esta experiência inspirou uma de suas maiores obras, Por Quem os Sinos Dobram. Ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), instalou-se em Cuba. Em 1953, ganhou o Prémio Pulitzer de Ficção, e, em 1954, ganhou o prémio Nobel de Literatura.

A tauromaquia é uma vergonha nacional

06.09.23 | Manuel

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por Vasco Reis

PERCURSO DO TOURO ANTES, DURANTE E DEPOIS DA TOURADA!

O touro vive uns 4 anos na campina habituado à companhia de outros da mesma espécie em espaço largo e com razoáveis condições. Terá já passado por momentos violentos de ferra, de tentas É escolhido para a lide numa tourada. Com ou sem sedação, apartam-no violentamente, com muito uso do bastão eléctrico, para uma manga e enfiam-no numa caixa apertada onde mal se pode mexer. A ansiedade provocada pelo aperto cresce em tremenda claustrofobia ao passar da liberdade e tranquilidade da campina para o "caixote" onde fica confinado, violentamente afastado da companhia importante dos outros bovinos a que o ligam laços emotivos.

A seguir cresce o pânico do transporte. Depois a espera, com pouco ou nenhum alimento e bebida. Talvez sendo injectado, a ponta dos cornos será cortada, provavelmente, até ao extremo vivo e muito enervado, ficando extrema e dolorosamente sensível ao contacto. Para não sangrar, cauteriza-se a sangue frio. (Há touros que não resistem a esta operação e morrem de acidente cardiovascular provocado pelo sofrimento). Sofre outras acções destinadas a fatigá-lo, debilitá-lo, retirar-lhe capacidade para a lide.

Mais tarde, a condução ao curro escuro da praça de touros. É empurrado a seguir para a arena (beco sem saída) suportando logo o enorme alarido da multidão e da música ruidosa (para se sobrepor ao seus berros), o que ainda mais o assusta, a visão ficando ofuscada pela luz do sol. Depois a provocação, o engano, o cravar das bandarilhas/arpões, que o ferem e magoam terrivelmente, através da pele, e não só, pois frequentemente também aponevroses, alguns músculos, tendões, vértebras, espáduas e, por vezes, até pleura e pulmão são atingidos, quando erroneamente cravado entre costelas. Tudo isto o faz sangrar e sofrer, o enfurece, magoa, deprime e esgota. Cavaleiros ou bandarilheiros massacram-no.

Depois, exausto, física e psicologicamente, segue-se a (ou as pegas) pelos forcados, A seguir é retirado com as “chocas”. É amarrado e imobilizado por cordas em volta dos cornos. Brutalmente, tal como foram cravados, os ferros são agora retirados sem anestesia, arrancados ou por corte do couro.

No final de tudo isto, o animal é metido no transporte, esgotado, ferido e febril, em acidose metabólica horrível que o maldispõe e intoxica, até que a morte, habitualmente só alguns dias mais tarde, o liberte de tanto sofrimento. Frequentemente fica, até esse momento, encerrado em veículos de transporte num espaço exíguo, sabe-se lá com ou sem alimento e água e submetido a elevadas temperaturas.

E ninguém, independente, pode controlar isso.

PERCURSO DO CAVALO EXPLORADO NO TOUREIO!

O cavalo sofre esgotamento e terrível tensão psicológica ao ser usado como veículo, sendo dominado, incitado e lançado pelo cavaleiro e obrigado a enfrentar o touro, quando a sua atitude natural seria a de fuga e de pôr-se a uma distância segura.

À força de treino, de esporas que o magoam e ferem, de ferros na boca e da barbela - corrente de metal à volta da mandíbula, que o magoam e o subjugam, o cavalo arrisca morte por síncope/paragem cardíaca, ferimentos mais ou menos graves e, até, a morte na arena por ser atingido pelo touro.

OPINIÃO!

É difícil, senão impossível, acreditar que toureiros e cavaleiros tauromáquicos amem touros e cavalos, quando os submetem a violência, risco, sofrimento.

O mesmo se aplica aos aficionados, que aceitam isso

Questiono-me. porque se continua a permitir uma actividade que assenta na violência e no sofrimento público de animais, legalizado e autorizado por lei e até apreciado, aplaudido e glorificado por alguns?

Numa verdadeira democracia não deveria ser permitida nem legalizada a tortura de animais.

PERGUNTA FUNDAMENTAL!

E senhoras e senhores Deputad@s da Assembleia da República de Portugal o que acham e como vão votar? Pela abolição ou pela manutenção desta terrível violência contra seres sencientes (como os humanos) e indefesos e inocentes.

RECOMENDAÇÃO PARA TOMADA DE CONHECIMENTO!

Recomendo aqui uma tomada de conhecimento da científica DECLARAÇÃO DE CAMBRIDGE SOBRE A CONSCIÊNCIA EM ANIMAIS HUMANOS E NÂO HUMANOS de 7 de Julho de 2012 editada por Philip Low.

E mais dados científicos:

Os animais humanos e não humanos são seres dotados de sistema nervoso, mais ou menos desenvolvido, que lhes permitem sentir e tomar consciência do que se passa em seu redor e do que é agradável, perigoso e agressivo e doloroso.

Estes seres experimentam sensações, emoções e sentimentos muito semelhantes. Este facto leva-os a utilizar mecanismos de defesa e de fuga, sem as quais, não poderiam sobreviver. Portanto, medo e dor são condições essenciais de sobrevivência.

Afirmar-se que, nalguma situação não medicada, algum animal possa não sentir medo e dor se for ameaçado ou ferido, é testemunho da maior ignorância, ou intenção de negar uma verdade vital, falácia para tentar ocultar a crueldade da tauromaquia.

A ciência revela que o esquema anatómico, a fisiologia e a neurologia do touro, do cavalo e do homem e de outros mamíferos são extremamente semelhantes.

As reacções destas espécies são análogas perante a ameaça, o susto, o ferimento. O senso comum apreende isso e a ciência confirma-o.

Depois desta explicação, imaginem o sofrimento horrível que uma pessoa teria se fosse posta no lugar de um touro capturado e conduzido ao “calvário” de uma tourada.

CONCLUSÃO:

Seres humanos (tauromáquicos) não devem provocar a outros seres de sensibilidade semelhante (touros e cavalos), sofrimentos a que os próprios agressores (tauromáquicos) não aceitariam ser submetidos.

Porque é a desgraçada vítima dos chamados humanos, “corrido” e torturado?

Para diversão de aficionados, para o alimentar de egos e vaidades, para negociatas de tauromáquicos e no prosseguimento de uma cruel e obsoleta tradição.

É mais do que justo e chegado o tempo da abolição, o que só peca por tardar!!!

As importantes verbas que são atribuídas no apoio à tauromaquia e as isenções que lhe são oferecidas, seriam com justiça e utilidade, preferencialmente, utilizadas para mitigar imensas necessidades!

* Médico veterinário aposentado

Aljezur

Imagem: Bordalo II

Fonte

Ver também: contra a tauromaquia

A FOME vista por Galeano

03.09.23 | Manuel

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 UMA COLÓNIA SUPERPOVOADA

Não saía fumo das chaminés. Em 1850, depois de quatro anos de fome e de pragas, os campos da Irlanda despovoaram-se, e pouco a pouco as casas desabitadas ruíram. Os habitantes tinham partido para o cemitério ou para os portos da América do Norte.

A terra nem batatas dava. Só a produção de loucos crescia. O manicómio de Dublin, pago por Jonathan Swift, tinha noventa internos quando foi inaugurado. Um século depois, havia mais de três mil.

Durante a fome, Londres enviou alguma ajuda de emergência, mas a caridade acabou passados alguns meses. O império decidiu não continuar a socorrer esta colónia incómoda. Conforme explicou o primeiro-ministro, lorde Russell, o ingrato povo irlandês pagava esta generosidade com rebeliões e difamações e isso caía muito mal à opinião pública.

E Charles Trevelyan, alto funcionário encarregado da crise irlandesa, atribuiu a fome à Divina Providência. A Irlanda tinha a mais alta densidade demográfica de toda a Europa, e uma vez que o excesso de população não podia ser evitado pelos homens, Deus solucionava-o em toda a sua sabedoria, de forma imprevista, inesperada, mas com grande eficácia.

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Imagem em lavrapalavra

DESASTRES NATURAIS

Um deserto vazio de passos e de vozes, apenas pó fustigado pelo vento.

Muitos chineses se enforcam, antes que a fome os leve a matar ou antes que a fome os mate.

Os triunfantes mercadores da guerra do ópio fundam em Londres o Fundo de Socorro para a Fome na China.

Esta instituição de caridade promete evangelizar o país pagão por via digestiva: do Céu choverão alimentos, enviados por Jesus.

*

OUTROS DESASTRES NATURAIS

Em 1879, depois de três Invernos sem chuva, há menos nove milhões de indianos.

A culpa é da natureza:

São desastres naturais – dizem os que sabem.

Mas na Índia, nesses anos atrozes, o mercado castiga mais do que a seca.

Como lei do mercado, a liberdade oprime. A liberdade de comércio, que obriga a vender, proíbe comer.

A Índia é uma plantação colonial, não uma misericórdia. O mercado manda. Sábia é a sua mão invisível, que faz e desfaz; e ninguém tem razão para corrigi-la.

O governo britânico limita-se a ajudar a morrer uns quantos moribundos, nos seus campos de trabalho chamados Campos de Socorro, e a exigir os impostos que os camponeses não conseguem pagar. Os camponeses perdem as suas terras, que se vendem ao desbarato; e ao desbarato se vendem os braços que nelas trabalham, enquanto a escassez eleva até às nuvens o preço  dos grãos que os empresários açambarcam.

Os exportadores vendem mais do que nunca. Montanhas de trigo e de arroz são despejadas nos portos de Londres e de Liverpool. A Índia, colónia esfomeada, não come, mas dá de comer. Os britânicos comem a fome dos indianos.

É muito cotada no mercado esta mercadoria chamada fome, que multiplica as oportunidades de investimento, reduz os custos de produção e aumenta os preços dos produtos.

*

O PAI DA CRUZ VERMELHA

A Cruz Vermelha nasceu em Genebra, fruto da iniciativa de alguns banqueiros suíços, para socorrer os feridos abandonados pelas guerras nos campos de batalha.

Gustave Moynier, o primeiro presidente, encabeçou o Comité Internacional durante mais de quarenta anos. Ele explicava a Cruz Vermelha, instituição inspirada na moral evangélica era bem recebida nos países civilizados, mas deparava com muita ingratidão nos países colonizados.

A compaixão — escreveu — é desconhecida por aquelas tribos selvagens, que praticam o canibalismo. Este sentimento é-lhes tão estranho que as suas línguas não têm nenhuma palavra para expressar essa ideia.

*

CHURCHILL

Todo-poderosa era a influência dos herdeiros de lorde Marlborough, conhecido como Mambru; graças à sua família, o jovem Winston Churchill conseguiu entrar num dos batalhões de lanceiros que iam combater no Sudão.

Ele foi soldado e cronista da batalha de Omdurman, em 1898, nos arredores de Cartum, nas margens do rio Nilo.

A coroa britânica estava a criar um corredor de colónias que atravessasse África do Cairo, a norte, a Cidade do Cabo, no extremo sul. A conquista do Sudão era fundamental para esse projecto de expansão imperial, que Londres explicava dizendo:

— Estamos a civilizar África através do comércio,

em vez de confessar:

— Estamos a comercializar África através da civilização.

Esta missão redentora abria caminho a ferro e fogo. Como os raquíticos cérebros africanos não conseguiam compreendê-la, ninguém se dava ao trabalho de lhes pedir opinião.

Nos bombardeamentos da cidade de Omdurman, reconheceu Churchill, morreu um grande número de infelizes não-combatentes, vítimas do que passou a chamar-se, um século depois, danos colaterais. Mas, finalmente e segundo as suas palavras, as armas imperiais obtiveram o triunfo mais eloquente jamais alcançado pelas armas da ciência contra as armas da barbárie, a derrota do exército selvagem mais poderoso e mais bem armado alguma vez amotinado contra um moderno poder europeu.

De acordo com os dados oficiais dos vencedores, este foi o resultado da batalha de Omdurman:

nas tropas civilizadas, cerca de dois por cento de baixas;

nas tropas selvagens, cerca de noventa por cento de baixas.

(Eduardo Galeano, “Espelhos – Uma História Quase Universal. Antígona, 2018.)

PIDE-DGS: A Génese de uma Polícia Política

01.09.23 | Manuel

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 Esta cronologia da polícia política do regime fascista compreende o período desde o 28 de Maio de 1926 até ao 25 de Abril de 1974. Dentro dos dados históricos que actualmente possuímos, ela pretende ser tão completa quanto possível, embora, como é óbvio, esteja cheia de lacunas e incorrecções. O conhecimento do que era a PIDE bem como os seus crimes, permanecem em grande parte escondidos nos seus vastíssimos arquivos, envolvidos em estranho silêncio e fora do alcance do povo português.

Convém frisar que a cronologia não é uma "história" da PIDE, não só pelas suas omissões, mas também pelas características de uma cronologia; não são apontadas as relações de causa-efeito entre os factos e acontecimentos sucessivamente relatados. Pretende apenas contribuir para tornar mais claros os elementos da história da PIDE e do fascismo, bem como da resistência antifascista que começamos a publicar nesta brochura, com continuação nas que se vão seguir.

Parece-nos, no entanto, que alguns aspectos significativos se podem desde já extrair da cronologia:

- as metamorfoses e "liberalizações" da PIDE são apenas mudanças de fachada, e tentativas, quase sempre falhadas, de aumentar a sua eficácia;

- um aumento de repressão é a resposta a formas mais agudas de luta. Contudo a PIDE apenas conseguiu sufocar momentaneamente a resistência do povo ao fascismo;

- se tantos outros elementos não houvesse, por exemplo - a violação pública e sistemática das mínimas liberdades dos cidadãos - bastava o número de assassinatos cometidos pela PIDE aqui indicados, para denunciar o seu carácter terrorista e criminoso. De salientar que não estão indicados na cronologia a maior parte daqueles que, por doença e maus-tratos, morreram no Tarrafal, bem como os milhares de patriotas africanos que os agentes da PIDE assassinaram nas colónias, mesmo muito antes da Guerra Colonial ter começado.

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Sede Central da PIDE/DGS na Rua António Maria Cardoso, ao Chiado, Lisboa, anos sessenta

28-5-1926

Começo do movimento militar que irá derrubar a I República. O general Gomes da Costa comandando as unidades amotinadas "marcha sobre Lisboa". Início da Ditadura Militar com consequente reforço da autoridade do Estado e de todos os seus aparelhos de repressão e propaganda. Começam nesta data os 48 anos do regime fascista, 48 anos de repressão policial e terrorista sobre os trabalhadores e o povo português.

16-2-1926

Criação por decreto-lei da Polícia Especial de Lisboa, com jurisdição limitada ao distrito e na dependência do respectivo Governador Civil. O recrutamento é feito entre os agentes da polícia política da I República (Polícia Preventiva de Segurança do Estado ou PSE que se salientou na repressão ao movimento operário e sindicalista), e entre todos aqueles que esperavam ensejo de se “vingarem” da acção das "polícias" particulares de alguns partidos "democráticos" (como é o caso da célebre Formiga Branca do Partido de Afonso Costa). O objectivo da criação desta polícia era agora detectar e reprimir os adversários da Ditadura e em especial os que, atentos ao avanço dos fascistas, procuravam criar uma Frente Antifascista. A tarefa desta polícia não encontrava dificuldades de maior em virtude dos erros de legalidade dos partidos e das associações políticas, bem como devido à permeabilidade que o movimento grevista não soube evitar.

3-2-1927

Estala no Porto uma revolta armada contra a Ditadura comandada pelo general Sousa Dias que abortará em 8 de Fevereiro seguindo-se uma vaga repressiva.

7-2-1927

Revolta antifascista militar e popular de Lisboa em apoio à revolta do Porto. A Policia Especial de Lisboa assalta a sede do jornal “O Mundo” (Democrático), prende os trabalhadores, alguns sindicalistas e efectua buscas domiciliárias ao mesmo tempo que o Governo dissolve unidades do Exército e da GNR que tinham apoiado a revolta. Os partidos políticos e associações que tinham tomado parte no movimento são encerrados e é proibida a greve. São fuzilados populares que tomaram parte na revolta. Efectuam-se, pela primeira vez, prisões em massa que se tornarão habituais durante o regime fascista.

16-3-1927

Surge no Porto uma Polícia Especial com atribuições idênticas à Especial de Lisboa e, entre elas, o seu carácter secreto.

1-11-1927

É decretado o encerramento da CGT (Confederação Geral do Trabalho) e são proibidas as associações operárias que não submetem à aprovação do Governo os seus estatutos.

17-3-1928

As duas "secretas" de Lisboa e do Porto fundem-se numa só polícia da confiança do Ministro do Interior, cuja responsabilidade pela actuação das polícias políticas no fascismo é doravante criminosa. Com acção extensiva a todo o território metropolitano a Polícia de Informação do Ministério do Interior é já a antecedente da PJDE/DGS. No decreto que a institui, reconhece-se que da centralização dos serviços da polícia de informação e da sua subordinação a orientação superior resulta forçosamente "a vantagem de maior eficiência no cumprimento da missão a que se destina".

Abril de 1928

Salazar é convidado para a pasta das Finanças mediante certas garantias.

20-7-1928

Revolta militar contra a Ditadura a que se segue nova vaga de repressão terrorista levada a cabo pela Polícia de Informações do Ministério do Interior.

1931

Revolta militar e antifascista da Madeira que se estende aos Açores e põe em xeque a Ditadura Militar Fascista.

3-6-1931

Cresce a onda de indignação contra a polícia política e o Governo recua. Pelo decreto-lei nº 20033 desta data é dissolvida a Policia de Informações e considera-se a PSP competente para "a repressão dos crimes de natureza política e social" (art. 2°). No entanto o Governo reconhece "o papel imensamente proveitoso para o País, especialmente no tocante a movimentos revolucionários que surpreendem e fez abortar" desta tenebrosa policia. Porém devido aos "protestos públicos" vê-se obrigado a dissolvê-la.

28-7-1931

Perante a ameaça de acções mais organizadas das massas o Poder reestrutura a Polícia Internacional que deixa de estar na alçada do Ministério da Justiça, para passar para a do Interior. A finalidade residia na repressão às actividades de espionagem e em especial ao combate ao comunismo dentro do pais e, sobretudo, nas suas ligações com o estrangeiro. Surgiu assim a PIP (Polícia Internacional Portuguesa) com quem a Policia de Investigação Criminal e a Policia de Segurança Pública deveriam prestar colaboração. A PIP iria submeter a um controle e acção policial minuciosa todos os estrangeiros que estivessem no país e em especial os "indesejáveis", efectivar a repressão do comunismo, designada mente no tocante às ligações entre elementos portugueses e “agitadores” estrangeiros, assim como na vigilância sobre publicações estrangeiras consideradas subversivas que entravam no país.

1932

Publicação do primeiro decreto anti-comunista.

7-11-1932

O democrata Alfredo Pires é assassinado numa rua de Lisboa durante uma manifestação comemorativa da Revolução Russa de 1917.

23-1-1933

Devido à acção de Salazar e no período de construção do "seu" Estado Novo, surge uma nova Polícia de Informações, a Policia de Defesa Política e Social, também dependente do Ministério do Interior e podendo utilizar nos seus "serviços" os agentes das outras policias existentes.

Fevereiro de 1933

Saem publicados em livro as entrevistas dadas por Salazar a António Ferro (futuro director do Secretariado de Propaganda Nacional fascista) em que o ditador faz declarações hipócritas acerca dos "maus tratos" (leia-se torturas) perpetrados pela policia política. (1)

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Pides em sessão de treino na sede da António Maria Cardoso (in "Dossier PIDE". Ed. Agência Portuguesa de Revistas. Lisboa, 1974)

Ao longo de 1933

Começa a ser utilizada depois de outras "experiências" a informação colocada nas empresas com o objectivo de detectar a organização política clandestina e movimentos grevistas. Mais tarde será uma fonte inesgotável de informação. A "instituição" dos "bufos" e provocadores multiplica-se...

11-4-1933

Entra em vigor a Constituição Política que institucionaliza o Estado Novo após plebiscito em que as abstenções são contadas a favor. O artigo 8º dos direitos fundamentais do cidadão é e será letra morta ao longo dos anos, nunca sendo respeitado pelo Estado nem pelos organismos repressivos, que se salvaguardavam atrás da fórmula mussoliniana "Tudo pelo Estado, nada contra o Estado".

29-8-1933

Assiste-se ao reforço do aparelho repressivo do Estado. Para melhor acção conjunta a PIP e a PDPS fundem-se na tenebrosa PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) que, nas mãos do Ministério do Interior, vai ser um instrumento de terror, de chantagem e de crime. É ela, em conjunto com a propaganda oficial e a censura institucionalizada, quem garantirá e permitirá a dominação salazarista, o avanço das forças fascistas salazarista, o avanço das forças fascistas pela repressão violenta ao movimento operário e popular. Como aspecto fundamental da criação da PVDE deve salientar-se o carácter altamente centralizado e hierarquizado desta polícia política a quem todas as outras polícias, governos civis, administradores de concelhos, autoridades e repartições públicas, incluindo representantes diplomáticos, consulares e adidos militares estavam subordinados ou tinham que prestar colaboração que lhes era solicitada.

23-9-1933

É publicado o Estatuto do Trabalho Nacional que cria os sindicatos Nacionais, repudia a luta de classes e proíbe expressamente a greve que passa a ser acto punível e, portanto passível de prisão. A publicação deste documento copiado dum documento semelhante da Itália de Mussolini é acompanhada de uma vaga de prisões. Vai iniciar-se uma oposição generalizada às organizações de classe dos trabalhadores portugueses roubando-lhes as conquistas alcançadas por anos e anos de luta, A tentativa de sublevação do Regimento de Infantaria 10 de Bragança e a greve geral revolucionária do 18 de Janeiro de 1934 são o pretexto para o desencadear da ofensiva.

6-11-1933

É criado um Tribunal Militar Especial para julgar e punir os crimes de rebelião, e outros crimes políticos contra a segurança do Estado (Decreto-lei nº 23203).

17-11-1933

Sublevação do Regimento de Infantaria 10 de Bragança: são feitas 150 prisões de indivíduos suspeitos e, sem julgamento, secretamente, são enviados para a colónia penal de Angra do Heroísmo. Começa a tornar-se claro o recurso ao abuso de autoridade que irá caracterizar doravante a PVDE/PIDE/DGS.

18-1-1934

Estala a greve geral revolucionária que aborta sendo no entanto marco impar na história da Resistência popular antifascista.

20-1-1934

Surge o 1° Campo de Concentração na foz do rio Cunene, em Angola, com o objectivo de encarcerar os responsáveis do movimento revolucionário do 18 de Janeiro. São julgados mais tarde no Tribunal Militar Especial (a partir de 2 de Fevereiro) sendo-lhes aplicadas penas pesadíssimas de desterro e degredo. Muitos deles morrerão na prisão e no campo de concentração do Tarrafal.

18-2-1934

Dão-se lutas em Setúbal entre os operários conserveiros e a PSP. É assassinado um operário.

Abril de 1934

É "suicidado" na prisão o sindicalista ferroviário Manuel Vieira Tomé (2) um dos organizadores da greve geral revolucionária de 18 de Janeiro de 1934.

23-4-1936

É criada a colónia penal – Campo de Concentração do Tarrafal na ilha de Santiago, para presos políticos e "sociais" que tenham de cumprir pena de desterro. Começa a vida de um dos mais tenebrosos campos de concentração da História da Humanidade onde dezenas e dezenas de antifascistas morreram e onde as mais elementares regras de higiene e dos direitos prisionais eram tábua rasa. Esmeraldo Pais Pratas médico do Tarrafal – figura sinistra da pior espécie, diria então : "Eu vim para aqui, não para receitar, mas apenas para passar certidões de óbito" ! (3) Inicia-se também neste ano um período de terríveis torturas físicas e psicológicas em que a tónica dominante é o abuso da autoridade com a cobertura do poder judicial e estatal. Manter-se-á este período até à vitória dos Aliados na Grande Guerra de 39-45.

1-7-1936

É criada a organização da juventude fascista, Mocidade Portuguesa.

8-9-1936

Três navios da Armada revoltam-se e procuram juntar-se às forças republicanas de Espanha, em guerra contra os invasores fascistas. Violentamente bombardeados pelo então tenente Henrique Tenreiro, os revoltosos são presos e deportados para o Tarrafal. Cerca de uma centena de implicados são acusados e condenados a anos de prisão e degredo.

20-9-1936

É criada a Legião Portuguesa após o comício fascista do Campo Pequeno, (Agosto) em que Botelho Moniz propôs a criação duma milícia armada do regime e uma cruzada anti-bolchevista e anti-comunista, Portugal colocava-se abertamente ao lado do fascista Franco. Esta sinistra instituição tinha também Serviços de Informação aonde em 25 de Abril se detectaram um milhão de fichas, obtidas devido ao trabalho de pouco mais de 150 informadores (que, por sua vez tinham dezenas de sub-informadores na sua dependência directa). Obtinham as suas informações nos meios rurais, nas fábricas, nos liceus em colaboração com a MP, nas repartições públicas e nos cafés. Grande parte dessas informações era canalizada para a PIDE que actualizava assim o seu próprio ficheiro. Por outro lado a PI DE dispunha de informadores colocados na Legião Portuguesa e informadores que eram simultaneamente da LP e da PIDE/DGS. Desfile fascista na Avenida da Liberdade, em Lisboa.

4-7-1937

Atentado anarquista contra Salazar. A PSP por um lado e a PVDE por outro prendem os possíveis participantes. A propaganda oficial fala do "milagre das rosas" (é dia de Santa Isabel), O ditador Salazar não morrera, mas o caso tornar-se-ia um escândalo político e o começo de um conflito entre a PSP e a PVDE. A PVDE cometia claramente abuso de poder.

Junho de 1937

A PVDE acusa a PSP do Porto de montar informação e fazer investigações das actividades clandestinas do PCP paralelamente àquela polícia.

20-9-1937

Morre vítima de febre biliosa o primeiro deportado do Tarrafal, sem lhe ter sido prestada assistência médica. Muitos outros morrerão no Tarrafal com a febre biliosa, como por exemplo, Bento Gonçalves em 1942.

24-9-1937

Augusto Martins, operário, é morto durante as torturas na PVDE.

De 1937 a 1939

A PVDE torna-se mais eficiente devido à introdução de novos sistemas de tortura e ao "intercâmbio" técnico e "científico" que mantém com as polícias fascistas de Mussolini (OVRA) e de Hitler (GESTAPO). Dois oficiais italianos da OVRA chegam a ser condecorados por Carmona. Por sua vez, Kramer esteve a ensinar os novos métodos do terrorismo nazi para serem aplicados aos portugueses. É um período de intenso terrorismo policial não só contra o povo português como também contra o heróico povo espanhol antifascista. (4) (5)

10-2-1938

Em consequência das torturas sofridas morre na prisão, dois anos depois de ter sido preso, o operário Rui da Silva.

1-12-1938

Morrem no Tarrafal, assassinados pela PVDE, o dirigente operário Alfredo Caldeira, e o jovem torneiro Francisco Esteves.

1941

Por "crimes contra a segurança do Estado" foram condenadas 4.727 pessoas, de 1937 a 1941.

4-7-1942

O médico antifascista e amigo do povo Ferreira Soares é assassinado pela PVDE a tiro de metralhadora, na sua casa, perto de Espinho. Os agentes assassinos António Roquete, Laranjeira e Coimbra, são julgados pelo Tribunal Militar e absolvidos.

2-9-1942

Morre no Tarrafal o destacado dirigente operário, Bento Gonçalves vitima da febre biliosa que lhe foi provocada pelos "maus tratos" e falta de assistência médica.

1943

Ano da criação do MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista).

1944

Morte no Forte da Trafaria do general José Garcia Marques Godinho cuja responsabilidade se deve ao Ministro da Defesa, Santos Costa.

De 1942 a 1945

Grande crise económica paga à custa da fome e miséria do povo, enquanto os intermediários e grandes capitalistas acumulam fortunas. Grande movimento grevista por todo o país, em especial no Ribatejo,

Alentejo e zonas industriais. Nem a mobilização militar dos operários, decretada por Salazar, nem as prisões e deportações conseguem suster a luta. As praças de touros tornam-se "curros" para os operários.

8-5-1945

Manifestações populares festejando a derrota da Alemanha nazi.

28-5-1945

Germano Vidigal, destacado antifascista, morre em consequência das torturas da PVDE. (6)

Junho-Julho-1945

A PVDE assassina dois valorosos resistentes: Francisco Ferreira Marquês e Alfredo Dinis (Alex), que é abatido a tiro pela brigada de José Gonçalves, na estrada de Bucelas (4-9-1945). Implicado o Inspector Fernando Gouveia.

8-10-1945

Surge o MUD (Movimento de Unidade Democrática), após a junção de várias correntes oposicionistas.

22-10-1945

Como resultado da derrota de Hitler, Salazar baptiza a polícia política com um novo nome: PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado). Para servir os mesmos objectivos, a PVDE teve de mudar de nome. Na ausência da GEST APO, a PI DE constituía-se por analogia com o sistema britânico da Scotland Yard... "Democraticamente" a PVDE/PI DE passa a ser um organismo de polícia judiciária, ainda que dependente do Ministério do Interior e com atribuições muito semelhantes às da antecedente, enquanto que a Colónia Penal de Cabo Verde e o forte de Peniche são agora entregues ao Ministério da Justiça (Art. 10° do decreto-lei n° 35.046).

De 1945 a 1946

Subscrevem-se as listas do MUD de Norte a Sul do país. Milhares de antifascistas aderem à Unidade Democrática para derrubar o fascismo. Essas listas foram entregues na Procuradoria da República por sugestão do Governo que passando por cima da palavra dada à Oposição Democrática manda chamar signatários para interrogatórios, faz depurações nos serviços públicos e no Exército, reprime o povo português e manda actualizar os ficheiros da PIDE, que passa a dispor de elementos de informação sem qualquer esforço.

10-10-1946

Revolta militar chamada da Mealhada. Abortada.

10-4-1947

Revolta dos oficiais, seguida de prisão de uma dezena de oficiais generais do Exército e da Marinha. Grande período de agitação social. Sabotagem dos aviões na base aérea de Sintra. Crise universitária e greve nos estaleiros navais.

21-6-1947

José António Patuleia, camponês de Vila Viçosa, é morto à paulada no 3º andar da Rua António Maria Cardoso.

1948

E dissolvido o MUD e presa a sua Comissão Central. A "Guerra Fria" iria permitir novas prisões em massa, a perseguição de milhares de antifascistas e o recomeço das torturas aos presos políticos.

Janeiro-1949

Campanha antifascista da candidatura de Norton de Matos. No Porto comício de 100 000 pessoas.

4-4-1949

Portugal assina o Tratado do Atlântico Norte (NATO). Estrutura-se a interferência do imperialismo americano em Portugal.

20-1-1950

Morre na Penitenciária, em greve de fome, o prestigiado dirigente antifascista Militão Ribeiro. Morrerá também um companheiro de Militão Ribeiro, José Martins, depois de ter enlouquecido na prisão.

23-1-1950

José Moreira, valente militante antifascista é assassinado na tortura pela PIDE.

4-6-1950

Alpiarça é palco de um assassinato durante uma greve para aumento das jornas dos assalariados agrícolas da região. A vítima chama-se Alfredo Lima. Os criminosos: a GNR. Devido às constantes lutas dos assalariados de Alpiarça a PIDE montará na Vila um posto, o que prova a sua estratégia repressiva.

Julho-1950

Mais de 100 presos políticos fazem greve da fome em Peniche, contra a má alimentação e os castigos. E uma das mais importantes experiências da resistência na prisão.

Junho-1951

Candidatura antifascista de Ruy Luis Gomes. A PIDE vinga-se com prisões e espancamentos dos elementos da Oposição mais destacados.

Em 1953

A NATO encarrega a PIDE de averiguar o número de militantes e simpatizantes comunistas em Portugal, para a criação de um eventual campo de concentração em caso de guerra.

19-5-1954

Catarina Eufémia, camponesa alentejana, cai sob as balas da GNR durante uma greve das ceifas em Baleizão. Assassino: tenente Carrajola da GNR.

9-8-1954

Reorganização da PIDE pelo decreto-lei nº 39.749. O art. 10º atribuía funções de juiz, na instrução prepatória dos processos, ao director, inspector superior e subdirector daquela "corporação" - e o parágrafo único estendia a função, em determinados casos, aos inspectores adjuntos, inspectores, sub-inspectores e chefes de brigada.

12-3-1956

Decreto governamental que introduz as "medidas de segurança" por tempo indeterminado, criando na prática a possibilidade de prisão perpétua (Decreto-lei nº 40 550.) Em fins de 1956, o capitão Neves Graça substitui o cap. Agostinho Lourenço na direcção da PIDE. Começa uma série de mudanças nos comandos da PIDE que tem reflexos a curto e a médio prazo, no seu funcionamento, nas relações com as entidades oficiais e nas relações entre os próprios “pides” (os "antigos" e os "modernos").

Em 1957

Início das relações de colaboração entre a CIA (criada em 1946) e a PIDE. Rosa Casaco, Francisco Robalo, Abílio Pires e outros vão aos EUA tirar um curso de especialização de "informação", de violação de correspondência e de técnicas de abertura de residências sem deixar vestígios. Irá ser montada a Escuta Telefónica com a ajuda de CIA.

15-2-1957

O operário de Fafe, Lemos de Oliveira é assassinado no Porto, após vários dias de tortura da "estátua" pelo inspector Costa Pereira e todos os seus capangas.

3-3-1957

A PI DE assassina mais uma vez. Manuel da Silva Júnior, de Viana do Castelo, é supliciado até a morte. Protestos públicos e de advogados de Lisboa, Porto e Coimbra contra a morte de mais um antifascista.

Março de 1957

José Centeio de Alpiarça é assassinado pela PIDE.

8-6-1958

Eleições presidenciais. Burla eleitoral que impede Humberto Delgado de ser Presidente. Humberto Delgado denuncia a burla e tem de pedir asilo político na Embaixada do Brasil. Seguem-se greves no Couço, Coruche e Alpiarça contra a burla eleitoral. O povo do Couço ocupa a vila, liberta os presos dos postos da GNR. Caxias e Aljube abarrotam de presos. Grande período de resistência antifascista.

24-6-1958

A polícia mata José Adelino dos Santos, assalariado agrícola, em Montemor-o-Novo.

31-7-1958

Mais um operário que a PIDE "suicidou" na Rua António Maria Cardoso. É assassinado perante testemunhas Raul Alves. A embaixatriz do Brasil assiste ao assassinato. O Ministério do Interior faz chegar a ela um bilhete em"que dizia: "Não há motivo para ficar tão impressionada. Trata-se apenas de um comunista sem importância". (7)

De 1956 a 1960

21.974 pessoas são condenadas por actividades antifascistas.

15-1-1959

Fuga de Henrique Galvão do Hospital de Santa Maria de Lisboa iludindo a vigilância intensa dos "pides". Asilo politico na embaixada da Argentina.

12-3-1959

"Movimento Militar Independente" conhecido pela revolta da Sé. Abortado. Cerca de 30 civis e alguns militares são presos.

Janeiro de 1960

Evasão de 10 presos políticos do Forte de Caxias.

Março de 1960

Em resposta à greve ocupação dos mineiros de Aljustrel, a PI DE faz 30 prisões.

23-2-1961

Assalto ao paquete Santa Maria chefiado por Henrique Galvão. Grandes repercussões internacionais.

15-3-1961

Começo da insurreição armada em Angola. Homero de Matos é director da PI DE depois de Neves da Graça ter sido convidado a apresentar o pedido de aposentação.

10-11-1961

Assalto a um avião da TAP por um grupo chefiado por Palma Inácio. São distribuídos milhares de panfletos contra o regime fascista em diversas povoações.

11-9-1961

Manifestação antifascista em Almada de cerca de 10.000 pessoas. É assassinado Cândido Martins Capilé operário corticeiro de 17 anos.

Dezembro de 1961

Célebre fuga de presos políticos de Caxias no carro blindado oferecido por Hitler a Salazar.

18-12-1961

Ocupação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana. Salazar fica "sem fala" durante a comunicação ao país na Assembleia Nacional.

19-12-1961

Integrado na brigada de José Gonçalves, António Domingos, assassínio a soldo da PIDE, disparou e matou a tiro o escultor José Dias Coelho numa rua de Alcântara. Implicados no assassínio os agentes Manuel Lavado e Pedro Ferreira.

31-12-1961

Golpe militar de Beja. Abortado.

Janeiro 1962

Prisões dos responsáveis pelo golpe militar de Beja.

Abril-Maio 1962

Grande crise académica: assalto e ocupação pela PSP e GNR da Associação Académica de Coimbra. A PIDE prende 200 estudantes, 44 dos quais são enviados para os subterrâneos de Caxias. Neste ano de 1962 são feitas mais de 6.000 prisões, ou seja, mais de 16 por dia em média. Havia então 3 assassínios políticos por mês. O major Silva Pais é nomeado director da sinistra PI DE.

28-4-1962

Aljustrel. A GNR dispara sobre manifestantes que protestavam contra a prisão de 15 democratas. Dois mortos (António Adângio e Francisco Madeira) e dezenas de feridos.

1-5-1962

É morto durante a manifestação do Dia do Trabalhador o operário Estêvão Giro.

1963-1964

Começo da guerrilha na Guiné e em Moçambique.

Em 1963

Greves estudantis. Num só dia a PIDE faz 1.300 prisões.

1-5-1963

Marco importante para a história da PI DE. Em virtude das guerras de libertação dos povos das colónias, a PI DE já não consegue responder às exigências que o Estado fascista lhe faz. Vê-se assim obrigada a aumentar os seus quadros tanto de agentes como de informadores. Só de pessoal há um crescimento de 64 por cento. Tornava-se necessário alargar a acção da PI DE às colónias. Por outro lado, em Portugal, surgem novos agrupamentos políticos antifascistas que não se enquadram nos esquemas habituais para que estava voltada a estrutura da PI DE. Torna-se necessário a esta polícia sinistra encontrar novos métodos e processos de repressão. Nas colónias irão dar-se acções coordenadas entre a PIDE e as Forças Armadas. Em 1964, 698 pessoas são julgadas em 129 julgamentos. As condenações, só neste período totalizam 2.029 anos e 10 meses de prisão e medidas de segurança.

13-2-1965

Fazendo-o cair numa cilada em Espanha, a PI DE assassina o general Humberto Delgado, por ordem de Salazar. O pide Casimiro Monteiro é acusado de ter sido o autor dos disparos. Envolvidos Rosa Casaco, Tienza, Barbieri Cardoso e Pereira de Carvalho. Assassinada também a secretária do general, Ajarir Campos.

26-11-1965

Marco histórico da reacção antifascista às provocações "pidescas". O "bufo" Mário Mateus, pseudónimo "Torres" é julgado e executado por um Tribunal Revolucionário.

Em 1966

Acentuam-se as torturas físicas e a repressão da PIDE sobre militantes antifascistas e quadros políticos. A PIDE tem falta de agentes por necessidade de deslocação de pessoal qualificado para a repressão nas colónias. Surge O CDI (Centro de Documentação Internacional), aquilo que a imprensa apelidou de "Super-Pide", directamente dependente do M.E.N. com o objectivo de informação e contra-informação no meio estudantil. A PIDE colabora directamente com esta organização fornecendo subsídios e estabelecendo elos de informação que permitiam prever as movimentações de estudantes antifascistas.

Em 1968

Morre em Caxias, por falta de assistência médica, o ex-seminarista Daniel Teixeira.

6-9-1968

Salazar cai doente e Marcelo Caetano é designado para o cargo de Presidente do Conselho (27-9-1968).

24-11-1969

"Criação" da DGS (Direcção Geral de Segurança): a "liberalização" do regime impunha uma nova mudança de nome. Na realidade, nada mudara e mantinham-se as mesmas características, as mesmas funções, os mesmos poderes e os mesmos quadros. O povo viu isso e continuou a chamar-lhe

"PIDE". A repressão sobre a greve da Carris é apenas um exemplo de maior eficiência. A informação sobre movimentos grevistas e salariais atinge uma nova fase: era necessário prever e reprimir a agitação laboral. O Art.º 3 das atribuições fundamentais da DGS é claro e explícito nas alíneas b) e f) (8) no que diz respeito à mudança que sofre a polícia política, de PI DE para DGS.

Maio-Junho 1969

Greves e lutas estudantis em Coimbra. Grande aparato policial na cidade.

31-12-1969

É criada a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos que tinha por objectivo defender todos os presos políticos antifascistas e denunciar publicamente as torturas e as ilegalidades a que estavam submetidos os presos nas cadeias da PI DE/DGS. No entanto, tendo uma perspectiva meramente legalista e humanista, a sua actividade raramente escapará do pântano reformista, além de discriminatória e omissa em relação às lutas dos presos revolucionários contra o carcereiro e por melhores condições prisionais.

Em 1970

Campanha de protesto e greves de fome dos presos revolucionários de Peniche contra a dureza do regime prisional. Conquistam-se importantes vitórias apesar da traição dos presos reformistas que a partir da "racham" todas as lutas.

Criada a Comissão Interministerial de Acção Psicológica, organismo de cúpula para Contra-Informação e Contra-Propaganda na dependência da Presidência do Conselho para a qual é designado o dr. Clemente Rogeiro. Como representante do Ministério do Interior para o Órgão Técnico foi designado o Director de Serviços Pereira de Carvalho, da PIDE/DGS e pela Legião o inspector aposentado Parente de Figueiredo.

Em 1971

A Secção de Investigação e Contencioso (D.S.I.C.) - por outras palavras, a secção de torturas da PI DE -que funciona na Rua António Maria Cardoso, passa para Caxias. Agora os habitantes das ruas vizinhas da

António Maria Cardoso já não ouvirão mais os gritos dos antifascistas sujeitos a torturas. Começo de atentados bombistas contra a guerra colonial, geralmente seguidos de vagas de prisões e torturas.

15-9-1971

Delegação chefiada pelo major Silva Pais é recebida por Edgar Hoover, director do FBI, organização policial norte-americana com quem a PIDE/DGS teve relações políticas e policiais.

11-10-1971

A despacho do director-geral Silva Pais, a PI DE/DGS propõe-se criar uma revista fascista, policial e provocatória. Sairá com o nome de "Continuidade", palavra muito em voga no período caetanista. (9) O seu director será o inspector-adjunto Lopes Veloso. Nesta revista que se publicou até ao 25 de Abril, a PIDE/DGS terá a oportunidade de difundir publicamente os seus pontos de vista, as suas ideias fascistas na boa linha do salazarismo e as suas figuras de proa arvoradas em "heróis" e "santinhos". Grandes bancos, empresas privadas e hotéis hoje conhecidos pelas suas ligações com a PI DE, a quem pagavam altas quantias, fazem publicidade na revista. Ao preço avulso de 5$00, ela acabará por ser distribuída gratuitamente pelas repartições públicas, estações de Caminho de Ferro, consultórios da Previdência, sedes das grandes empresas e câmaras municipais.

12-10-1972

É assassinado a tiro o estudante Ribeiro Santos, militante do MRPP. O assassino, o pide Coelho da Rocha, virá a escapar-se da cadeia na fuga-libertação de Alcoentre, em 29 de Julho de 1975.

Nesse ano dão-se 165 prisões.

8-11-1972

Toma posse do cargo de subdirector geral da DGS o antigo inspector-superior Agostinho Barbieri Cardoso, que doravante será o número um da PI DE/DGS e que nunca chegou a ser preso por se encontrar ausente do país no dia 25 de Abril.

1-1-1973

Acontecimentos da Capela do Rato. Vigília de cristãos contra a guerra colonial. Dezenas de prisões.

20-1-1973

Assassinato de Amílcar Cabrl em Conakry, operação conjunta do Exército e da PIDE.

Outubro 1973

Grande vaga de greves sobretudo na Cintura Industrial de Lisboa que a polícia não consegue controlar, apesar da acção do "pide" de 1ª, Basílio Garcia, no contacto sistemático com as administrações das empresas.

25-4-1914

A PI DE atira indiscriminadamente sobre manifestantes na Rua António Maria Cardoso matando 5 indivíduos e ferindo dezenas. As massas populares exigem a prisão e o julgamento dos Pides. Extinção da PI DE/DGS pelo decreto-lei nº 171/74, ficando o seu material, livros e papéis sob custódia das Forças Armadas. Começa a "caça ao pide" pelo povo e grande número de pides são presos. As Forças Armadas preparam-se para iniciar o desmantelamento da PIDE, o que na prática tal não acontecerá.

pide-e.jfif

"Os pides morrem na rua!" - O Povo cerca a sede da PIDE obrigando os pides a render-se e ao MFA a intervir com a prisão (temporária) dos mesmos

Notas:

(1) É nestes termos que Oliveira Salazar responde "lealmente" a António Ferro acerca dos "maus-tratos":

«Mas há violências condenáveis - insisto com impertinência. Diz-se, por exemplo, que alguns presos políticos têm sido maltratados, espancados no governo civil, na antiga polícia de informações... ,

Salazar, cuja lealdade heróica o deve impor, neste momento, ao respeito e à consideração de todos os portugueses, diz-me textualmente o seguinte:

- “Por várias vezes nos chegaram aos ouvidos as notícias desses maus-tratos. Resolvemo-los, um dia, a tirar o caso a limpo e a fazer observar por médicos de confiança aqueles que se queixavam desses maus-tratos. Devo dizer-lhe que se chegou à conclusão de que os presos mentiam, para tirar efeitos políticos, na maioria dos casos, mas quero dizer-lhe, também, lealmente, que algumas vezes falavam verdade. É claro que eram tomadas sempre em casos desses imediatas previdências, e foi esta a razão de se terem dado algumas alterações nos quadros da Polícia. Atribuir a responsabilidade, portanto, ao Governo desses maus-tratos é prova de ignorância ou de má-fé”.

Um governo - digo eu - tem não só de defender-se contra os que o servem mal, mas também contra os que julgam servi-lo bem... E o dr. Salazar, como quem não dá importância ao pormenor:

- “Quero informá-lo, no entanto, de que se chegou à conclusão de que os presos maltratados eram sempre ou quase sempre, temíveis bombistas que se recusavam a confessar apesar de todas as habilidades da Policia onde tinham escondido as suas armas criminosas e mortais. Só depois de empregar esses meios violentos é que eles se decidiam a dizer a verdade. E eu pergunto a mim próprio, continuando a reprimir tais abusos, se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas indefesas não vale bem, não justifica largamente, meia dúzia de safanões a tempos nessas criaturas sinistras... “»

(In António Ferro - "Salazar - o homem e a sua obra". Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1933, págs, 81-82.)

(2) Bento Gonçalves, Contestação de Bento Gonçalves à Secretaria do Tribunal Militar Especial, in “Militante”, Ano 38º - III Série, nº 169, Fevereiro de 1971.

(3) Fernando Queiroga, Portugal Oprimido, Subsídios para a História do Fascismo em Portugal, Editorial Século, Lisboa, 1974, págs. 38-39 e 75. De interesse documental a leitura da I Parte do livro do cap. Fernando Queiroga, oficial antifascista várias vezes preso que tem o título “O Terror como Sistema de Governo”.

(4) O capitão Fernando Queiroga, conta na obra atrás citada o seguinte: “Contra todo o direito das gentes, contra os mais elementares deveres da humanidade, esbirros da PVDE e oficiais do Exército caçavam por toda a parte os republicanos espanhóis que, confiantes, procuravam refúgio no nosso país. Internados estes no campo de concentração de Barrancos, Alentejo, eram, depois, entregues aos pelotões de execução de Franco. Misturados nestas levas, seguiam portugueses, a quem tiravam todos os elementos de identificação. Só numa manhã foram fuzilados, na praça de touros de Badajoz, dez portugueses. Diariamente, por volta das 21 horas, durante dois meses, estacionava na rua da Glória, em Lisboa, uma camioneta da PVDE. As brigadas desta polícia, munidas de uma relação elaborada pelos seus chefes, partiam, então, à caça das vítimas. Quando a camioneta estava lotada, seguia para Barrancos, onde despejava os desgraçados”. In cap. Fernando Queiroga, obra citada, pág. 49.

(5) O ano de 1937 é um ano de intensa agitação social e política.

(6) “Os agentes cortaram-lhe as costas a cavalo-marinho, massacraram-lhe a cabeça e o rosto, aplicaram-lhe socos no estômago e no fígado, torceram-lhe os testículos, espezinharam-no, projectaram-no contra a parede da sala de interrogatórios ”. In “Os Crimes de Morte da Pide”, “Diário de Lisboa”, 03/08/1976, pág. 10.

(7) “Os Crimes de Morte da Pide”, “Diário de Lisboa”, 03/08/1976, pág. 11.

(8) Art. 3º do Decreto-Lei nº 49.401 de 24/11/1969.

(…)

  1. b) Proceder à recolha e pesquisa, centralização, coordenação e estudo das informações úteis à segurança.

(…)

  1. f) Manter relações com organizações policiais nacionais e estrangeiras e serviços similares para troca recíproca de informações e para cooperação na luta contra a criminalidade.

(9) Como uma “impecável” unidade militar, o despacho vem publicado em ordem de serviço desse dia (nº 284 – art. 2º): “É minha intenção criar uma revista ilustrada, órgão desta Direcção-Geral. Impõe-se obviamente uma tal publicação por aquilo com que concorrerá para melhorar a preparação e consciencialização dos funcionários, o seu espírito de corpo e, ainda mais, por aquilo que pode mostrar ao País – quanto ao que é esta Corporação, o que faz, o que vale e o muito que a Nação lhe deve desde longa data”. Tanta promoção para tanta hipocrisia…

Documentos:

“A PIDE, a sua Organização e seus Quadros” – Tribunal Cívico Humberto Delgado

“Elementos para a História da PIDE – Para o Tribunal que Julgue a PIDE” – AEPPA (Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas)

Imagem de destaque: Pide preso pela tropa a ser desarmado de uma pistola que tinha escondido dentro das cuecas (Foto "Sempre Fixe")