Journalism and ‘the words of power’ - By Robert Fisk.
12 de julho de 1946 - 30 de outubro de 2020.
O correspondente do jornal britânico The Independent no Oriente Médio, Robert Fisk, fez o seguinte discurso no quinto fórum anual da emissora árabe Al Jazeera, em 23 de maio:
Poder e mídia não são apenas relações amigáveis entre jornalistas e líderes políticos, entre editores e presidentes. Não são apenas sobre as relações parasitárias e de osmose entre repórteres supostamente honrados e o eixo do poder que existe entre a Casa Branca, o Departamento de Estado e o Pentágono, a Downing Street e os ministérios das Relações Exteriores e da Defesa [britânicos]. No contexto Ocidental, a relação entre poder e mídia diz respeito a palavras — é sobre o uso de palavras. É sobre semântica. É sobre o emprego de frases e suas origens. E é sobre o mau uso da História e sobre nossa ignorância da História. Mais e mais, hoje em dia, nós jornalistas nos tornamos prisioneiros da linguagem do poder.
Isso acontece porque não nos preocupamos com a linguística? É porque os laptops ‘corrigem’ nossa ortografia, ‘limpam’ nossa gramática de forma a que nossas sentenças frequentemente se tornem idênticas às de nossos líderes? É por isso que os editoriais de jornais hoje em dia soam como se fossem discursos políticos?
Deixem-me demonstrar o que quero dizer.
Por duas décadas as lideranças dos Estados Unidos e do Reino Unido — e dos israelenses e palestinos — tem usado as palavras “processo de paz” para definir o acordo sem futuro, inadequado e desonroso que permite aos Estados Unidos e a Israel fazerem o que bem entenderem com os pedaços de terra que deveriam ser dados a um povo sob ocupação.
Eu primeiro me perguntei sobre esta expressão e sobre a origem dela na época de Oslo [Nota do Viomundo: A capital da Noruega foi sede das negociações que resultaram num tratado entre israelenses e palestinos celebrado na Casa Branca com as presenças do presidente Bill Clinton, do líder palestino Yasser Arafat e do primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin, tratado que na prática fracassou] — embora a gente se esqueça facilmente que as rendições secretas de Oslo tenham sido, em si, uma conspiração sem qualquer base legal. Pobre e velha Oslo, sempre pensei! O que Oslo fez para merecer isso? Foi o acordo da Casa Branca que selou o tratado dúbio e absurdo — pelo qual os refugiados, as fronteiras, as colônias israelenses e mesmo o plano de metas foram adiados até que não pudessem mais ser negociados.
E como nos esquecemos facilmente do gramado da Casa Branca — embora, sim, lembremos das imagens — no qual Clinton citou o Corão e Arafat escolheu dizer: “Obrigado, obrigado, obrigado sr. presidente”. E como chamamos esse embuste depois? Sim, foi um ‘momento histórico’! Foi? Foi mesmo?
Vocês se lembram como Arafat se referia a ele? “A paz dos bravos”. Mas não me lembro que algum de nós tenha apontado que a frase “paz dos bravos” foi usada originalmente pelo general De Gaulle no fim da guerra [de independência] da Argélia. Os franceses perderam a guerra na Argélia. Nós não nos demos conta desta ironia extraordinária.
Vemos isso de novo, hoje. Nós, jornalistas ocidentais — usados outra vez mais pelos nossos líderes — temos noticiado como os felizes generais do Afeganistão tem dito que a guerra lá só pode ser vencida como parte de uma campanha “pelos corações e mentes” [dos afegãos]. Ninguém fez aos generais a pergunta óbvia: esta mesma frase não foi usada em relação aos civis vietnamitas na guerra do Vietnã? E nós não — nós, o Ocidente — não perdemos a guerra do Vietnã?
Ainda assim nós, jornalistas ocidentais, estamos usando — no Afeganistão — a frase “corações e mentes” em nossas reportagens, como se fosse uma frase nova no dicionário e não um símbolo de derrota usado pela segunda vez em quatro décadas, em alguns casos usada pelos mesmos soldados que venderam esta bobagem — quando eram mais novos — no Vietnam.
Olhem agora para as palavras que nós recentemente ‘adotamos’ vindas dos militares dos Estados Unidos.
Quando nós ocidentais descobrimos que “nossos” inimigos — a Al-Qaeda, por exemplo, ou o talibã — explodiram mais bombas e patrocinaram mais ataques do que o esperado, chamamos isso de “um pico de violência”. Ah, sim, um ‘pico’.
Um ‘pico’ de violência, senhoras e senhores, foi uma frase primeiro usada, de acordo com meus arquivos, por um general na Zona Verde de Bagdad em 2004 [inicialmente quartel-general da ocupação dos Estados Unidos no Iraque]. No entanto, nós usamos a frase agora, discutimos a partir dela, replicamos como se fosse nossa. Estamos usando, literalmente, uma expressão criada para nós pelo Pentágono. Um “pico”, naturalmente, significa algo que sobe rapidamente e que em seguida cai rapidamente. Um ‘pico’, assim sendo, evita o uso do terrível “aumento da violência” — já que um aumento, senhoras e senhores, pode não ser seguido por uma redução posteriormente.
De novo, quando os generais dos Estados Unidos se referem a um repentino aumento de suas forças para um ataque contra Fallujah ou o centro de Bagdá ou Kandahar — um movimento em massa de soldados trazidos para países muçulmanos aos milhares — eles chamam isso de ‘surge’. E um ‘surge’, como um tsunami ou qualquer outro fenômeno natural, pode ter efeitos devastadores. O que esses ‘surges’ são, na verdade — para usar as palavras verdadeiras do jornalismo sério — são reforços. E reforços são mandados para as guerras quando os exércitos estão perdendo essas guerras. Mas nossos meninos e meninas nos jornais e nas emissoras de TV estão falando em ‘surges’ sem atribuir isso ao Pentágono! O Pentágono ganha de novo.
Enquanto isso, o ‘processo de paz’ desabou. Assim nossos líderes — nós gostamos de chamá-los de ‘jogadores-chave’ — estão tentando de novo. Assim o processo tem de ser colocado ‘nos trilhos’. Era um trem, como vocês notaram. Os vagões tinham saído dos trilhos. E assim o trem tem de ser posto de novo ‘nos trilhos’. Foi o governo Clinton o primeiro a usar a frase, depois os israelenses, depois a BBC. Mas havia um problema quando o ‘processo de paz’ foi colocado de novo ‘nos trilhos’ — e ainda assim não andou. E então produzimos o ‘mapa do caminho’ — tocado por um quarteto liderado pelo nosso amigo de Deus, Tony Blair, ao qual — em uma obscenidade da História — agora nos referimos como ‘enviado da paz’.
Mas o ‘mapa do caminho’ não está funcionando. E agora, notem, o velho ‘processo de paz’ está de volta aos jornais e às telas de TV. Dois dias atrás, na CNN, um destes velhos chatos que os meninos e meninas da TV chamam de ‘experts’ — falarei deles em um momento — nos disse de novo que o ‘processo de paz’ está sendo colocado ‘nos trilhos’ por causa do início de ‘conversas indiretas’ entre israelenses e palestinos.
Senhoras e senhores, não são apenas clichês — isso é jornalismo absurdo. Não existe mais batalha entre o poder e a mídia. Através da linguagem, nós nos tornamos eles. Talvez o problema advenha de que a gente não pensa mais por conta própria por não ler livros. Os árabes ainda lêem livros — não estou falando aqui sobre a taxa de analfabetismo em países árabes — mas não estou certo de que no Ocidente a gente ainda leia livros. Eu geralmente mando mensagens por telefone e descubro que tenho de passar dez minutos repetindo à secretária algumas centenas de palavras. Elas não sabem soletrar.
Eu estava no avião um dia destes, voando de Paris a Beirute — um vôo de cerca de 3 horas e 45 minutos — e a mulher sentada ao lado estava lendo um livro em francês sobre a história da Segunda Guerra Mundial. Ela mudava de página depois de alguns segundos. Acabou o livro antes do pouso em Beirute! E de repente me dei conta de que ela não estava lendo o livro, estava surfando nas páginas! Tinha perdido a habilidade do que costumo chamar de ‘leitura profunda’. Meramente usamos as primeiras palavras que aparecem…
Deixe-me mostrar outro pedaço da covardia midiática que faz os meus dentes de 63 anos de idade rangerem depois de 34 anos comendo humus e tahina no Oriente Médio.
Somos informados, em tantas análises, que precisamos lidar no Oriente Médio com ‘narrativas que competem’. Que meigo. Não há justiça, nem injustiça, apenas algumas pessoas que nos contam histórias diferentes. ‘Narrativas que competem’ agora aparece regularmente na imprensa britânica. A frase é uma espécie — ou subespécie — da falsa linguagem da antropologia. Nega a possibilidade de que um grupo de pessoas — no Oriente Médio, por exemplo — seja ocupado, enquanto outro grupo de pessoas promove a ocupação. Novamente, não há justiça, injustiça, não-opressão ou opressão, apenas amigáveis ‘narrativas que competem’, um jogo de futebol, se quiserem, um campo neutro já que os dois lados estão — não estão? — ’em competição’. E os dois lados merecem tempo igual em todas as reportagens.
E assim uma ‘ocupação’ pode se tornar uma ‘disputa’. E assim um ‘muro’ pode se tornar uma ‘cerca’ ou uma ‘barreira de segurança’. E assim a colonização israelense de terra árabe contrária a todas as leis internacionais se torna ‘acampamentos’ ou ‘postos’ ou ‘vizinhanças judaicas’.
Vocês não vão se surpreender ao descobrir que foi Colin Powell, em seu estrelato sem poder no posto de secretário de Estado de George W. Bush, que disse a diplomatas americanos no Oriente Médio que eles deveriam se referir à terra ocupada dos palestinos como ‘terra disputada’ — o que foi bom o suficiente para a maior parte da mídia americana.
Fiquem de olho na ‘narrativa que compete’, senhoras e senhores. Não há ‘narrativas que competem’, naturalmente, entre os militares dos Estados Unidos e o talibã. Quando houver, no entanto, vocês saberão que o Ocidente perdeu. Mas vou dar um exemplo pessoal para demonstrar como as ‘narrativas que competem’ evaporam.
No ano passado, fiz uma palestra em Toronto para marcar os 95 anos do genocídio armênio de 1915, o assassinato em massa deliberado de um milhão e meio de cristãos armênios por milícias e pelo exército otomano da Turquia. Antes da minha palestra, fui entrevistado na tv canadense, a CTV, que também é dona do jornal Toronto Globe and Mail. Desde o início, notei que minha entrevistadora tinha um problema. O Canadá tem uma grande comunidade armênia. Mas Toronto também tem uma grande comunidade turca. E os turcos, como o Globe and Mail sempre diz, ‘negam calorosamente’ que tenha havido genocídio. E assim a entrevistadora chamou o genocídio de “massacres mortais”.
Naturalmente que notei este problema específico de cara. Ela não podia chamar os massacres de ‘genocídio’ porque a comunidade turca se sentiria ultrajada. Mas, igualmente, ela sentiu que ‘massacre’ sozinho — especialmente com as fotos cruéis que serviam de cenário no estúdio, de armênios mortos — não seria suficiente para definir um milhão e meio de seres humanos assassinados. Daí os ‘massacres mortais’. Que estranho!!! Se existem massacres ‘mortais’, existem massacres que não são ‘mortais’, nos quais as vítimas saem com vida? Foi tautologia ridícula.
No fim, contei este pequeno caso de covardia jornalística na palestra, para minha audiência armênia, na qual também havia executivos da CTV. Uma hora depois de minha palestra, o armênio que promoveu o encontro recebeu uma mensagem de texto de um repórter da CTV. “Cagar na CTV não tinha nada a ver”, o repórter reclamou. Duvido, pessoalmente, que a palavra ‘cagar’ seja usada na CTV. Mas ‘genocídio’ também não é. Foi assim que as ‘narrativas que competem’ explodiram.
Sim, o uso da linguagem do poder — de suas palavras e frases — é comum entre nós. Quantas vezes ouvi de repórteres ocidentais sobre ‘combatentes estrangeiros’ no Afeganistão? Eles estão se referindo, naturalmente, a vários grupos árabes que supostamente ajudam o talibã. Ouvimos a mesma história no Iraque. Sauditas, jordanianos, palestinos, combatentes chechenos, naturalmente. Os generais os chamavam de ‘combatentes estrangeiros’. E assim, imediatamente, fizemos o mesmo. Chamá-los de ‘combatentes estrangeiros’ significava que são uma força de invasão. Mas nunca — nunca — ouvi uma estação de TV ocidental se referir ao fato de que existem pelo menos 150 mil ‘combatentes estrangeiros’ no Afeganistão. E que a maioria deles, senhoras e senhores, veste uniformes dos Estados Unidos e da Otan!
Da mesma forma, a frase perniciosa ‘Af-Pak’ — racista e politicamente desonesta como é — é usada por repórteres quando foi originalmente uma criação do Departamento de Estado, no dia em que Richard Holbrooke foi indicado mediador dos Estados Unidos no Afeganistão e no Paquistão. Mas a frase evita o uso da palavra ‘Índia’, cuja influência no Afeganistão e cuja presença no Afeganistão é parte vital da história. Além disso, ‘Af-Pak’ — ao apagar a Índia — eficazmente apaga toda a crise de Kashmir do conflito no sudeste da Ásia. E assim o Paquistão ficou sem qualquer papel na política dos Estados Unidos para Kashmir — afinal, Holbrooke foi nomeado para o ‘Af-Pak’, especificamente proibido de discutir Kashmir. E assim a frase ‘Af-Pak’, que nega totalmente a tragédia do Kashmir — muitas ‘narrativas que competem’, quem sabe? — significa que quando nós jornalistas usamos a mesma frase, ‘Af-Pak’ — que com certeza foi criada para nós — estamos fazendo o trabalho do Departamento de Estado americano.
Agora olhemos para a História. Nossos leitores amam História. Mais que tudo, eles amam a Segunda Guerra Mundial. Em 2003, George W. Bush pensou que era Churchill e George W. Bush. Na verdade, Bush gastou a guerra do Vietnam protegendo os céus do Texas dos vietcongs [Nota do Viomundo: Durante a guerra do Vietnam, Bush filho evitou sua convocação servindo à Força Aérea americana em uma base do Texas].
Mas agora, em 2003, Bush estava enfrentando os ‘apaziguadores’ que não queriam guerra com o Saddam que era, naturalmente, o “Hitler do [rio] Tigre”. Os ‘apaziguadores’ eram os britânicos que não queriam enfrentar a Alemanha nazista em 1938. Blair, naturalmente, também experimentou a casaca de Churchill. Ele não era ‘apaziguador’. Os Estados Unidos eram os aliados mais antigos do Reino Unido — Blair proclamou — e Bush e Blair lembraram aos jornalistas que os Estados Unidos estavam ombro a ombro com o Reino Unido quando este precisou de ajuda, em 1940.
Mas nada disso era verdade.
O mais antigo aliado do Reino Unido não foram os Estados Unidos. Foi Portugal, um estado fascista que ficou neutro durante a Segunda Guerra. Somente meu jornal, o Independent, notou isso.
Nem os Estados Unidos lutaram ao lado do Reino Unido na hora que os britânicos precisaram, em 1940, quando Hitler ameaçou invasão e a força aérea alemã bombardeou Londres. Não, em 1940 os Estados Unidos aproveitavam um período lucrativo de neutralidade — e não se juntaram à guerra do Reino Unido a não ser depois que o Japão atacou a base de Pearl Harbor em dezembro de 1941. Doeu!
Em 1956, li outro dia, Eden chamou Nasser de ‘Mussolini do Nilo’. Um erro. Nasser era amado pelos árabes, não odiado como Mussolini era pela maioria dos africanos, especialmente os líbios árabes. O paralelo com Mussolini não foi questionado pela mídia britânica. E todos sabemos o que aconteceu em Suez em 1956.
[Nota do Viomundo: Anthony Eden foi ministro britânico das Relações Exteriores mas, como notou o leitor Bico, era primeiro-ministro britânico durante a crise de Suez; Gamal Abdel Nasser, líder nacionalista do Egito; em 1956 Nasser nacionalizou o canal de Suez, ao que se seguiu um ataque militar de Reino Unido, França e Israel, que só fracassou politicamente por pressão de Estados Unidos e União Soviética]
Sim, quando se trata de História, nós jornalistas simplesmente deixamos que presidentes e primeiros-ministros nos dêem um balão.
Hoje, no momento em que estrangeiros tentam levar comida e combustível pelo mar a palestinos famintos em Gaza, nós jornalistas deveríamos relembrar nossos telespectadores e leitores de um dia faz-tempo quando os Estados Unidos e o Reino Unido saíram em socorro de um povo cercado, levando comida e combustível — foi assim que alguns de nossos próprios militares morreram — para uma população faminta.
Aquela população tinha sido cercada por uma cerca construída por um exército brutal que queria torná-los submissos pela fome. O exército era o russo. A cidade era Berlim. O muro viria mais tarde. O povo ajudado tinha sido nosso inimigo há apenas três anos. Ainda assim fizemos uma ponte-aérea para salvá-los. Agora olhem para Gaza. Que jornalista ocidental — e amamos paralelos históricos — já mencionou Berlim de 1948 no contexto de Gaza?
Olhem para exemplos mais recentes. Saddam tinha ‘armas de destruição em massa’ — dá para encaixar ‘WMD’ numa manchete — mas naturalmente, ele não tinha e a imprensa americana passou por momentos embaraçosos de auto-condenação. Como pudemos ser enganados, o New York Times se perguntou? O jornal concluiu que não tinha desafiado suficientemente o governo Bush.
E agora o mesmo jornal está suavemente — muito suavemente — batendo os bumbos de guerra no Irã. O Irã está trabalhando com ‘WMD’. E depois da guerra, se houver guerra, haverá de novo a auto-condenação, se não houver projetos de armas nucleares no Irã.
Ainda assim o lado mais perigoso de nosso uso da semântica de guerra, nosso uso das palavras do poder — embora não seja uma guerra, já que nós nos rendemos — é que isso nos isola de nossos telespectadores e leitores. Eles não são estúpidos. Eles entendem as palavras e, em muitos casos — temo — melhor que nós. Eles sabem que estamos afogando nosso vocabulário na linguagem dos generais e presidentes, das assim-chamadas elites, na arrogância dos experts do Brookings Institute, ou daqueles da Rand Corporation ou o que eu chamo de ‘tink thanks’. Então nós nos tornamos parte desta linguagem. Aqui estão, por exemplo, algumas palavras perigosas:
– power players – ativismo – atores não-estatais – jogadores-chave – jogadores geoestratégicos – narrativas – jogadores externos – processo de paz – soluções significativas – Af-Pak – agentes de mudanças (quem quer que sejam estas criaturas sinistras)
Não sou um convidado regular da Al Jazeera. Isso me dá liberdade para falar. Alguns anos atrás, quando Wadah Khanfar (agora diretor-geral da Al Jazeera) era o homem da emissora em Bagdá, os militares dos Estados Unidos começaram uma campanha de boatos contra o escritório de Wadah, alegando — mentirosamente — que a Al Jazeera fazia o jogo da Al Qaeda porque estava recebendo vídeos de ataques contra forças dos Estados Unidos. Fui a Fallujah para checar isso. Wadah estava 100% correto. A Al Qaeda estava entregando os vídeos de suas emboscadas sem qualquer aviso, colocando nas caixas de correio. Os americanos estavam mentindo. O Wadah, naturalmente, está pensando o que virá em seguida…
Bem, devo dizer a vocês, senhoras e senhores, que todas as ‘palavras perigosas’ que acabei de ler para vocês — de jogadores-chave a narrativas a processo de paz a Af-Pak — estão no programa de nove páginas da Al Jazeera para este forum. Não estou condenando a Al Jazeera por isso, senhoras e senhores. Porque este vocabulário não é adotado como resultado de aliança política. É uma infecção da qual todos sofremos. Eu mesmo usei ‘processo de paz’ algumas vezes, embora entre aspas, o que não dá para fazer na TV, mas sim, é um contágio.
E quando usamos estas palavras nós nos tornamos aliados do poder e das elites que mandam no mundo sem medo de serem desafiadas pela mídia. A Al Jazeera fez mais que qualquer rede de televisão que conheço para desafiar a autoridade, tanto no Oriente Médio quanto no Ocidente. (Não estou usando ‘desafio’ como ‘problema’, mas como ‘enfrento muitos desafios’, dito pelo general McCrystal).
Como escapamos desta doença? Fiquem de olho nos corretores de ortografia de seus laptops, nos sonhos dos subeditores com palavras de uma sílaba, parem de usar a Wikipedia. E leiam livros, com páginas de papel, que significam leitura profunda. Livros de História, especialmente.
A Al Jazeera está fazendo uma boa cobertura da frota — o comboio de barcos — que vai a Gaza. Não acredito que sejam um bando de anti-israelenses. Penso que este comboio internacional está a caminho porque as pessoas a bordo dos navios — de todo o mundo — estão tentando fazer o que líderes supostamente humanitários deixaram de fazer. Estão levando comida e combustível e equipamento hospitalar para aqueles que sofrem. Em qualquer outro contexto, os Obamas e os Sarkozys e os Camerons estariam competindo para mandar fuzileiros navais, marinheiros reais ou forças francesas com ajuda humanitária — como Clinton fez na Somália. O divino Blair não acreditava em ‘intervenção’ humanitária em Kosovo e Serra Leoa?
Em circunstâncias normais, o Blair colocaria o pé sobre a fronteira. Mas não. Não ousamos ofender Israel. E assim pessoas comuns estão tentando fazer o que os líderes não fizeram. Os líderes fracassaram. E a mídia? Estamos mostrando imagens de documentários da ponte aérea que salvou Berlim? Ou das tentativas de Clinton de resgatar pessoas que morriam de fome na Somália ou da ‘intervenção’humanitária de Blair nos Balcãs, simplesmente para relembrar nossos leitores e telespectadores — e aqueles pessoas naqueles barcos — que isso é hipocrisia em escala maciça?
O diabo que estamos! Nós preferimos ‘narrativas que competem’. Poucos políticos querem que a viagem até Gaza seja completada — seja o seu fim bem sucedido, uma farsa ou trágico. Nós acreditamos no ‘processo de paz’, no ‘mapa do caminho’. Mantenham a ‘cerca’ em torno dos palestinos. Deixem os ‘jogadores-chave’ encontrar uma solução. Senhoras e senhores, não sou seu ‘key-speaker’ nesta manhã. Sou seu convidado e agradeço pela paciência que tiveram em me ouvir.
26/05/2010 - 03h40
(PS: Esta tradução é continuamente aperfeiçoada a partir dos comentários dos internautas, a quem agradecemos pela ajuda.)
É o amor, leitores e irmãos meus, o que há de mais trágico no mundo e na vida; o amor é filho do engano e pai do desengano; o amor é o consolo no desconsolo, é o único remédio contra a morte, sendo, como é, irmão dela.
Fratelli, a un tempo stesso, Amore e Morte
Ingeneró la sorte,
como cantou Leopardi.
O amor busca com furor, através do objecto amado, qualquer coisa que está para lá dele e, como não o encontra, desespera.
Sempre que falamos de amor, temos presente na memória o amor sexual, o amor entre homem e mulher para perpetuar a estirpe humana sobre a Terra. E é isto que faz com que não se consiga reduzir 0 amor, nem ao puramente intelectivo, nem ao puramente volitivo, deixando de lado o seu aspecto sentimental ou, se se quiser, sensitivo. Porque o amor, no fundo, não é ideia nem volição: é antes desejo, sentimento; é algo carnal, até mesmo no espirito. Graças ao amor, sentimos tudo 0 que 0 espirito tem de carne.
O amor sexual é o tipo de amor gerador de qualquer outro amor. No amor, e por ele, procuramos perpetuar-nos, e só nos perpetuamos na Terra com a condição de morrermos, de entregarmos a outrem a nossa vida. Os animaizinhos mais humildes, os mais ínfimos seres vivos, multiplicando-se dividindo-se, partindo-se ao meio, deixando de ser a unidade que antes eram.
Mas, esgotada, por fim, a vitalidade de ser que assim se multiplica dividindo-se da espécie, o manancial da vida tem de vez em quando de renovar-se por meio de uniões de dois indivíduos decadentes, através daquilo a que, nos protozoários, sc chama conjugação. Unem-se para voltaram a dividir-se com mais vigor. E todo o acto de geração consiste num deixar de ser, total ou parcialmente, o que se era, um dividir-se, uma morte parcial. Viver é dar-se, perpetuar-se e perpetuar-se e dar-se é morrer. Talvez o prazer supremo não seja mais do que um saborear antecipado da morte, a dilaceração da nossa própria essência vital. Unimo-nos a outro, mas para nos dividirmos; esse abraço mais íntimo não é mais do que uma dilaceração ainda mais íntima. No fundo, o prazer do amor sexual, o espasmo genésico, é uma sensação de ressurreição, de ressuscitar noutrem, pois só noutros podemos ressuscitar, para nos perpetuarmos.
Há, sem dúvida, algo de tragicamente destrutivo na base do amor, tal como se nos apresenta na sua forma animal primitiva, no irresistível instinto que leva um macho e uma fêmea a fundirem as suas entranhas num estreitamento furioso. A mesma coisa que funde os seus corpos separa, num certo aspecto, as suas almas; ao abraçarem-se, odeiam-se tanto quanto se amam e, sobretudo, lutam, por um terceiro ainda sem vida. O amor é uma luta, e há espécies animais em que o macho, ao unir-se com a fêmea, a maltrata, e outras em que fêmea devora o macho logo que este a fecundou.
Tem-se dito do amor que é um egoísmo recíproco. E, de facto, cada um dos amantes procura possuir o outro; e, procurar através dele, sem então pensar ou pretender isso, a sua própria perpetuação, que é a sua finalidade, o que é isso senão avareza? E é possível que haja quem conserve a sua virgindade para melhor se perpetuar. E para perpetuar algo de mais humano do que a carne.
Porque aquilo que os amantes perpetuam sobre a Terra é a carne de dor, é a dor, é a morte. O amor é irmão, filho e simultaneamente pai da morte, que é sua irmã, sua mãe e sua filha. E é assim que há no mais fundo do amor uma profundidade de eterno desespero, da qual brotam a esperança e a consolação. Porque deste amor carnal e primitivo de que tenho estado a falar, deste amor de todo o corpo com os seus sentidos, e que é a origem animal da sociedade humana, deste enamoramento, surge o amor espiritual e doloroso.
Esta outra forma do amor, este amor espiritual, nasce da dor, nasce da morte do amor carnal; nasce também do sentimento compassivo de protecção que os pais sentem perante os filhos desvalidos. Os amantes não conseguem amar-se até ao abandono de si mesmos, até à verdadeira fusão das suas almas, e não apenas dos seus corpos, senão quando o poderoso pilão da dor triturou os seus corações, misturando-os no mesmo almofariz do sofrimento. O amor sensual fundia os seus corpos, mas separava as suas almas, mantinha-as estranhas uma a outra; mas desse amor tiveram um fruto de carne, um filho. E este filho gerado na morte adoeceu, talvez, e morreu. E aconteceu que os amantes, os pais, sobre o fruto da sua fusão carnal e da separação ou reciproca ignorância espiritual, seus corpos separados e frios de dor, mas as suas almas fundidas na dor, deram-se um abraço de desespero e, da morte do filho da carne, nasceu então o verdadeiro amor espiritual. Ou, então, desfeito 0 laço de carne que os unia, respiraram com um suspiro de libertação. Porque 0s homens só se amam com amor espiritual quando sofreram juntos uma mesma dor, quando lavraram durante algum tempo a terra pedregosa jungidos com o mesmo jugo de uma dor comum. Então conheceram-se e sentiram-se, e consentiram-se na sua miséria comum, compadeceram-se e amaram-se. Porque amar é compadecer, e se o prazer une os corpos o sofrimento une as almas.
Tudo isto se sente ainda mais clara e fortemente quando brota, deita raízes e cresce um desses amores trágicos que têm de lutar contra as diamantinas leis do Destino, um desses amores que nascem a destempo ou fora de estacão, antes ou depois do momento, ou fora da norma na qual o mundo, como é costume, os teria recebido. Quanto mais o Destino e o mundo e as suas leis levantam muralhas entre os amantes, maior é a força com que se sentem atraídos um pelo outro, e torna-se para eles amarga a felicidade de se amarem, e aumenta neles a dor de não se poderem amar aberta e livremente e, do fundo das raízes do seu coração, têm compaixão um do outro, e esta compaixão comum, que é a sua miséria comum e a sua comum fidelidade, inflama e alimenta, ao mesmo tempo, o seu amor. E sofrem o seu prazer gozando o seu sofrimento. E colocam o seu amor fora do mundo, e a força desse pobre amor sofredor, sob o jugo do Destino, leva-os a intuir outro mundo onde não há outra lei para além da liberdade do amor, outro mundo onde não há barreiras porque também não há carne. Porque nada nos enche mais de esperança e de fé num outro mundo do que a impossibilidade de que um amor nosso frutifique de verdade neste mundo de carne e de aparências.
E o amor maternal, que é senão compaixão para com o fraco, para com o desvalido, a pobre criança indefesa que precisa do leite e do colo da mãe? E na mulher todo o amor é maternal.
Amar em espírito e compadecer-nos, e quem mais compadece mais ama. Os homens abrasados na ardente caridade para com o seu próximo, é porque chegaram ao fundo da sua própria miséria, da sua própria aparência, das suas ninharias e, voltando então os seus olhos, assim abertos, para os seus semelhantes, também os viram como miseráveis aparências, periclitantes, e deles compadeceram-se e os amaram.
O homem anseia ser amado ou, o que é a mesma coisa, anseia por ser compadecido. O homem quer que se sintam e se compartilhem as suas penas e as suas dores. Há mais qualquer coisa que uma artimanha para conseguir esmola nesse facto dos mendigos, à beira dos caminhos, mostrarem a quem passa a sua chaga ou o seu coto gangrenado. A esmola, mais do que socorro para suportar os trabalhos da vida, é compaixão. O andrajoso não agradece a esmola a quem lha dá, voltando a cara para não o ver e para o afastar do seu lado, antes agradece mais que se compadeçam dele não o socorrendo, do que socorrendo-o não se compadecendo dele, embora, por outro lado, prefira isto. Vede, então, com que complacência ele conta as suas penas a quem se comove, ouvindo-lhas. Quer ser compadecido, amado.
O amor da mulher, sobretudo, é sempre, no fundo, dizia eu, compassivo; é maternal. A mulher rende-se ao amante porque o sente sofrer com o desejo. Isabel compadeceu-se de Lourenço, Julieta de Romeu, Francisca de Paulo. A mulher parece dizer: «Vem, coitadinho, e não sofras tanto por minha causa!» E, por isso, o seu amor é mais amoroso e mais puro do que o do homem, e mais corajoso e mais duradouro.
A compaixão é, pois, a essência do amor espiritual humano, do amor que tem consciência de o ser, do amor que não é puramente animal, do amor, em suma, de uma pessoa racional. O amor compadece-se e compadece-se tanto mais quanto mais ama.
Invertendo o nihil volitum quin praecognitum, eu disse-vos que nihil cognitum quin praevolitum, que não se conhece nada que, de um modo ou de outro, não se tenha desejado antes, e até é possível acrescentar que não se pode conhecer bem nada que não se ame, de que não se tenha compaixão.
Aumentando o amor, esta ânsia ardorosa de ir mais longe e mais fundo vai-se estendendo a tudo 0 que se vê, a tudo o que se vai compadecendo de tudo. A medida que vais penetrando em ti mesmo, e mais fundo desces em ti mesmo, vais descobrindo a tua própria futilidade, que não és tudo o que não és, que não és o que gostarias de ser, que, em suma, não és mais do que uma ninharia. E ao tocares no teu próprio nada, ao não sentires 0 teu fundo permanente, ao não atingires nem a tua própria infinitude nem, mesmo, a tua própria eternidade, tendo lástima de todo o coração a ti próprio, e inflamas-te em doloroso amor por ti mesmo, matando o que se chama amor-próprio, e não é mais do que uma espécie de deleite sensual de ti mesmo, algo assim como a carne da tua alma a gozar-se a si mesma.
O amor espiritual a si mesmo, a compaixão que uma pessoa adquire para consigo própria, poderá, porventura, chamar-se egotismo; mas é o que de mais oposto existe ao vulgar egoísmo. Porque deste amor ou compaixão de ti próprio, deste intenso desespero, porque, do mesmo modo que não eras antes de nasceres, também depois de morreres não serás, passas a ter compaixão, isto é, a amar todos os teus semelhantes e irmãos, em aparência miseráveis sombras que desfilam do seu nada ao seu nada, chispas de consciência que brilham um momento nas infinitas e eternas trevas. E dos demais homens, teus semelhantes, passando pelos que são mais semelhantes a ti, e pelos que contigo convivem, vais-te compadecer de todos os que vivem, e que até daquilo que, porventura, não vive, mas existe. Aquela longínqua estrela que brilha durante a noite, lá no alto, há-de apagar-se algum dia, e tornar-se-á pó, e deixará de brilhar e de existir. E como ela, todo o céu estrelado. Pobre céu!
E se é doloroso ter de deixar de ser um dia, mais doloroso seria, talvez, continuar a ser sempre o mesmo, e só o mesmo, sem poder ser outro ao mesmo tempo, sem poder ser ao mesmo tempo tudo o resto, sem poder ser tudo.
Se olhares para a universo do modo mais próximo e profundo que puderes olhar, que é em ti próprio; se sentires, e não só contemplares, todas as coisas na tua consciência, onde todas elas deixaram a sua dolorosa marca, atingirás as profundezas do tédio da existência, o poço da vaidade das vaidades. E é assim como chegarás, a compadecer-te de tudo, ao amor universal.
Para amares tudo, para teres compaixão de tudo, do humano e do extra-humano, do que vive e não vive, é necessário que sintas dentro de ti mesmo, que personalizes tudo. Porque o amor personaliza tudo quanto ama, tudo aquilo de que se compadece. Só nos compadecemos, isto é, só amamos, o que se nos assemelha, e assim aumenta a nossa compaixão, e com ela o nosso amor pelas coisas, a medida que descobrimos as semelhanças que têm connosco. Ou, melhor, é o próprio amor, que por si só tende a crescer, o que nos revela essas semelhanças. Se consigo compadecer-me e amar a pobre estrela que um dia desaparecera do céu, é porque o amor, a compaixão, me faz sentir nela uma consciência, mais ou menos obscura, que a leva a sofrer por não ser mais do que uma estrela e por ter de deixar de o ser, um dia. Pois toda a consciência o é de morte e de dor.
Consciência, conscientia, é conhecimento partilhado, é consentimento, e com-sentir é com-padecer.
O amor personaliza tudo o que ama. S6 é possível apaixonarmo-nos por uma ideia personalizando-a. E quando o amor é tão grande e tão vivo e tão forte e transbordante que tudo ama, então, ele tudo personaliza, e descobre que o Todo total, o Universo, também é Pessoa, tem uma Consciência, Consciência que, por sua vez, sofre, se compadece e ama, isto é, é consciência. E esta Consciência do Universo, que o amor descobre personalizando tudo o que ama, é o que chamamos Deus. E assim a alma compadece-se de Deus e sente que Ele se compadece dela, ama-o e sente-se amada por Ele, dando abrigo a sua miséria no seio da miséria eterna e infinita, que é, ao eternizar-se e tornar-se infinita, a própria felicidade suprema.
Deus é, pois, a personalização do Todo, é a Consciência eterna e infinita do Universo. Consciência presa da matéria e esforçando-se por se libertar dela. Personalizamos o Todo para nos salvarmos do Nada, e o único mistério verdadeiramente misterioso é o mistério da dor.
A dor é o caminho da consciência, e é por ela que os seres vivos atingem a consciência de si. Porque ter consciência de si mesmo, ter personalidade, é saber-se e sentir-se distinto dos outros seres, e só se consegue sentir esta distinção com o choque, com a dor maior ou menor, com a sensação do próprio limite. A consciência de si mesmo nã0 é mais do que a consciência da própria limitação. Sinto-me eu mesmo ao sentir-me que não sou os outros; saber e sentir até onde sou é saber onde deixo de ser, e a partir de onde não sou.
E como saber que se existe não sofrendo nem muito nem pouco? Como voltar sobre si, lograr consciência reflexa, senão através da dor? Quando se tem prazer, esquecemo-nos de nos próprios, de que existimos, entramos noutra coisa, alienamo-nos. E só nos ensimesmamos, voltamos a nos próprios, a sermos nós, na dor.
Nessun maggior dolore
che ricordarsi del tempo felice
nella miseria,
faz dizer Dante a Francesca de Rimini (Inferno, v, 121-123); mas, se não há dor maior do que a de nos lembrarmos na desgraça do tempo feliz, não há, por outro lado, prazer em nos lembrarmos da desgraça em tempo de prosperidade.
(“Do Sentimento Trágico da Vida”, Miguel de Unamuno. Círculo de Leitores, 1989)
Discurso escrito pela família de Rachel Corrie e lido no dia 12 de Abril, 2003, em numerosas realizações levadas a cabo em todo o mundo, em memória desta lutadora da paz.
Em 16 de Março, a nossa filha e irmã Rachel Corrie foi morta por um bulldozer militar israelita, quando tentava impedir a demolição de uma casa palestiniana na Faixa de Gaza. Rachel escolheu ir para Rafah, uma cidade a sul da Faixa de Gaza, porque acreditava que o mundo tinha abandonado este lugar. Durante a sua permanência, Rachel tornou-se nos nossos olhos e ouvidos, como nos disse sobre os tanques e bulldozers que passavam, sobre as casas com os seus buracos nas paredes, e da sua multiplicação rápida, sobre as torres do exército israelita com atiradores perscrutando ao longo do horizonte, sobre os helicópteros, e os seus zumbidos invisíveis sobrevoando a cidade durante horas e horas, sobre os poços, as estufas e os olivais destruídos, sobre o muro gigantesco de metal, em construção em torno de Gaza.
Ela disse-nos da ajuda que recebeu de um soldado israelita, que lhe enviou por e-mail frases em hebreu, para usar quando confrontada com soldados israelitas dos tanques e dos bulldozers. Ela falou-nos também de Ali, o rapaz palestiniano de dezoito anos, abatido dois dias antes da sua chegada, dos grandes grupos de homens palestinianos capturados e retidos durante todo o tempo, dos estudantes palestinianos e trabalhadores que não podem ir para a universidade ou para os seus empregos, porque os pontos de controlo se encontram fechados, dos trabalhadores municipais palestinianos da água, enfurecidos enquanto tentam fazer as reparações. Ela disse-nos, também, do dormir no chão e do compartilhar de um cobertor com uma família de cinco pessoas, de ajudar o jovem Nidal, que, com o seu inglês, a ajudou no seu árabe, das famílias palestinianas que lhe deram as suas limonadas para curar a gripe. Ela escreveu-nos: “Eu descobri um grau de força e de capacidade básicas de humanos permanecerem humanos em circunstâncias extremas. Penso que a palavra é dignidade.”
Rachel tinha sonhos. Ela acreditava que a sua cidade natal de Olympia, Washington, poderia irmanar-se com a cidade irmã de Rafah. Ela visionou trocas de e-mails entre crianças das duas cidades. Ela escreveu: “Muitos palestinianos querem que as suas vozes sejam ouvidas e penso que precisamos de usar alguns dos nossos privilégios, como internacionais, para fazer com que as suas vozes sejam ouvidas directamente nos Estados Unidos, em vez do filtro de internacionais bem-intencionados, como eu”. Rachel acreditava que poderia ver um estado palestiniano ou um estado israelo-palestiniano democrático durante a sua vida. Ela escreveu: “penso que a liberdade para a Palestina poderia ser uma fonte incrível de esperança para os povos em luta de todo o mundo”. Rachel alinhava com activistas pela paz palestinianos não-violentos, com activistas pela paz israelitas, também não-violentos, e com todos os activistas internacionais a trabalharem corajosamente para fazer com que todos os seus sonhos se tornem realidade.
Ela perdeu a sua vida naquele esforço pela paz, quando foi esmagada por um bulldozer israelita, há quatro semanas atrás. Isto agora leva-nos, a cada um de nós, a erguermo-nos com a mesma convicção e coragem e, dos nossos púlpitos, dos nossos pódios e das nossas ruas, através das nossas cartas para o Congresso, para a secretaria de Estado e Presidente, gritarmos juntamente com Rachel: “Isto é para parar! É uma boa ideia para nós todos, abandonar tudo e devotar todas as nossas vidas para fazer parar isto. Não penso em extremismos para fazer algo mais. Eu até quero na verdade dançar para Pat Benetar e ter namorados e ser cómica para os meus companheiros. Mas eu também quero que isto pare!
Rachel Corrie era uma jovem activista cuja vida, aos 23 anos, terminou abruptamente a 16 de Março de 2003, enquanto trabalhava como manifestante na Faixa de Gaza. Ela cresceu em Olympia, Washington, estudou na Capital High School e depois no Evergreen State College. Enquanto estava na faculdade, Corrie juntou-se ao Movimento Olympia pela Justiça e Paz e, mais tarde, ao Movimento de Solidariedade Internacional, ou ISM.
O ISM, fundado em 2001, procura pessoas em todo o mundo para ajudar nos seus protestos não violentos contra os militares israelitas na Cisjordânia. A organização procura pressionar Israel e a sua Força de Defesa Israelense (FDI) a acabar com a ocupação de terras palestinas, usando uma série de táticas de resistência não violentas, como violar o toque de recolher israelense imposto em áreas palestinas, remover bloqueios de estradas colocados pelas FDI para isolar uma aldeia de outro, e bloqueando tanques militares e escavadeiras.
Rachel Corrie foi para Rafah, na Faixa de Gaza, em Janeiro de 2003 e recebeu dois dias de treino de resistência não violenta para ajudar nas actividades do ISM. Ela ficou horrorizada com a destruição que encontrou lá. Casas foram destruídas e pessoas detidas e mortas diariamente. Rachel registrou o que observou e sentiu em cartas e e-mails para sua família. Num e-mail, ela escreveu: “Agora, o exército israelita escavou a estrada para Gaza e ambos os principais pontos de controlo estão fechados. Isto significa que os palestinianos que queiram inscrever-se para o próximo trimestre na universidade não podem. As pessoas não conseguem chegar aos seus empregos e aqueles que estão presos do outro lado não conseguem voltar para casa; e os internacionais, que têm uma reunião amanhã na Cisjordânia, não conseguirão.”
Em outro e-mail, Corrie escreveu: “Sinto muito mal do estômago por ser mimada o tempo todo, muito docemente, por pessoas que estão enfrentando a desgraça… Honestamente, muitas vezes a pura bondade das pessoas aqui, juntamente com a evidência esmagadora da destruição intencional de suas vidas, faz com que isso pareça irreal para mim.”
Os esforços de Rachel Corrie para ajudar o movimento de resistência custaram-lhe a vida em 16 de março de 2003. Ela se colocou entre uma escavadeira Caterpillar e uma casa local, tentando impedir que as FDI a demolissem. Ela foi atropelada duas vezes pelo veículo e morreu.
Após a sua morte, a Fundação Rachel Corrie para a Paz e Justiça foi fundada para “apoiar programas que promovam conexões entre as pessoas, que construam a compreensão, o respeito e a apreciação pelas diferenças, e que promovam a cooperação dentro e entre as comunidades locais e globais”. O ator Alan Rickman e a escritora Katherine Viner montaram uma peça baseada nas cartas, diários e e-mails de Corrie chamada “Meu nome é Rachel Corrie”. Foi exibido em Londres em 2005 e, após um adiamento inicial nos Estados Unidos, teve uma exibição limitada na Off-Broadway em Nova York.
Na sequência da instalação de um regime cliente dos EUA no Ruanda, em 1994, forças do Ruanda e do Uganda treinadas nos EUA intervieram no antigo Zaire – uma praça-forte da influência francesa e belga sob a presidência de Mobutu Sese Seko. Tropas especiais dos EUA – principalmente Boinas Verdes do Terceiro Grupo de Forças Especiais, com base em Fort Bragg, N.C. – tinham-se envolvido activamente no treino do EPR, como se encontra amplamente documentado.
Este programa era uma continuação do apoio e assistência militares encapotados fornecidos ao EPR antes de 1994. Por sua vez, as trágicas consequências da guerra civil no Ruanda, incluindo a crise dos refugiados, tinham preparado as condições para a participação do Uganda e do EPR do Ruanda na guerra civil no Congo:
«Washington forneceu auxílio militar em grande escala ao exército de Kagame, e as Forças Especiais do Exército dos EUA e outro pessoal militar treinaram centenas de soldados do Ruanda. Mas Kagame e os seus colegas tinham os seus próprios objectivos pessoais. Enquanto os Boinas Verdes treinavam o Exército Patriótico Ruandês, este treinava secretamente rebeldes do Zaire... No Ruanda, as fontes oficiais dos EUA descreviam publicamente o seu envolvimento com o exército como sendo quase exclusivamente de sensibilização para os direitos humanos. Mas os exercícios das Forças Especiais abrangiam igualmente outras áreas, nas quais se incluíam técnicas de combate...
Centenas de soldados e oficiais inscreveram-se nos programas de treino dos EUA, tanto no Ruanda como nos Estados Unidos... conduzidos por Forças Especiais americanas, estudavam técnicas de camuflagem, movimentação de pequenas unidades, procedimentos para a liderança de tropas, desenvolvimento de equipas de soldados, etc. ... E, enquanto o treino prosseguia, enviados oficiais dos EUA avistavam-se regularmente com Kagame e outros líderes do Ruanda para debater a ameaça militar vinda do interior do Zaire com que o anterior governo no exílio do Ruanda continuava a defrontar-se... Claramente, o foco das discussões militares entre o Ruanda e os EUA tinha passado da consolidação dos direitos humanos para o combate contra uma insurreição... Com o apoio de Museveni (presidente do Uganda), Kagame concebeu um plano para apoiar um movimento rebelde no Leste do Zaire (encabeçado por Laurent Desiré Kabila)...
A operação foi lançada em Outubro de 1996, algumas semanas após a viagem de Kagame a Washington e a conclusão da missão de treino das Forças Especiais... Na sequência do início da guerra no Congo, os Estados Unidos forneceram «assistência política» ao Ruanda... Um funcionário da embaixada dos EUA em Kigali deslocou-se numerosas vezes ao Leste do Zaire para manter contactos com Kabila. Pouco depois, os rebeldes avançavam. Arredando o exército do Zaire com o auxílio das forças do Ruanda, atravessaram a terceira maior nação da África em sete meses, com apenas alguns confrontos militares significativos. Mobutu fugiu da capital, Kinshasa, em Maio de 1997, e Kabila tomou o poder, mudando o nome do país para Congo... Funcionários dos EUA negaram a presença de qualquer pessoal militar americano entre as tropas do Ruanda no Zaire durante a guerra, embora desde o início desta circulasse na região a informação de que os Estados Unidos se encontravam presentes como conselheiros militares».
Interesses mineiros americanos
Nestas operações militares no Congo estavam em jogo os extensos recursos mineiros do Leste e do Sul do Zaire, incluindo reservas estratégicas de cobalto de importância crucial para a indústria da defesa americana. Durante a guerra civil, vários meses antes da queda de Mobutu, Laurent Desiré Kabila, com base em Goma, no Leste do Zaire, renegociara os contratos mineiros com várias companhias mineiras dos EUA e do Reino Unido, entre as quais se contavam a American Mineral Fields (AMF), uma companhia com sede em Hope, no Arkansas, a cidade natal do presidente Bill Clinton.
Entretanto, em Washington, os funcionários do FMI atarefavam-se com a revisão da situação macroeconómica do Zaire. Não se perdeu tempo. O calendário económico pós-Mobutu já fora decidido. Num estudo divulgado em Abril de 1997, menos de um mês antes de o presidente Mobutu Sese Seko fugir do país, o FMI recomendara «a suspensão completa e imediata da emissão de moeda» como parte de um programa de recuperação económica. Alguns meses mais tarde, ao assumir o poder em Kinshasa, o novo governo de Laurent Kabila recebeu ordens do FMI para congelar os salários dos funcionários públicos, com vista a «restaurar a estabilidade macroeconómica». Em consequência da hiperinflação, o salário médio do sector público tinha descido de 30.000 novos Zaires (NZ) por mês para o equivalente a um dólar.
As exigências do FMI equivaliam a manter a totalidade da população numa situação de pobreza abissal. Excluíam à partida uma reconstrução económica significativa no pós-guerra, contribuindo assim para alimentar a continuação da guerra civil congolesa, na qual morreram cerca de 2 milhões de pessoas.
Guerra não declarada entre a França e a América
A guerra civil no Ruanda foi uma luta brutal pelo poder político entre o governo hutu de Habyarimana, apoiado pela França, e a Frente Patriótica Ruandesa tutsi, com o apoio financeiro e militar de Washington. As rivalidades étnicas foram deliberadamente utilizadas na prossecução de objectivos geopolíticos. Tanto a CIA como os serviços de informação franceses estavam envolvidos.
Nas palavras de Bernard Debré, o ex-ministro da Cooperação no governo do primeiro-ministro Henri Balladur:
«O que se esquece é que, se a França estava de um dos lados, os Americanos estavam do outro, armando os tutsis que armaram os Ugandeses. Não é minha intenção sugerir um medir de forças entre os franceses e os anglo-saxões, mas a verdade é para ser dita».
Juntamente com o auxílio militar às facções inimigas, o influxo de empréstimos de desenvolvimento desempenhou um papel importante no «financiamento do conflito». Por outras palavras, tanto a dívida externa do Uganda como a do Ruanda foram canalizadas para apoiar as forças militares e paramilitares. A dívida externa do Uganda aumentou mais de 2.000 milhões de dólares – a um ritmo significativamente mais rápido do que a do Ruanda (que sofreu um aumento de cerca de 250 milhões de dólares entre 1990 e 1994). Retrospectivamente, o EPR – financiado tanto pela assistência militar dos EUA como pela dívida externa do Uganda – estava muito melhor equipado e treinado do que as « Forces Armées du Rwanda » (FAR), leais ao presidente Habyarimana. Desde o início, o EPR possuía uma distinta vantagem militar sobre as FAR.
Segundo o testemunho de Paul Mugabe, um ex-membro da Unidade de Alto Comando da FPR, o major-general Paul Kagame ordenara pessoalmente o abate do avião do presidente Habyarimana em Abril de 1994, com o objectivo de se apossar do controlo do país. Estava plenamente consciente de que o assassínio de Habyarimana desencadearia «um genocídio» contra a população civil tutsi. As forças do EPR estavam completamente colocadas em Kigali quando ocorreram os massacres étnicos e não intervieram para os evitar.
«A decisão do major-general Paul Kagame de mandar abater o avião do presidente Habyarimana, tomada em plena consciência, agiu como catalisador de um drama sem precedentes na história do Ruanda. A ambição de Kagame causou o extermínio de todas as nossas famílias: tutsis, hutus e twas. Todos perdemos. A tomada do poder por Kagame custou a vida a um grande número de tutsis e provocou o êxodo desnecessário de milhões de hutus, muitos dos quais eram instrumentos inocentes nas mãos dos líderes do genocídio».
«Alguns ruandeses ingénuos aclamaram Kagame como uma espécie de salvador, mas o tempo demonstrou que foi ele o causador do sofrimento e da desgraça... Será que Kagame pode explicar ao povo do Ruanda por que motivo enviou Claude Dusaidi e Charles Muligande a Nova lorque e Washington para suspender a intervenção militar das Nações Unidas que ia ser enviada para proteger o povo ruandês do genocídio? A razão por detrás da tentativa de evitar essa intervenção militar consistia em criar condições para a liderança da FPR tomar o poder em Kigali e mostrar ao mundo que tinham sido eles - a FPR - a evitar o genocídio. Nenhum de nós esquecerá que o genocídio ocorreu durante três meses, embora Kagame tenha dito que era capaz de lhe pôr fim na primeira semana após a queda do avião. Será que o major-general Paul Kagame pode explicar por que solicitou a retirada da MINUAR (Missão das Nações Unidas de Acompanhamento do Ruanda) do país numa questão de horas, enquanto a ONU estava a considerar a possibilidade de aumentar as suas tropas no Ruanda para pôr fim ao genocídio?»
O testemunho de Paul Mugabe referente ao abate do avião de Habyarimana está corroborado por documentos e informações provenientes dos serviços de informação e apresentados ao inquérito parlamentar francês. Um estudo recente de Wayne Madsen aponta para a cumplicidade de funcionários superiores das Nações Unidas:
«A revelação mais dramática diz respeito à localização do registo de voz da cabine, ou caixa negra, do Mystere-Falcon 50. Segundo funcionários ligados aos movimentos aéreos das Nações Unidas na região, a caixa negra foi transportada em segredo para a sede da ONU em Nova Iorque, onde se encontra ainda... Segundo as referidas fontes da ONU, os dados da caixa negra estão retidos por aquela organização, sob pressão do governo dos Estados Unidos... e a juíza canadiana Louise Arbour, procuradora especial no Tribunal Internacional de Crimes de Guerra que investigou o genocídio no Ruanda, ordenou a suspensão da investigação relativa aos acontecimentos que conduziram ao abate do avião em 6 de Abril de 1994. Os investigadores das Nações Unidas receberam instruções de Louise Arbour para se limitarem aos acontecimentos verificados na sequência da queda do aparelho. Arbour... deu ordens aos seus subordinados, entre os quais se contava Al Breau, ex-vice-comissário da Real Polícia Montada Canadiana, para suspenderem a investigação, quando se tornou evidente que esta apontava para a conclusão de que a FPR e os seus apoiantes americanos estavam implicados no planeamento do ataque ao avião. A investigação encontrou provas de que as forças da FPR controlavam as três principais vias de acesso ao Aeroporto Internacional de Kayibanda na tarde do ataque e que mercenários europeus a soldo … e aos serviços de informação dos EUA utilizaram armazéns nas imediações, alugados por uma companhia suíça, para planear o ataque e disparar o míssil sobre o Mystêre-Falcon. Acrescente-se ainda que os investigadores canadianos e da ONU descobriram provas de que, durante 1996 e 1997, a Agência de Desenvolvimento Internacional Canadiana Canadian lnternational Development Agency -CIDA) forneceu assistência humanitária e para o desenvolvimento ao governo da FPR, que foi utilizada para a aquisição de armamento. Quando este facto chegou ao conhecimento dos auditores internos da CIDA, a investigação foi abruptamente suspensa pelo governo canadiano».
Segundo Madsen, estas actividades «secretas em nome dos Estados Unidos e do Canadá» foram apoiadas pelo então subsecretário-geral da ONU responsável pela Manutenção da Paz, Kofi Annan, que mantinha estreitos contactos com Madeleine Albright – na altura embaixadora dos EUA na ONU – e com funcionários do Conselho de Segurança Nacional dos EUA.
O secretário-geral da ONU, Boutros Boutros Ghali, foi propositadamente mantido às escuras pelos Estados Unidos, que conseguiram tirá-lo do posto em 1996, substituindo-o por Annan.
Instalação de um protectorado anglo-americano
Apesar das boas relações diplomáticas entre Paris e Washington e da aparente unidade da aliança militar ocidental, tratava-se de uma guerra não declarada entre a França e os EUA. Ao apoiar o reforço das forças do Uganda e do Ruanda e ao intervir directamente na guerra civil congolesa, Washington é também directamente responsável pelos massacres étnicos cometidos no Leste do Congo, incluindo as centenas de milhares de pessoas que morreram em campos de refugiados. O major-general Paul Kagame foi um instrumento de Washington.
A perda de vidas africanas não tinha importância. A guerra civil no Ruanda e os massacres étnicos constituíam parte integrante da política externa americana, cuidadosamente encenada de acordo com objectivos estratégicos e económicos precisos.
Os decisores de políticas dos EUA tinham plena consciência de que estava iminente uma catástrofe. De facto, quatro meses antes de se verificar o genocídio, a CIA tinha informado o Departamento de Estado americano, num relatório confidencial, de que os Acordos de Arusha fracassariam e de que «se as hostilidades forem retomadas, mais de meio milhão de pessoas morrerá». Esta informação foi ocultada às Nações Unidas: «só depois do final do genocídio é que essa informação foi transmitida ao major-general Dallaire que comandava as forças da ONU no Ruanda».
O objectivo de Washington era afastar a França, desacreditar o governo francês (que apoiara o regime de Habyarimana) e instalar um protectorado anglo-americano no Ruanda sob a presidência do major-general Paul Kagame. Deliberadamente, Washington nada fez para evitar os massacres étnicos.
Quando foi proposta uma força da ONU, o major-general Paul Kagame procurou atrasar a sua implementação declarando que só aceitaria uma força de manutenção da paz depois de o EPR obter o controlo de Kigali. Kagame «receava que a força das Nações Unidas proposta, de mais de 5.000 soldados... pudesse intervir para privar o EPR da vitória». Entretanto, após deliberações e um relatório do secretário-geral Boutros Boutros Ghali, o Conselho de Segurança decidiu adiar a sua intervenção.
O «genocídio» de 1994 no Ruanda serviu objectivos estritamente estratégicos e geopolíticos. Os massacres étnicos desferiram um duro golpe na credibilidade da França, o que permitiu aos EUA estabelecerem uma base para os seus objectivos neocoloniais na África Central. De um cenário colonial distintamente franco-belga, a capital do Ruanda, Kigali, tornou-se – sob o governo da FPR liderado por expatriados tutsi – distintamente anglo-americana. O inglês passou a ser a língua dominante no governo e no sector privado. Muitas empresas privadas de hutus passaram para as mãos de expatriados tutsis que regressaram em 1994, vindos do exílio na África anglófona, nos EUA e no Reino Unido.
O Exército Patriótico Ruandês (EPR) funciona em inglês e em kinyarwanda; a Universidade, anteriormente com ligações à França e à Bélgica, funciona também em inglês. O inglês tornou-se uma das línguas oficiais, juntamente com o francês e o kinyarwanda, ao passo que a influência política e cultural francesa acabará por desaparecer completamente. Washington tornou-se o novo patrão colonial de um país francófono.
Vários outros países francófonos da África subsariana estabeleceram acordos de cooperação militar com os EUA. Estes países estão destinados por Washington a seguir o exemplo do Ruanda. Entretanto, na África Ocidental francófona o dólar americano está rapidamente a substituir o franco CFA, que está ligado, num conselho cambial ministerial, ao Tesouro francês.
(Retirado de “A Globalização da Pobreza e a Nova Ordem Mundial” de Michel Chossudovsky”, ed. Caminho. 2003)
Campanhas publicitárias, operações de marketing. A opinião pública é o target. As guerras vendem-se mentindo, como se vendem os carros.
Em Agosto de 1964, o presidente Lyndon Johnson declarou que os vietnamitas tinham atacado dois navios dos Estados Unidos no golfo de Tonquim.
Então, o presidente invadiu o Vietname, lançou aviões e tropas e a sua popularidade subiu em flecha e ele foi aplaudido pelos jornalistas e pelos políticos. E o governo democrata e a oposição republicana tornaram-se um partido único contra a agressão comunista.
Depois de a guerra ter estripado uma multidão de vietnamitas, na sua maioria mulheres e crianças, Robert McNamara, ministro da Defesa de Johnson, confessou que o golfo de Tonquim não acontecera.
Os mortos não ressuscitam.
Em Março de 2003, o presidente George W. Bush disse que o Iraque estava prestes a aniquilar o mundo com as suas armas de destruição maciça, as armas mais letais jamais inventadas.
Então, o presidente invadiu o Iraque, lançou aviões e tropas e a sua popularidade subiu em flecha e ele foi aplaudido pelos jornalistas e pelos políticos. E o governo republicano e a oposição democrata tornaram-se um partido único contra a agressão terrorista.
Depois de a guerra ter estripado uma multidão de iraquianos, na sua maioria mulheres e crianças, Bush confessou que as armas de destruição maciça não existiam. As armas letais jamais inventadas foram inventadas por ele.
Nas eleições seguintes, o povo recompensou-o com a reeleição.
Na minha infância, a minha mãe disse-me que a mentira tem perna curta. Estava mal informada.
*
GUERRAS MENTIROSAS
A Guerra do Iraque nasceu da necessidade de corrigir o erro que a geografia cometeu quando pôs o petróleo do Ocidente sob as areias do Oriente, mas nenhuma guerra tem a honestidade de confessar:
— Eu mato para roubar.
A merda do Diabo, como as más-línguas chamam ao ouro negro, executou e continuará a executar inúmeras façanhas bélicas.
Uma multidão perdeu a vida no Sudão, entre finais do seculo XX e inícios do século XXI, numa longa guerra petrolífera que se disfarçou de conflito étnico e religioso. Torres e perfuradoras, tubos e oleodutos surgiam, por artes mágicas, nas aldeias incendiadas e nas sementeiras destruídas. E na região de Darfur, onde a carnificina continuou, os nativos, todos eles muçulmanos, começaram a odiar-se quando souberam que podia haver petróleo sob os seus pés.
Também se chamou guerra étnica e religiosa à matança nas colinas do Ruanda, embora matadores e mortos fossem todos católicos. O ódio, herança colonial, vinha dos tempos em que a Bélgica decidira que os tutsis ficavam com as vacas e que os hutus trabalhavam na terra, e que a minoria tutsi devia dominar a maioria hutu.
Durante estes anos, outra multidão perdeu a vida na República Democrática do Congo, ao serviço das empresas estrangeiras que disputavam o coltan. Este mineral raro é imprescindível para o fabrico de telemóveis, de computadores, de microchips e de baterias usados pelos meios de comunicação, que no entanto se esqueceram de o mencionar.
*
GUERRAS VORAZES
Em 1975, o rei de Marrocos invadiu a pátria saraui e expulsou a maior parte da sua população.
O Sara é, agora, a última colónia de Africa.
Marrocos nega-lhe o direito de escolher o seu próprio destino, confessando assim que roubou um país e que não tem qualquer intenção de o devolver.
Os sarauis, os filhos das nuvens, os perseguidores da chuva, estão condenados a pena da angústia perpétua e da perpétua nostalgia. As Nações Unidas deram-lhes razão, mil e uma vezes, mas a independência é mais esquiva do que a água no deserto.
Mil e uma vezes, também, se pronunciaram as Nações Unidas contra a usurpação israelita da pátria palestiniana.
Em 1948, a fundação do Estado de Israel implicou a expulsão de oitocentos mil palestinianos. Os palestinianos desalojados levaram com eles as chaves das suas casas como tinham feito, séculos antes, os judeus que Espanha expulsou. Os judeus nunca puderam voltar a Espanha. Os palestinianos nunca puderam voltar à Palestina.
Os que ficaram foram condenados a viver humilhados em territórios que as invasões contínuas vão fazendo encolher diariamente.
Susan Abdallah, palestiniana, conhece a receita para fabricar um terrorista:
Despoje-o de água e de comida.
Rodeie a sua casa de armas de guerra.
Ataque-o por todos os meios e a toda a hora, especialmente à
noite.
Derrube a sua casa, arrase a sua terra cultivada, mate os seus
entes queridos, especialmente os pequenos, ou deixe-os mutilados.
Parabéns: você criou um exército de homens-bomba.
(Retirado de “Espelhos, uma história quase universal”, Eduardo Galeano. Antígona, 2018.)
(Artigo escrito pelo 25° aniversário do massacre de Sabra e Shatila.)
Entre 15 e 17 de Setembro de 1982, paramilitares fascistas libaneses, sob o olhar atento dos ocupantes militares israelitas, chacinaram mais de 2000 residentes palestinianos de dois campos de refugiados em Beirute.
Em Junho de 1982, o exército israelita (IDF), com o total apoio do governo Reagan, iniciou uma gigantesca invasão do Líbano. Os objectivos da invasão eram destruir a Organização de Libertação da Palestina (OLP), nessa altura baseada sobretudo no Líbano, e instalar um governo fantoche em Beirute. Ao longo de toda a guerra, os EUA reabasteceram continuamente o IDF.
A invasão do Líbano culminou na chacina de 15 a 17 de Setembro nos dois campos de refugiados palestinianos desarmados, levada a cabo por 1500 membros das racistas e fascistas Forças Libanesas, uma das organizações da direita libanesa aliadas de Israel.
Durante todo o verão desse ano, o IDF bombardeou sem piedade a capital libanesa e matou mais de 20000 pessoas, a vasta maioria delas civis. Em Setembro de 1982, um acordo de cessar-fogo foi imposto aos libaneses e aos palestinianos que resistiam à ofensiva. Os refugiados palestinianos constituíam mais de 10% da população do Líbano, que era de 3 milhões nessa altura.
Ao abrigo desse acordo, as forças militares da OLP seriam evacuadas para a Tunísia. Em troca, seria garantida a salvaguarda e a segurança dos campos de refugiados palestinianos. Entre os signatários desse acordo estavam os governos dos Estados Unidos e de Israel.
A garantia de segurança era crítica, porque era bem conhecido de toda agente que as Forças Libanesas e outras milícias racistas e fascistas abateriam os residentes dos campos se eles ficassem desprotegidos.
A 15 de Setembro, com a saída dos combatentes da OLP, o IDF cercou completamente os campos de refugiados de Sabra e Shatila, em Beirute ocidental. Os refugiados que ficaram nos campos eram quase todos mulheres, crianças ou velhos.
Porém, Ariel Sharon, então ministro da defesa de Israel, em conjunto com os chefes israelitas no terreno, declararam que achavam que ainda havia combatentes da OLP escondidos nos campos. Usando esse pretexto, Sharon deu autorização a que as Forças Libanesas (FL), comandadas por Elie Hobeika, pudessem entrar nos campos palestinianos para "limparem os ninhos de terroristas". Disso resultou um fim-de-semana de horror inimaginável. As FL andaram primeiro porta-a-porta, obrigando os aterrorizados habitantes a saírem para as ruas e dividindo-os em grupos.
Pouco depois de terem entrado nos campos, um comandante das FL comunicou por rádio com Hobeika, que estava na presença de responsáveis israelitas. O comandante das FL perguntou a Hobeika o que devia fazer às mulheres e crianças, ao que Hobeika respondeu furiosamente, gritando para o seu rádio: "Você sabe exactamente o que fazer! " ("O Acusado", documentário da BBC, 2001).
A chacina começou então com intensidade. Durante as 36 horas seguintes, as FL violaram, torturaram e chacinaram. Assassinaram quase toda a população de mais de 2000 palestinianos e libaneses que vivia em Sabra e Shatila. Os responsáveis israelitas e os membros do governo, incluindo Ariel Sharon – que, como ministro da defesa tinha a responsabilidade global pela ocupação do Líbano -foram repetidamente informados do que se estava a passar. Quando os israelitas deram finalmente instruções a Hobeika para retirar as suas forças a 17 de Setembro, as FL pediram, e receberam, mais um dia para “acabarem o trabalho”.
Quando as horrendas imagens do massacre de Sabra e Shatila foram divulgadas em todo o mundo, a ira e a repugnância foram tão grandes que mesmo Israel teve que constituir uma comissão oficial de inquérito no ano seguinte. A Comissão Kahan declarou Sharon "indirectarnente responsável" pelo massacre. Ele foi obrigado a demitir-se de ministro da defesa, embora não do governo israelita. Duas décadas depois, Sharon ascendia ao mais alto cargo de Israel, o de primeiro-ministro.
Sabra e Shatila não foram o primeiro nem serão o último massacre de Sharon. O facto de esse criminoso de guerra ter podido cometer esses actos extremamente conhecidos e ainda poder chegar a primeiro-ministro é o sinal mais claro do carácter profundamente racista do estado israelita.
Vinte e cinco anos depois do Massacre de Sabra e Shatila, os sucessores de Sharon, com um gigantesco apoio de Washington, mantém a sua ocupação da Palestina e a sua brutal repressão do povo palestiniano.
No Kuwait, a riqueza crescente da Fatah contrastava com a vida modesta de Arafat. Escreveu o israelita Danny Rubinstein: "Quanto mais os dirigentes à sua volta pareciam homens de negócios com um estilo de vida corrupto, mais se evidenciava o seu ascetismo e modéstia. Ele parecia um símbolo de integridade, merecedor de superioridade moral sobre os colegas da liderança."
Às vezes, Arafat tirava partido desta disparidade. Em reuniões que se prolongavam durante a noite, antes de se instalar nos territórios ocupados, em 1994, quando muitos queriam pôr fim à discussão, ele fazia observações como esta: "Compreendo que tenham de ir para casa, para as vossas famílias e negócios. Eu não tenho nada disso e vou continuar a trabalhar, mas depois não venham queixar-se de que não vos consultei e tomei as decisões sozinho."
A casa de Arafat no Kuwait pertencia ao Ministério das Obras Públicas. Foi originalmente construída para oficiais britânicos. Quase desprovida de mobiliário (excepto equipamento de escritório, telefones, aparelhos de rádio e de televisão, ligados 24 horas por dia), tinha um jardim exterior e uma elevada vedação à volta, seguindo os preceitos islâmicos de preservar as mulheres da vizinhança de olhares indiscretos.
O que realmente distinguia a vivenda de Arafat das outras era os automóveis estacionados à porta. Mais tarde, numa entrevista com os biógrafos Janet e John Wallach, daria mais pormenores sobre o único luxo da sua extravagante juventude. "Sabe quantos carros eu tinha?", perguntou, e respondeu contando pelos dedos: "Entre seis e sete: um Thunderbird, no Líbano, um Volkswagen em Damasco, um Chevrolet e três ou quatro outros no Kuwait. O meu favorito era o Thunderbird."
Curiosamente, no Kuwait há quem se lembre de Arafat ao volante do seu Ford Thunderbird, descapotável e de duas cores. Conduzia-o a alta velocidade, sempre a buzinar e acenar aos transeuntes, de óculos escuros. Os amigos detestavam ir ao seu lado. Porque ele gesticulava muito enquanto falava e tirava frequentemente as mãos do volante.
Desde miúdo que Arafat estava habituado a ser um quase um eremita. Nunca frequentava festas, não ia à praia, nem ao cinema, nem a museus, nem sequer a jogos de futebol. Raramente comia em restaurantes. Tudo o que as pessoas normais fazem nos seus dias livres não tinha qualquer interesse para Arafat, à excepção talvez de passar alguns minutos em frente do televisor a ver desenhos animados, como
Bugs Bunny ou Tom & Jerry. Estes eram os seus favoritos. Adorava ver os bonecos à pancada, e ria-se muito quando o pequeno rato enganava o ardiloso gato.
Arafat sempre dormiu pouco - deitava-se (às vezes de pijama, quando não havia perigo) habitualmente às quatro ou cinco horas da madrugada. Levantava-se por volta das 10 da manhã. Quando podia, fazia uma sesta das quatro às seis da tarde. A sua cama era muitas vezes improvisada no chão dos seus múltiplos esconderijos. Para manter a forma, fazia ginástica numa bicicleta fixa ou jogging durante uns 20 minutos. Infatigável, caminhava cerca de meia hora por dia, para descomprimir das "18 a 19 horas diárias de trabalho, sete dias por semana, 365 dias por ano". Dizia com orgulho: "Nunca pensei em tirar férias." Para não perder tempo, o devoto muçulmano sunita concentrava as cinco orações obrigatórias do dia numa só. Do pescoço não tirava nunca um fio de ouro branco com uma inscrição corânica num pendente.
Antes de se instalar nos territórios ocupados em 1994 e ficar cercado em Março de 2002 pelo exército israelita no seu quartel-general em Ramallah (Cisjordânia), Arafat adorava viagens - fazia uma média de 10 por mês. Um dos seus colaboradores lembra-se até de, num só mês, o ter acompanhado a 45 países, ou seja, uma média de um país e meio por dia.Uma das suas mais longas tournées levou-o de Tunes a Pequim, a Pyongyang, ao Laos, a Hanói, ao Bangladesh e a Cabul. No avião dormia, de uma maneira geral, com um fato de treino (azul, amarelo ou verde) e uma máscara preta nos olhos. Repousava o pescoço numa pequena almofada especial, devido a problemas de coluna que também o forçavam a usar de quando em vez um colar cervical.
"Para o povo palestiniano, cuja liberdade de movimentos é tão restrita, e que em muitos casos não tem sequer passaportes para viajar, ter um líder que podia ir para qualquer lado e não precisar de passaporte era como um sonho tornado realidade", observou o jornalista Thomas Friedman. "Melhor ainda, quando Arafat chegava, nenhum agente da alfândega o encaminhava até um gabinete especial para ser revistado por ser palestiniano. Ele recebia salvas de 21 tiros de canhão, tinha batedores, bandas militares, passadeira vermelha e bandeiras palestinianas flutuando no ar. Arafat adorava estas chegadas, inspeccionar guardas de honra e ser tratado como um chefe de Estado igual aos outros."
Se gostava de viajar, Arafat também adorava banhos de multidão. Numa visita à Roménia, as antigas autoridades comunistas levaram-no um dia a passear pelo metropolitano de Bucareste, tendo ordenado uma única paragem numa estação sem passageiros. Arafat ficou desiludido por não haver ninguém para o adular. Insistiu em descer na estação seguinte repleta de gente, a uma hora de ponta, satisfazendo o seu ego por a maioria das pessoas o reconhecer. A vontade de aparecer e agradar foi sempre tão grande que, numa outra ocasião, em 1967, ao chegar ao Cairo, convenceu um amigo a ir às cerimónias fúnebres do chefe da igreja cristã copta egípcia. Ao chegar ao local deparou com um grupo de dignitários religiosos dispostos em círculo. Estava escuro, mas isso não impediu Arafat de andar às voltas a beijar todos.
De repente parou, como que petrificado, e perguntou ao amigo, Clóvis Maksoud: "O que é isto?" 0 amigo riu-se, e Arafat respondeu à sua própria pergunta: "Isto é o cadáver! "
Nas viagens, a bagagem de Arafat nunca era pesada – cinco uniformes militares quase idênticos, um blusão ao estilo do exército inglês, camisas de manga comprida (três verde-claras para o Verão e duas caqui para o Inverno). Chegou a usar um dos uniformes durante mais de 20 anos, sobretudo em ocasiões especiais. A última vez que envergou fato e gravata foi em 1968, quando fez uma escala nocturna em Paris, a caminho de Argel. Desde então quase nunca mais abandonou a farda medalhada (com os bolsos cheios de canetas de cor, um dos seus fétiches), sempre acompanhada do kaffiyeh ou boné militar e, claro, da sua pistola Smith & Wesson com seis balas expostas num carregador à cintura. A Fidel Castro prometeu que usaria smoking no dia da proclamação de um Estado palestiniano, mas recusou adornar-se com "roupas civis" para honrar a cerimónia de assinatura dos Acordos de Oslo, nos jardins da Casa Branca, em Washington, em 1992.
Arafat só possuía um relógio, um velho Rolex. Os óculos podiam mudar de lentes, mas não as antiquadas armações. A simplicidade não impedia, porém, a vaidade. Alan Hart conta que, uma tarde, no Iémen, assistiu a uma cena em que Arafat se pôs de pé para ajustar a farda. Queria ter a certeza que as bainhas das calças estavam certas. Não satisfeito, ainda sacudiu imaginários cabelos que estariam sobre a jaqueta. Tudo isto para falar com o rei Fahd da Arábia Saudita via rádio. Durante o cerco israelita de Beirute, em 1982, fazia questão de andar sempre com as botas engraxadas.
Janet e John Wallach aperceberam-se de que Arafat, não obstante andar sempre a correr de um lado para o outro, perdia a noção do tempo quando estava na banheira e demorava "mais de meia hora" a vestir-se. Compensava isso não fazendo a barba que muito contribuía para a sua fealdade. Arafat desmentia que os pêlos ralos no rosto serviam para ocultar uma doença de pele (tem manchas brancas devido a um problema de pigmentação), dizendo apenas que cortá-los "era um desperdício de tempo necessário à revolução". Só usava a lâmina ou máquina de barbear para iludir potenciais assassinos. Sempre que o inquiriam a este respeito a sua resposta favorita era a de que fazer a barba consumiria vários minutos do seu tempo como representante dos palestinianos. Às vezes, chegava a calcular quanto tempo demoraria a barbear-se e multiplicava isso por dias e meses concluindo que, no total, um homem gastava meio ano ou mais da sua vida a fazer a barba.
Arafat distinguia-se também da sua entourage pelas refeições simples e quase frugais. Preferia peixe e frango, legumes, arroz, cenouras e iogurte. À sobremesa, além de fruta fresca e tâmaras tunisinas, comia queijo e chocolates. O que mais adorava era mel - acreditava que "mantém a juventude das células humanas, por ser um produto natural". Comia-o às colheres ou em tostas ou com chá. Também apreciava chá misturado com flocos de cereais. Não consumia bebidas alcoólicas e não apreciava tabaco. "Nunca fumei um cigarro ou um cachimbo por prazer, mas noutros tempos cheguei, fazê-lo como parte dos meus disfarces", disse a Alan Hart."Considero-me um fumador passivo porque estou rodeado de gente que não pára de fumar." Abu Iyad, um dos seus mais próximos colaboradores, por exemplo, fumava por dia cinco a seis maços de cigarros, segundo ele próprio confessou.
A saúde era algo que preocupava Arafat. Ingeria enormes quantidades de vitaminas e de vários medicamentos - o que terá sido uma das causas das tremuras nas mãos e nos lábios. Os cuidados extremos não evitaram, porém, que lhe tivessem sido diagnosticados a doença de Parkinson, um cancro no estômago e uma leucemia.
Sob cerco em Ramallah, teve sempre autorização para ser consultado pelo médico particular de longa data. Quando o seu estado se agravou, em 26 de Outubro de 2004, uma equipa de 15 clínicos de vários países foi enviada de emergência para o socorrer. Os franceses, que sempre o consideraram mais solução do que problema e que por duas vezes escoltaram a sua segurança (em 1982 em Beirute e em 1983 em Tripoli), abriram-lhe as portas da melhor unidade de serviços hematológicos de Paris, o hospital militar Percy.
(Retirado de “ARAFAT, a pedra que os palestinianos lançaram ao mundo” de Margarida Santos Lopes, ed. Público , 2004)
A Declaração Balfour, emitida em 2 de Novembro de 1917, comprometeu a Grã-Bretanha a estabelecer a Palestina – então parte do Império Otomano – como pátria judaica; foi uma carta extraordinária do Governo da Grã-Bretanha a um membro da casa bancária de Rothschild.
Como observou Arthur Koestler: “Uma nação prometeu solenemente a uma segunda nação o país de uma terceira” – um país que então pertencia a um quarto país, nomeadamente a Turquia!
A razão para a criação deste documento – a obrigação britânica de prestar tal serviço aos sionistas – não foi bem compreendida.
O livreto de Robert John, “Por Trás da Declaração Balfour”, utiliza fontes fornecidas pelo falecido ativista norte-americano Benjamin Freedman para fornecer o fascinante pano de fundo desta história.
O discurso apaixonado de Freedman em 1961 tem o benefício de observações em primeira mão, mas algumas das suas perspectivas não foram confirmadas pelas evidências de John. De acordo com Freedman, os sionistas abordaram a Grã-Bretanha num ponto crucial da Primeira Guerra Mundial com a oferta de ajuda financeira extremamente necessária em troca de um compromisso de garantir a Palestina como um futuro estado sionista; o acordo exigia a entrada dos Estados Unidos para dar à Grã-Bretanha a capacidade de libertar a Palestina do Império Otomano. Freedman afirmou que o ressentimento da Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial contra a comunidade judaica resultou do que eles consideravam a traição e a cumplicidade dos financistas judeus-alemães na sua derrota.
Os seguintes trechos do livreto de John tentam tornar suas informações mais acessíveis; o documento completo foi disponibilizado pelo Institute for Historical Review de 2013 em URL: http://www.ihr.org/jhr/v06/v06p389_John.html As notas de rodapé incorporadas nos trechos podem ser referenciadas no documento original.
Os primeiros sionistas que queriam estabelecer uma pátria judaica enfrentaram o que parecia ser uma tarefa impossível na virada do século XX. A maioria dos judeus não simpatizava com o estabelecimento de uma “pátria”, e a própria comunidade sionista estava dividida entre aqueles – como o fundador Theodore Hertzl – que acreditavam que uma escolha pragmática em África seria adequada e aqueles determinados a obter a Palestina. O Império Otomano recusou-se a libertar a Palestina aos sionistas e os líderes europeus foram - embora muitas vezes simpáticos - inúteis. Hertzl afirmou profeticamente que obteriam a Palestina “não pela boa vontade, mas pela inveja das Potências”. [112]
Os conflitos que assolaram a Europa em 1916-1917 criaram o terreno fértil para os objectivos sionistas na Palestina.
O início da Primeira Guerra Mundial viu os Aliados da Grã-Bretanha, França, Itália e Rússia Czarista enfrentarem a Entente: Alemanha, Áustria-Hungria e o Império Otomano da Turquia. As perdas humanas foram impressionantes e, em 1916, os Aliados estavam com falta de dinheiro e de crédito.
Para citar trechos da descrição de John da situação e de um encontro importante:
1916 foi um ano desastroso para os Aliados. “Na história da guerra”, escreveu Lloyd George, “o final de 1916 encontrou a sorte dos Aliados no seu ponto mais baixo. Nas ofensivas na frente ocidental, perdemos três homens para cada dois alemães que colocamos fora de combate. ...”
Quanto ao pagamento da guerra, os Aliados inicialmente usaram as enormes dívidas americanas na Europa para pagar os suprimentos de guerra, mas em 1916 os recursos do JP Morgan and Company, os agentes financeiros e de compras dos Aliados nos Estados Unidos, foram considerados estar quase esgotado pelo aumento das exigências dos Aliados por crédito americano. [91]…
[E, dada a incerteza do resultado deste conflito, o financiamento não estava disponível.]
Neste inverno sombrio de 1916 entrou uma nova figura [bem relacionada]. Ele era James Malcolm, [S] um armênio [T] educado em Oxford que, no início de 1916, com a sanção dos governos britânico e russo, foi nomeado… para cuidar dos interesses armênios durante e após a guerra. …. Ele se dedicou apaixonadamente a uma vitória dos Aliados que esperava garantir a liberdade nacional dos armênios então sob domínio turco e russo.
Sir Mark Sykes, com quem mantinha relações de amizade familiar, disse-lhe que o Gabinete aguardava ansiosamente a intervenção dos Estados Unidos na guerra ao lado dos Aliados, mas quando questionado sobre que progressos estavam a ser feitos nessa direção, Sykes balançou a cabeça. sua cabeça taciturna: “Muito pouco”, ele respondeu.
James Malcolm sugeriu agora a Mark Sykes que a razão pela qual as anteriores aberturas aos judeus americanos para apoiar os Aliados não tinham recebido atenção era porque a abordagem tinha sido feita às pessoas erradas. Era aos judeus sionistas que os governos britânico e francês deveriam dirigir as suas negociações.
“Você está indo na direção errada”, disse o Sr. Malcolm. “Você pode ganhar a simpatia de certos judeus com mentalidade política em todos os lugares, e especialmente nos Estados Unidos, apenas de uma maneira, e isto é, oferecendo-se para tentar garantir a Palestina para eles.” [96]
O que realmente pesava mais agora para Sykes eram os termos do acordo secreto Sykes-Picot. [Sem mencionar a promessa da Grã-Bretanha aos árabes em 1915!] Ele disse a Malcolm que oferecer a segurança da Palestina para os judeus era impossível. “Malcolm insistiu que não havia outra maneira e pediu uma discussão no Gabinete. … Malcolm destacou a influência do juiz Brandeis da Suprema Corte americana e suas fortes simpatias sionistas.” [97]
Nos Estados Unidos, o conselheiro do presidente, Louis D. Brandeis, um dos principais defensores do sionismo, foi empossado como juiz associado da Suprema Corte em 5 de junho de 1916. Era evidente que Wilson era vulnerável, pois já em 1911, ele deu a conhecer o seu profundo interesse pela ideia sionista e pelos judeus. [98]… Wilson foi chantageado por US$ 40.000 por algumas cartas de amor quentes que escreveu à esposa de seu vizinho quando era presidente de Princeton. Ele não tinha o dinheiro, e o intermediário, Samuel Untermeyer, do escritório de advocacia Guggenheim, Untermeyer & Marshall, disse que o forneceria se Wilson nomeasse para a próxima vaga na Suprema Corte um candidato escolhido pelo Sr. Untermeyer. O dinheiro foi pago, as cartas devolvidas e Brandeis foi o indicado. [Wilson também foi cercado pelo coronel pró-sionista EM House,
Em dezembro de 1916, Lloyd George, ex-conselheiro dos sionistas, foi nomeado primeiro-ministro da Grã-Bretanha, sendo Arthur Balfour seu ministro das Relações Exteriores. Lloyd George planejou prosseguir a guerra de forma mais agressiva do que o governo anterior de Asquith. A Alemanha, até agora a vencedora do conflito, ofereceu termos de paz generosos em Janeiro de 1917, segundo Freedman, que eram “status quo ante”, não dando à Alemanha qualquer benefício pela sua liderança no conflito.
Mas a Grã-Bretanha tinha outras ideias nessa altura, e a situação na Rússia, com o sucesso da revolução que se aproximava em Março de 1917, era um desenvolvimento positivo. As memórias de Lloyd George observaram que:
Os judeus russos estiveram secretamente ativos em nome das Potências Centrais desde o início; tornaram-se os principais agentes da propaganda pacifista alemã na Rússia; em 1917, tinham feito muito na preparação para a desintegração geral da sociedade russa, mais tarde reconhecida como a Revolução. Acreditava-se que se a Grã-Bretanha se declarasse a favor da realização das aspirações sionistas na Palestina sob o seu próprio compromisso, um dos efeitos seria trazer os judeus russos para a causa da Entente.
Acreditava-se, também, que [um acordo para obter a Palestina para uma pátria judaica] teria uma influência poderosa sobre o judaísmo mundial fora da Rússia, e garantiria para a Entente a ajuda dos interesses financeiros judaicos. Na América, a sua ajuda neste aspecto teria um valor especial quando os Aliados tivessem quase esgotado o ouro e os títulos negociáveis disponíveis para compras americanas.Tais foram as principais considerações que, em 1917, impeliram o governo britânico a firmar um contrato com os judeus.[189]…
John observou que:
Os relatórios que chegaram à Inglaterra sobre a iminente dissolução do Estado russo praticamente eliminaram a necessidade do endosso russo dos objectivos sionistas, mas tornaram a aceitação francesa e italiana ainda mais urgente. De qualquer forma, esta era a crença de Sykes, Balfour, Lloyd George e Winston Churchill, que, como afirmaram nas suas declarações subsequentes, estavam convencidos de que o apoio proclamado dos Aliados aos objectivos sionistas influenciaria especialmente os Estados Unidos. Os acontecimentos na Rússia tornaram muito mais fácil a cooperação dos grupos judaicos com os Aliados. ….
Em 22 de março de 1917, Jacob H. Schiff da Kuhn, Loeb & Co., escreveu a Mortimer Schiff: “… devido à ação recente da Alemanha (a declaração de guerra ilimitada de submarinos) e aos desenvolvimentos na Rússia, não nos absteremos mais de ações aliadas. Financiamento governamental quando surge oportunidade.” …. [enfase adicionada]
[Assim:] Em Londres, o Gabinete de Guerra liderado por Lloyd George não perdeu tempo em comprometer as forças britânicas primeiro na captura de Jerusalém e depois na expulsão total dos turcos da Palestina. O ataque ao Egipto, lançado em 26 de Março de 1917, na tentativa de tomar Gaza, terminou em fracasso. No final de Abril, um segundo ataque a Gaza foi rechaçado e tornou-se claro que não havia perspectivas de um sucesso rápido nesta Frente. …
Em março de 1917, Wilson tentou, sem sucesso, obter um acordo do Congresso para uma guerra naval não declarada contra a Alemanha. Em 2 de abril de 1917 – seis meses após a sugestão de James Malcolm a Sykes – Wilson convocou uma sessão especial do Congresso para declarar guerra. João descreve isso:
Ele pediu uma declaração de guerra com uma missão: pela democracia, pelo direito daqueles que se submetem à autoridade de terem voz nos seus próprios governos, pelos direitos e liberdades das pequenas nações, por um domínio universal do direito por tal concerto de povos livres que trará paz e segurança a todas as nações e tornará o próprio mundo finalmente livre.
Naquela noite, multidões encheram as ruas, marchando, gritando e cantando “Dixie” ou “The Star Spangled Banner”. Wilson voltou-se para seu secretário, Tumulty: “Pense no que isso significa, os aplausos. Minha mensagem esta noite foi uma mensagem de morte. Que estranho aplaudir isso! …
Em julho de 1917, Woodrow Wilson enviou uma delegação à Turquia para examinar a possibilidade de negociações de paz com os Aliados; Wilson estava preocupado com o genocídio arménio que então ocorria. A missão, que consistia em Henry Morgenthau, Sr. e sobrinho do juiz Brandeis, Felix Frankfurter, foi interceptada por Chaim Weizmann e persuadida a voltar para casa [147]. Uma paz aliada com a Turquia teria significado o fim das intenções sionistas para a Palestina.
A elaboração dos documentos para viabilizar as obrigações britânicas na Palestina ocorreu no verão de 1917. Eles não foram elaborados inteiramente na Grã-Bretanha. Segundo João:
Brandeis… ocupou-se em particular com rascunhos do que mais tarde se tornou a Declaração Balfour e o Mandato Britânico para a Palestina, e em obter a aprovação americana para eles. [149] Um número considerável de rascunhos foi feito em Londres e transmitido aos Estados Unidos, através dos canais do War Office, para uso do Comitê Político Sionista Americano. Alguns foram detalhados, mas o Governo britânico não quis comprometer-se com mais do que uma declaração geral de princípios.
Brandeis telegrafou a Weizmann em 23 de setembro de 1917, informando que Wilson simpatizaria com a Declaração [165], embora não estivesse claro como ele havia induzido Wilson a mudar de ideia [166].
A carta conhecida como Declaração Balfour foi emitida em 2 de novembro de 1917:
Ministério das Relações Exteriores, 2 de novembro de 1917
Prezado Lorde Rothschild,
Tenho muito prazer em transmitir-lhe, em nome do Governo de Sua Majestade, a seguinte declaração de simpatia pelas aspirações sionistas judaicas, que foi submetida e aprovada pelo Gabinete:
“O Governo de Sua Majestade vê com favor o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu, e fará todos os esforços para facilitar a consecução deste objectivo, ficando claramente entendido que nada será feito que possa prejudicar a vida civil e religiosa. direitos das comunidades não-judaicas existentes na Palestina ou os direitos e status político desfrutados pelos judeus em qualquer outro país.”
Eu ficaria grato se você levasse esta Declaração ao conhecimento da Federação Sionista.
Atenciosamente, Arthur James Balfour. [1]
Foi decidido por Lord Allenby que a “Declaração” não deveria então ser publicada na Palestina, onde as suas forças ainda se encontravam a sul de Gaza-Beersheba. Embora panfletos contendo sua mensagem tenham sido lançados sobre a Alemanha, a Áustria e “o cinturão judaico da Polônia ao Báltico”, o governo alemão não teve conhecimento da Declaração Balfour até 1920. (Uma sociedade judaico-alemã, a V.lJ.OD [HH] abordou a Turquia em janeiro de 1918 para obter apoio para uma pátria judaica na Palestina, mas teve que se satisfazer com uma promessa otomana de legislação por meio da qual: “todos os desejos justificáveis dos judeus na Palestina seriam capazes de satisfazer as suas necessidades”. cumprimento.")
Quando Winston Churchill pediu à Câmara dos Comuns, em 4 de julho de 1922, que mantivesse o compromisso britânico da Declaração Balfour, um membro do Parlamento observou que “A Câmara ainda não teve a oportunidade de discutir o assunto”. O congressista americano Hamilton Fish, autor de uma resolução de 1922 inspirada na Declaração Balfour, ficou horrorizado com o rumo que ela levou. Ele afirmou: “Como autor da primeira Resolução Sionista modelada na Resolução Balfour, denuncio e repudio as declarações de Ben Gurion como inconciliáveis com a minha Resolução aprovada pelo Congresso, e se elas representam o Governo de Israel e a opinião pública local, então eu negarei publicamente meu apoio à minha própria Resolução, pois não quero ser associado a tais doutrinas antiamericanas.” [180]
Por que Wilson envolveu os EUA na Primeira Guerra Mundial?
Ao examinar os motivos de Woodrow Wilson para entrar na Primeira Guerra Mundial, John observou que o estudo de 1937 do Prof. Alex M. Arnett indicou que Wilson havia decidido entrar na Primeira Guerra Mundial ao lado dos Aliados “muitos meses” antes da retomada alemã de março de 1917 da U. - guerra de barcos. [182] Dado que Brandeis ingressou na Suprema Corte em junho de 1916, e as abordagens britânicas aos líderes sionistas teriam ocorrido no outono de 1916, a decisão de Wilson poderia ter refletido essas influências. A delegação de paz de Wilson à Turquia em Julho de 1917, contudo, indicou que a causa do genocídio arménio tinha precedência sobre as ambições sionistas na Palestina.
Algumas observações podem ser feitas a partir deste estudo relativamente à responsabilidade pela Primeira Guerra Mundial e às suas trágicas consequências:
A Alemanha, que foi forçada a aceitar a responsabilidade pela Primeira Guerra Mundial como parte dos termos do Tratado de Versalhes, foi o único país que tentou obter a paz em Janeiro de 1917 e foi reconhecida pelos Aliados como fonte de “propaganda de paz”. Além disso, como aliada da Turquia, a Alemanha não foi capaz de oferecer apoio a nenhuma parte do Império Otomano. [A Turquia rejeitou todas as propostas para uma Palestina judaica; a resposta a uma abordagem alemã em 1918 foi uma promessa de legislação através da qual: “todos os desejos justificáveis dos judeus na Palestina seriam capazes de encontrar a sua realização.”]
Embora o poder financeiro judaico e a agenda sionista fossem atraentes para os beligerantes da Primeira Guerra Mundial, a responsabilidade daqueles que tinham o poder de fazer uso deles não era atribuível à comunidade judaica. A liderança sionista demonstrou um desrespeito insensível pelo destino dos Arménios e Gregos massacrados pela Turquia quando atacaram a delegação americana enviada para trabalhar pela paz com a Turquia - um esforço presumivelmente concebido para parar o genocídio arménio em curso.
A derrubada do Czar em março de 1917 e as contribuições judaicas para a Revolução Russa foram fatores significativos para o subsequente apoio financeiro judaico aos Aliados.
O envolvimento do Juiz Brandeis na elaboração da Declaração Balfour (bem como do Mandato Britânico para a Palestina), juntamente com o apoio inicial do Congresso, indicam uma responsabilidade americana pela resultante privação da autodeterminação palestiniana que raramente é reconhecida.
As várias promessas e garantias de que os direitos palestinos seriam respeitados – de Chaim Weizmann [140], da Declaração Balfour, da Resolução da Assembleia Geral da ONU de 1947 recomendando a divisão da Palestina, e de dezenas de resoluções “juridicamente vinculativas” da ONU e convenções – todas provaram ser inúteis na proteção dos direitos humanos ou civis palestinos.
Para concluir com as observações de Robert John (e de Benjamin Freedman): “Não deveríamos permitir que nos tornássemos peões nos jogos dos outros.”
Em última análise, o nosso sexo é definido pelos nossos genes, os quais, no caso dos seres humanos, se encontram agrupados no interior de cada uma das células do corpo em vinte e três paras de pacotes microscópicos designados por cromossomas. Um membro de cada um dos nossos vinte e três pares foi herdado da nossa mãe e o outro membro do nosso pai. Os vinte e três paras de cromossomas humanos podem ser numerados e distinguidos uns dos outros através de diferenças que têm a ver com o seu aspecto. Nos pares 1 a 22, os membros de cada par parecem idênticos quando observados ao microscópio. Apenas no caso do par de cromossomas 23, os chamados cromossomas sexuais, é oque os dois membros diferem, e isso apenas é verdade para o caso dos homens, que possuem um cromossoma grande (designado por cromossoma X) emparelhado com um de pequenas dimensões (cromossoma Y). As mulheres, pelo contrário, possuem dois cromossomas X emparelhados.
O que fazem os cromossomas sexuais? Muitos genes pertencentes aos cromossomas X especificam características não relacionadas c0m o sexo, tais como a capacidade de distinguir as cores vermelha e verde. O cromossoma Y, pelo contrário, contém genes que especificam o desenvolvimento dos testículos. Ao fim da quinta semana de gestação, os embriões humanos de ambos os sexos desenvolvem uma gónada «bipotencial» que tanto se pode transforrnar num testículo como num ovário. Caso esteja presente um cromossoma Y por volta da sétima semana esta gónada bivalente empenha-se em se tornar um testículo, mas, caso não exista um cromossoma Y, a gónada aguarda pela décima terceira semana para se transformar em ovário.
Este facto pode parecer surpreendente: dever-se-ia esperar que o segundo cromossoma X das raparigas desse origem a ovários, e o cromossoma Y dos rapazes a testículos. Na verdade, porém, pessoas que excepcionalmente possuem um cromossoma Y e dois X desenvolvem-se como a maioria dos homens, enquanto pessoas com três ou apenas um cromossoma X se desenvolvem como a maioria das mulheres. Assim, a tendência natural do nosso gene bivalente é no sentido de desenvolver um ovário caso nada interfira; para o transformar num testículo é necessário algo extra, concretamente um cromossoma Y.
É tentador reformular este facto simples em termos emocionalmente conotad0s. Segundo o endocrinologista Alfred Jost, «transformar-se em macho é uma empresa prolongada, difícil e arriscada; é uma espécie de luta contra a tendência inerente para a feminilidade». Os machistas poderão ir mais longe e saudar a transformação em homem como uma tarefa heróica, considerando que a transformação em mulher, pelo contrário, representa a fácil posição de reserva. Inversamente, pode-se olhar para a condição feminina como o estado natural da humanidade, não passando os homens de uma aberração patológica, que lamentavelmente deve ser tolerada como preço necessário a geração de mais mulheres. Quanto a mim, prefiro simplesmente verificar que um cromossoma Y altera o desenvolvimento da gónada da pista ovárica para a pista testicular, e não tirar conclusões metafísicas.
No entanto, um homem é mais do que apenas testículos. Um pénis e uma glândula da próstata estão entre as muitas outras necessidades óbvias da virilidade, do mesmo modo que as mulheres precisam de mais do que apenas ovários (por exemplo, uma vagina dá jeito). Verifica-se que o embrião encontra-se equipado com outras estruturas bipotenciais para além da gónada primordial. Ao contrário desta última, porém, estas estruturas bipolares possuem um potencial que não é directamente especificado pelo cromossoma Y. Em vez disso, as próprias secreções produzidas pelos testículos é que canalizam estas outras estruturas no sentido de se tornarem órgãos masculinos, enquanto a ausência de secreções testiculares as encaminha no sentido de se tornarem órgãos femininos.
Por exemplo, no decurso da oitava semana de gestação os testículos iniciam a produção da hormona esteróide testosterona, parte da qual é convertida na hormona esteróide intimamente relacionada, a di-hidrotestosterona. Estes este esteróide (conhecidos como androgénios) convertem algumas estruturas embrionárias polivalentes na glande do pénis, no corpo do pénis e no escroto; as mesmas estruturas transformar-se-iam, na hipótese contrária, no clitóris, nos grandes e nos pequenos lábios. Os embriões também começam preparados para ambas as possibilidades com dois conjuntos de vasos, os vasos de Muller e de Wolf. Na ausência de testículos, os vasos de Wolf atrofiam, ao passo que os vasos de Muller se transformam no útero, trompas de Falópio e vagina do feto feminino. Com os testículos presentes, passa-se o contrário: os androgénios estimulam os vasos de Wolf a transformar-se nas vesiculas seminais, vas deferens e epidídimo do feto masculino. Ao mesmo tempo, uma proteína testicular, designada hormona inibidora de Muller, faz exactamente o que o seu nome sugere: impede os vasos de Muller de se transformarem nos órgãos internos femininos.
Uma vez que um cromossoma Y especifica a formação dos testículos, e a presença ou ausência das secreções dos testículos especifica as restantes estruturas masculinas ou femininas, poderia parecer que nunca seria possível um ser humano em desenvolvimento acabar por ter uma anatomia sexual ambígua. Pelo contrário, poder-se-ia pensar que um cromossoma Y deveria ser uma garantia de órgãos 100% masculinos, e que a falta do mesmo deveria garantir órgãos 100% femininos.
Na verdade, é necessária uma longa série de passos bioquímicos por forma a produzir todas as outras estruturas para lá do ovário e dos testículos. Cada um desses passos envolve a síntese de um ingrediente molecular, designado enzima, e que é especificado por um determinado gene. Qualquer enzima pode ser defeituoso ou estar ausente se o seu gene subjacente for alterado por uma mutação. Assim, um defeito num enzima pode resultar numa pseudo-hermafrodita masculina, definida como alguém que possui algumas estruturas femininas e também testículos. Num pseudo-hermafrodita com defeito num gene, há um desenvolvimento normal das estruturas masculinas dependentes dos enzimas que actuam nas fases do percurso metabólico anterior ao enzima defeituoso. No entanto, as estruturas masculinas dependentes do próprio enzima defeituoso ou de fases bioquímicas posteriores não se conseguem desenvolver e ou são substituídas ou são substituídas pelo seu equivalente feminino. Por exemplo, há um tipo de pseudo-hermafrodita que tem a aparência de uma mulher normal. Na verdade, «ela» aproxima-se mais do ideal masculino de beleza feminina do que a mulher média, pois os seios «dela» são grandes e as pernas longas e bem torneadas. Daí que se tenham revelado vários casos de modelos belíssimas que só se aperceberam que eram homens com um gene mutante quando, já adultos, fizeram testes genéticos.
Uma vez que este tipo de pseudo-hermafrodita parece uma bebé normal quando nasce e tem externamente um desenvolvimento e puberdade normais, é provável que o problema não possa ser reconhecido no dia em que a «rapariga» adolescente vai ao médico porque ainda não começou a ser menstruada. Nessa altura, o médico descobre a razão simples da deficiência: o paciente não tem útero, trompas de Falópio, nem a parte superior da vagina. Em vez disso, a vagina termina subitamente com apenas cinco centímetros. Um exame mais pormenorizado revela testículos que segregam testosterona normal, que são programados por um cromossoma Y normal e que são anormais unicamente no facto de se encontrarem escondidos no interior das virilhas ou dos lábios. Por outras palavras, a bela modelo é um homem normal em tudo excepto no facto de possuir um bloqueador bioquímico geneticamente determinado à sua capacidade de responder à testosterona.
Sabe-se que este bloqueador se situa no receptor celular que normalmente ligaria a testosterona e a di-hidrotestosterona, possibilitando assim a estes androgénios desencadearem as etapas subsequentes do desenvolvimento do homem normal. Uma vez que o cromossoma Y é normal, os testículos desenvolvem-se normalmente e produzem a hormona inibidora de Muller normal, a qual actua em qualquer homem no sentido de impedir o desenvolvimento do útero e das trompas de Falópio. No entanto, 0 desenvolvimento da habitual parafernália masculina de resposta a testosterona é interrompido. Daí que o desenvolvimento dos restantes órgãos sexuais embrionários bipotenciais siga a partida o canal feminino: genitais externos femininos e não masculinos, e atrofia dos vasos de Wolf e por consequência dos genitais internos masculinos potenciais. Na verdade, uma vez que os testículos e as glândulas supra-renais segregam pequenas quantidades de androgénio que seriam normalmente anuladas pelos receptores de estrogénio, a falta completa destes receptores em forma funcional (eles estão presentes em pequeno número nas mulheres normais) faz que o homem pseudo-hermafrodita possua uma aparência exterior super-feminina.
Sendo assim, a diferença genética global entre homens e mulheres é ténue, apesar das consequências serem consideráveis. Um pequeno número de genes do cromossoma 23, actuando concertadamente com os genes de outros cromossomas, determina em última análise todas as diferenças entre homens e mulheres. É evidente que estas diferenças incluem todas as que se referem aos próprios órgãos reprodutivos, mas também as que se verificam após a adolescência e estão relacionadas com o sexo, tais como a barba, pélo no corpo, tom de voz e desenvolvimento dos seios.
Imagem: Hermafrodita. Época Romana, Séculos II-III
(“Porque gostamos de sexo – a evolução da sexualidade humana”, Jared Diamond. Temas e Debates, 2001)
“Cumplicidade na Morte de 300.000 Vítimas do Holocausto”
A Criminalização Coletiva de todos os Membros de uma Instituição Militar do Estado
Por Karin Brothers
Os meios de comunicação social americanos e canadianos raramente perdem uma oportunidade de dar cobertura proeminente às histórias do Holocausto, pelo que o seu silêncio sobre a recente condenação do chamado Guarda-Livros de Auschwitz é notável. A razão pode ser a implicação surpreendente desta condenação, que validou a criminalização de todos os membros de uma organização militar estatal que cometeram crimes contra a humanidade, independentemente da falta de envolvimento pessoal.
Oskar Gröning é um alemão de 94 anos que chamou a atenção do público há dez anos, quando apareceu num documentário da BBC para refutar os negacionistas do Holocausto; como ex-membro das SS, verificou a existência das câmaras de gás de Auschwitz. Gröning, um bancário treinado, ingressou na SS aos 20 anos em setembro de 1942; ele foi designado para retirar a bagagem das rampas de carregamento da estação ferroviária do campo de Auschwitz-Birkenau e contar as notas bancárias na bagagem e enviá-las ao escritório de segurança do Reich em Berlim. Gröning não foi acusado de qualquer violência contra os encarcerados.
Embora a Polónia quisesse julgar Gröning depois da guerra por suspeita de crimes de guerra em Auschwitz, os americanos encerraram a perseguição aos nazis de baixa patente porque interferia nas suas prioridades de reconstrução da Alemanha e de luta contra o comunismo na Europa. Entre 1945 e 2005, 172.294 pessoas foram investigadas por crimes de guerra na Alemanha; 6.656 foram condenados. Sessenta e cinco mil guardas de Auschwitz foram julgados e, até este julgamento, houve apenas 49 condenações; apenas um punhado cumpriu pena de prisão.
Durante muitas décadas, o sistema jurídico alemão não processava antigos membros das SS ou guardas de campos de concentração, a menos que houvesse provas que os ligassem directamente aos assassinatos em massa do Holocausto. A situação mudou com a condenação alemã, em 2011, de John Demjanjuk, um guarda ucraniano no campo de Sobibor, na Polónia ocupada pelos nazis; o tribunal decidiu que Demjanjuk ajudou e incentivou o assassinato em massa apenas por trabalhar em um campo de concentração. Demjanjuk morreu em 2012, antes que seu apelo pudesse ser ouvido; mas a partir de então, o emprego de um indivíduo num campo de concentração poderia ser considerado adequado para prosseguir uma condenação por crimes de guerra neste tribunal.
Julgamento
No início do julgamento de Gröning, em Abril de 2015, por cumplicidade nas mortes de 300.000 vítimas do Holocausto, ele declarou: “Reconheço esta culpa moral aqui, perante as vítimas, com pesar e humildade;” cabia ao tribunal decidir sua culpa legal. O julgamento levantou a questão de saber se aqueles que não participaram pessoalmente nas matanças da máquina nazi ainda eram culpados dos crimes. Os promotores argumentaram que as ações de Gröning como contabilista o tornam cúmplice criminal do regime responsável pelo assassinato em massa.
Veredito:
O julgamento de doze semanas na Alemanha terminou em 15 de julho de 2015, quando Gröning foi considerado culpado de ser cúmplice do assassinato de 300 mil judeus húngaros e foi condenado a quatro anos de prisão. O juiz Frank Kompisch proferiu o veredicto, deixando claro que cada alemão tinha uma escolha sobre até onde ir junto com o governo nazista. O juiz disse que, embora Gröning não estivesse diretamente envolvido nos assassinatos, ele tinha sido uma peça integrante da máquina do aparato de extermínio de Auschwitz... “uma maquinaria concebida inteiramente para matar seres humanos” que era “desumana e quase insuportável para a psique humana”. Juntar-se às SS e aceitar “um trabalho administrativo seguro” em Auschwitz “foi uma decisão sua”, ele disse, “mas não foi porque você não era livre”. “Senhor Gröning, não me diga que não viu o sofrimento, é claro que o viu.” O veredicto será objeto de recurso.
Implicações
O veredicto alemão potencialmente inova um novo terreno jurídico com o princípio de que estava envolvido na prática de crimes contra a humanidade, ao mesmo tempo que torna irrelevante o contexto de guerra e a repressão estatal dos seus cidadãos. Embora alguns possam alegar que o Holocausto foi único, e o veredicto, portanto, não aplicável a outras “máquinas” militares, outras situações também deveriam ser qualificadas, como a limpeza étnica em curso pelo estado de Israel dos palestinos indígenas, o apartheid, o tratamento genocida dos palestinos que vivem sob opressão há 65 anos, e a ocupação da Cisjordânia, da Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental.
O princípio, se for mantido e aplicado internacionalmente, poderá dar às vítimas actuais da flagrante criminalidade estatal alguma esperança de responsabilização e justiça futuras.
Imagem: Oskar Groening (arquivo da Segunda Guerra Mundial), enfrentando acusações de ser cúmplice do assassinato de 300 mil pessoas em Auschwitz.