A comunidade artística de Gaza, outrora um reflexo vibrante da resiliência palestiniana, enfrenta agora a perda de vozes cruciais para a sua essência.
Por TRT Mundo
Mais de dois meses após a ofensiva militar punitiva de Israel em Gaza, um relatório do Ministério da Cultura palestiniano apresenta mais uma estatística trágica: pelo menos 28 artistas, intelectuais e escritores palestinianos em Gaza foram mortos desde 7 de Outubro.
Eles estão entre os mais de 20 mil palestinos mortos no enclave costeiro sitiado que tem enfrentado bombardeios israelenses indiscriminados e incessantes depois que combatentes do Hamas levaram a cabo uma operação transfronteiriça sem precedentes.
O relatório capta eloquentemente o profundo impacto do ataque contínuo de Israel ao tecido cultural de Gaza, oferecendo uma narrativa comovente que sublinha a gravidade da situação.
“A guerra contra a cultura sempre esteve no centro da guerra dos agressores contra o nosso povo, pois a verdadeira guerra é uma guerra contra a narrativa para roubar a terra e os seus ricos tesouros de conhecimento, história e civilização, juntamente com as histórias isso se mantém.” diz o Dr. Atef Abu Saif na introdução do relatório.
Ele enfatiza que a essência desta guerra está inserida num esforço para apagar aqueles que persistem em contribuir para esta rica herança cultural.
Ao honrar o seu legado e garantir que os seus esforços e obras permaneçam indeléveis, apresentamos uma lista reduzida de figuras literárias e artísticas palestinianas que foram brutalmente assassinadas por Israel nos últimos dois meses:
Heba Zagout
Imagem: A arte de Heba Zagout frequentemente centrava-se em temas como as mulheres, a pátria, a natureza e o vínculo profundo entre mães e filhos.
A artista visual e educadora de artes plásticas Heba Ghazi Ibrahim Zagout, de 39 anos, e seu filho foram mortos no dia 13 de outubro. Nos dias que antecederam sua trágica morte, ela gravou um vídeo mostrando suas pinturas e discutindo apaixonadamente suas obras, expressando seu sonho de organizando uma exposição de arte para compartilhar sua criatividade.
A sua arte centra-se frequentemente em temas como a mulher, a pátria, a natureza e o vínculo profundo entre mães e filhos. Zagout, ex-aluna da Universidade Al Aqsa de Gaza com licenciatura em artes plásticas, retratou cenas da Cidade Velha da Jerusalém Oriental ocupada, da venerada mesquita de Al Aqsa e da Igreja da Natividade em Beit Laham – um local significativo para os cristãos. marcando o local de nascimento de Jesus.
Hiba Abu Nada
Imagem: Abu Nada foi educada na Universidade Islâmica de Gaza, onde obteve o diploma de bacharel em bioquímica.
Hiba Abu Nada, uma poetisa e romancista de 32 anos, foi morta ao lado do filho num ataque aéreo israelita em Khan Yunis, em 20 de Outubro.
A talentosa escritora obteve reconhecimento pelas suas contribuições, incluindo coleções publicadas de poesia e um romance intitulado “Oxigénio não é para os mortos”, que garantiu o segundo lugar nos Prémios Sharjah para a criatividade árabe em 2017.
Seu último poema foi compartilhado no X, antigo Twitter, poucos dias antes de sua morte:
“A noite de Gaza é escura, exceto pelo brilho dos foguetes, tranquila, exceto pelo som das bombas, aterrorizante, exceto pelo conforto da oração, negra, exceto pela luz dos mártires. Boa noite, Gaza.”
Omar Abu Shaweesh
O poeta, romancista e dedicado activista comunitário, Omar Faris Abu Shaweesh, foi morto em 7 de Outubro durante o bombardeamento do campo de refugiados de Nuseirat, em Gaza.
Distinguido pelo seu compromisso com as causas juvenis, Abu Shaweesh foi cofundador de diversas associações juvenis e recebeu elogios tanto local como internacionalmente.
Entre seus prêmios notáveis estão o de “Melhor Canção Nacional do Ano de 2007” do Festival Internacional de Canção e Patrimônio Nacional da Jordânia.
Aumentando o seu impacto, o Conselho da Juventude Árabe para o Desenvolvimento Integrado da Liga Árabe homenageou-o com o prémio “Juventude Árabe Distinta no Campo da Mídia, Jornalismo e Cultura” em 2013.
As contribuições literárias de Abu Shaweesh foram igualmente significativas, com várias coleções de poesia e um romance, “Alā qayd al-mawt” (2016), em seu nome.
O seu legado vai além das suas palavras escritas, refletindo uma profunda dedicação à elevação da juventude e à promoção da riqueza cultural da Palestina.
Inas al-Saqa
Renomada dramaturga, atriz e educadora especializada em teatro infantil, Inas al Saqa foi morta em um ataque aéreo israelense no final de outubro ao lado de três de seus filhos – Sara, Leen e Ibrahim.
Abrigadas num edifício da Cidade de Gaza, a família foi atingida, deixando Farah e Ritta gravemente feridas e nos cuidados intensivos.
Figura influente na cena teatral de Gaza, Saqa foi um dos pioneiros do teatro infantil e um artista especializado em artes visuais.
As contribuições cinematográficas de Saqa incluíram papéis nos filmes “Sara” e “O Pardal da Pátria”, de 2014, ambos abordando questões sociais significativas e a luta palestina. Além de sua atuação, ela era conhecida por suas contribuições culturais, colaborando com grupos de teatro em Gaza.
Sua última postagem nas redes sociais serve como um testamento assustador: “Às vezes você olha para trás para ter um vislumbre do seu passado… e descobre que saiu vivo de um massacre…”
Yusuf Dawas
Imagem: Fluente em árabe e inglês, Dawas escreveu extensivamente e produziu vídeos discutindo uma série de tópicos, incluindo sua aspiração de viajar e explorar o mundo.
Em 14 de Outubro, o escritor, jornalista e fotógrafo palestiniano Yusuf Dawas perdeu a vida num ataque aéreo israelita à casa da sua família no norte de Gaza.
Dawas, também guitarrista, participou ativamente na iniciativa We Are Not Numbers – uma organização criada em Gaza após o ataque de Israel em 2014, dedicada a promover uma nova geração de escritores e pensadores palestinos para efetuar mudanças significativas na causa palestina.
Fluente em árabe e inglês, Dawas escreveu extensivamente e produziu vídeos discutindo uma série de tópicos, incluindo a sua aspiração de viajar e explorar o mundo – um sonho partilhado por muitos jovens em Gaza, especialmente tendo em conta mais de dezasseis anos de bloqueio imposto a Gaza. pela ocupação israelita.
Mohammed Qaryeqa
O artista Mohammed Sami Qaryeqa, de 24 anos, foi morto no dia 18 de outubro. Conhecido por sua abordagem inovadora, integrou tecnologia à arte, retratando cenas do cotidiano.
A sua última publicação nas redes sociais exibiu um vídeo de crianças a brincar no jardim do Hospital Baptista em Gaza, apenas um dia antes de este ser vítima de um ataque aéreo israelita, que levou a um trágico massacre com 500 mártires e dezenas de feridos.
Mesmo nos seus últimos momentos, Qaryeqa esforçou-se por aliviar a ansiedade e o stress psicológico enfrentados pelas crianças e pacientes no hospital através da sua arte, reflectindo o seu compromisso inabalável em trazer conforto e consolo face à adversidade.
Nour al Din Hajjaj
O poeta e escritor Nour al Din Hajjaj foi morto por um ataque aéreo israelense em sua casa em Al Shujaiyya em 2 de dezembro.
Reconhecido por suas contribuições literárias, foi autor da peça “Os Cinzentos” (2022) e do romance “Asas que não voam” (2021). Hajjaj participou ativamente de iniciativas como a Associação Córdoba e a Fundação Dias de Teatro.
Sua mensagem final para o mundo exterior foi:
“Meu nome é Nour al Din Hajjaj, sou um escritor palestino, tenho vinte e sete anos e muitos sonhos.
Não sou um número e não concordo que a minha morte seja notícia passageira. Diga também que amo a vida, a felicidade, a liberdade, o riso das crianças, o mar, o café, a escrita, o Fairouz, tudo o que é alegre - embora todas essas coisas desapareçam no espaço de um momento.
Um dos meus sonhos é que meus livros e meus escritos viajem pelo mundo, que minha caneta tenha asas para que nenhum passaporte sem carimbo ou rejeição de visto possa impedi-lo.
Outro sonho meu é ter uma família pequena, ter um filho pequeno que se pareça comigo e contar-lhe uma história para dormir enquanto o embalo nos braços.”
Os nomes listados oferecem um vislumbre do número incontável de artistas, escritores e músicos que moldam o resiliente cenário artístico de Gaza.
Como outro proeminente poeta palestino assassinado, Refaat Alareer , uma vez nos lembrou, se ele morrer, devemos viver para contar sua história:
Se eu devo morrer, você deve viver para contar minha história, vender minhas coisas, comprar um pedaço de pano e alguns cordões, (deixá-lo branco com uma cauda longa) para que uma criança, em algum lugar de Gaza, enquanto olha nos olhos do céu, espere seu pai, que partiu em chamas - e não se despediu de ninguém, nem de sua carne, nem de si mesmo - vê a pipa, minha pipa que você fez, voando lá em cima, e pensa por um momento que um anjo está lá trazendo de volta o amor. Se devo morrer, que isso traga esperança, que seja uma história.
Imagem em destaque: A arte de Heba Zagout frequentemente centrava-se em temas como as mulheres, a pátria, a natureza e o vínculo profundo entre mães e filhos. (Fonte: TRT Mundo)
Foi em 20 de Dezembro de 1946 que se travou a batalha entre guerrilheiros galegos anti-franquistas, que actuavam na fronteira contra o regime do caudilho, e a GNR, PIDE e exército português na aldeia raiana de Cambedo, Trás-os-Montes, com alguns mortos de parte a parte e que revelou a coragem e o heroísmo dos anti-fascistas. São excertos do excelente livro “Guerrilheiros Antifranquistas em Trás-os-Montes” de Bento da Cruz, editora Âncora, 2003.
Vejamos agora, a traços largos, que isto já vai longo, o que se passou no Cambedo na madrugada de 20 de Dezembro de 1946. Antes de mais, tentar compreender como é que a presença dos guerrilheiros naquela povoação chegou ao conhecimento das autoridades.
A título de simples curiosidade, transcrevo a versão dada pelo guerrilheiro asturiano Manuel Zapico Terente. Diz ele: «Chegámos a Casaio. Ali soubemos que uma tal Remédios, conhecida do Girón, se passara ao serviço da polícia e fora a causadora da morte do guerrilheiro Bernardino e de um outro na fronteira portuguesa, perto de Chaves.» Também Francisco Martínez López (Quico), se refere a este episódio e acrescenta que, gorada a operação que ali os levara, os guerrilheiros assaltaram os armazéns da empresa e distribuíram todos os víveres pelos trabalhadores a quem explicaram quem eram e os ideais por que lutavam. Acabou tudo numa grande festa, com os trabalhadores a cantar a Internacional e aos vivas aos guerrilheiros e à República. A guarda-civil, que estava perto e foi avisada do que se estava a passar, não se atreveu a intervir. Propriamente da empresa, para além de algumas armas que encontraram, os guerrilheiros não trouxeram nada. Nem uma peseta 1).
A tal Remédios trabalhava na lavaria de uma exploração de volfrâmio. Mas, quando os guerrilheiros, chefiados por Manuel Girón, lá chegaram, ela tinha desaparecido... Decorria o ano de 1951. A imprensa da época (1946) dá-nos outra versão. Que após os crimes cometidos em Barroso por «uma quadrilha de bandoleiros espanhóis e portugueses que actuavam na raia seca, uns quatro elementos da pide, disfarçados de contrabandistas e negociantes do «mercado negro», se infiltraram, com a colaboração da guarda-republicana, entre as populações raianas, na mira de localizar os «meliantes» 2).
No entanto, e no meu fraco entender, a fonte mais fidedigna e de maior interesse para o encadeamento dos sucessos relacionados com a repressão aos guerrilheiros antifranquistas na zona fronteiriça de Trás-os-Montes durante o ano de 1946, são os arquivos da GNR. Aí encontramos uma:
«Cópia da Nota Confidencial Nº.2, de 11 de Março de 1946, (como se vê, muito anterior aos crimes cometidos em Barroso ) expedida pela Rp. Adjunta do CG da GNR.
Para conhecimento de V. Exa. e execução transcrevo o despacho de S. Exa. o GCG exarado num ofício, dirigido a este comando pelo Ministro do Interior.
Continuam a verificar-se actos de banditismo nas regiões fronteiriças de Trás-os-Montes. As autoridades espanholas solicitam a cooperação das portuguesas e o Governo Português interessa-se pelo assunto.»
De seguida a nota indica as aldeias suspeitas e acrescenta:
«Compete ao Bat. 4 limpar essas zonas. ... Solicitar-se-á a cooperação da Guarda Fiscal, da PIDE e outros elementos. ..."Máximo segredo"...Não utilizar o telefone. ... «Contar com a colaboração de toda a Guarda-civil do Comando de Orense».
E agora chamo a atenção para o último parágrafo da referida Nota Confidencial: Deve-se contar que, em caso de encontro, os bandidos se defendem bem, pois são guerrilheiros profissionais (itálico meu) dextros em toda a espécie de ciladas e ardis. O GCG confia absolutamente no valor e desembaraço das forças do Bat. 4, designadamente da 6ª. e 7ª. Companhias – o 2º. Comandante Geral - (a) Rogério Tavares -Coronel.»
Nas primeiras páginas deste trabalho, ao referir-me à suposta protecção dada às carreiras, tive oportunidade de me referir à hipocrisia da GNR durante a ditadura. Aqui está mais uma prova dessa hipocrisia. Em público, nunca a GNR admitiu que os «espanhóis» refugiados em Trás-os-Montes durante o ano de 1946, fossem «guerrilheiros». Nas «notas internas» reconhecia que eles eram «guerrilheiros profissionais» e recomendava «cautela» com eles.
A 15 de Março o Comando de Bragança responde a esta Nota Confidencial do dia 11, dizendo que «Nada se fez por não constar haver na área do Posto de Vinhais foragidos espanhóis ou salteadores portugueses.» E acrescenta:
«Houve, é certo, desde fins de 1943 uma quadrilha conhecida por Os Cucos, que actuando em colaboração com elementos espanhóis foragidos da Guerra Civil de Espanha, praticavam assaltos à mão armada na região de Vinhais. Desde então essa quadrilha, composta de oito indivíduos, tem sido alvo de uma perseguição sem tréguas e teve o seguinte destino (cito os seus nomes porque alguns deles, como o Cuco , Liró , e os irmãos Veiga figuram em documentos de autoridades espanholas, que os conhecem e que certamente se regozijarão com a sua captura): 1 -António dos Santos, o Cuco e 2 - seu irmão Manuel; 3 -José Gomes Júnior, o Chuche ; 4- António Augusto Pais, o Mofra ; 5 -António Veiga, o irmão do Boina s; 6 -Silvério Veiga; 7 – João Manuel, o Boina s; 8- Manuel dos Santos, o Liró .»
Segundo a mesma fonte, tiveram o seguinte fim: o Cuco, o Liró, o Chuché, o Boinas e seu mano António, foram todos presos durante o ano de 1943 e metidos na cadeia de Vinhais, donde se evadiram por duas vezes: uma por arrombamento do soalho, outra por serração das grades. Presos pela terceira vez, foram transferidos para Chaves. O irmão do Cuco, o Manuel, morto pela GNR no acto da captura. Silvério Veiga, preso pelas autoridades espanholas.
Para este êxito, e à semelhança do que atribuíam aos guerrilheiros, também a GNR recorreu a ardis: praças disfarçadas de raparigas de campo, outras de camponeses de foice, pau, chapéu de palha e sacola como se fossem segadores. Citam, embora o não identifiquem, um guerrilheiro que concebeu um esconderijo na parede à qual recostou a cama. Quando a GNR aparecia, ele passava do leito para o esconderijo e a mulher fingia-se doente. Um dia os guardas prenderam a mulher e encaminharam-se com ela para Vinhais. O guerrilheiro saiu-lhes ao caminho e apresentou-se.
«As regiões fronteiriças portuguesas estão limpas de bandidos» – concluía o comandante da GNR de Bragança. As autoridades espanholas insistiam e provavam que não. E como o «Governo Português se interessava pelo assunto», a GNR resolveu actuar.
«Quartel em Bragança, 29 de Abril de 1946.
O Comandante da Companhia
Herculano São Boaventura de Azevedo, Capitão
Cambedo - Vista geral na actualidade
ORDEM A
1 - Situação – Notícias vindas de Espanha dão como certa a existência de bandidos na Região da Lomba do Concelho de Vinhais, nomeadamente nas povoações de Pinheiro Novo e Pinheiro Velho.
2 -Os bandidos são guerrilheiros profissionais, bem armados, dextros em todas as espécies de ciladas e ardis, a quem o terreno favorece e devem encontrar-se, além das povoações já referidas, nas de Cisterna, Vilarinho da Lomba, Sernande, Edroso e Carrascal, situado a N da foz da Ribeira que fica a 1300 m a SO da povoação de Contim.»
A mesma ordem manda concentrar todas as forças da GNR do distrito de Bragança, no lugar de Seixas, Vinhais, na madrugada do dia 30 de Abril de 1946.
Nos dias seguintes o comandante elabora um relatório a dar conta dos resultados desta batida feita de colaboração com a Guarda-Civil, que guarneceu a fronteira do lado espanhol. Diz que a diligência teve início de madrugada e terminou às 18 horas do dia 1 de Maio de 1946, sempre debaixo de chuva. Que bateram todas as povoações e ribeiras da região e não encontraram nada. E a modos de justificativo, acrescenta:
«A maior parte da população presta-se a encobri-los, não sei se por receio, se por ganância, ou se por qualquer outra circunstância, mas em qualquer dos casos dão sempre o carácter de humanidade. Assim, nenhuma dúvida tenho de que o facto de ter sido nulo o resultado da batida, não se justifica que amanhã não se encontrem na região citada foragidos, pois passam com toda a facilidade a fronteira e, então, podem agora estar em Espanha e muito pouco tempo depois em Portugal. Todavia estes não serão capturados pelos processos de batidas até agora usados, pela muita facilidade que têm em se deslocarem em terrenos quase inacessíveis e de serem informados, mesmo à última hora, de qualquer movimento de tropas.»
Por um relatório do comandante da Batalhão 4 ficamos a saber que no mesmo dia 1 de Maio de 1946, se realizou idêntica diligência na região de Chaves.
Diz o relatório:
«Esta batida começou a ser preparada em 11 de Março, em colaboração com a Guarda-Fiscal, a PIDE e Guarda-Civil espanhola que foi quem marcou o dia que mais lhe convinha – 1 de Maio. No dia 30 de Abril findo concentrei em Chaves o pessoal dos postos de Santa Marta de Penaguião, Sabrosa, Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Pedras Salgadas, Vidago, Montalegre, Boticas e Valpaços, com o qual, reunido aos elementos do Posto de Chaves, se constituíram dois Pelotões comandados pelos tenente Álvaro Henriques Antunes e alferes José Maria de Mota Freitas, comandantes das Secções de Chaves e Vila Real, respectivamente.
O pelotão do tenente Álvaro foi enviado para o Mosteiro e região compreendida entre o rio Rabaçal e Travancas: S. Cornélio, Dadim, Bolideira; o do Alferes Mota de Freitas para o Cambedo, Couto de Ervededo, S. Caetano, Bustelo e região compreendida entre o rio Tâmega e os limites do concelho de Montalegre.
Prenderam, no Couto, o espanhol Sérgio Bramonde, o Vicente, por se encontrar indocumentado; em Bustelo, um português condenado em Montalegre por roubo. Do resto, mais nada. Tudo bem.
Pelos habitantes da região foi dito que não têm aparecido por ali espanhóis indesejáveis a não ser um de nome Salgado, (o Juan) o qual assassinou um guarda-fiscal há meses. Mas que esse mesmo já há muito não consta que por aqui apareça, parecendo-lhes que deve estar em Espanha.»
Que eu saiba, esta batida de 1 de Maio, a qual, pelos dados de que dispomos, mobilizou mais efectivos e teve maior envergadura do que a de 20 de Dezembro do mesmo ano, não suscitou grandes parangonas na imprensa, nem tempos de antena na rádio. E a diferença é esta. A de 1 de Maio não deu em nada. A de 20 de Dezembro deu em quatro mortos e alguns feridos. E deu porquê? O Juan se precipitou. Se, em vez de sair para a rua aos tiros, se esconde e se deixa estar quieto, o mais provável é que o resultado da segunda tivesse sido igual ao da primeira. Por estes elementos respigados nos arquivos da GNR, que estão longe de ser exaustivos, ficamos a saber que as autoridades de um e de outro lado da raia estavam a par, da presença dos guerrilheiros nas regiões fronteiriças, desde princípios de 1946 3). Não vejo onde caiba a denúncia da tal Remédios. Também me parece pouco provável que as autoridades tivessem conhecimento da concentração dos guerrilheiros no Cambedo, ou, mais propriamente, no monte das Choias, a que o Demétrio se referiu 4).
Demétrio, em data posterior aos acontecimentos do Cambedo
O certo é que, nessa madrugada do dia 20 de Dezembro, uma sexta--feira, os moradores do Cambedo acordaram estremunhados com todos os cães da aldeia a ladrar a rebate à porta dos pátios. Assomaram às janelas e viram guardas-republicanos por todos os cantos e esquinas.
Era o prelúdio da famigerada Batalha do Cambedo, cujas sequelas ainda hoje perduram.
Três dos cinco agentes da PIDE que nela tomaram parte, Hélder Cordeiro Alves, Otelo Puga e Vasco Guerra, enviaram, logo nos dias 22, 23 e 26 respectivamente, relatórios ao comando daquela corporação, todos eles a dizer que fizeram e aconteceram, de modo a encarecer o peixe aos olhos dos superiores.
Deles me sirvo para uma tentativa de encadeamento cronológico das contas deste rosário de sangue e lágrimas.
Como atrás se disse, logo após os sucessos de Negrões, PIDE, GNR e Guarda-Fiscal bateram os concelhos de Montalegre, Chaves, Valpaços e Vinhais à cata do que eles taxavam de «bandoleiros» ou «malfeitores» e de quem os apoiava e iam fornecendo o que conseguiam apurar ao comandante da Companhia da GNR de Vila Real. Este, quando se julgou suficientemente esclarecido, marcou o dia 20 de Dezembro para o início das diligências.
Às zero horas desse dia concentraram-se no posto de Chaves uns duzentos guardas-republicanos vindos do Porto, da Régua e de Vila Real.
O comandante dividiu-os em grupos e destinou um para cada uma das seguintes povoações: Nantes, Mosteiró de Cima, Sanfins de Castanheira, Sanjurge, Couto e Cambedo.
Partiram às três da madrugada.
O do Cambedo era chefiado pelo alferes Mota de Freitas. Nele iam integrados os pides Otelo Puga e Joaquim Alves, aquele vindo do Porto e este a prestar serviço no posto de Vila Verde da Raia.
Até Vilarelho, foram de camião. Daqui para a frente, a butes.
Chegaram às seis. O alferes Mota de Freitas postou o pessoal à entrada e à saída da povoação, na frente e nas traseiras das casas suspeitas, a saber: a da Escolástica, a do Adolfo, a do Mestre, a do Silvino e a da Engrácia.
Mas o pessoal de que dispunha não chegava para as encomendas. Na da Engrácia, a primeira à direita de quem entra no povoado, no sentido sul-norte, ficou apenas o pide Otelo Fuga de vigia à porta da rua e um guarda-republicano nas traseiras.
Pelas sete horas, o alferes Mota de Freitas e o pide Joaquim Alves, vêm comunicar que está tudo apostos para um ataque surpresa ao romper o dia.
Eles nisto, ouvem-se tiros nas traseiras da casa da Engrácia. Acodem todos ao local.
Otelo Puga vangloria-se de, e passo a citar «por intuição defensiva, fi-lo, por nossa felicidade, recuando e de pistola-metralhadora aperrada. Pelo que, depressa me apercebi de que dois indivíduos, com carabinas em bandoleira e com pistolas na mão, fugiam por entre umas pilhas de achas de pinho, que se encontravam a cerca de trinta metros de nós, juntas a umas medas de palha, num quinteiro defronte da casa de onde tinham partido os primeiros tiros».
Desfecha-lhes uma rajada. Os fugitivos atiram-se ao chão e ripostam.
Mota de Freitas, Joaquim Alves e o guarda-republicano entrincheiram-se atrás de uma parede e atiram também.
Nisto, a palha começa a arder e um dos fugitivos tenta a fuga. Joaquim Alves e o guarda-republicano lançam-se-lhe no encalço.
Otelo Puga continua a metralhar e sítio onde o outro se atirara ao chão, não fosse ele alvejar os colegas pelas costas.
Num gesto rápido, o primeiro fugitivo volta-se e mete dois tiros numa perna ao Joaquim Alves. O guarda-republicano recua e protege-se. Os outros acodem. Como o segundo fugitivo não tugisse nem mugisse, avançam para ele. Não encontram ninguém. Acorrem a prestar os primeiros socorros ao Joaquim Alves.
Mota de Freitas aproveita para despachar um estafeta ao Couto pedir a comparência das forças para ali destacadas e um outro a Chaves a comunicar ao comandante da Companhia o ocorrido e a pedir o envio de mais forças.
Otelo Puga obriga a Engrácia a abrir a porta e a fornecer a identidade dos fugitivos. Ela jura que, lá de casa, não saíra ninguém. Prendem-na 5).
Neste interim, grande alarido lá para a coroa do povo. Mota de Freitas envia dois guardas-republicanos a ver o que se passa.
Eles estugam o passo, rua acima. À curva da capela deparam com um grupo quase bíblico: um camponês com um macho pela arreata; um outro em cima do macho, escachapernado na albarda, com uma garotita nos braços; em redor, populares aos gritos.
Os GNRs interceptam-nos e inquirem. Falam todos ao mesmo tempo. Que a garota está ferida. Que é preciso levá-la ao hospital.
E mostram a perna da menina (6) com a tíbia e o perónio fracturados e expostos, envoltos numa toalha ensanguentada.
E o homem da arreata, pai da menina, explica. Estava ele a aparelhar o macho debaixo da varanda, quando uma saraivada de balas varreu a casa, a toda a largura. Ele cosera-se instintivamente com um poste de pedra. O macho fugira, espavorido. Mas a menina, que estava na varanda a atirar migalhas de pão às pitas, no suflagrante de se recolher dentro da cozinha, tombara na soleira da porta.
Os guardas duvidam. A casa atingida ficava bem à coroa do povo, a uns duzentos metros ou mais da casa da Engrácia, donde se haviam disparado os únicos tiros.
Os populares insistem na urgência de levar a menina ao hospital, antes que se escoe em sangue.
Os guardas-republicanos deixam passar o trio do macho. Os outros que fossem para casa.
Havia ordens de, genericamente, deter todos aqueles que tentassem entrar ou sair da aldeia. Mas este era um caso imprevisto.
Levam os dois camponeses e a menina ao comandante. Este reúne o estado-maior. Discutem demoradamente o assunto. Por fim acordam deixar, por especial favor, prosseguir a enferma e os dois acompanhantes caminho de Chaves, a umas três horas de jornada pedestre.
E com isto se derretem uns cinquenta minutos, findos os quais se ouvem tiros lá para a fronteira, a cerca de um quilómetro de distância, costa arriba.
A operação Cambedo havia sido montada de súcia entre as autoridades portuguesas e espanholas. Mota de Freitas sabia que a raia estava guardada por um forte contingente de guardas-civis. Conjecturou logo que os fugitivos (nessa altura ainda se supunha que fossem dois) haviam esbarrado nas armas espanholas e retrocedido. Ordena a um grupo de guardas-republicanos que bata a colina subjacente à fronteira.
E que os outros não descurem as entradas e saídas da povoação.
Acabavam de evacuar o pide Joaquim Alves, vem de lá, do fundo de um ribeiro que flanqueia o Cambedo pelo poente, no sentido norte-sul, o eco de um tiro. Mota de Freitas envia um GNR a saber o que se passa. O emissário vai a passo e regressa a correr, todo alvoroçado. Que um dos fugitivos fora morto. Quedam todos entre espantados e surpreendidos. No fundo ninguém ia a contar com mortes.
Mota de Freitas pergunta se alguém conhece o defunto. Todos o conheciam. Era o Juan, ou Facundo .
Neste comenos, chegam os vinte guardas-republicanos que haviam sido destacados para o Couto, sob o comando do sargento Meireles. Pelas onze horas principia a revista às casas. A primeira é a da Engrácia. Não topam nada de especial.
Passam à do João Valença, do outro lado da rua. Encontram o José Barroso, filho da Engrácia, deitado numa cama a fingir que ressona. Perguntam-lhe por que razão está a dormir em casa da vizinha, em vez de estar em casa da mãe. O rapaz não atina com uma resposta satisfatória. Prendem-no e passam à frente. Pelas treze horas, iam as buscas por alturas do quartel da guarda-fiscal, ouve-se de novo o ladrar duma pistola-metralhadora. Voltam-se todos para as bandas de onde os latidos tinham vindo. Vêem um guarda-republicano a tropeçar nas próprias pernas, olhos esbugalhados, lívido, sem fala. Rodeiam-no. Ele aponta o pátio da Albertina. Gagueja. Que haviam entrado três. Dois ficaram lá. Ele salvara-se por milagre.
E quem havia atirado? Não vira. Mas parecera-lhe que os disparos haviam saído de um palheiro.
Os guardas-republicanos e o pide ainda operacional quedam a olhar uns para os outros, atónitos, incrédulos, hesitantes. E agora?
Eis que chegam, vindos de Chaves, os guardas que haviam sido destacados para Nantes, sob o comando do tenente Santos. Com eles vinha o pide Vasco da Rocha Guerra. Parlamentam. Alguém levanta a hipótese de os sitiados se apoderarem das armas, ou mesmo das fardas, dos guardas mortos. Que fazer?
Prudentemente, por largo, a coberto de paredes e árvores, cercam um quarteirão de três casas que parecem comunicar umas com as outras.
A dada altura, assoma uma cabeça a uma janela. Otelo Fuga intima o curioso a recolher-se, se não quer ser alvejado. O curioso recolhe a cabeça, estende o braço e chispa fogo.
«Mais uma vez fui bafejado pela sorte...» – deixou escrito o Puga, muito ufano pela esperteza de se ter protegido com a umbreira de uma porta. Os outros protegem-se também. O caso estava a ficar sério.
Na bagagem dos recém-chegados de Chaves vinham algumas granadas de mão e bombas incendiárias. O tenente Santos manda incendiar o palheiro. Os engenhos são lançados. O palheiro, porém, resiste. Avançam as granadas de mão. Falham também. Então obrigam o Manuel Bárcia a incendiar o palheiro - «e em meia hora tudo ficou reduzido a cinzas, restando apenas de pé as paredes».7)
Já no pleno uso da língua, o guarda milagrosamente escapo, acusa uma das donas de casa de lhes ter dito que podiam entrar à vontade, que, ali, não estava ninguém. Trata-se de Manuela Garcia Álvarez, irmã do Demétrio e mulher do Manuel Bárcia. Prendem-na. Ela defende-se dizendo que não mentira. Que, em sua casa, não estava ninguém. Se houve tiros e mortes, isso foi no pátio da sua prima e vizinha Albertina Tiago. Perguntam-lhe pelo número de bandoleiros . Ela responde que ignora.
Obrigam de novo o Manuel Bárcia, como familiar e amigo dos espanhóis, a ir buscar os dois guardas mortos e respectivas armas.
Ele, de início, recusa. Ante a ameaça de fuzilamento, obedece.
Mas demora. Arrastar um cadáver ainda quente, de mais a mais de um guarda-republicano, não é tarefa agradável, nem fácil. Gritam-lhe que se mexa. Mas ele não tem pressa nenhuma.
Por fim aparece à cancela, às arrecuas, com o morto sopesado pelos sovacos, nádegas, pernas e botas a varrer o cisco do chão.
- Para aqui! - gritam-lhe detrás da esquina.
Ofegante, o Bárcia alija o cadáver no sítio indicado. Identificam-no. Trata-se do soldado de 1ª. classe do posto da GNR de Chaves, José Joaquim, de 34 anos, solteiro, natural da freguesia da Sé, Lamego. Está crivado de balas de alto a baixo 8).
Gritam de novo ao Mestre que se despache. Mas ele não se dá por achado. De vez em quando alija o cadáver e limpa o suor da testa ao canhão da véstia. Por fim, com um arranco de desespero e revolta, arrasta o outro cadáver para a rua principal, onde o comandante e respectivos lugar-tenentes o aguardam, cosidos com as paredes. Identificam-no: José Teixeira Nunes, 37 anos, natural da freguesia de Oliveira, Amarante, casado e pai de três filhos menores. Apresenta, na região posterior do tronco, nove orifícios correspondentes à entrada de outras tantas balas de calibre 9, disparadas à queima-roupa 9).
Tratam de despachar os dois mortos para Chaves. O tenente Santos aproveita para pedir a comparência do comandante da Companhia e o envio de mais granadas.
Ruínas da casa de Albertina, na actualidade
Enquanto isto, o tiroteio continua. Impossibilitados de sair de casa, pessoas e animais desesperam. Assustadas, as crianças choram. Espavoridas, as aves fogem das árvores e as galinhas das eiras. Incomodados pelas bombas e pelos tiros, os cães uivam, incessantemente. Apreensivos e tristes com a morte dos dois companheiros, os guardas só desejam uma coisa, que os espanhóis se rendam e o tiroteio acabe. Mas eles não se renderam, tarde fora, até a noite cair.
Para evitar que eles se aproveitem das trevas para se evadirem, os sitiantes incendeiam duas medas de palha situadas defronte da casa da Albertina, do outro lado da rua.
Neste meio tempo, arribam os guardas-republicanos que haviam sido destacados para Sanfins de Castanheira, sob o comando do tenente Antunes. Com eles, o pide Hélder Cordeiro Alves 10).
Trazem dois projectores eléctricos. Colocam-nos de modo a iluminar as traseiras da casa da Albertina.
Entretanto, noite dentro, vão chegando: o comandante da Companhia, capitão Alexandre Medeiros; um destacamento da PSP do Porto, e, com ele, o pide Vitorino Antero Alves; um pelotão de Caçadores 10, de Chaves, especializado em morteiros de campanha.
Instalam o comando no quartel da guarda-fiscal, casa de loja e sobrado, com duas janelas. A do norte dá para uma travessa de três metros de largura. Do outro lado ficam duas cancelas contíguas. A primeira de acesso ao eido do Manuel Bárcia; a segunda ao quinteiro da Adelaide Teixeira, de onde, a espaços, vêm rajadas de pistola-metralhadora.
O comandante em campo ordena a um agente da PSP, vindo do Porto, que arremesse granadas de gás lacrimogéneo sobre o «covil dos bandoleiros» cujo número toda agente calcula serem seis ou mais.
Mas o vento pica do norte e vira o feitiço contra o feiticeiro. Desistem. A noite, sem lua, está gelada. Uns sopram às mãos, outros batem os pés no chão. Há quem, sorrateiramente, deslize para dentro dos pátios, dos estábulos, dos palheiros e se recoste às paredes, armas em descanso.
No quartel da guarda-fiscal há uma braseira. Os maiorais avivam as brasas e trocam opiniões. Todos concordam em que eles não têm qualquer hipótese. Ou se rendem ou morrem. É tudo uma questão de tempo.
Dos habitantes do Cambedo, raro é aquele que consegue pregar olho. Pelas cinco horas, o palheiro incendiado extingue-se de todo.
O comandante recorre de novo a um PSP perito em foguetes luminosos. Estes, porém, chegam ao fim e o dia não há meio de romper. Então o pide Vitorino Aires oferece-se para incendiar outra meda de palha existente no local. O comandante aceita o alvitre. Mas a tarefa não é fácil, dado que o alvo fica no raio de acção das balas inimigas. O Vitorino aproxima-se o mais que pode e lança um fachuco de palha embebido em petróleo. Com tão boa fortuna que a meda se incendeia.
A aurora encontra o Cambedo transformado em campo de batalha: quartel-general, elementos de ligação entre os vários sectores, tendas de campanha, trem de abastecimentos, apoios logísticos, posto de primeiros-socorros.
Aperta-se o cerco à antiga morada da família Bárcia, agora subdividida em três facções autónomas: a do Mestre , a da sua irmã Adelaide, casada com um guarda-fiscal de nome Octávio (11) e a da sua prima Albertina: todas elas contíguas e comunicantes entre si pelos respectivos quinteiros. 12)
O pide Vitorino Aires, um agente da PSP e um guarda-republicano conseguem entrar nos baixos da casa da Albertina. Mas ao tentarem subir ao primeiro piso, ouvem zunir as balas rente às orelhas e põem o corpinho a salvo.
Então o comandante manda evacuar todas as casas em volta do quarteirão dos Bárcia, que vai ser bombardeado.
Os soldados de Caçadores 10 instalam-se num morro rochoso sobranceiro à povoação, a uns cento e cinquenta metros para nascente, e despejam uns trinta morteiros sobre o alvo.
A folhas tantas, aparece um homem de pistola-metralhadora em punho em cima dum telhado. Os artilheiros apontam-lhe os canhões. O homem desaparece. Os morteiros calam-se. O silêncio no quarteirão é tão profundo e prolongado que todos se convencem de que os bandoleiros estão todos mortos.
Aperta-se de novo o cerco. O pide Vitorino Aires e três polícias adiantam-se para o reconhecimento. São recebidos a tiro e recuam. Felizmente para eles, sem mazela de maior. Apenas um pequeno arranhão na face do pide, causado por uma pequena lasca de pedra que saltou sob o impacte de uma bala. À vista disto, o comandante manda alargar de novo o cerco. E os morteiros recomeçam.
A dado momento, grande alarido do outro lado da rua. O comandante manda fazer sinal aos soldados para suspenderem o bombardeamento e acorrem todos a ver o que era. Um rebo, que um morteiro fizera saltar de um muro, atingira um agente da PSP no peito.
Correm com ele em charola para o posto médico.
Reata-se o bombardeamento.
Ao cabo de uns setenta morteiros despejados sobre o quarteirão, dele não restam mais que ruínas fumegantes 13).
É tempo de apalpar de novo o terreno. Ansiosos por mostrar serviço e subir na hierarquia, os pides estão sempre na brecha. Vitorino Aires, acolitado por um grupo de agentes da PSP e guardas-republicanos mais afoitos, entra no pátio da Albertina e descarrega uma rajada de pistola-metralhadora contra uma porta que ainda se encontra intacta e fechada. Como ninguém responde, avança para ela.
De chofre, vem detrás da porta uma descarga traiçoeira. O pide dá um corcovo instintivo para o lado e corre para trás de uma parede (14). Sente um arrepio na perna esquerda. Levanta a perna da calça para ver o que era. Uma bala que lhe varara a coxa de lado a lado, logo acima do joelho. «Olha que sorte!» -suspira ele, ao reparar em mais cinco buracos no sobretudo... Como certos animais que se encarniçam à vista de sangue, volta à carga, desta feita contornando o muro pelo lado de fora, não fosse o diabo tecê-las. Repara num rombo de morteiro na parede, que se lhe afigura no enfiamento da porta donde havia sido alvejado. Mete o cano da pistola-metralhadora no buraco e despeja o carregador.
Enquanto aguarda resposta, ouve alguém gritar:
- Lá vai um!
Volta-se e enxerga um indivíduo a fugir em direcção ao monte. Lança-se-lhe no encalço. Mas já um guarda-republicano traz o homem catrafilado pela gola do casaco. Apenas um pacífico habitante do Cambedo que, aterrorizado com tanto morteiro e tanto tiro, dera às de Vila Diogo.
Como a perna continuasse a sangrar, o pide requisita uma toalha e atalha. Os camaradas levam-no, quase à força, ao posto de primeiros-socorros. Um médico faz-lhe o primeiro tratamento e aconselha a evacuação para o hospital de Chaves. O ferido jura que não sai do Cambedo sem se vingar. E volta ao campo de operações.
Mas eis que a perna se lhe inteiriça e recusa a andar. Embora contrariado, o Vitorino Aires consente na evacuação 15).
A esse tempo, já os agentes da PSP especializados em bombas incendiárias haviam conseguido lançar fogo ao que restava do palheiro e afins. Do montão de ruínas restam apenas um lagar e um pequeno forno intactos, a poucos metros um do outro. Conseguem colocar metralhadoras no enfiamento dessas dependências. Estabelece-se um pingue-pongue de tiro vai, tiro vem, que parece nunca mais ter fim.
Pelas dezasseis horas surge, ao cimo das escadas da casa contígua à da Albertina, um sujeito de certa idade. Prendem-no. É Primitivo Garcia Justo, pai do Demétrio. Enquanto o interrogam, o ataque ao lagar e ao forno intensifica-se. Descargas de metralhadora, granadas de mão, bombas incendiárias, disparos de carabina. Os espanhóis vão respondendo. Parcimoniosamente, como quem poupa munições. Até que se calam de vez. Os atacantes suspendem o fogo e aguardam, prudentemente.
Nisto, aparece à boca do forno um lenço branco. Pouco depois sai o Demétrio, de mãos no ar. Primeiro algemam-no. Depois esbofeteiam-no. Perguntam-lhe pelos companheiros. Responde que lá dentro está só o cadáver do seu camarada Garcia, que se tinha suicidado.
Notas:
1) - Citados por Santiago Álvarez in "Memória da Guerrilha", Edicións Xerais de Galícia, 1991, pp 97 e seguintes.
2) - «Por determinação superior, encontrava-me desde o dia 26 de Outubro passado, na região de Vinhais, Chaves e Montalegre» - pide Hélder Cordeiro Alves, « in Relatório sobre o que se passou no Cambedo». Segundo o pide Vasco da Rocha Guerra declarou no Tribunal Plenário do Porto, «o sargento Prieto, da guarda-civil espanhola, colaborou com as autoridades portuguesas na captura dos elementos do bando.»
3 - A 14 de Junho de 1946, o capitão Herculano São Boaventura, comandante do Quartel de Bragança, envia um ofício ao Sr. Comandante do Batalhão n.º 4 da GNR do Porto, onde diz: «Há indicações de que na região da Lomba, do concelho de Vinhais, nomeadamente nas áreas de Sernande e Contim, estão aparecendo refugiados espanhóis e bandidos do mesmo país que auxiliados por um ou dois larápios portugueses permanecem naquela zona;» De seguida solicita carta branca para utilizar o camião afecto a «esta sub-unidade» na caça aos ditos refugiados.
Um outro ofício oriundo do Quartel da GNR do Porto, com data de 17 de Setembro de 1946, manda louvar os soldados da 7.ª Companhia em serviço no Posto de Vinhais, Alfredo Augusto, Aleixo Fernandes e Cândido Augusto Pires «porque conseguiram descobrir e capturar, no dia 28 do mês findo, o chefe da quadrilha, um foragido espanhol, que resistiu, conseguindo dominá-lo depois de o terem ferido gravemente numa perna, tendo-o levado para o hospital de Bragança… onde lhe foi amputada a perna direita...» «O ataque foi feito nas margens do rio Rabaçal, junto à povoação de Sernande...» «O preso vai ser entregue à Polícia de Vigilância.» Este ofício, que nem sequer identifica o preso, vem provar que ainda há muita coisa que nós ignoramos a respeito dos guerrilheiros e da repressão que lhes foi movida.
4) - Correu, por essa altura, não sei com que fundamento, o boato de que os guerrilheiros teriam agendado para o dia 21 o assalto ao palacete do senhor Domingos Veiga Calvão, em Vilela Seca.
5) - Interrogada a 21 de Janeiro de 1947, na PIDE do Porto, a Engrácia manteve-se numa negativa inexpugnável: «Que nesse dia não se encontrava qualquer indivíduo na sua residência.» «Mais uma vez aconselhada a dizer tudo o que sabe sobre o assunto, visto já estar provado que não está dizendo a verdade, respondeu: Que nada mais tem a dizer. E mais não respondeu.» Inquirida de novo em 6 de Fevereiro, acabou por admitir que na noite de 19 para 20 de Dezembro, o Juan dormira lá em casa.
6) - Silvina Fernandes Feijó, felizmente ainda viva, mas infelizmente ainda a manquejar da perna, muito embora os peritos médicos a «dessem (ao fim de cento e dezoito dias de doença e impossibilidade de trabalhar) por completamente curada dos ferimentos descritos no exame directo deles não tendo resultado qualquer aleijão ou deformidade»...
7) - Depoimento do pide Otelo Fuga, no Plenário do Porto.
8) - Segundo o relatório da autópsia, umas treze ao todo.
9) - Do relatório da autópsia.
Para além deste dois, foram ainda feridos, com maior ou menor gravidade, cinco soldados da GNR, três dos quais, Jaime Ernesto Alves Leite, atingido por dois tiros num ombro, António Matias, a quem uma bala levou duas falanges do indicador direito e José da Fonseca Nunes, com escoriações no tórax e fractura duma costela por ter caído abaixo dum muro, foram para ao hospital de Chaves.
10) - «Em toda a parte de Castanheira, nomeadamente em Mosteiro, Sanfins, Santa Cruz e Cimo da Vila, foram revistadas todas as casas suspeitas nada sendo encontrado, mas foram feitas prisões dos indivíduos acusados de serem cúmplices dos malfeitores.», deixou escrito o Hélder.
11) - Após estes sucessos, o guarda-fiscal Octávio Augusto, a prestar serviço no posto do Cambedo, foi transferido para o Gerês, onde acabou por se suicidar.
12) - Alguns relatórios afirmam, não sei com que fundamentos, que os guerrilheiros tinham feito buracos nas paredes meeiras de modo a transitarem de uma para as outras.
13) - A casa da Albertina Tiago foi a que mais sofreu com os bombardeamentos. Ainda hoje se encontra em ruínas.
14) - Manuel Afonso Pinho, do Cambedo, esclareceu no Tribunal Plenário do Porto, «que o agente Aires foi ferido em frente da adega do Bárcia e não da Albertina.»
15) - Ao cabo de quinze dias de convalescença, os médicos deram o Vitorino Aires como completamente curado do ferimento, do qual não resultou qualquer deformidade ou aleijão.
Imagem de destaque: "Batalha do Cambedo" - Placa comemorativa dos 50 anos, colocada pelos galegos.
Como foi a política do PS e de Costa para endrominar o povo em véspera do Natal de 2019 é o que versa a crónica. Com o governo demitido e em plena campanha para outras eleições legislativas antecipadas não é despiciendo fazer o balanço, talvez ajude um pouco ao abre olhos aquando da votação de Março próximo.
O Natal não é igual para todos ou a privatização do estado
O “nosso-primeiro”, o Costa do PS, veio arengar às massas em véspera de Natal acerca da salvaguarda do Serviço Nacional de Saúde, apresentado esta questão como a questão nacional e prioritária do actual mandato do governo socialista. Não deixa de ser uma táctica habilidosa que chegou a criar algum desconforto e desnorte no seio dos partidos formalmente de direita e, de certo modo, tentar unir os diversos sectores da sociedade portuguesa no apoio ao governo quanto a uma matéria que é sensível à generalidade dos cidadãos. Mais uma habilidade made in Costa, que, entretanto, não consegue esconder os verdadeiros propósitos em relação à Saúde: a ministra Leitão parece ter recebido a missão de destruir a ADSE pela via da opção “mutualista”, uma modalidade que tão bom resultado deu nos últimos tempos no Montepio, em vez de contratar os 80 trabalhadores em falta a fim de começarem a tratar os 650 mil documentos de despesas já entregues e em situação de espera.
Enquanto o primeiro-ministro tentava endrominar o povo português, o monarca que passa por Presidente da República, e como chefe supremo das forças armadas, embora tenha fugido à tropa, visitava as tropas portuguesas estacionadas em Cabul, Afeganistão, numa pretensa “intervenção humanitária e “luta contra o terrorismo” e “defesa das liberdades”, nem que seja para os países ocidentais aí defenderem uma classe política vendida e corrupta e cujo objectivo verdadeiro é proteger o cultivo e o comércio do ópio, para além da geo-estratégia. A recente divulgação dos Afghanistan Papers, pelo insuspeito “Washington Post”, mostra bem a natureza da intervenção dos países da Nato: saqueio, mentira e corrupção. É a Nato (OTAN, na sigla portuguesa) que promove e incorpora o verdadeiro terrorismo.
Estamos habituados que quando alguma grada figura da Igreja Católica vem a público botar faladura saia grossa asneira, foi o caso do bispo do Porto que, aproveitando a época e discordando de um hipotético “desinvestimento” do estado nas IPSS detidas pela ICAR, arrotou a hóstias: “o Estado não é pessoa fiável”.
É fácil, dá jeito e parece bem que se faça caridade e beneficência diversa com o dinheiro alheio, o bispo queixa-se que o estado está a comparticipar “apenas” com 30% do necessário à sobrevivência de muitos centros sociais e paroquiais que, mantendo-se a situação, correm o risco de encerrar, tendo o dislate de comparar a situação com a do regime liberal do século XIX que conduziu ao confisco dos bens religiosos, que, por sua vez, tinham sido roubados ao povo. Mas, pergunta-se: o que faz a Igreja Católica ao dinheiro e à riqueza patrimonial que possui, já que até está isenta de impostos? A verdadeira caridade é aquela que é feita à custa própria. A ICAR sempre se posicionou na primeira linha no assalto aos dinheiros públicos e aos bens do povo. Não contente em querer privatizar o estado, a ICAR ainda beneficia de situação de excepção, como o estado não fosse laico e republicano, mas confessional: o presidente da Câmara da Guarda decretou dois dias de luto municipal, com bandeira a meia haste, em homenagem ao cónego Geada Pinto, que morreu no hospital público da cidade.
Infelizmente, não é só um bispo idiota que somos obrigados a ouvir, o ministro do Ambiente, o imbecil já habitual, veio dizer ao povinho que a melhor forma de evitar os prejuízos para as aldeias ribeirinhas do rio Mondego, quando este “bazófias” resolve transbordar, é mudá-las de sítio. O ministro, que é muito provavelmente o mais corrupto de todo o governo e, ao que parece, o mais cretino de todos, não teve a mesma ideia em relação à Celtejo quando esta entende, impune e livremente, poluir o rio Tejo; indústria esta que foi deslocada para o Sul da Europa por essas mesmas razões, de ser extremamente poluidora e predadora do meio ambiente. Ainda iremos ouvir desta boca mal cheirosa a ideia de mudar a capital do país para lugar mais seguro já que se encontra em cima de uma falha geológica particularmente instável.
Estas alarvidades que o Costa deixa para os seus ajudantes servem para esconder as responsabilidades do governo em não ter concluído as obras do Rio Mondego, que foi, por ideia de Mário Soares e executada por alemães, encanado artificialmente para levar água às celuloses situadas na parte sul do concelho da Figueira da Foz, e aí instaladas pelos suecos que assim se livraram da poluição do pé da porta. O regadio veio como que acréscimo, daí a não conclusão das obras, e para culturas intensivas e de agrado da União Europeia, esquecendo-se que as cheias do Mondego sempre foram uma maneira de fertilização dos terrenos pelo aluvião acarretado.
Não é só a Igreja Católica que quer abocanhar o estado, ficamos a saber nesta época natalícia entre outras coisas que:
- O governo PS/Costa e a Fertagus assinaram o acordo de “reposição do equilíbrio financeiro” do contrato de concessão da travessia ferroviária na Ponte 25 de Abril, que iria terminar agora mas como a empresa não tinha, ou não estava disposta a ter, os oito milhões que devia ao estado (Infraestruturas de Portugal SA), alegadamente por “um aumento imprevisto da taxa de uso que não estava contratualizado”, para além dos ganhos com os passes sociais, vê assim a prorrogação da concessão até 2024.
- O Novo Banco perdoou 24 milhões para salvar rei dos cogumelos, o dito “maior produtor português de cogumelos”, que teve o privilégio de visita real do PR Marcelo, possivelmente, mais selfie e beijoca; o verdadeiro artista e empreendedor nacional, com dívidas de 60 milhões de euros, mas que vê agora o negócio (e vigarice) salva com um “haircut” de 70% por parte da banca credora, com os credores comuns a perderem praticamente 100% dos seus créditos. Uma maravilha, é tão bom pagar tão pouco, ou seja, ser empresário neste país com o dinheiro dos outros, com garantia a 100% se o negócio não correr bem. O Zé paga sempre, ou directamente, ou através dos tais “apoios” à banca privada. Será para questionar: em quanto ficará o Novo Banco (BES) no final da operação de resgate? Não será somente os milhões já aí enterrados, serão 4 mil milhões, serão 5 mil milhões, seis mil milhões de euros? Ninguém sabe.
- Ah, e mais outra, o presidente do Crédito Agrícola, com o conhecimento do Banco de Portugal, pagava dois mil euros à mulher para lhe prestar… “estabilidade emocional”. Quando é que a banca pagará o mesmo a cada um dos cidadãos portugueses para o mesmo efeito, já que agora até seria uma boa altura para o fazer?!
- E o estado (APA, Agência Portuguesa do Ambiente) só “consegue” cobrar 24% das multas decididas sobre as empresas que foram apanhadas a poluir, porque não serão todas. Entretanto, através das Finanças, e só até 1 de Dezembro, já penhorou 58 mil e 752 salários a trabalhadores que não cumpriram com as suas ditas obrigações fiscais. Declaradamente, dois pesos e duas medidas.
Quando se fala num potencial sucessor de Yasser Arafat o nome mais citado é, de facto, o de Marwan Barghouti. A sua condenação perpétua não retira a esperança aos que gostariam de o ver como futuro líder. Muitos evocam o exemplo de Nelson Mandela, libertado pelo regime de apartheid de uma reclusão vitalícia para se tornar no primeiro presidente de uma África do Sul multirracial. É muitos observaram também que, mesmo atrás das grades, Barghouti negociou um cessar-fogo com os islamistas e apoiou o plano de Sharon para a retirada de Gaza.
Barghouti foi condenado por três acusações de assassínio – as únicas que um tribunal de Telavive considerou válidas – das 37 que lhe foram imputadas. Para um grande sector da opinião judaica, ele mereceu o castigo, mas o responsável da Fatah na Cisjordânia nunca reconheceu a autoridade dos três juízes que ele acusava de estarem "ao serviço da ocupação". A sentença diz respeito ao seu alegado envolvimento no assassínio de três judeus israelitas e de um monge grego em três ataques separados, em Janeiro, Março e Junho de 2002. Apesar da condenação, os magistrados concluíram que não podia ser atribuída ao arguido responsabilidade directa na maior parte dos atentados incluídos no seu processo -porque, reconheceram, ele não controlava todos os operacionais envolvidos e também porque ele se opunha a ataques "dentro da linha verde" [Israel].
Apesar de preso ou por estar preso, a influência política de Barghouti não foi abalada. Pelo contrário, a sua popularidade chegou a ultrapassar a de Arafat. Regressado em 1994 à Cisjordânia, depois de sete anos de exílio forçado, Barghouti defendeu os Acordos de Oslo assinados no ano anterior. Para o "shebab" (jovem) activista da primeira Intifada, doutorado em Relações Internacionais pela Universidade de
Bir Zeit e professor da disciplina de Democracia e Sociedade Civil na Universidade de AI-Qods, Oslo representava "a mais importante conquista palestiniana" desde que a Fatah decidiu, em 1965, pegar em armas para reconquistar a pátria perdida em 1948.
Em 1996, Barghouti foi eleito deputado do Conselho Legislativo Palestiniano. Manteve o diálogo com todos os sectores da sociedade política israelita - esquerda, centro e direita -, convencido de que o seu principal aliado na luta pela liberdade eram os judeus de Israel. Queria persuadi-los de que também os palestinianos têm direito a um Estado.
A desilusão cresceu à medida que o processo de paz se afundava. Uma das acções israelitas que mais ressentimento causou a Barghouti foi o assassínio de Raed Karmi, operacional da Fatah na Cisjordânia.
Esta execução, por ordem de Sharon, foi considerada uma provocação imperdoável, tanto mais que foi levada a cabo após um raro apelo televisivo de Arafat (influenciado por Barghouti) para que todas as facções palestinianas respeitassem uma trégua. Barghouti sentiu-se traído porque tanto os governos trabalhistas como os do Likud faziam equivaler Oslo a uma nova forma de "despojamento" dos palestinianos. Em Junho de 2000, quando o entrevistei no seu gabinete em Ramallah, na Cisjordânia, no intervalo de uma das suas muitas audiências com embaixadores estrangeiros, dizia:
Creio que vai haver muitos e grandes confrontos com os israelitas. Se não houver progressos reais, creio que vamos ver um novo modelo de acções militares e de ataques. Até agora os israelitas têm estado a brincar. Para eles, a paz é um trabalho em 'part-time" e não uma missão a tempo inteiro. Estão a perder a oportunidade. E a fazer perder a oportunidade aos palestinianos. Eles não vão encontrar uma liderança corajosa como a do senhor Arafat para resolver estas complicadas questões. Os israelitas querem paz sem devolver território. Isso não resulta. Têm de pagar o preço. Porque nós já pagámos o preço. Reconhecemos Israel nas suas fronteiras de 1948, ou seja, em 77 por cento da Palestina histórica. O que sobra é 23 por cento da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém. Antes de, em 1947; a ONU prever a partição da Palestina em dois Estados, os palestinianos controlavam 94 por cento do território da Palestina. Apesar disso, a ONU decidiu dividir a Palestina: 56 por cento para os judeus e 42 por cento para os palestinianos, e os 2 por cento de Jerusalém como zona internacional. Israel estabeleceu o seu Estado não só nos 56 por cento previstos pela ONU; mas ocupou mais 21 por cento do Estado palestiniano, totalizando agora 77 por cento. Quando dizem que "ninguém poderá ficar com 100 por cento", o que querem dizer? Isso significa a partilha dos 23 por cento ocupados por Israel. Estão sempre a pedir aos palestinianos que sejam flexíveis. Assim não conseguirão paz.
Quanto à Autoridade Palestiniana, Barghouti criticava a "velha guarda" por corrupção interna e pelo "derrotismo" exibido nas negociações com Israel. Em 2000, Barghouti já não estava a olhar para a esquerda israelita mas para o exemplo do movimento xiita Hezbollah, que forçou o fim da ocupação do Sul do Líbano. Reconhecia, porém, que "Israel não é o clássico colonialista que se combate e regressa a casa": [Depois da vitória do Hezbollah], os palestinianos tornaram-se de certo mais optimistas de que Israel se vai retirar e de que a ocupação vai acabar, finalmente! Os israelitas também se aperceberam do impacto. E o importante é que isto aumentou a pressão sobre a liderança palestiniana e sobre o senhor Arafat, pessoalmente.
A partir de 2000, Barghouti tornou-se o tribuno de uma nova geração de milicianos da Fatah. Actuava em concertação com os grupos islamistas e não contra eles. Definiu a "Intifada armada" como a "guerra de independência" palestiniana. Considerado o chefe da organização político-militar Tanzim (da qual fazem parte as Brigadas dos Mártires de AI-Aqsa), Barghouti foi capturado em Ramallah, em Abril de 2002 durante a reocupação militar da Cisjordânia. Houve quem notasse que, ao contrário do que aconteceu a outros activistas palestinianos, Sharon não quis matar este "terrorista". O seu julgamento, num tribunal civil de Telavive, serviria para criminalizar a liderança palestiniana que Barghouti representava e a causa por que lutava.
Terá havido outro motivo. "Prometo que Barghouti não será morto", disse à revista Jerusalem Report um responsável israelita dos serviços de segurança que não foi identificado. "Preferimos Barghouti a alguém que não conhecemos. E, mais do que isso, tem potencial como um pragmático da 'jovem guarda'. Ele pode mesmo vir a ser um líder." Pra alguns analistas israelitas, o facto de Barghouti não ter sido assassinado pode realmente abrir caminho à possibilidade de um dia ele poder vir a transformar-se no "Nelson Mandela palestiniano". Ao contrário de Arafat, que falava árabe com sotaque egípcio e não dominava o inglês, Barghouti conhece bem a língua do inimigo. Exprime-se fluentemente em hebraico, ensinado pelos seus guardas prisionais, durante a primeira Intifada (1987-1993). Na actual cela, lê os diários Yediot Ahronot e Ha'aretz , os de maior influência, respectivamente, à direita e à esquerda em Israel, dos quais é assinante.
Mais próximo dos movimentos islâmicos do que qualquer outros subsequentes assassínios selectivos levados a cabo pelo exército israelita na Cisjordânia. Barghouti já tinha, porém, mostrado o poder da "jovem guarda" que ele representa.
Em Abril de 2004, em nome de todos os prisioneiros, Barghouti distribuiu um comunicado a apoiar o plano de Sharon de uma retirada total de soldados e colonos da Faixa de Gaza, exortando as facções palestinianas a cessarem todas as formas de resistência armada. Na sua opinião, trata-se "do mais importante resultado da Intifada depois de 10 anos de Oslo, em que nem sequer uma simples caravana foi afastada e o número de colonos duplicou".
Ao exigir "plena soberania palestiniana" em Gaza, Barghouti explicou o que pretendia: marcar uma data para eleições locais e obter um claro compromisso entre os vários grupos quanto à forma de Gaza vir a ser gerida pós a retirada israelita. Para Barghouti, reformas democráticas são essenciais para obter a independência. Por essa razão, muitos o vêem como o único que poderá suceder a Arafat e fazer a paz com Israel. Um dado curioso: recentemente, Barghouti foi retirado do regime de isolamento a que tinha sido submetido para contrariar o peso dos candidatos do Hmas nas eleições para representante dos prisioneiros. Dizia-me ele, em Junho de 2000:
Lembro-me quando fui preso, pela segunda vez, durante a invasão do Líbano de 1978. Durante o interrogatório, depois de 32 dias de tortura, garanti que haveria de ter um Estado e que a Palestina haveria de ser libertada. Disseram-me: "Estás a sonhar. " Em 1987; quando fui deportado - oi Ehud Barak [na altura chefe do Estado-Maior do Exército de Israel] que assinou a minha ordem de deportação -, um oficial israelita gritou-me, na fronteira: "Nunca mais voltarás a ver a Palestina! " Eu espondi-lhe: "Havemos de voltar! " E cá estamos nós na Palestina, parcialmente libertada. Espero que um dia possamos cooperar em conjunto com a nova geração de Israel.
Barghouti poderá não ser o próximo presidente, mas na cadeia vai-se preparando para a liderança. Inquirido pelo jornal Le Monde sobre a existência de uma personalidade suficientemente carismática para suceder a Arafat, o escritor francês de origem palestiniana Elias Sambar respondeu: "O carisma é uma construção. Não se nasce carismático. O mesmo se pode dizer da estatura histórica. (…) Aquele que vai governar o país tem de beneficiar do reconhecimento, não apenas de cada cidadão mas também dos regionalismos bem enraizados no tecido social palestiniano. Yasser Arafat conseguiu federar simultaneamente as regiões e todos os sectores do exílio. Antes de ser uma organização, a OLP era uma espécie de território muito particular para onde convergiam todas as partes do corpo. Muito cedo Arafat surgiu como aquele que permitiu a edificação desse território."
(Retirado de “ARAFAT, a pedra que os palestinianos lançaram ao mundo” de Margarida Santos Lopes, ed. Público, 2004)
Pensemos em Timor-Leste, território onde ocorreram alguns dos piores massacres cometidos sobre as populações desde o Holocausto, ao que parece graças ao apoio dos EUA e da Grã-Bretanha (ajudados por outros, muito certamente), nomeadamente através de apoio diplomático, assistência militar essencial e falsificações e negações igualmente fundamentais. Não deveria ser necessário analisar os factos, cuidadosamente suprimidos durante os piores dias dos massacres (numa situação em que acabar com eles teria sido muito mais simples e não acarretaria custos suplementares), e que muitas vezes ainda continuam a ser negados...
Após 25 anos de horror, foram finalmente tomadas algumas medidas para permitir que o povo torturado do território de Timor-Leste pudesse exercer o direito à autodeterminação que tem vindo a ser defendido pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e pelo tribunal Penal Internacional.
O governo Indonésio acedeu a que se efectuasse um referendo, em agosto de 1999, no qual os timorenses poderiam escolher ou rejeitar a “autonomia” no seio da Indonésia. Era quase um facto consumado para todas as partes envolvidas que se o voto fosse minimamente livre, as forças apoiantes da independência acabariam por vencer. O exército de ocupação indonésio (ABRI/TNI) movimentou-se de imediato para evitar esse resultado. A primeira medida foi a constituição e a organização de forças paramilitares destinadas a matar, torturar e aterrorizar a população, ao mesmo tempo que o ABRI adoptava uma atitude de “negação plausível”, que rapidamente entrou em colapso face à presença de vários observadores estrangeiros (nomeadamente os jornalistas australianos, o Ministro dos Negócios Estrangeiros irlandês, os trabalhadores das organizações de assistência humanitária, etc.), que denunciaram de imediato que o ABRI fornecia armas e concedia treino militar aos assassinos, permitindo-lhes igualmente a movimentação e a acção em total liberdade.
Só em Abril de 1999, deverão ter sido massacrados mais de cem pessoas, mais do dobro do número de pessoas mortas em Racak, incluindo aproximadamente sessenta pessoas mortas numa igreja de Liquiçá, a 6 de Abril, segundo números fornecidos pela Fundação para os direitos Humanos e Legais, de Díli, que apresentou uma lista com todos os nomes das pessoas falecidas. Milhares de pessoas foram obrigadas a fugir a um ataque terrorista acabando por se refugiar numa igreja, que foi atacada por soldados e paramilitares, cujo objectivo era “assassinar todas as pessoas que estavam no interior da igreja”, segundo escreveu o pároco num jornal local.
(.....) Suai. Díli.
As milícias do ABRI são “esquadrões da morte bem organizados, orientados por um poder secreto, ou parcialmente escondido – expressão pública de uma inteligência secreta e calculista”. O mais importante especialista australiano em questões relativas ao exército indonésio afirma que as milícias “na sua essência [são] uma extensão do TNI [ABRI]” secretamente organizadas em Outubro de 1998 “para implementar uma guerra em representação do exército contra as forças de independência”.
“A população de Timor-Leste pede desesperadamente ajuda mas, mais uma vez, continua a ser abandonada pela comunidade internacional”, observou, com toda a exactidão, o comentador australiano Andrew MacNaughtan. Mas não devido à falta de informações. O Conselho de Segurança reuniu-se depois de uma “chacina sangrenta” ocorrida em Díli, em meados de Abril, para ouvir um relatório do seu enviado especial a Timor-Leste, após o que o Brasil e o Japão (que tradicionalmente era um apoiante entusiástico do Governo indonésio) apelaram para que fosse exercida alguma pressão sobre a Indonésia de modo a acabar com a violência...
Com e que os guardiões da virtude responderam às últimas fases das atrocidades indonésias que há muito apoiavam? O novo Partido Trabalhista assumiu o governo com uma “política Externa ética” sob a orientação de Robin Cook que anunciou: “assumimos um forte compromisso no sentido de não permitirmos a venda de armas a regimes que possam utilizá-las para a repressão ou para a agressão”. Mas “não impede a venda de veículos blindados a um regime com um dos piores historiais no que diz respeito aos direitos humanos, segundo afirmam algumas fontes”.
O governo britânico aumentou gradualmente, e de imediato, as vendas de armas à Indonésia, concedendo cinquenta e cinco licenças de exportação de material militar, ao mesmo tempo que “reconhecia que o equipamento britânico estava a ser usado contra os manifestantes” pró-democracia na Indonésia. “Algumas das autorizações incluiam armas de pequeno porte, metralhadoras, bombas, agentes químicos usados para o controlo de motins e também agentes tóxicos, sistemas de vigilância, ‘produtos blindados’, equipamento electrónico especialmente concebido para uso militar, e aviões”; o Governo concluiu igualmente a entrega de aparelhos de combate Hawk, destinados ao uso em qualquer tipo de terreno e que eram os mais aguardados. “O Partido Trabalhista exporta mais armas e outro tipo de equipamento militar para a Indonésio do que o Partido Conservador, apesar da muito publicitada ‘política externa ética’ de Robin Cook”, anunciou a imprensa, ao passo que “as vendas de armas de pequeno porte, incluindo metralhadoras, atingiram mesmo o dobro com o Governo Trabalhista”.
Como justificação, o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico citou algumas melhorias na situação de Timor-Leste. As armas britânicas são usadas para esmagar as desordens em Timor-Leste, comunicou um adido da defesa indonésio na televisão britânica, tal como acontece na própria Indonésia. Os fabricantes de armas “têm provavelmente mais facilidade em aprovar as respectivas licenças de exportação com o Partido Trabalhista do que acontecia com o Partido Conservador”, escreve John Pilger: “Menos de um por cento das candidaturas foi recusado” durante o primeiro ano do Partido Trabalhista no poder. Uma política externa ética (é) excelente... Quanto aos EUA, Clinton assinou legislação no congresso para banir o uso de armas dos EUA em Timor-Leste e a formação e treino do ABRI. Mas sem um controlo cuidadoso a sua assinatura não vale nada, tal como ficou demonstrado no passaso quando Clinton recorreu a vários dispositivos para escapar às restrições do Congresso relativamente ao treino concedido aos oficiais indonésios, provocando enorme irritação no Congresso, mas poucos reparos em outras paragens.
Não se ouviu qualquer apelo dos Novos Humanistas para a retirada das forças militares indonésias ou para o envio de uma força significativa de observadores da ONU. Bem pelo contrário. Parece até que impediram o envio dessa força, Segunda informa Farhan Haq, das Inter Press Service (IPS), a partir das Nações em de Nova Iorque: “As esperanças da ONU de enviar rapidamente monitores da polícia para conter a situação cada vez mais volátil em Timor-Leste atingiram um novo impasse, com o Presidente Bill Clinton a ver-se forçado a adiar a aprovação desse envio pelos EUA até consultar o Congresso”.
(...)
Atara
Fundação para os Direitos Humanos e Legais de Díli descreveu a “atmosfera de medo” como a pior desde o período que mediara entre 1975 e 1989, “quando o território atormentado pela violência permanecera fechado aos estrangeiros”. “Todos os dias têm sido marcados pela violência, por raptos, torturas, mortes, saques e fogo posto direccionados contra os habitantes de Timor-Leste, em todo o território”, comunicou a Fundação.
(...)
J. Langguth (antigo correspondente do New York Times) manifestou a sua irritação durante a primeira grande discussão sobre a chacina indonésia apoiada pelos EUA em Timor-Leste após vários anos de governo e de falsidade da imprensa, e depois do silêncio completo – literalmente, completo – enquanto a limpeza étnica e as atrocidades atingiam o seu ponto alto em 1977-78, alcançando níveis que muitas pessoas consideram ser de genocídio, com um total de aproximadamente duzentas mil pessoas mortas, mais de um quarto da população. Langguth objectou, com bastante clareza, que “se o mundo se virasse de imediato para Timor, não serviria de nada para melhorar a situação de um único habitante do Camboja”.
(O Novo Humanismo Militar – Lições do Kosovo, Noam Chomsky – Campo das Letras, 2001)
Crónica escrita alguns dias antes das eleições legislativas antecipadas de 2022, as questões que então levantámos são, em linhas gerais, as mesmas de agora. A maioria absoluta do PS não funcionou quanto aos objectivos que o establishment lhe propôs. A situação que sair depois de 10 de Março, com ou sem maioria e independentemente do partido que ganhar as eleições, não será muito diferente, o pântano não é apenas político, é acima de tudo económico.
Gente com pouca vergonha e os medos da burguesia indígena
As eleições antecipadas são daqui a três dias, e não deixa de ser patético o corrupio dos partidos do establishment na caça ao voto, insistindo com os pretensos eleitores hesitantes para irem votar, de preferência nos dois do costume. Quase dizendo: ou vão a bem ou vão a mal. Parece-nos que nas próximas eleições o voto será obrigatório, um pouco à semelhança da vacina contra a covid-19: quem não votar, será fortemente penalizado. As razões desta neurose obsessiva são mais que evidentes.
A abstenção não deixa de assustar porque, se for elevada, é sintoma de que o regime se encontra em estado já avançado de descrédito, e este regime é ainda assim o que reúne melhores condições para que a burguesia vá arrancando a mais elevada taxa de mais-valia, contando com a anuência dos trabalhadores que são explorados.
O outro temor das elites e dos seus homens de mão nos partidos do regime é a hipótese de não sair das eleições de 30 de Janeiro uma maioria na Assembleia da República que permita formar um governo estável e forte. Capaz de impor ao povo português as medidas económicas e políticas suficientes para que se relance o crescimento económico tão desejado; ou seja, retirar o capitalismo nacional da sua situação de crise crónica e em vésperas de entrar em coma.
A ideia das duas maiores organizações partidárias, que mais não são que duas fações de um mesmo partido do regime, de algum dia poderem vir a perder votos de forma significativa talvez seja o principal pavor; não só dos ditos, como da própria burguesia que ainda não possui alternativas credíveis. E será fácil prever que, com o andar da crise e do descrédito deste sistema partidário, estes partidos que surgiram com o 25 de Abril irão desaparecer inapelavelmente.
Ninguém se esqueça que o PS é o partido da Alemanha, criado com os dinheiros da Fundação que tem como nome Friedrich Ebert, o primeiro-ministro social-democrata alemão que mandou assassinar os revolucionários Rosa Luxemburgo e Karl Liebknetcht, e no tempo de Willy Brandt; soube-se agora que este era informador da CIA e recebia até uma mensalidade para bufar. E com uma missão: enfiar Portugal na então CEE.
Terá sido mais a entrada da CEE em Portugal do que o contrário, com o resultado imediato da destruição de grande parte do nosso aparelho produtivo. Processo que iria acontecer mais cedo ou mais tarde, mas que foi acelerado para não se fazer concorrência aos países mais desenvolvidos da Europa, especialmente a Alemanha, a considerada “fábrica” da União Europeia. Depressa passamos de produtores, embora fracos, a consumidores, e o resultado está aí: Portugal possui a 3ª maior dívida pública da União.
A dívida, pública e privada, constitui neste momento o principal problema do país, mas sobre esta questão, os partidos nada dizem. Pressupõe-se que será para pagar, pela simples razão de que é o povo que a paga e é a burguesia que dela beneficia. Isto é, viver com o dinheiro do povo é fácil; no entanto, só irá prolongar a agonia da economia nacional. É nesta perspectiva, e daí o rebuliço dos partidos e dos representantes dos patrões, que se irá gastar os milhares de milhões de euros da ansiada “bazuca”. A nossa burguesia rentista está impaciente e os seus partidos enervam-se com a eventualidade de não virem a receber a percentagem ou a propina devida pela intermediação.
O presidente da CIP – sempre o mesmo e incansável “empresário de sucesso” que herdou uma empresa e a enfiou na falência e os trabalhadores no desemprego e que é bem o símbolo da nossa burguesia compradora e rentista – vem de novo reclamar a Marcelo entendimento entre os dois partidos da governação; e a estes a “coragem” para fazer as “três reformas essenciais”, sendo uma delas reduzir os funcionários públicos para compensar a redução dos impostos aos patrões. E uma das outras, que está implícita naquela, é a privatização de todos os serviços de carácter social que o estado ainda vai prestando. Pela redução dos funcionários públicos, forçosamente que a Saúde, a Educação, a Segurança Social, as Águas, etc. serão entregues aos privados.
Sobre estes assuntos, Saúde, a Educação, a Segurança Social, as Águas, os partidos da governação ocultam o óbvio. Os dois defendem a privatização, a diferenças entre eles consiste somente no modus operandi: o PS vai privatizando aos poucos e disfarçadamente; o PSD vão à bruta e sem disfarces. O mesmo se passa com a desvalorização dos salários, seja dos trabalhadores do estado, seja do privado: o PS, com aumentos abaixo da taxa de inflação, vai baixando o salário real dos trabalhadores e, sem mexer nas tabelas de retenção do IRS, baixa também o salário nominal de algumas franjas dos trabalhadores, o mesmo acontecendo com os pensionistas; o PSD vai logo para a retirada dos subsídios, como aconteceu no governo de má memória de Passos/Porta. Um pratica a política da cenoura, o outro a política do cacete; fazem lembrar o pide bom e o pide mau do tempo do fascismo.
Os candidatos ao pote desmultiplicam-se em declarações e cambalhotas, prometendo o que sabem de antemão que não irão cumprir, apagando da memória promessas semelhantes feitas no passado e que logo no dia seguinte ao apuramento dos votos se esqueceram, para aplicar na prática as políticas impostas por Bruxelas, cujo objectivo principal consiste em resolver a crise económica e financeira da Alemanha e dos principais países do centro à custa dos países da periferia e menos desenvolvidos. A manutenção de Portugal como consumidor e capacho da Europa é para continuar.
E tanto o PS como o PSD estão firmemente dispostos a continuar a desempenhar o papel que sempre cumpriram até agora - e já lá vão 47 anos, quase tanto como o regime fascista! - e para não desmerecerem a confiança estão dispostos a tudo, dando o dito pelo dito sempre que necessário. Rio diz que nunca foi contra o aumento do salário mínimo; no entanto, é fácil apanhar a mentira, basta procurar declarações feitas ainda num passado recente em que se ouve dizer que o aumento do reles salário iria fazer perder competitividade às empresas nacionais e aumentar o desemprego.
Costa vai escondendo o mal que tem feito, querendo apresenta-lo como uma grande obra, mais concretamente, o SNS e a gestão da pandemia – esta, outro assunto que os outros partidos não questionam e nem sequer mencionam -, não explicando por que carga de água o SNS fechou praticamente para as outras patologias, provocando mais mortes por excesso e mais listas de espera para todos os cuidados de saúde em geral. E, uma questão incontornável, quantos dos 3500 lares ilegais, encontrados no início da pandemia, foram encerrados e substituídos por lares da rede pública que deveria existir, mas que não existe sequer? Para além dos ataques às liberdades e direitos dos cidadãos a pretexto do combate à pandemia.
Costa quer, agora após conhecer que as sondagens (feitas à medida) que o colocam longe da maioria absoluta, apagar a arrogância manifestada no início da campanha e vem de novo dar uma de abrangência e de conciliação. Para dizer-se: entradas de leão, saídas de sendeiro! Mas mais oportunistas ainda são o PCP e o BE que foram usados na discussão do OE-2022, na medida em que o próprio Costa era o menos interessado que fosse aprovado, para depois terem sido responsabilizados pelo insucesso e para de imediato, durante os debates, Jerónimo e Catarina serem humilhados e achincalhados, por uma personagem que do caracter e da hombridade não se pode orgulhar. A ânsia de enfiar a mão no pote revela bem a falta de vergonha de toda esta gente. São bem a imagem do regime democrático burguês saído do 25 de Abril.
Soube-se há pouco, e sem surpresa para ninguém, que “Portugal (está) estagnado no índice de percepção da corrupção”. E terá sido a “pandemia de covid-19” o pretexto para os governos (burgueses e capitalistas) de todo o mundo abrandarem o combate à corrupção, segundo a Transparência Internacional. Como se pode constatar, a “pandemia” serve de pretexto para tudo e mais um par de botas. Serve para explicar a crise económica e o seu agravamento nos últimos anos, serve para justificar a política de recapitalização das empresas falidas (não são apenas os bancos como aconteceu em 2008 com os subprimes), serve para desculpar a degradação acelerada do SNS, irá servir para justificar a elevada inflação que se avizinha e perdoar as medidas celeradas de austeridade a redobrar que a burguesia se prepara para lançar sobre os trabalhadores e o povo. E para encobrir a natureza intrinsecamente corrupta da nossa classe dirigente.
Os tempos mais próximos, como não nos cansamos de alertar, vão ser de guerras, de combates ferozes e decisivos entre o capital e o trabalho e que revestirão particular intensidade em Portugal, visto que nos encontramos em posição de subjugação em relação ao imperialismo germânico, por sua vez, uma filial do imperialismo americano que, por sua vez, não se cansa de preparar e eventualmente desencadear em breve a guerra. A guerra inter-imperialista, se acontecer, irá inevitavelmente desencadear a revolução proletária e comunista, que desta vez irá acontecer não somente num ou dois países, mas pelo mundo fora
Votar, se querem votar, votem nos partidos que não estão na Assembleia da República. Se não têm a certeza, então não votem. Por vezes, vale mais estar quieto do que fazer asneira. 47 anos é tempo mais que suficiente para aprendermos alguma coisa!
Serei tudo o que disserem por inveja ou negação: cabeçudo dromedário fogueira de exibição teorema corolário poema de mão em mão lãzudo publicitário malabarista cabrão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não!
Os que entendem como eu as linhas com que me escrevo reconhecem o que é meu em tudo quanto lhes devo: ternura como já disse sempre que faço um poema; saudade que se partisse me alagaria de pena; e também uma alegria uma coragem serena em renegar a poesia quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu a força que tem um verso reconhecem o que é seu quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala - é tão vulgar que nos cansa - mas que dizer de uma bala num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história - a morte é branda e letal - mas que dizer da memória de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser o poema dia a dia? - Um bisturi a crescer nas coxas de uma judia; um filho que vai nascer parido por asfixia?! - Ah não me venham dizer que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem por temor ou negação: Demagogo mau profeta falso médico ladrão prostituta proxeneta espoleta televisão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não!
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Auto-Retrato
Poeta é certo mas de cetineta fulgurante de mais para alguns olhos bom artesão na arte da proveta narciso de lombardas e repolhos.
Cozido à portuguesa mais as carnes suculentas da auto-importância com toicinho e talento ambas partes do meu caldo entornado na infância.
Nos olhos uma folha de hortelã que é verde como a esperança que amanhã amanheça de vez a desventura.
Poeta de combate disparate palavrão de machão no escaparate porém morrendo aos poucos de ternura.
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Retrato do Povo de Lisboa
É da torre mais alta do meu pranto que eu canto este meu sangue este meu povo. Dessa torre maior em que apenas sou grande por me cantar de novo.
Cantar como quem despe a ganga da tristeza e põe a nu a espádua da saudade chama que nasce e cresce e morre acesa em plena liberdade.
É da voz do meu povo uma criança seminua nas docas de Lisboa que eu ganho a minha voz caldo verde sem esperança laranja de humildade amarga lança até que a voz me doa.
Mas nunca se dói só quem a cantar magoa dói-me o Tejo vazio dói-me a miséria apunhalada na garganta. Dói-me o sangue vencido a nódoa negra punhada no meu canto.
*
Homenagem a Ribeiro Santos
Vararam-te no corpo e não na força e não importa o nome de quem eras naquela tarde foste apenas corça indefesa morrendo às mãos das feras.
Mas feras é demais. Apenas hienas tão pútridas tão fétidas tão cães que na sombra farejam as algemas do nome agora morto que tu tens
Morreste às mãos da tarde mas foi cedo. Morreste porque não às mãos do medo que a todos pôs calados e cativos
Por essa tarde havemos de vingar-te por essa morte havemos de cantar-te Para nós não há mortos. Só há vivos
*
Os putos
Uma bola de pano, num charco Um sorriso traquina, um chuto Na ladeira a correr, um arco O céu no olhar, dum puto.
Uma fisga que atira a esperança Um pardal de calções, astuto E a força de ser criança Contra a força dum chui, que é bruto.
Parecem bandos de pardais à solta Os putos, os putos São como índios, capitães da malta Os putos, os putos Mas quando a tarde cai Vai-se a revolta Sentam-se ao colo do pai É a ternura que volta E ouvem-no a falar do homem novo São os putos deste povo A aprenderem a ser homens.
As caricas brilhando na mão A vontade que salta ao eixo Um puto que diz que não Se a porrada vier não deixo
Um berlinde abafado na escola Um pião na algibeira sem cor Um puto que pede esmola Porque a fome lhe abafa a dor.
José Carlos Pereira Ary dos Santos: Poeta português, natural de Lisboa. Nasceu a 07 Dezembro 1937.
Saiu de casa aos 16 anos, exercendo várias actividades como meio de subsistência. Revelando-se como poeta com a obra Asas (1953), publicou, em 1963, o livro Liturgia de Sangue, a que se seguiram Azul Existe, Tempo de Lenda das Amendoeiras e Adereços, Endereços (todos de 1965).
Em 1969, colaborou na campanha da Comissão Democrática Eleitoral e, mais tarde, filiou-se no Partido Comunista Português, tendo tido uma intervenção politizada, mas muito pessoal.
Ficou sobretudo conhecido como autor de poemas para canções do Concurso da Canção da RTP. Os seus temas «Desfolhada» e «Tourada» saíram ambos vencedores. Em 1971, foi atribuído a «Meu Amor, Meu Amor», também da sua autoria, o grande prémio da Canção Discográfica. Declamador, gravou os discos «Ary Por Si Próprio» (1970), «Poesia Política» (1974), «Bandeira Comunista» (1977) e «Ary por Ary» (1979), entre outros. Publicou ainda os volumes Insofrimento In Sofrimento (1969), Fotos-Grafias (1971), Resumo (1973), As Portas que Abril Abriu (1975), O Sangue das Palavras (1979) e 20 Anos de Poesia (1983).
Em 1994, foi editada Obra Poética, uma colectânea das suas obras. Personalidade entusiasta e irreverente, muitos dos seus textos têm um forte tom satírico e até panfletário, anticonvencional, contribuindo decisivamente para a abertura de novas possibilidades para a música popular portuguesa. Deixou cerca de 600 textos destinados a canções.
Auschwitz foi a aplicação industrial moderna de uma política de extermínio sobre a qual há muito assentava o domínio europeu no mundo.
Quando Adolf Hitler entrou na política, uma das oportunidades de expansão da Alemanha fechara-se. A Marinha Britânica dominava os mares e travava todas as tentativas de conquistar novas terras nas colónias.
Restava o continente. Em Mein Kampf (1925-1927) Hitler descreve como a Alemanha e a Inglaterra dividirão o mundo entre si. A Alemanha expandir-se-á para leste, tal como a Inglaterra já se expandiu para ocidente na América e para sul na Índia e em África. O culminar da política hitleriana de expansão para leste foi a invasão da União Soviética em Junho de 1941.
Na propaganda alemã a guerra era retratada como uma cruzada anticomunista. Dessa forma Hitler contava obter a aprovação de todos os que, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, detestavam o comunismo. Mas a cruzada jamais se teria realizado se não existissem também razões económicas.
A curto prazo, com a conquista de zonas agrícolas da parte ocidental da União Soviética, Hitler pretendia melhorar a situação alimentar na Alemanha em guerra. Assim, um número indeterminado de milhões de pessoas (zig Millionen Menschen) na União Soviética deveriam morrer à fome, o que, a longo prazo, constituiria também uma vantagem.
A longo prazo, Hitler tencionava incorporar estas zonas agrícolas no Lebensraum alemão. A terra, «que, através da morte e deslocação dos habitantes se toma terra desabitada» (vide Ratzel), passaria a pertencer à Alemanha. A população eslava dizimada, tal como os hereros no Sudoeste Africano, seria os servos e trabalhadores dos seus amos alemães.
Na noite de 18 de Setembro de 1941 Hitler descreveu aos seus colaboradores um futuro cor-de-rosa no qual a Ucrânia e a bacia do Volga se transformariam no celeiro da Europa. Aí a indústria alemã trocaria produtos baratos por cereais. Enviaremos para a Ucrânia lenços, contas de vidro e outras coisas de que os povos coloniais gostam.»
É claro que ele estava a gracejar. No entanto, para compreender a campanha de Hitler para leste é importante apercebermo-nos de que ele considerava estar a travar uma guerra colonial. Às guerras desse tipo aplicavam-se regras especiais – as já definidas em Politik (1898) pelo cientista político mais querido da extrema-direita, Heinrich von Treitschke: «O direito internacional transforma-se em meras palavras quando os seus padrões são também aplicados a povos bárbaros. Para punir uma tribo de negros têm de ser incendiadas aldeias, e sem dar exemplos desse tipo nada se conseguirá. Se o Reich alemão aplicasse o direito internacional em tais casos não demonstraria assim humanidade ou justiça, mas uma fraqueza vergonhosa.»
Treitschke estava apenas a pôr em palavras a prática que os Estados europeus há muito aplicavam e que Hitler utilizava agora contra os seus futuros «povos coloniais» do Leste.
Na guerra contra as potências ocidentais, os alemães respeitavam as leis da guerra. Apenas 3,5% dos prisioneiros de guerra ingleses e americanos morreram em cativeiro, contra 57% de prisioneiros de guerra soviéticos.
No total, 3,3 milhões de prisioneiros de guerra russos perderam a vida, dois milhões dos quais no primeiro ano da guerra, através de uma combinação de fome, frio, doença, execuções e gazeamento. Os primeiros prisioneiros a serem gaseados em Auschwitz foram russos.
Existe uma diferença crucial entre estas mortes e o assassínio dos judeus. Dos russos não judeus, apenas certas categorias - em primeiro lugar intelectuais e comunistas - foram totalmente exterminadas. Dos outros russos, segundo os planos, cerca de dez milhões seriam eliminados, mas os restantes continuariam a viver, como força de trabalho escrava sob comando alemão. Por outro lado, a totalidade do povo judeu deveria ser exterminada.
Nisso o Holocausto foi único – na Europa. Mas a história da expansão ocidental noutras partes do mundo dá-nos muitos exemplos de extermínio total de povos inteiros.
(“Exterminem todas as bestas”, Sven Lindqvist. Editorial Caminho. 2005)
Nota: Frase do título (Sven Lindqvist, in Público, 10/12/05)
A ver também:Apreciação do livro de Sven Lindqvist na sua edição brasileira
Todos os anos comemora-se o 1º de Dezembro como o Dia da Restauração da Independência do país perante o reino de Castela (Espanha), monárquicos (parece que ainda existem), alguma direita e extrema-direita deleitam-se com a data, mas para o povo que trabalha e produz pouco significado terá, a não ser o gozo de mais um dia de feriado, que o governo PSD/PP de Passos Coelho tentou retirar a bem dos lucros do capital. Será Portugal um país independente e a restauração da dita independência terá sido feita a bem do povo?
Um historiador espanhol (Rafael Valladares), de passagem por Portugal para apresentação do seu livro, “A independência de Portugal - Guerra e Restauração 1640-1680”, soube colocar o dedo na ferida: a “restauração foi uma revolta das elites que não queriam perder privilégios”. O povo apoiou porque viu que teria mais vantagens colocar-se ao lado da elite doméstica do que apoiar a dinastia dos Filipes que tinha sobrecarregado o país com impostos. Não foi por patriotismo, assim como o partido da nobreza e da Igreja portuguesas foi o dos privilégios pessoais e de casta, porque a tradição é a da nobreza tomar partido por Castela quando vê vantagens nisso; aconteceu em 1383 e repetiu-se dois séculos depois, em 1580, com a perda de independência, na medida em que, como é bem visto pelo historiador espanhol, “a maior parte das elites portuguesas eram a favor (da perda da independência) porque achavam que a monarquia espanhola podia dar-lhes protecção, prestígio, rendas e oportunidades políticas para ocupar cargos de importância em todo o império espanhol”. A última coisa que tiveram em pensamento foi o povo português.
O discurso nacionalista, da “luta pela independência nacional”, foi um discurso que surge apenas no século XIX, com o domínio do capitalismo industrial que para poder impor-se tinha que assentar em estados nacionais fortes. As correntes românticas e de exaltação da pátria e dos antepassados e grandezas passadas vieram depois, a nível cultural, para justificar uma situação que interessava principalmente em termos económicos. Os vinte e oito anos que durou a guerra da restauração não foram um período pacífico quanto ao entendimento entre as três principais classes – a nobreza, o clero e o povo.
Um outro historiador, este português, Fernando Dores Costa, mostra bem na sua obra “A Guerra da Restauração 1641-1680”, que a luta pela restauração da independência foi feita no interesse da fidalguia portuguesa e da Igreja, com a participação forçada do povo. No século XVII, os portugueses designavam os espanhóis por “castelhanos” e o “rei de Castela” era visto como um monarca nacional e não espanhol atendendo a que era senhor de vários reinos e domínios na Europa e no Novo Mundo; Filipe IV pertencia à casa dos Habsburgos da Áustria e era herdeiro da coroa portuguesa pela via dos seus ancestrais, pai e avô. Foi a nobreza nacional e o clero, que viviam das rendas da terra e das prebendas vitalícias (como agora acontece com a elite contemporânea) dadas pelo Estado, que iniciaram a revolta.
A guerra da dita “restauração da independência” demorou vinte e oito anos, com enormes e pesados sacrifícios para o povo, que se queixava constantemente, nas diversas Cortes que se reuniram até ao fim do século XVII, de que era o único “estado” que pagava impostos e sacrificava os seus filhos com prejuízo das famílias e dos trabalhos da agricultura; enquanto que a nobreza, incompetente e corrupta, recebia os elevados soldos, roubava nos abastecimentos, nas soldadas, na alimentação e nos fardamentos dos recrutas que desertavam mas continuavam inventariados no exército; e o clero que se eximia a pagar o esforço de guerra (por exemplo, o clero de Braga, no período de 1647 a 1653, tinha pago apenas 17 759 000 réis dos 61 340 920 a que se tinha comprometido) e que recusava o recrutamento (bem como o pagamento de impostos) invocando a “autorização do Papa”, situação reforçada pelo não reconhecimento de D. João IV pelo Papa que alinhava com a posição de Filipe IV.
Na reunião dos três estados (povo, nobreza e clero) em 1653-54, o povo manifestou a sua revolta contra a destruição da sua administração local pela ingerência abusiva dos nobres, dos governadores das armas que procediam a prisões arbitrárias dos pais e das mães dos soldados em fuga, pela prática de requisições efectuadas pelos ministros da guerra, que eram vistas como uma dupla tributação, dinheiros que eram gastos em despesas supérfluas, e exigindo que os governadores das armas recebessem apenas uma remuneração mensal de 50 mil réis, o que foi considerado uma humilhação pelos nobres, e o fim da criação de novos cargos administrativos – os governadores de comarca, por exemplo – que eram vistos como uma perda da influência social dos dirigentes populares. O que motivava as diversas classes sociais eram interesses próprios de classe e muito pouco o “amor à pátria”.
Naquilo que se poderia considerar com algum esforço o exército campeava a incompetência, a desorganização e a corrupção. Os cargos de chefia eram atribuídos consoante o grau dos títulos ou das propriedades ostentados, geralmente eram os nobres que ocupavam os cargos mais importantes e que, para além de roubarem o erário público, abandonavam a frente de batalha para se refugiar no bem-bom da corte de Lisboa, deixando as tropas a cargo de oficiais subalternos, igualmente incompetentes e corruptos, que eram escolhidos na base da confiança pessoal. Os recrutas eram camponeses apanhados à força em levas que, à primeira oportunidade, fugiam, chegando ao destino do campo da refrega no Alentejo uma pequena parte do contingente inicial, não lhes era dado baixa para se continuar a contabilizar os fardamentos, o soldo e a alimentação. Quando o conde de Schomberg chegou a Portugal para reorganizar as tropas e preparar a defesa do país ficou completamente banzado. Foi mal recebido porque era estrangeiro e vinha chefiar o exército, e porque não hesitou em apontar os responsáveis pelo estado calamitoso da tropa; quando a cidade de Évora se entregou quase sem resistência às tropas castelhanas, em 1663, levou ao desabafo de Schomberg ao seu amigo inglês Fanshaw, manifestando a sua máxima indignação pela capitulação suspeita: a cobardia com que agira o comandante português estava para lá de tudo o que tinha visto na sua longa vida militar.
Os portugueses acabam por ganhar a disputa porque a situação das forças castelhanas não era melhor, dificuldade em recrutar tropas e obrigá-las a combater, a inépcia e corrupção dos chefes militares castelhanos, e a revolta da Catalunha que ocorre na mesma altura, desviando o esforço de guerra de Filipe IV; Portugal torna-se independente um pouco à custa da Catalunha. Foi mais por desmérito do adversário do que por mérito próprio. O discurso nacionalista da burguesia portuguesa nos séculos XIX e XX, e do Estado Novo, cai por terra nos seus pressupostos quando confrontado com os factos. A fundação da “nacionalidade” e a “restauração” foram incidentes históricos que beneficiaram fundamentalmente as elites, para o povo sobrou o pagamento das despesas – como agora acontece.
Neste momento, estando Portugal dentro da União Europeia e com o Euro como moeda para as suas trocas comerciais e pagamentos, com a maior parte da banca nas mãos dos espanhóis e, por extensão, boa parte da sua economia, Portugal e o povo português não são verdadeiramente independentes, é que as elites e o povo são coisas distintas.
Bibliografia consultada: “A Guerra da Restauração 1641-1680”, Fernando Dores Costa. Livros Horizonte, 2004.