Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

O “Crime de Belas”

28.11.23 | Manuel

FAP_CMLP.jpg

Por Francisco Martins Rodrigues

Na madrugada de 26 de Novembro de 1965, numa mata em Belas, nos arredores de Lisboa, militantes antifascistas executaram a tiro um informador da PIDE, Mário Mateus. Os autores do “crime de Belas” (um dos quais eu próprio) foram meses depois presos pela PIDE e condenados a longas penas de prisão. Só não as cumprimos na totalidade porque, oito anos mais tarde, o 25 de Abril nos abriu as portas do forte de Peniche.

Dos actos de punição de agentes provocadores ao serviço da polícia política de Salazar, a execução de Mário Mateus foi, talvez, o que teve maior publicidade devido a ter sido politicamente assumido em tribunal. Recordá-lo servirá para fazer alguma luz sobre a questão dos colaboradores da PIDE, rodeada de extrema discrição pelas instituições democráticas, porque punha em causa, não apenas “bufos” anónimos, mas agentes de outras polícias, oficiais das Forças Armadas, elementos do funcionalismo, do clero, etc., que não interessava ao novo regime desprestigiar.

Em 1965, os intervenientes directos neste episódio - eu, que abandonara o Comité Central do PCP, em fins de 1963, e João Pulido Valente e Ruy d'Espiney, que tinham rompido com o PCP em Argel – tínhamos entrado clandestinamente em Portugal, vindos de Paris, onde tínhamos criado no ano anterior, com umas dezenas de emigrados, sobretudo jovens, a FAP, Frente de Acção Popular. A FAP (e o Comité Marxista-Leninista Português, fundado também por nós na mesma altura) pretendiam renovar a luta contra a ditadura de Salazar. Não nos conformávamos com a política tradicional do Partido Comunista, assente na aliança com a Oposição republicana e na Unidade dos trabalhadores com as classes médias, no pressuposto de que ao fascismo salazarista teria de suceder um regime de democracia burguesa. Ambicionávamos dar à resistência antifascista um cunho revolucionário que até aí lhe faltara e que as guerras coloniais tornavam mais premente.

Assim, depois de ter divulgado o nosso manifesto inaugural, “O caminho da insurreição antifascista e da liberdade”, e iniciado a edição da revista Revolução Popular , começámos a preparar a implantação da nossa actividade no interior do país, o que envolvia obter meios de transporte, confeccionar documentos de identificação falsos, recolher dinheiro, armas de defesa, etc. Passados meses, o destemido médico João Pulido Valente entrou clandestinamente em Portugal acompanhado dum outro militante, Manuel Claro. Mas, mal tinham iniciado contactos, o PCP denunciou a sua presença em Lisboa (”Cuidado com eles”, nota no Avante de Novembro de 1964). O acto inclassificável, que causou vivo repúdio nos meios oposicionistas, inclusive de membros do PCP, obrigou Pulido e Claro a sair precipitadamente do país, uma vez que ainda não dispunham de apoios seguros.

Meses depois, na Primavera e Verão de 65, entrámos sucessivamente, disfarçados e sob nomes falsos, Pulido Valente, d'Espiney e eu, instalámo-nos cada um numa casa e iniciámos o trabalho de organização que viria a ser interrompido poucos meses depois, devido à acção do provocador Mário Mateus, ao entregar à PIDE João Pulido Valente.

A organização de espiões da PIDE, cobrindo todo o país (disse-se depois do 25 de Abril que havia 25.000 informadores registados) estava particularmente desenvolvida em Lisboa. Nos anos 50, sabia-se por exemplo que, em cada bairro, o chefe de brigada José Gonçalves fazia reuniões regulares com os seus informadores e recolhia informações sobre pessoas sob vigilância: quem visitava a casa, se havia entrada de volumes, movimentos suspeitos, etc. Estes informadores eram pagos “à tarefa”, de acordo com o valor da denúncia feita. Era uma rede profissionalizada, consolidada ao longo dos anos e que ia crescendo sem cessar. Foram tão importantes os êxitos conseguidos por Gonçalves na localização de militantes clandestinos que, embora tendo só a 4ª classe, veio a ser promovido a inspector da PIDE “por distinção”.

Eu próprio já tinha feito a experiência de como as coisas funcionavam, por ter sido preso em Fevereiro de 1957, quando membro do PCP, num encontro de rua com um falso camarada, um espião que estava integrado no partido. Como eu, muitos outros militantes, foram presos devido à acção de agentes provocadores. E sobretudo em Lisboa, onde a organização clandestina ficara seriamente abalada desde as prisões de 1947-48. Requeria-se pois muita prudência, não só nas deslocações e na escolha dos locais de encontro, mas sobretudo cabeça fria ao marcar contactos com militantes mal conhecidos. Por isso se dizia que um clandestino que, em Lisboa, se aguentasse dois anos sem cair nas mãos da PIDE, ou era muito cauteloso, ou tinha muita sorte.

Tudo isto tínhamos bem presente quando iniciámos a nossa rede de contactos. Mas Mário Mateus não era propriamente um desconhecido. Com 32 anos de idade, aderira alguns anos antes ao PCP em Sines, onde trabalhava como sapateiro. Localizado e interrogado aí pela GNR por suspeita de “actividades subversivas”, mudara-se para Lisboa, credenciado pela organização partidária, com o pseudónimo de “Evaristo”. E conhecera nessa altura Pulido Valente, então também militante do PCP, que lhe tratou um filho doente, tendo-se estabelecido entre ambos uma relação de amizade.

Por isso, quando Pulido começou a fazer contactos tentando ganhar militantes para a FAP, Mateus foi um dos primeiros que procurou. Ele aceitou sem hesitação entrar para a FAP e, com o pseudónimo de “Gago”, começou a receber imprensa que passou a alguns elementos do meio operário. O que Pulido desconhecia é que Mateus fora referenciado em 1963, numa das vagas de prisões que periodicamente atingiam a organização partidária em Lisboa e, para não ser preso, concordara em passar a dar informações à PIDE.

Foi logo dar contas ao chefe de brigada que o controlava da sua nova ligação, e a PIDE começou de imediato a montar o cerco a Pulido. Desde a denúncia do ano anterior no Avante , a tentativa de implantação da nova organização, com fama de “terrorista”, estava a ser cuidadosamente seguida pela polícia política.

Numa das nossas reuniões, Pulido informou-me, a mim e a d'Espiney, que ia ter um encontro com Mateus, explicando de quem se tratava. A temeridade de Pulido era proverbial e recomendámos-lhe toda a prudência. Mas ele, como Mateus ficara grato por lhe ter tratado o garoto, achava que a relação criada excluía uma traição. E, de facto, o encontro correu bem e outros se sucederam. Fomo-nos portanto serenando quanto ao novo “militante” “Gago”.

Até que, em finais de Outubro, Pulido nos faltou a um encontro. Preocupados, pusemo-nos em campo e não tardou que nos chegasse a confirmação, por uma amiga: Pulido caíra nas mãos da PIDE a 21 de Outubro, num encontro de rua, a Entrecampos.

Como sabíamos que ele ia nesse dia ter um encontro com Mateus, a primeira coisa a fazer era saber o que se passava com este. Se não estava também preso, era suspeito. Podia Pulido ter sido reconhecido casualmente pela PIDE, mas a experiência dizia que casos desses eram raros.

Sabendo por um outro militante que Mateus não fora de facto preso, decidimos, eu e o Ruy, convocá-lo, mas agora com cuidados redobrados, para lhe pedir informações. Escolhemos um local que podia ser observado de longe, ficámos a observar o homem à nossa espera para ter a certeza de que o local não estava cercado pela PIDE, e por fim passámos de táxi e só o abordámos quando ele se retirava - verdadeiros equilíbrios no arame. Mateus contou-nos que, no dia 21, ia para o encontro com Pulido mas, como notasse movimentação de tipos suspeitos no bairro, resolvera não avançar. Entrou numa leitaria e aí ouviu um homem dizer que tinha sido preso ali perto um indivíduo. Percebendo que Pulido fora localizado, saíra dali imediatamente. E mais não sabia.

A história era plausível, mas o tom de Mateus não nos inspirava confiança. Que fazer? Cortarmos contacto com ele, alegando que era preciso deixar “arrefecer” as coisas e abandonar o assunto sem ser esclarecido? Era assim que normalmente se fazia no PCP quando havia prisões inexplicadas, mas tal procedimento repugnava-nos.

Eis senão quando nos chega uma mensagem de Pulido da Penitenciária (fora para lá levado, e não para o Aljube, como era habitual, porque fora condenado num processo antigo por ter recusado “reparar a honra” de uma jovem, ainda menor, com quem namorara…). Nessa mensagem, passada por um preso comum a uma pessoa próxima de nós, Pulido dizia: “O Gago deve ter falado na polícia porque me fizeram perguntas sobre coisas que só ele sabia”.

Aqui não tivemos dúvidas: o “Gago” estava a mentir. Tínhamos que o confrontar com os factos. Convocámo-lo para novo encontro, em 26 Novembro, alegando tarefas a discutir. Ele veio sem suspeita. De novo montámos um complicado sistema de despistagem dos agentes da PIDE que eventualmente trouxesse (e de facto trazia!) no encalço: um camarada vigiava o local a partir de um prédio nas redondezas. Um outro camarada passou de táxi, pegou nele e foi entregá-lo ao largo da Luz onde o esperávamos num carro. Dali seguimos para as matas para lá de Belas, que eu já conhecia como local ermo.

A conversa foi penosa. Falávamos-lhe em tom amistoso, embora suspeitando que estávamos perante um espião e não um camarada. Quando por fim o confrontámos com as contradições do seu relato e lhe declarámos a nossa suspeita, Mateus negou veementemente: nunca faria tal coisa, além do mais era amigo do Pulido, etc. O interrogatório prosseguia, o tempo passava e não sabíamos que fazer. Saímos do carro, trocámos impressões. Tínhamos acordado que, se não chegássemos a uma convicção segura de que o indivíduo tinha efectivamente entregue o nosso camarada à PIDE, teríamos que o deixar ir, mesmo que mantivéssemos as maiores suspeitas. Voltámos para o carro. E, quando menos esperávamos, Mateus, cansado, confessou espontaneamente: assediado pela PIDE, que queria “serviço”, informara-os do encontro com Pulido e fora ao local com uma brigada. Perguntei-lhe quanto lhe tinham pago. Começou por jurar que nada recebera; depois reconheceu que, uma vez efectuada a prisão, recebera do agente José Ferreira Cleto, a importância de 2.500$. Assim, com esta odiosa naturalidade, funcionavam as coisas.

Chegados a este ponto, não nos restava outra alternativa. Tínhamos decidido antecipadamente que, a confirmar-se estarmos perante um espião da PIDE, lhe faríamos pagar com a vida. Mandámo-lo sair do carro, internámo-nos na mata e matámo-lo à queima-roupa, com alguns tiros.

Não foi um acto fácil. Não éramos pistoleiros. Não agíamos por vingança. Estávamos numa luta implacável contra a ditadura e era preciso acabar com a impunidade dos espiões da PIDE, que tantos estragos faziam na resistência.

Semanas depois, o boletim da FAP Acção Popular de Dezembro, noticiava o julgamento e execução do provocador Mário Mateus. A PIDE não precisou disso para ter a certeza donde partira o golpe. Começou a prender à toa os elementos que julgava próximos da FAP e publicou as nossas fotos nos jornais. Em 30 de Janeiro, fui preso pela PIDE numa rua de Lisboa, dias depois também d'Espiney.

Julgados no tribunal de Sintra, quatro anos mais tarde, os autores do “crime de Belas” assumiram a motivação antifascista dos seus actos. Somada a pena com a que já recebera no Tribunal Plenário, fui condenado a 20 anos de prisão. A imprensa fez alarde sobre o “julgamento sumário” e atribuiu-nos um carácter sanguinário. Mas nós não tínhamos dúvida de que o nosso acto se inscrevia na resistência do povo português à ditadura.

Foi o que reconheceu o novo poder instaurado após o 25 de Abril. Apesar da oposição veemente do general Spínola, a condenação foi anulada. Os autores do “crime de Belas” foram libertados.

(In “30 anos de Salazar. O que se contava e que se ocultava durante o Estado Novo”, Lisboa, 2008.)

Cheias que mataram em 25 de Novembro de 1967 e a solidariedade estudantil

24.11.23 | Manuel

cheias-1967.jpg

Faz 56 anos que chuvas torrenciais mataram mais de 600 pessoas em Lisboa. O regime fascista reprimiu os operários e os estudantes que saíram em solidariedade com os moradores pobres, vítimas de uma situação social e material imposta pelo capitalismo retrógrado de Salazar. A imprensa foi censurada, o país não soube o que aconteceu naquele dia, e agora, a inefável imprensa democrática também pouco adianta sobre o assunto e não desmascara a atitude criminosa do fascismo português. Publica-se um excerto do notável livro “Grandes Planos – Oposição Estudantil à Ditadura 1956-1974” que relata o que foi a solidariedade dos estudantes revolucionários.

Uma calamidade destas é tudo menos natural

No dia 25 de Novembro desse ano, chuvas torrenciais abatem-se sobre a região de Lisboa. O regime censura todas as notícias sobre a dimensão dos estragos da intempérie. Mas a tragédia é demasiado grande para abafar.

Na JUC (Juventude Universitária Católica) o debate é aceso: devem ou não os católicos participar nos piquetes de ajuda que o movimento estudantil organiza? Sim, claro, respondem os jovens. «Comunistas» é o que ouvem quando a conversa com os padres azeda definitivamente.

O movimento estudantil espreita uma oportunidade de romper o cerco da repressão: a RIA decide partir para o trabalho de campo. A piscina da AE do Técnico é esvaziada e passa a ser o centro de recolha dos donativos.

Em Ciências a mobilização é quase total. A Associação, encerrada desde 1965, é gerida por uma comissão administrativa nomeada pela Reitoria. Mas os sectores oposicionistas não ficam parados. Escrevem comunicados, afixam cartazes. Numa primeira fase, pedem-se cobertores e comida para os desalojados. Mais tarde virão as listas de voluntários para brigadas de limpeza.

Também o recém-criado SCIP, o Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda, resultado das negociações entre militantes do PCP, os pró-chineses e os social-democratas, decide dar tréguas à RIA.

João Bernardo é um dos madrugadores que, antes do nascer do sol, já traçam planos de acção no Técnico. Carlos Marques também lá está. A resposta aos apelos estudantis é imediata: a piscina e todo o edifício transbordam de comida, cobertores, água potável, medicamentos.

Do Porto chega um grupo de liceais e universitários, do PCP Edgar Correia, Helena Medina e uma adolescente dos liceus, Zita Seabra, vão prestar apoio aos bombeiros que acodem às populações da região de Odivelas.

O principal problema é logístico. As associações já gastaram muito dinheiro na compra do indispensável, mantimentos, galochas para as brigadas de limpeza e salvamento, velas, medicamentos. Continuam a faltar meios eficientes para transportar pessoas e donativos para as regiões afectadas. Diana Andringa, vencendo as resistências iniciais que a ideia lhe provocou, roga ao pai o auxílio da poderosa Legião Portuguesa. À porta da Associação de Estudantes de Medicina, no dia seguinte, estão várias carrinhas e jipes da Legião, para auxiliar os estudantes. A ajuda não é logo bem recebida: ninguém quer aparecer nos bairros de lata abandonados pelo poder num carro da milícia do Estado Novo. Após alguma discussão, a dificuldade é contornada tapa-se o emblema da Legião com o das associações de estudantes.

Do Campo Grande e da Alameda saem centenas de estudante em direcção às zonas mais afectadas -Loures, Vila Franca de Xira, Amadora. Carlos Marques vai para Frielas, concelho de Loures. A tarefa é complicada. De um ponto mais elevado, Carlos vê que as barracas do vale estão completamente submersas pela lama e pelos troncos e pedregulhos que a enxurrada arrastou. Com as galochas que a Associação do Técnico comprou, os estudantes vão para o fundo daquele abismo, onde o cheiro inconfundível da morte os perturba.

João Bernardo está noutra zona do mesmo concelho. Assim que chega, vê o impensável: o senhorio das barracas destruídas anda no meio dos escombros a recolher as rendas daquele mês, temendo perder de vista os inquilinos. A GNR, que esteve sempre ausente das acções de salvamento, está lá para o proteger na cobrança. A população recebe o senhorio e os militares à pedrada. Olhando à volta, a região é um imenso buraco castanho, com lama e chapas de zinco.

O drama é constante. João não esquecerá um homem, em cima de uma mesa com a filha às cavalitas, a lama não pára de subir. Um operário, morador das casas vizinhas amarra um arame à porta de casa e vai preso por arame no meio da enxurrada tentar o salvamento.

A maioria dos universitários ainda não conhecia aquele Portugal, pobre e moribundo. Uma velha procura a foto dos netos, no meio da lama e dos cadáveres de animais. «Veja se ma encontra que eu perdi os meus netos todos», pede. João Bernardo tenta. Afunda-se e espeta um prego ferrugento no pé. Dirige-se à banca de vacinação que os estudantes de medicina montaram nas imediações, para receber uma injecção contra o tétano. Os estudantes fazem tudo: limpam, resgatam, salvam, vacinam, trazem comida. O regime acusa-os de estarem a montar uma operação de propaganda comunista.

Diana Andringa assiste incrédula ao esbracejar dos governantes. Está a acabar a primeira edição do Solidariedade Estudantil, o jornal que as associações criaram para relatar os acontecimentos produzidos pelas cheias. No dia 7 de Dezembro, os estudantes contam o que viram. Na ausência de informação na imprensa, chegam ao Técnico dezenas de homens e mulheres, trabalhadores, pedindo exemplares do jornal. A edição não chega para as encomendas.

No primeiro dia é preciso remover os mortos; ao mesmo tempo, retirar as lamas das casas, libertar os caminhos para as brigadas de salvamento. Junto às populações, os estudantes removem os destroços, desmantelam o que resta das barracas atingidas.

Entretanto, a cobertura sanitária: os cadáveres de animais são enterrados, depois de queimados com petróleo ou cal viva; solicitam-se exames bacteriológicos à água das nascentes; avisam-se as populações dos cuidados a tomar com a água e os vegetais.

Instalada a população desalojada nas casas que restam e em edifícios públicos, brigadas de vela prestam à noite assistência aos doentes e às crianças. Brigadas femininas, normalmente dirigidas por estudantes de medicina, organizam creches para que as mães possam trabalhar com as brigadas.

Munidos de salvo-condutos da Direcção Geral de Saúde, estudantes de medicina montam postos onde trabalham todo o dia na vacinação em massa da população; brigadas de finalistas andam de casa em casa no rastreio do tifo.

«Fizemos 44 000 horas de trabalho. Números aproximados por defeito:

– Máximo diário de participação: 13000 estudantes (1/12)

– Média diária aproximada: 600 estudantes

– Soma dos números de participação diária: 5760 estudantes (até 6/12)

– Média diária de horas de trabalho: 8 horas (entre as 12 horas e as 6 horas)

– Número total de horas de trabalho oferecidas: 44080»

Para além do trabalho prestado e da informação, os estudantes difundem também a mais certeira das conclusões políticas: uma calamidade destas é tudo menos natural. Comparando o nível de pluviosidade no Estoril, muito mais elevado que em Loures, afirmam que a verdadeira culpa da calamidade deve ser atribuída aos responsáveis políticos pela miséria em que vivem aquelas populações. No Estoril não houve inundações porque não há barracas. Em Frielas, como na Musgueira, no Relógio, no Prior Velho, nas Galinheiras, em Odivelas, as habitações são precárias. Como precária são as condições sanitárias daquelas pessoas. Como precários são os seus meios de subsistência.

Diana Andringa retira uma lição das cheias: decide abandonar medicina. Sente que é demasiado desigual a relação de forças entre o que ela pode fazer e a gravidade das situações que enfrenta. Escolhe a via que se abriu com o Solidariedade Estudantil. Quer ser jornalista, para denunciar as injustiças.

Imagem: Carcavelos, 27 de Novembro de 1967. As cheias devastaram a periferia de Lisboa. Censuradas (e destruídas) pelo regime foram as imagens dos estudantes ajudando a população.

(Extracto do livro “Grandes Planos – Oposição Estudantil à Ditadura 1956-1974” de Gabriela Lourenço, Jorge Costa, Paulo Pena. Âncora Editora. Lisboa, 2001)

Todos ganharam… e todos perderam

22.11.23 | Manuel

resultados-eleitorais.jpg

Texto sobre os resultados das eleições legislativas de 2015 que criaram uma situação que levou à formação do governo da geringonça, situação essa que poderá repetir-se com o próximo acto eleitoral de 10 de Março de 2024.

Ainda a poeira dos resultados eleitorais não tinha assentado e já uma das empresas, considerada outrora como modelar por pertencer a uma das famílias da burguesia nacional antes de esta a ter vendido a um grupo espanhol, a Somague, anunciava o despedimento de 300 trabalhadores, como que uma ironia às palavras do vice pantomineiro que, antes do dia 4, vomitava que os empresários estavam apenas à espera da reeleição da coligação para decidirem sobre novos investimentos, confirmando o “milagre económico”.

Pouco dias depois, a Unicer, empresa de onde saiu o ministro das cervejolas, dá a conhecer a intenção de fechar a sua unidade Santarém, o que acarretará o despedimento de cerca de uma centena de trabalhadores; e, para chatear, o investimento da Volkswagen, na unidade de Palmela, não está garantido, bem como a continuidade desta empresa, considerada o emblema da política de investimento dos governos cavaquistas, atendendo ao escândalo dos motores viciados, deitando por terra o velho slogan de que o que é alemão é bom, que até pode vir a ser o fim da empresa fundada pelo Hitler.

Outro acontecimento, trágico, ocorrido, na semana após as eleições, que foi a morte por afogamento de cinco pescadores à entrada do porto da Figueira da Foz, por falta de meios e demora do socorro, mostra o que é a política do PSD/CDS, de desprezo pela vida dos trabalhadores e do que ainda virá no futuro próximo. A continuidade da política de austeridade e a incontornável realidade de falência do capitalismo, que aquela política pretende remediar, são as duas notas a salientar ainda antes de nos debruçarmos sobre o resultado das eleições do passado domingo.

É no quadro de profunda crise estrutural do capitalismo, e da falta de perspectiva para nossa burguesia indígena, que as eleições para o Parlamento devem ser entendidas. Todos os analistas e paineleiros do regime suam as estopinhas para iludir a situação de impasse, de paz podre que se vive na sociedade portuguesa, e de crise, também grave, do regime de democracia parlamentar burguesa saída do golpe militar de 25 de Abril. Os partidos do PàF ganharam as eleições, mas perderam cerca de 800 mil votos e não gozam de uma maioria estável no futuro Parlamento; o PS perdeu as eleições, embora tenha ganho votos e deputados; o PCP, como tem sido habitual há muitos anos e quase outras tantas eleições, mantem praticamente o mesmo número de votos e de deputados, não conseguindo capitalizar em votos as lutas que lidera através da CGTP, como uma agravante é que ainda não percebeu por que é que isso acontece; os ditos pequenos partidos, com excepção de um, viram as suas expectativas completamente defraudadas, não conseguiram eleger qualquer deputado não podendo vir a ser muleta do PS caso este viesse a formar governo, apesar de alguns deles terem ao colo da imprensa de referência.

O PAN é a tal excepção, conseguiu eleger um deputado, que considera uma “proeza”, declara-se que não é nem de direita nem de esquerda, geralmente, isto quer dizer que é de direita, aguarda-se a obra. Os outros que apareceram nestas eleições, fica-se com a impressão que foram promovidos e pagos pelos partidos do governo para lançar a confusão, dividir o eleitorado que vota mais à esquerda. Ah! e o BE que, afinal, foi o único que parece ter ganhado, já que duplicou o número de votos e de deputados, relançando o projecto inicial, para o qual foi criado, de vir a prazo substituir o PS e o PCP no arrebanhamento do eleitorado de esquerda… e na gestão do capitalismo. A disponibilidade deste partido de viabilizar um governo PS e até nele participar é bem reveladora das verdadeiras razões que o faz correr.

Perante o impasse, com a austeridade a empobrecer os trabalhadores e a proletarizar a classe média, seria de esperar que partidos que se dizem do socialismo e do comunismo soubessem capitalizar este tremendo descontentamento e apontar o caminho para uma alternativa que ponha fim à causa do desemprego, dos baixos salários e da miséria em que o povo português mergulha, em aparente trágico e inevitável destino. O PCP viu o seu apoio aumentado nuns míseros 3 mil votos, a que correspondeu, no entanto, mais 1 deputado; o MRPP/PCTP viu encolher o seu magro apoio eleitoral, menos 3 mil votos – terão ido par o PCP? – e ainda não foi desta que conseguiu eleger um deputado para o Parlamento, o que não deixa de ser obra já que é o segundo mais antigo partido português.

O PCP há muito que segue as teses de Dimitrov da “união de todos os portugueses honrados”, que marcou a oposição à ditadura salazarista, agora consubstanciado em versão moderna de governo “patriótico e de esquerda”; são as teses tão queridas a Cunhal que, depois do 25 de Abril, se traduziram na famigerada “Aliança Povo-MFA”, mandando às urtigas o socialismo que, em termos de lutas de classes, não é outra coisa que o princípio leninista da “ditadura do proletariado”; um pouco à semelhança do PS de Mário Soares que, logo no primeiro governo constitucional e depois de ter arrebanhado o voto ao povo com o paleio de que era “socialista”, enfiou o socialismo na gaveta, alegando o realismo da situação; Cunhal invocou que o povo estava farto de “ditaduras”.

O MRPP, contudo, tem recebido do PS o maior dos desprezos, razão pela qual se percebe que o Costa tenha sido apelidado de “ratazana merdosa” e agora, depois das eleições, de “prostituta do chamado arco da governabilidade” e de “rameira disponível para todo o serviço… com cama no Palácio Praia, nº2, ao Rato”. Estes epítetos são expressão de caracteres ressabiados e do profundo isolamento em que se encontram partidos deste género. Nunca aprenderão com a experiência, devido ao carácter pequeno-burguês das suas direcções, jamais abandonarão a estratégia, que a realidade já mostrou por diversas vezes (mas parece que não são suficientes) que está errada; a etapa actual é a do socialismo, e é para esta tarefa que as massas dos trabalhadores e dos possíveis aliados devem ser esclarecidas e chamadas, as condições materiais estão reunidas, faltam as subjectivas.

O capitalismo esgotou-se, não consegue satisfazer o mínimo dos problemas dos trabalhadores, pelo contrário, é a principal causa da existência e do agravamento de todos eles; e as burguesias nacionais, só são patrióticas para explorar em exclusivo os trabalhadores, mas, como isso não é possível no mundo capitalista globalizado, o seu patriotismo esfumou-se. Com a classe média em processo rápido e irreversível de proletarização, classe que nunca assumiu grande relevo na sociedade portuguesa e o seu incipiente desenvolvimento deveu-se aos empregos no estado e não à pujança da economia, é do seu interesse ser chamada para o campo da revolução; e não é com “governos patrióticos” que isso se consegue.

Os resultados eleitorais e a dificuldade, daí decorrente, de o monarca de ópera bufa, o Silva de Boliqueime, arranjar um governo à sua medida são um bom indicativo da situação de impasse, dentro da classe dominante e no seio da sociedade portuguesa. O eleitorado, como já tínhamos afirmado antes do dia 4, iria votar (como veio a votar) contra a coligação fascista e contra a política de austeridade, só que não encontraria uma alternativa de confiança e à altura que colocasse fim à política de austeridade, esta como necessária e “única alternativa” à resolução da crise do capitalismo.

As crises do regime parlamentar burguês estão indissociavelmente ligadas às crises do sistema económico capitalista, porque quando a austeridade aperta na barriga dos trabalhadores e do povo, a confiança na democracia burguesa por parte dos trabalhadores sai seriamente abalada e por vezes é posta em causa pela agitação e revolta sociais. E os PS's têm funcionado como bombeiro da luta de classes, são os partidos ditos “charneiras”, a que todos se agarram, incluindo para o acesso ao pote por aqueles que geralmente ficam de fora, ou como muleta dos partidos de direita, para mais quando estes partidos são, pela sua actuação, partidos de extrema-direita, que porfiam em governar contra as próprias leis do regime; já depois das eleições, o Tribunal Constitucional viabiliza a semana das 35 horas nas autarquias, considerando que a intervenção do Governo na negociação de acordos colectivos viola a autonomia do poder local; esta constitui “apenas” a 20ª (vigésima) vez que o governo, agora demissionário, legisla contra a Lei Fundamental da República.

Esta deriva fascista, visando transformar a democracia burguesa em fascismo suave, tipo “democracia musculada”, bem revelada na proposta do Silva, na cerimónia de abertura do ano judicial, da possibilidade de alguns juízes do Constitucional puderem a vir a ser nomeadas pelo Presidente da República, acabando-se assim com “esta força de bloqueio”, acontece quando uma maioria dos trabalhadores e do povo ou já não confia na democracia burguesa ou se preparam para resistir violentamente às medidas celeradas de uma austeridade criminosa. As nossas elites não confiam no reviralho, ainda estão bem lembradas do susto que o proletariado lhes provocou em 1975, quando exigiu uma economia e uma sociedade de acordo com as suas necessidades e interesses, razão que ajudou a que a tão patriótica burguesia aceitasse a entrada na então CEE, na medida em que seria uma forma de salvação como classe exploradora e inútil.

Um governo PS, com apoio PCP+BE, seria um governo mais estável do que um PSD/CDS+ PS, seja fora ou dentro do governo, na medida em que esta última hipótese, e ao contrário do esforço patético de todos os opinantes e paineleiros de quererem provar o contrário, será o fim do PS a curto prazo, como o exemplo da aliança do PASOK com a Nova Democracia deixou bem patente. Não nos esqueçamos, coisa que os jornalistas de serviço nunca referem, o PS foi criado com os marcos da social-democracia alemã para cumprir uma missão específica; ora, a tarefa está cumprida e é bem provável que o seu fim esteja próximo… até porque o sucessor existe e já está a postos. Sabemos que o PS, atendendo à sua marca genética, está mais propenso a uma aliança com os partidos de direita, e o mais provável é vir mais um governo da coligação fascista a fim de completar o trabalho que ainda não terminou.

A rápida felicitação da Comissão Europeia pela vitória dos partidos do PàF, que considerou o resultado das eleições como uma demonstração de que a “maioria dos portugueses” quer que se mantenha “o caminho das reformas”, secundada pela do vice-chanceler Schäuble, que não hesitou em afirmar que a vitória da coligação “é um encorajamento à política que tem sido seguida em Portugal” e “isto mostra que uma política pode ter sucesso, e ser apoiada por uma maioria, mesmo que imponha medidas duras à população”, constituem manifestações de um poder fascista, não escrutinado e defendendo directamente os interesses do grande capital.

Na mesma linha se entende a atitude do Silva de Boliqueime, o ser que não gosta do 5 de Outubro e odeia a soberania nacional e não perde oportunidade em atacar a Constituição, apesar de ter jurado “defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa”; desta vez, entendeu não ouvir os partidos representados no Parlamento, tendo em conta os resultados eleitorais, chamando de imediato o correligionário, chefe do partido com mais deputados e encarregando-o de encetar diligências para formação de governo que envolva o PS, seja participando no dito ou garantir o seu apoio na Assembleia da República; ou seja, constituir um governo de sua inteira confiança pessoal, um governo de salvação nacional, ou de “união nacional” para salvação do capitalismo. As palavras são outras, governo que “assegure a estabilidade política e a governabilidade” e que seja “consistente”, mas também “estável e duradouro”, mas querem dizer o mesmo e deixam transparecer que os tempos são de tudo, menos “estabilidade” e “governabilidade”, porque a austeridade foi recusada por mais de 60% do povo português.

O Silva odeia a soberania nacional e revela-se, como toda a gente já sabia, que é um reles lacaio do hegemonismo alemão e do imperialismo norte-americano, ao traçar as linhas de demarcação do futuro governo: “respeitar os compromissos internacionais” de Portugal, incluindo a participação na NATO, a integração na União Europeia e a pertença à zona euro. Interessante ouvir as palavras “este é o tempo do compromisso” e “cultura de diálogo e da negociação”, sabendo-se de onde elas vêm: individuo autoritário e fascista, que raramente tem dúvida e nunca se engana, e cuja actuação é diametralmente oposta ao significado das palavras que usa.

Este outro atentado contra a Constituição mostra que a burguesia não respeita as suas próprias leis, incluindo a dita lei fundamental que regula o funcionamento do tal “estado de direito”, quando precisa de sobre-explorar os trabalhadores, a fim de defender os seus interesses de classe parasitária. Se os partidos existentes que ainda usam a foice e o martelo deveriam aproveitar as oportunidades para denunciar o caracter dúplice da burguesia e da sua democracia de faz de conta; e, dessa maneira, explicar aos operários e demais trabalhadores que este sistema económico e regime político não lhes servem, porque outros terão de ser construídos. E que os fascismos saem directamente do ventre da democracia burguesa quando o proletariado revolucionário ousa lutar contra os responsáveis pela sua situação de explorado.

Publicado na revista “Os Bárbaros”
12 de Outubro 2015

Manuel António Pina

17.11.23 | Manuel

 Manuel António Pina-2.jpg

O Poeta:

A um Jovem Poeta

Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

*

Junto à Água

Os homens temem as longas viagens,

os ladrões da estrada, as hospedarias,

e temem morrer em frios leitos

e ter sepultura em terra estranha.

 

Por isso os seus passos os levam

de regresso a casa, às veredas da infância,

ao velho portão em ruínas, à poeira

das primeiras, das únicas lágrimas.

 

Quantas vezes em

desolados quartos de hotel

esperei em vão que me batesses à porta,

voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

 

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,

sonhos de beleza, e em ruas intermináveis

e no meio das multidões dos aeroportos.

Agora só quero dormir um sono sem olhos

 

e sem escuridão, sob um telhado por fim.

À minha volta estilhaça-se

o meu rosto em infinitos espelhos

e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

 

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.

Anoitece em todas as cidades do mundo,

acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos

onde o meu coração, falando, vagueia.

("Poesia, Saudade da Prosa – uma antologia pessoal". Assírio & Alvim, 2011)

 *

O Cronista:

“Nascer de depois”

Os maus-tratos a crianças são um dos mais sórdidos capítulos da tragédia cultural portuguesa. Os jornais dão quase diariamente conta de crianças retiradas às famílias biológicas por aí serem vítimas de toda a espécie de sevícias, desde espancamentos até abusos sexuais que muitas vezes conduzem a mortes atrozes ou a lesões físicas e psicológicas irremediáveis. Retiradas aos pais, as crianças são depois confiadas a instituições onde, não menos frequentemente, o seu calvário continua. Foi assim agora na Casa do Sagrado Coração de Jesus em Évora, como antes tinha sido no Colégio dos órfãos do Porto e na Casa do Gaiato de Setúbal, todas ligadas à Igreja Católica. Em Évora, três freiras foram constituídas arguidas sob a acusação de sevícias em crianças acolhidas na instituição e ainda um motorista por abusos sexuais.

A madre superiora confirma que, ali, as crianças são, por vezes, "repreendidas tal como um pai faz com um filho". O problema é exactamente o de as crianças continuarem, em certas instituições, a ser tratadas como alguns pais fazem aos filhos. E talvez fosse exigível que a Igreja se preocupasse também um pouco, do mesmo modo que com o direito à vida intra-uterina, com o direito à integridade física extra-uterina das crianças a seu cargo.

(“JN”, 29/01/2007)

*

“Falar e não falar”

Segundo uma sondagem do “Diário de Notícias”, 58% dos portugueses discordam do envolvimento da Igreja na campanha do referendo sobre a despenalização do aborto. E ou muito me engano ou grande parte dos restantes 42% achará, por sua vez, que é o Governo quem deve calar-se. Está-nos no sangue querer calar os outros. Por algum motivo Salazar e Cunhal estão no topo de uma disputa de popularidade que por aí anda. O problema não é a Igreja falar; tem esse direito e, se calhar, esse dever. O problema é a Igreja calar-se vezes de mais, como vergonhosamente se calou durante os 48 anos de opressão de Salazar e como voltou a fazê-lo quando as coisas pareciam ir de feição a Cunhal. E é o modo como a Igreja fala quando fala. O discurso da Igreja na campanha do referendo tem sido o do terrorismo verbal, ameaçando, acusando, explorando a superstição e o obscurantismo, quando não, tão-só, mentindo. Comparar o aborto ao enforcamento de Saddam e as mulheres que abortam à al-Qaeda, lançar anátemas e excomunhões, usar imagens religiosas para explorar a fé dos crentes ou falsear o sentido da pergunta do referendo não é a forma mais escrupulosa de defender uma ideia, por justa que possa ser. Talvez seja por isso que tantos portugueses querem que a Igreja se cale.

(“JN”, 01/02/2007)

Carta enviada por Albert EINSTEIN e Hannah ARENDT ao New York Times

13.11.23 | Manuel

einstein-arendt.jpg


No dia 2 de dezembro de 1948, o jornal americano The New York Times publicou uma carta, assinada por Albert Einstein, Hannah Arendt e Sidney Hook, entre outros, condenando as ações de Menachem Begin, líder do novo Partido da Liberdade (precursor do partido Likud segundo a ideologia de Vladimir Jabotinsky) , em visita aos Estados Unidos

Aos Editores do New York Times:

Entre os fenômenos políticos perturbadores de nossos tempos está a emergência no recém criado Estado de Israel do ''Partido da Liberdade'' (Tenuat Haherut), um partido político estreitamente assemelhado em sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos Nazista e Fascista.

Ele foi formado a partir de membros e seguidores do antigo Irgun Zvai Leumi, uma organização terrorista, facção direitista e organização chauvinista na Palestina.

A visita atual de Menachem Begin, líder deste partido, aos Estados Unidos é, obviamente, calculada no sentido de dar a impressão de apoio americano ao seu partido, por ocasião do advento das eleições israelitas e para cimentar laços políticos com os elementos Sionistas conservadores dos Estados Unidos. Vários americanos de reputação nacional têm emprestado seu nome para dar boas vindas a sua visita. É inconcebível que aqueles que se opõem ao fascismo no mundo, se corretamente informados sobre a história política e perspectivas de Mr. Begin, possam acrescentar seus nomes e apoio ao movimento que ele representa.

Embora esse irreparável perigo ocorra pela forma de contribuições financeiras, manifestações públicas a favor de Begin ou pela criação na Palestina da impressão de que um grande segmento da América apóia os elementos fascistas em Israel, o público americano deve ser informado sobre a historia e os objetivos do Sr. Begin e do seu movimento.

As promessas públicas do Partido de Begin não correspondem, quaisquer que sejam, ao seu caráter real. Hoje falam de liberdade, democracia e antiimperialismo, enquanto até recentemente pregavam abertamente a doutrina do Estado Fascista. É em suas ações que o partido terrorista denuncia o seu caráter real; de suas ações do passado podemos julgar o que dele pode ser esperado fazer no futuro.

Ataque sobre Deir Iassin

Um exemplo chocante foi seu comportamento na vila árabe de Deir Iassin. Esta vila, distante das principais estradas e circundada por terras judaicas, não tomou nenhuma parte na guerra e chegou a contrariar o lado árabe que queria usar a vila como sua base.

Em 9 de abril (The New York Times) bandos terroristas atacaram esta vila pacifista, que não era um objetivo militar na luta, matando a maioria de seus habitantes — 240 homens, mulheres e crianças — e mantiveram alguns deles vivos para desfilarem como cativos através das ruas de Jerusalém.

A maior parte da comunidade judaica ficou horrorizada com aquela ação e a Agência Judaica mandou um telegrama de pesar ao Rei Abdulah da Trans-Jordânia. Contudo, os terroristas, longe de se envergonharem de seu ato, ficaram orgulhosos com aquele massacre, divulgado amplamente e convidaram os correspondentes estrangeiros no país para testemunharem os cadáveres amontoados e a devastação geral em Deir Iassin.

O acontecimento de Deir Iassin exemplifica o caráter e as ações do Partido da Liberdade.

No interior da comunidade judaica eles têm propugnado uma mistura de ultra nacionalismo, misticismo religioso e superioridade racial. Como outros partidos fascistas eles têm sido usados para esmagar as greves e têm-se dedicado à destruição de sindicatos livres. Em seu lugar eles têm proposto sindicatos corporativistas no modelo fascista italiano.

Durante os últimos anos da esporádica violência antibritânica, os grupos IZL e Stern inauguraram um reino de terror na comunidade Judaica Palestina. Professores foram espancados por se pronunciarem contra eles, adultos foram alvejados por não deixarem suas crianças juntar-se a eles. Por métodos de gangsterismo, açoites, quebra-vidraças e roubos em larga escala, os terroristas intimidavam a população e exigia-lhe pesado tributo.

Os membros do Partido da Liberdade não têm nenhuma participação nos logros construtivos na Palestina. Eles não reivindicam nenhuma terra, nenhuma construção de habitações e apenas depreciam a atividade defensiva judaica. Seus esforços de imigração muito propagandeado foram diminutos e devotados principalmente para atraírem compatriotas fascistas.

Discrepâncias Observadas

As discrepâncias entre os bravos clamores que estão sendo feitos agora por Begin e seu partido e a história de sua performance no passado da Palestina não portam a marca de um partido qualquer. Este é o selo de um Partido fascista, pelo qual o terrorismo e o embuste são os meios e o ''Estado Regente'' é o objetivo.

À luz das considerações anteriores, é imperativo que a verdade sobre o Sr. Begin e seu movimento seja tornado conhecido neste país. É de toda maneira trágico que a liderança maior do Sionismo Americano tenha se recusado a participar da campanha contra os esforços de Begin, ou mesmo de expor aos seus constituintes os perigos para Israel do apoio a Begin.

Os abaixo assinados, portanto, através deste meio de publicidade apresentam alguns fatos salientes que dizem respeito a Begin e seu Partido; e recomendam a todos os interessados a não apoiarem esta última manifestação do fascismo.

Nova York, 2 de dezembro de 1948

Isidore Abramowitz,
Albert Eistein
Hannah Arendt,
Abraham Brick,
Rabino Jessurun Cardozo,
Herman Eisen,
Hayim Fineman,
M. Gallen,
HH. Harris,
Zelig S. Harris,
Sidney Hook,
Fred Karush,
Bruria Kaufman,
Irma L. Lindheim,
Nachman Maisel,
Seymour Melmam,
Myer D. Mendelson,
Harry M. Oslinsky,
Samuel Pitlick,
Fritz Rohrlich,
Louis P. Rocker,
Ruth Sagis,
Itzhak Sankowsky,
I.J. Shoenberg,
Samuel Shuman,
M. Singer,
Irma Wolfe,
Stefan Wolfe.

Albert_Einstein_and_others_letter.webp

libnanews

O poder judicial não escrutinado pelo voto descredibiliza a democracia

10.11.23 | Manuel

 

corrupcao-adn-capitalismo.jfif

Crónica escrita em 2016 e actualíssima atendendo aos factos recentes: a demissão do governo PS graças à intervenção da PGR - um poder de facto não escrutinado pelo voto do cidadão, benevolente com a corrupção, excepto a de políticos a abater  pelo establishment (a judicialização da política), e o abuso de poder.

A corrupção está nos genes do capitalismo e da oligarquia dominante, não basta promulgar algumas medidas avulso que, as mais das vezes, nem sequer há a intenção de as fazer aplicar na prática, Portugal deve ser o estado da UE que mais leis tem feito mas que não as aplica e ninguém (as elites) as respeita. A tão criticada intenção do governo em aprovar a quebra do sigilo bancário para depósitos acima dos 50 mil euros, seria uma delas, mas mesmo formalmente governo e presidente Marcelo entenderam que o momento não era oportuno, já que a economia não está bem, não cresce como devia, assim deixa-se proliferar a economia paralela através da fraude e da fuga ao fisco e de outras traficâncias geralmente tidas como próprias do submundo do crime como forma de enriquecimento da burguesia, vulgo “economia nacional”.

Pois é, e de crimes que se trata, num só dia três factos foram notícia, e bem reveladores da natureza da economia que temos e do estado que a protege e fomenta: seis graduados da Força Aérea, uma das partes do exército permanente burguês e capitalista, foram detidos por suspeita da prática de crime de corrupção, activa e passiva, que terão lesado os cofres públicos em cerca de 10 milhões de euros, contas com certeza feitas por baixo (1); facto bem revelador do que se passa no resto das ditas Forças Armadas e no resto da Administração Pública; um agente da PSP é detido pela PJ por suspeitas de rapto, ofensas à integridade física qualificada e extorsão agravada (2); e o Tribunal de Braga determinou o arquivamento do processo em que três antigos responsáveis da associação PME Portugal eram acusados de fraude na obtenção de subsídio num montante superior a 7 (sete!) milhões de euros (3). Os factos falam por si, valem mais do que mil discursos.

Contudo, não se pode deixar de analisar os factos: oficiais e sargentos roubam o estado, alguém poderá dizer que a democracia burguesa saída do 25 de Abril é responsável, que é o regabofe do nem rei nem roque, e vem Salazar que estás perdoado! Deve-se relembrar que o roubo e a corrupção dentro das Forças Armadas, o putativo principal pilar da defesa da Pátria e da Nação, sempre estiveram presentes e proliferaram livre e impunemente no tempo do regime fascista; quem esteve na guerras colonial em África sabe de conhecimento vivido de que houve oficiais e sargentos, quer do quadro permanente, quer do quadro miliciano, que enriqueceram rapidamente em uma ou duas comissões, os caixotes que enviavam para a então Metrópole vinham sempre bem recheados, alguns deles feitos de madeiras exóticas, roubadas tal com o recheio, que depois serviram para forrar os tectos das moradias construídas na terra. A guerra colonial acabou com mágoa de muitos graduados do quadro permanente e não foi com certeza por razões meramente ideológicas. Como a natureza das forças armadas permanentes não mudou, depois deste tempo todo, bem pelo contrário, reforçou-se pelo facto de se ter acabado com a conscrição; agora, para além de serem permanentes são constituídas inteiramente por mercenários, gente cujo móbil é o dinheiro. Esta seria por si só uma boa razão para se acabar com elas, para além de ser um instrumento da classe, a burguesia, no poder.

Os corpos policiais, sem excepção, mas com alguma incidência para a GNR, onde para além dos casos de corrupção proliferam os casos de assassínio do cidadão indefeso, relevam do mesmo mal das forças armadas, são instituições para a repressão dos trabalhadores e do povo e de defesa das elites e da sua propriedade privada. Não servem, nem lhes está no ADN, ter como missão principal, embora a propalem no discurso, a defesa de toda a sociedade, isto é, de todos os cidadãos de forma igual; cidadãos esses, pela mesma teoria, serão iguais perante a lei e as instituições do estado. Na prática, verifica-se que alguns cidadãos são mais iguais que outros, e quanto à protecção da propriedade há alguma que também é mais igual do que outra, a polícia não actua da mesma forma quando alertada para o assalto a uma residência ou a um banco, e quanto a residência a actuação também é diferente se se trata da de um rico ou da de um pobre. As polícias sofrem do mesmo mal do exército permanente, ou talvez ainda pior, são também “permanentes”, são constituídas por profissionais, não sujeitos ao escrutínio e, por essa razão, representam um cargo vitalício que, inclusivamente na aposentação, têm regras diferentes das dos restantes trabalhadores da Função Pública ou dos do regime da Segurança Social.

O referido outro poder de estado, o poder judicial, os tribunais e os juízes, o tão proclamado poder “independente”, hipoteticamente dos outros dois, o executivo e o legislativo, sofre dos mesmos males. No caso referido, o Ministério Público formulou uma primeira acusação que apontava para uma fraude superior a 7 milhões de euros, como esta não teria pernas para andar, formulou uma segunda que já apontava só para 4,5 milhões de euros; ora, esta actuação do MP foi facilmente rebatida pelos advogados de defesa que alegaram que aquela violava a lei, acabando o tribunal por lhes dar razão, determinando extinto o procedimento criminal. Para se perceber os meandros da nossa justiça, iremos ao pormenor que é conhecido pela imprensa: segundo o juiz presidente, "o MP não podia declarar nula a primeira acusação, substituindo-a por outra", porque essa actuação configura uma "subversão do quadro legal do processo penal", assim o MP terá cometido "um atropelo grosseiro" dos princípios do processo justo e da igualdade de armas e "violou claramente" o princípio da irretratabilidade da acusação; e como tal, o tribunal declarou a inexistência jurídica da segunda acusação e a nulidade da primeira, neste caso por considerar que se tratava apenas de uma "longa descrição" dos meios de prova e de uma "referência genérica" aos factos, "sem concretização" dos actos praticados. Perante o descrito, os eventuais criminosos de colarinho branco vão-se safando por duas vias: erros processuais e aparente actuação incorrecta do MP e por vezes da própria PJ (vários casos de utilização de escutas telefónicas sem validação por um juiz, por exemplo) que estoiram com o processo. O engraçado é que muitas das leis em vigor foram feitas por advogados de grandes escritórios que conhecem bem os alçapões das ditas e facilmente ganham a causa, para além de principescos honorários. Tudo pago pelo Zé. Iniludivelmente, trata-se de uma justiça de classe: as leis são ambíguas e quem devia investigar e acusar até parece que faz de propósito quanto aos “atropelos grosseiros”, consoante o estatuto social do arguido.

Pode dizer-se que a justiça até funciona, que há pessoas sérias nestas áreas do poder policial e judicial, sem dúvida!, mas o que se trata aqui é da natureza de classe destas instituições do estado e do próprio estado, que é um aparelho de dominação de uma classe sobre as outras. Poderes que não são directamente escrutinados. Quanto ao poder judicial, arrogante e não escrutinado, exercido por elementos que arvoram diversas regalias, que se encontram bem longe do alcance de qualquer trabalhador, mas por este bem pagas, como seja subsídio de residência, isentos de impostos, embora os juízes já não mudem de comarca como deveria acontecer para não haver interesses instalados, ou terem um sindicato como se fossem assalariados e não num órgão de soberania, ao mesmo tempo patrões e empregados, beneficiando do bem bom dos dois estatutos. Vitalícios e sem prestarem contas a ninguém – parecendo estar acima da lei, muitas das vezes – só podem dar no autoritarismo, como no caso da bolseira e investigadora Maria de Lurdes Lopes Ribeiro, condenada a três anos de prisão efectiva por ter cometido, no entender do tribunal, crimes de difamação e injúria contra juízes e magistrados pelo facto de se ter sentido injustiçada. Esta é a face fascista de um poder não eleito, que não foi beliscado com o 25 de Abril; relembremos que os juízes do antigo Tribunal Plenário, controlado pela Pide, puderam gozar pacificamente as suas reformas nesta democracia de opereta.

Esta face que revela a verdadeira natureza de um poder anti-democrático está a vir ao de cimo à medida que se vai descredebilizando o poder político, ou seja, o governo e o parlamento, e mais outro caso bem revelador desta realidade: o cidadão que ousou responder ao deputado laranja Carlos Peixoto por este ter designado a terceira idade de "peste grisalha", vai ser obrigado a pagar a este parasita uma indemnização de 3 mil euros, acrescida de 1200 euros de multa. Será mais um caso que irá para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e onde o estado português, mas não os juízes responsáveis pela sentença, irá ser condenado, já lá vão não sei quantas condenações, umas por violação da liberdade de expressão, ou por morosidade da justiça, ou por violação da intimidade da vida privada e familiar, e por aí fora. Talvez esta tenha sido a única área em que houve avanços pelo facto de Portugal se encontrar na União Europeia, a cultura e o espírito das instituições do estado, e de muitos dos detentores ao mais alto nível, é o do respeitinho, do manda quem pode e obedece quem deve, à boa maneira salazarista. Foram e continuam a ser muitas dezenas e até centenas de milhares de euros de indemnização pagas pelo estado, mas que deveriam sair dos bolsos de juízes e de polícias pelos erros grosseiros e actos de puro autoritarismo que atentam contra a liberdade, os direitos e a dignidade do cidadão.

Segundo norma do Código de Justiça Militar e Regulamento de Disciplina Militar, que ainda vigorava até há algum tempo, o militar que deixasse fugir um preso ia para o lugar dele como castigo, em casos semelhantes na justiça, o magistrado acusado de “atropelo grosseiro”, como aconteceu no caso relatado, deveria ir para o lugar dos arguidos absolvidos, isto num primeiro passo, porque os habilidosos que agora escapam à justiça deveriam ser de novo julgados e caso se comprove a acusação, os 7 milhões de euros para algum lado foram, deveriam ser condenados, para além de prisão, com o arresto de todos os seus bens e obrigados a trabalhar no duro. Todos os cargos de poder devem ser preenchidos por pessoas dignas e sérias através do escrutínio democrático, não há cargos vitalícios, e a todo o momento revogáveis. Este foi um dos melhores ensinamentos legados pela Comuna de Paris, mas que os partidos que ainda se reivindicam do comunismo e do marxismo se esqueceram há muito. O serviço de policiamento deve ser feito por cidadãos livremente eleitos, assim como os juízes, e o exército é o povo em armas com os oficiais também livremente eleitos e revogáveis.

Notas:

1) https://www.publico.pt/2016/11/03/sociedade/noticia/pj-detem-cinco-militares-da-forca-aerea-por-suspeita-de-corrupcao-1749823

2) https://www.dn.pt/sociedade/pj-deteve-dois-homens-um-dos-quais-agente-da-psp-por-rapto-5477811.html

3) https://www.publico.pt/2016/11/02/sociedade/noticia/tribunal-arquiva-processo-de-burla-milionaria-por-erros-do-ministerio-publico-1749676

05 de Novembro 2016

Ahed Tamimi: a fúria da liberdade

06.11.23 | Manuel

ahed tamini-b.jpg

Ahed Tamimi de novo detida pelo governo de Israel/Netanyahu

Leandro Albani

A jovem palestiniana, símbolo da resistência do seu povo, foi libertada depois de quase oito meses encerrada numa masmorra do regime israelita

“A minha felicidade não é completa porque tenho irmãs que continuam na prisão”, disse a jovem palestiniana Ahed Tamimi ao recuperar este domingo a liberdade, depois de passar quase oito meses na prisão depois de ter sido condenada por um tribunal militar israelita.

Tamimi, que se tornou um símbolo da resistência palestiniana à ocupação, foi julgada depois de ter surgido um vídeo no qual ela esbofeteava soldados israelitas que tinham entrado em Nabi Saleh, a cidade da Cisjordânia onde vive toda a sua família.

A transferência de Ahed da prisão israelense de Hasharon – localizada em Even Yehuda, no centro do Estado de Israel – para sua casa foi marcada pelos abraços e beijos de seus familiares. Em Nabi Saleh, a bandeira palestiniana foi hasteada para dar as boas-vindas à jovem, e posso ouvir os residentes a cantar o seu nome e a aplaudir a resistência palestiniana.

“A resistência continuará”, resumiu a palestiniana de 17 anos que despertou a ira das forças de segurança hebraicas, ao mesmo tempo que neste último ano recebeu um forte apoio internacional. Tamimi agradeceu a todos aqueles que apoiaram a sua luta e denunciou os abusos a que foi submetida na prisão, solicitando por sua vez apoio aos quase seis mil presos políticos palestinianos, dos quais 291 são menores.

Os defensores legais de Ahed conseguiram concordar com a sua prisão em troca de se declarar culpada de quatro das 12 acusações de que foi acusada: agressão ao soldado hebreu, incitação à violência e mais duas acusações de perturbação do curso das atividades do Exército.

Por sua vez, a advogada Gaby Lasky, que foi defensora da jovem palestiniana, declarou que “está demonstrado que as razões da detenção são políticas e não legais” e transmitiu a sua preocupação sobre os perigos para Ahed se ela voltar a participar na uma manifestação.

Ahed, que nasceu em 30 de março de 2001, foi presa em 19 de dezembro, quando tinha 16 anos, quando apareceu em um vídeo com a mãe e o primo, também detidos, no qual eles repreendiam e se defendiam dos soldados israelenses no pátio. .de sua casa em Nabi Saleh.

Naquele dia, a jovem tinha acabado de saber que, uma hora antes, um soldado israelense havia atirado na cabeça de um de seus primos de 15 anos, que morava no mesmo bairro. O menino sobreviveu após uma operação complexa, mas ficou desfigurado e os médicos tiveram que remover parte de seu crânio.

Filha de uma família que desenvolve diversas atividades contra a ocupação, aos 11 anos Ahed foi fotografada confrontando um soldado israelense e também mordendo a mão de um dos uniformizados, quando tentavam levar embora um de seus irmãos.

Nas suas primeiras declarações à imprensa, Tamimi expressou que “a ocupação será eliminada se os palestinos continuarem a luta”. Por sua vez, elogiou a resistência do povo palestiniano, especialmente dos residentes da Faixa de Gaza, a quem pediu que mantenham a “unidade” e a “solidariedade” para superar os ataques israelitas que se multiplicam todos os dias contra as manifestações da “Grande Marcha de Retornar". Ahed também denunciou a recente lei do “Estado-nação judeu”, aprovada pelo parlamento de Tel Aviv, que descreveu como racista. “Al Quds (Jerusalém) será a eterna capital da Palestina”, observou a jovem.

Segundo vários especialistas das Nações Unidas (ONU), com a detenção de Ahed, Israel violou a Convenção sobre os Direitos da Criança.

ahed-tamimi-m.jpg

Na última quarta-feira, para comemorar a libertação de Tamimi, dois artistas italianos pintaram o rosto da jovem no muro de separação que Israel construiu na cidade palestina de Belém. Neste sábado, soldados israelenses detiveram os artistas porque é proibido pintar na parede, segundo o Exército Hebraico.

Na noite de quinta-feira, as forças de ocupação também fecharam a entrada de Nabi Saleh, impedindo a entrada e saída dos residentes. De acordo com fontes locais recolhidas pelo Middle East Monitor , um grande número de soldados foi destacado para a aldeia. Com menos de mil habitantes, Nabi Saleh é uma das menores aldeias da Cisjordânia ocupada. Desde 2009, a aldeia realiza manifestações semanais todas as sextas-feiras, juntamente com uma dúzia de outras aldeias na Cisjordânia ocupada, em protesto contra as políticas de ocupação israelitas. A grande maioria das terras da cidade está localizada na “Área C”, que está sob total controle israelense.

Ahed Tamimi tornou-se o símbolo actual mais forte da resistência palestiniana contra a ocupação israelita. A sua detenção e acusação confirmaram, mais uma vez, que o Estado de Israel aplica um plano sistemático de repressão contra os palestinianos e que o seu alvo favorito são os mais jovens. Mas Tamimi também faz parte da nova geração que denuncia e luta contra as políticas repressivas de um Estado que estabelece a limpeza étnica como política oficial. Ahed, as suas irmãs e irmãos, e os milhares de jovens palestinianos sabem que as ruas das suas vilas e cidades são onde as forças de ocupação israelitas devem ser detidas.

Imagem: Artista pinta mural com o rosto de Ahed Tamimi no muro de separação de Israel em Bethlehem, na Cisjordânia, no dia 25 de julho — Foto: AP Photo/Nasser Nasser

31 Julho 2018

Texto completo en: Fonte

O Salazarismo na Guerra de Espanha

02.11.23 | Manuel

franco e salazar.jpg

Texto de Francisco de Oliveira Pio:

O brilhante jornalista Osório Borba, que vem fazendo, num grande matutino desta capital, uma análise crítica acertadíssima do fascismo peninsular, contava-nos, há tempo, um saboroso episódio. Tratava-se, nada mais, nada menos, que do diálogo político que ele tivera a coragem de sustentar com um português salazarista. Naturalmente, com aquela mentalidade antediluviana que a propaganda salazarista incutia nas suas hostes, o homem confundia o governo com o país e o regime com a nação, considerando como ataques dirigidos a Portugal toda a crítica ao seu sistema político. E, à falta de melhor argumento para defender o indefensável, ele acabou resmungando: “Afinal, cada um manda na sua terra!”

Este conceito, a que Osório Borba chamou impertinência, mas a que eu chamarei grosseria, porque, além de muitas outras circunstâncias, que seria fastidioso enumerar, é pretender negar no Brasil, como há 33 anos vêm negando em Portugal, um dos mais nobres postulados da democracia, que é o da liberdade de pensamento e de expressão, traduz um critério que toda a gente pode ter, excepto os salazaristas, ao menos para guardarem alguma coerência entre aquilo que dizem e aquilo que fazem. O salazarismo não pode dizer a ninguém: "Cada um manda na sua terra!", porque ele deu ao mundo uma vergonhosa demonstração do seu desprezo por esse princípio da ética internacional, intrometendo-se, pela forma mais indigna e mais criminosa, em assuntos privativos da terra alheia. E digo "criminosa", porque essa intromissão não se concretizou numa acção platónica de crítica objectiva, como aquela que se lhe vem fazendo aqui, pondo a nu toda a sua podridão e falsidade, mas sim levando a destruição e a morte a um povo irmão, amigo e vizinho.

Diz a propaganda salazarista, na vã tentativa de justificar esse acto de ganguesterismo, que a Espanha se encontrava então mergulhada na "subversão", na "desordem", no "caos", e não sabemos se em mais alguma coisa, pondo assim em risco a tal história da "Civilização Ocidental", cuja expressão máxima eram já, nessa época, os campos de concentração de Dachau, Lipari e Tarrafal. Ouvimos essa cantiga, a propósito de todos os países sobre os quais o fascismo lançou as suas garras. Mas, supondo, por um momento, que assim era, que tinha o salazarismo que ver com isso se, como dizem os salazaristas daquém e dalém-mar, "cada um manda na sua terra"? Que lhes poderia importar que a Espanha fosse vermelha, azul ou verde, se tal era a vontade do povo espanhol?

Porém, o mais superficial exame, desde que honesto, da situação política e social da Espanha nas vésperas da rebelião franquista, revelava com clareza meridiana a falsidade de semelhante asserção. Tão grosseira mistificação só poderia enganar Chamberlain e o seu guarda-chuva.

Em 17 de Julho de 1936, a Espanha vivia num regime de absoluta normalidade constitucional, dentro das mais puras regras democráticas. As eleições de Fevereiro, que haviam posto fim ao "biénio negro", durante o qual o filofascista Gil Robles e o republicano renegado Alexandre Lerroux deram nas Astúrias a tónica do que mais tarde viria a ser o terrorismo sanguinário dos falangistas, tinham reintegrado a República no caminho da liberdade e do progresso, tão auspiciosamente iniciado em 14 de Abril de 1931. O seu governo, genuína expressão da vontade popular, amplamente demonstrada naquelas memoráveis eleições, estava constituído por eminentes homens de Estado, saídos das correntes políticas e sociais mais fortemente representadas na Câmara. O apoio que lhe prestavam as duas grandes centrais do movimento operário espanhol, a União Geral dos Trabalhadores e a Confederação Nacional do Trabalho, dava a este governo um carácter de verdadeira representação nacional. Presidia à República D. Manuel Azaña, a maior revelação política da Espanha deste século. Ocupava a presidência das Cortes o ilustre D. Diego Martínez Barrios, actual presidente da República no exílio. Chefiava o governo o Sr. Casares Quiroga, líder dos autonomistas galegos. E estes homens, que eram indiscutivelmente uma garantia de moderação e honestidade na administração da República, eram igualmente uma garantia de sobrevivência e progresso da democracia espanhola.

A par deste panorama político, em perfeita concordância com as mais rígidas fórmulas constitucionais e democráticas, observava-se, em Julho de 1936, uma crescente melhoria das condições económicas do país e uma gradual elevação do nível de vida do povo espanhol. A conhecida socióloga Margarida Nelken dizia, pouco depois de implantada a República, que "metade dos filhos de Espanha nunca tinha comido a fartar uma só vez na vida". Era esse o problema essencial que, apesar de todas as obstruções, a República procurava resolver.

A reforma agrária, bem tímida na verdade, porque se limitava apenas à expropriação dos latifúndios que os grandes senhores feudais mantinham improdutivos, ia, pouco a pouco, transformando os mais pobres camponeses, até ali num verdadeiro estado de servidão, em pequenos proprietários rurais. O ajustamento de salários aos trabalhadores de Andaluzia, Extremadura e Castela repercutia num aumento de produção nas fábricas têxteis da Catalunha. Os preços estavam estabilizados, num relativo equilíbrio com os salários. As actividades agrícolas, industriais e comerciais iam em crescendo, porque os trabalhadores, ganhando mais, podiam comprar mais. A peseta estava valorizada, e a circulação fiduciária tinha uma cobertura metálica de 68%, então só ultrapassada pelos Estados Unidos. Toda a nação estava em marcha na senda do progresso, confiante nas suas enormes faculdades criadoras. A Espanha dava ao mundo um magnífico espectáculo de vida e cor, com a atmosfera movimentada e ruidosa dos seus cafés, a policromia das suas calles, a alegria comunicativa das suas verbenas. O povo espanhol era feliz, porque era um povo livre.

De repente, partido de Lisboa, Berlim e Roma, o furacão devastador do fascismo abateu-se sobre o povo espanhol. Durante três longos anos, a Espanha foi teatro das cenas mais canibalescas que a imaginação humana possa conceber. Três mil pessoas massacradas em poucas horas na praça de touros de Badajoz, pelo crime de não serem falangistas. Popul ações inteiras, fugindo com os seus pobres haveres das zonas ameaçadas, aniquiladas em horríveis matanças, nas estradas e nos caminhos, pelos aviões fascistas voando a baixa altitude, para que nem as crianças pudessem escapar. Federico García Lorca, um dos mais altos espíritos da Espanha contemporânea; Salvador Vila, reitor da Universidade; professores, médicos, advogados, estudantes, operários, num total de 23 000 pessoas assassinadas só na cidade de Granada. Guernica e Durango, cidades onde não existia um único objectivo militar, pulverizadas numa operação de treinamento pelos aviões de Hitler e Mussolini, sem deixarem uma só casa em pé, um só habitante com vida. Bordas mouras e falangistas, assassinando à baioneta os feridos que encontravam nas ambulâncias e hospitais das povoações que iam ocupando. As Vascongadas e as Astúrias afogadas num verdadeiro mar de sangue, como represália pela resistência oposta ao invasor. Mulheres e crianças violadas e, em seguida, assassinadas, pelos kabilas mouros e os marginais da Legião Estrangeira. O cortejo macabro dos falangistas levando um cadáver de Granada ao Escorial e assassinando em massa os detidos que enchiam as cadeias de todas as povoações por onde passavam.

Quando este furacão amainou (porque a guerra de morte movida pelo franquismo contra o povo espanhol só virtualmente terminou em 1939), todo o país era um vasto campo em ruínas, onde só reinavam o sofrimento, a miséria, a opressão e a tirania. E à cabeça dos grandes responsáveis, perante a História, por este crime sem nome, cometido em Espanha, está o salazarismo. Porque, sem a ajuda substancial que ele prestou, desde a primeira hora, aos rebeldes franquistas, que lhes deu tempo para aguardar o reforço do formidável potencial militar de Hitler e Mussolini, a insurreição teria sido varrida de toda a Espanha em poucos dias, como fora varrida de Madrid e Barcelona, seus mais fortes baluartes, pela decisão e pela heroicidade do povo espanhol. Razão tinham os estudantes brasileiros, ao dizerem, há dias, que "alguém faltou em Nuremberg" 1.

A Guerra de Espanha, a que não pode chamar-se uma guerra civil, mas antes uma guerra promovida pelas forças coligadas do fascismo internacional contra o povo espanhol, não foi consequência imediata da morte de Calvo Sotelo ou da agitação reinante em Julho de 1936. Isso não foram mais que circunstâncias, propositadamente provocadas, de acordo com a boa técnica fascista e hitleriana, para justificar uma insurreição que já de longa data vinha sendo preparada. As suas verdadeiras causas devem procurar-se no ódio intrínseco que a reacção espanhola votava à República, pelo temor de ver cerceados os seus seculares privilégios; na aversão que tinha pela democracia a grande maioria do exército, onde reinava um espírito de casta, só igualado pelo antigo exército prussiano; nas necessidades de ordem política e estratégica do eixo Berlim-Roma, e na sua projectada guerra pelo domínio da Europa, como bem claramente ficou demonstrado no célebre relatório do general alemão Von Reichenau, que franceses e ingleses parecem não terem lido 2.

O Estoril, que sucedeu à Viena de Áustria dos séculos XVIII e XIX, como centro de intriga da reacção internacional contra a liberdade e a emancipação dos povos europeus, foi o foco de toda a conspiração contra a República espanhola. Foi dali que Sanjurjo organizou, preparou e deflagrou, com a mais declarada cumplicidade do salazarismo, a insurreição que deveria destruir a República, que tão generosamente o indultara em 1933, mesmo que para isso fosse necessário destruir a Espanha.

Dois anos antes dos "cruzados" levantarem os seus pendões, em sinal de rebeldia contra aquilo que só deveria surgir em Fevereiro de 1936, já as linhas gerais do plano insurreccional estavam esboçadas e assegurado o apoio de Hitler e Mussolini a tal empresa. Dentro deste plano, que vinha sendo trabalhado por Goicochea junto de Mussolini, desde Maio de 1934, iniciara-se, em Abril de 1935, uma série de conferências entre Sanjurjo, Gil Robles e o contrabandista Juan March, com os grandes capitães da indústria armamentista hitleriana e os mais altos dirigentes do Partido Fascista italiano. Essas conferências, realizadas em Berlim, tinham por objecto a exploração dos recursos minerais de Espanha e do seu protectorado de Marrocos, e prolongaram-se até Janeiro de 1936, mês em que foram assinados os acordos finais. Porém, no mês seguinte, as eleições deram a vitória à democracia espanhola, e um dos primeiros problemas a serem postos em pauta pelo governo era o da nacionalização das minas. Alarmado com esta perspectiva, Hitler convoca Sanjurjo a Berlim, em Maio de 1936. A imprensa de Salazar camufla esta viagem com o pretexto dos Jogos Olímpicos. Terminados os "Jogos", Sanjurjo volta ao QG do Estoril, com os planos completos da insurreição e um subsídio de dois milhões de pesetas para a sua preparação psicológica.

A Guerra de Espanha não foi, portanto, motivada por nenhuma daquelas loas, tão sabiamente difundidas pela propaganda da reacção internacional mas sim porque Hitler tinha necessidade urgente dos minérios espanhóis, e aquela era a única forma de os assegurar. A guerra custou a Espanha dois milhões de mortos e o arrasamento de dois terços do seu território. Mas Hitler conseguira os seus minérios. Quando em Setembro de 1939, ele desencadeou uma das maiores hecatombes da história, já Franco lhe tinha enviado um milhão de toneladas de pirites de ferro, estanho e antimónio. É muito provável que as bombas que arrasaram Coventry e as V-2 que destruíram parcialmente a cidade de Londres, tinham sido fabricadas com pirites da Biscaia ou do Ríff. A Inglaterra só pode agradecê-lo a Chamberlain e a Blum.

Quando o dispositivo militar da revolta estava terminado e feita a sua preparação psicológica pelos pistoleiros falangistas, Franco, que se diz " Caudillo de España por la gracia de Díos ", mas que o foi apenas pela morte acidental de Sanjurjo, parte em avião das Canárias para Tetuán e subleva as forças do Protectorado. No dia seguinte, assegurado o êxito da sublevação em Marrocos, o general Fanjul revolta-se em Madrid, Goded, em Barcelona, Mola, em Burgos, Cabanellas, em Saragoça, Queipo de Llano, em Sevilha. Dos altos chefes militares só o general Miaja, que comanda em Valência se mantém fiel à República.

Imediatamente todo o povo espanhol, como um só homem, se lança, sem armas, a peito descoberto, na luta contra a rebelião militar fascista, O ataque ao quartel de Atarazanas, em Barcelona, onde foi preso Goded, e ao quartel da Montanha, em Madrid, onde foram presos Fanjul e Barrera, são verdadeiras páginas de epopeia. Com as armas apanhadas nos quartéis, nos arsenais e nos conventos, onde os falangistas faziam os seus depósitos de material de guerra, o povo ataca os núcleos rebeldes e, em poucos dias, varre a insurreição na maior parte do território espanhol.

Os meios de que Franco então dispunha para levar a cabo a sua empresa com rapidez, antes que a decisão do povo espanhol acabasse por o esmagar, eram nitidamente insuficientes. O fracasso da revolta em Madrid e Barcelona fora para ela uma derrota moral. Faltava-lhe, para levantar o seu prestígio, uma força de manobra capaz de explorar o êxito inicial da insurreição nas zonas onde triunfara, com as suas guarnições absorvidas em dominar os levantamentos populares. E a perda para ele, de toda acosta levantina, de Barcelona a Cartagena, privando-o dos portos mediterrâneos, tornava difícil e demorada a recepção dos recursos, em homens e material, enviados por Mussolini, e o traslado das Divisões Regulares, que estavam sendo recrutadas em Marrocos.

O salazarismo, porém, salvou-o desses apuros. Logo que se inicia a revolta, Portugal é transformado numa base de abastecimentos e apoio aos rebeldes franquistas. Em torrente, dia e noite, entra em Espanha, pela fronteira de Badajoz, onde a PIDE colabora activamente no assassínio dos republicanos espanhóis, quanto Franco necessita para equipar, municiar, uniformizar e alimentar a sua tropa. O Banco Espírito Santo, de Lisboa, abre, com aval do governo, uma conta ilimitada a favor de Franco, para este fazer face às suas despesas de guerra. Para cúmulo do cinismo, os salazaristas põem nos comboios ferroviários e rodoviários, que transportavam mantimentos para os rebeldes franquistas, o letreiro "Sobras de Portugal". Não sabemos se os comboios, que mais tarde transportavam os "Viriatos" para a frente de Madrid, também levariam o letreiro "Sobras de Portugal". E era lógico que assim sucedesse, porque em Portugal sobravam e sobram mais "Viriatos" que comida. Estes recursos foram, para Franco, de uma enorme valia. Sem eles, não poderia, nessa altura, equipar os reservistas de Andaluzia e Extremadura que convocara ao serviço, formando as Divisões que, enquadradas com a Legião Estrangeira e as Divisões Regulares, constituíram o Exército da Extremadura. Foi a este exército, posto sob o comando do general Varela, que Franco atribuiu a missão principal na tomada de Madrid.

Em princípios de Novembro, sem poderem ser contidas pelas forças governamentais, ainda deficientemente organizadas, que se lhe opuseram em Talavera, as forças do general Varela chegam às portas de Madrid. No dia 5, pela manhã, o presidente da República e o do Governo, dada a gravidade da situação, trasladam-se para Valência, incumbindo o general Miaja, então comandante do Exército do Centro, da defesa da capital. Na tarde desse mesmo dia, recebo em Alcalá de Henares, onde me encontrava nos trabalhos de organização e instrução da 2.ª Brigada Mista, ordem para me apresentar no QG de Miaja, com o fim de me ser confiado o comando do sector avançado de Carabanchel, subúrbio de Madrid, na estrada da Extremadura, eixo de marcha do exército de Varela. À noite, cerca das 20 horas, montei o meu PC na rua General Ricardos, entre Carabanchel Alto e Carabanchel Baixo. Às 22 horas começaram a chegar os efectivos que deviam guarnecer o meu sector. E ao fazer, com o capitão da Companhia para isso designada o reconhecimento para montagem no perímetro exterior de Carabanchel Alto de uma linha de postos de observação, deparo-me com os primeiros elementos da cavalaria moura, que fazia a descoberta do exército de Varela.

Toda a noite, de 5 para 6, o dia 6 e a noite de 6 para 7, que providencialmente o inimigo perdera a organizar o seu dispositivo de ataque, foram utilizados por nós a organizar e a reforçar o nosso dispositivo de defesa. Às 6 horas da manhã do dia 7 dispararam-se os primeiros tiros. Começara a batalha de Madrid, que ficará na história como um exemplo do que podem a vontade e a determinação de um povo.

Não é intenção minha fazer aqui o relato daquela luta que durou três anos e das condições em que o povo espanhol sustentou, porque apenas me propus analisar, embora superficialmente, a intervenção do salazarismo na Guerra de Espanha. Porém, seja-me perdoada a imodéstia de confessar que considero como ponto alto da minha apagada carreira militar o ter comandado, nesses primeiros dias da batalha defensiva de Madrid, homens daquela têmpera.

A derrota, que não foi só sua, mas de todos aqueles que deixaram assassinar a democracia espanhola, não conseguiu abater o espírito desses homens. Em Espanha, os que escaparam com vida lançaram-se em permanente rebeldia, como nos tempos de Numancia, nas montanhas mais agrestes, e fazem até hoje sentir a sua presença em constantes incursões punitivas contra os carrascos franquistas. Em França, logo que se perdeu o controlo sobre os campos de concentração onde apodreciam, correm a organizar os maquis no velho estilo da guerrilla espanhola, que obrigam os hitlerianos a distrair, na ocupação permanente do país, efectivos consideráveis, de que ficaram desfalcadas as suas linhas de defesa do litoral. No Norte de África, logo que o general Leclerc, após uma notável marcha do Fezzan a Tunis, organiza a sua famosa Divisão Blindada, são eles, ainda, que, voluntariamente, constituem a quase totalidade dos seus efectivos. E quando, em seguida ao desembarque na Normandia, esta divisão marcha sobre Paris, na vanguarda das colunas aliadas, é um tanque tripulado por combatentes da Guerra de Espanha, levando pintado a branco o nome de Madrid, o primeiro que entra na capital francesa. É assim o povo espanhol.

Sabe o povo espanhol que o salazarismo, que tão bons serviços prestou a Franco nas suas horas críticas, nada tem a ver com o povo português. Sabe o povo espanhol, tiranizado há vinte anos pelo franquismo, como o povo português, há trinta e três anos, pelo salazarismo, que tal ajuda se repetirá, num sentido ou noutro, sem que ninguém o impeça, porque o espírito internacional de protecção ao fascismo, que hoje reina, é o mesmo que reinava em 1936. Salazarismo e franquismo têm o seu pacto de ajuda mútua, baseado na tirania e opressão. Façamos também nós o nosso pacto de ajuda mútua, baseado na democracia e na liberdade. Unamos a nossa determinação, conjuguemos os nossos esforços, sincronizemos a nossa opção e em breve reinarão de novo a paz e a liberdade entre os povos da nossa velha Península Ibérica.

Rio de Janeiro, Julho de 1959.

Francisco de Oliveira Pio

NOTAS:

1 - Alusão aos cartazes com estes dizeres, passeados pelos estudantes nas ruas do Rio de Janeiro. (N. do Ed.)

2 - V. “Portugal Oprimido”, pelo cap. F. Queiroga, Ed. Germinal.

____________

Texto retirado de “Guerra de Espanha – Achegas ao redor das Participação Portuguesa – 70 anos depois” de Varela Gomes (Ed. Fim de Século. Lisboa, 2006), com a seguinte introdução do autor:

O texto é da autoria de Francisco de Oliveira Pio, tal como está publicado no opúsculo Duas Palestras sobre o Fascismo Ibérico, editora Germinal, Brasil – Setembro de 1959.

Aí se lê, em nota do editor, que esta palestra (e uma outra, "A Verdade sobre o 28 de Maio") foi proferidas em sessões públicas realizadas na sede da União Nacional dos Estudantes, Rio de Janeiro, em Maio e Junho de 1959, respectivamente.

«Nela usaram da palavra os seguintes oradores: Prof. Serafim Porto, presidente do Centro de Estudos José Oiticica, que abriu os actos; Sérgio Gómez Rodrigues, representante, no Brasil, do Governo Republicano Espanhol no Exílio; Dr. Luís de Abreu Carvalhal, presidente da Associação General Humberto Delgado; Luís Alberto Moniz Bandeira, em nome da Juventude Socialista; Raimundo Eirado e Carlos Matias, pela União Nacional dos Estudantes; comandante Oliveira Pio, heróico defensor de Madrid; Prof. Roberto das Neves, pelo Grupo de Acção Libertária, e general Humberto Delgado, que presidiu.» Diz ainda Roberto das Neves, pois não era outro o editor da Germinal: «Do mesmo autor das duas palestras que constituem a matéria do presente opúsculo, esperamos publicar em breve a narração dos acontecimentos político-sociais em que tomou parte e que constituirão inapreciável fonte histórica para a reconstituição de um dos períodos mais dramáticos da história do mundo.»

Afinal, Roberto das Neves não chegou a publicar as memórias de Oliveira Pio. Por que razão, ou razões, desconhecemos. Oliveira Pio morreu em Maio de 1972 e Roberto das Neves em Setembro de 1981. Nem um, nem outro, voltaram a Portugal, desde que procuraram exílio no Brasil, no início da década de 40. Ao incluirmos no presente volume um texto de Francisco de Oliveira Pio pretendemos não apenas divulgar as opiniões e o testemunho de um dos mais notáveis participantes portugueses da Guerra de Espanha, mas também, simultaneamente, homenagear o patriota antifascista e combatente internacionalista, que morreu desconhecido e cuja memória continua ignorada nesta pátria de alma pequena e ulcerada de má consciência.

Imagem in “DN”