Em fevereiro de 1953, agitando o perigo de uma conspiração comunista visando criar um governo dos nativos na então colónia portuguesa de S. Tomé, o governador Carlos Gorgulho fomentou uma onda de repressão que resultou num número ainda hoje indeterminado de mortos.
Muitos foram abatidos a tiro, em verdadeiras caçadas levadas a cabo por milícias de voluntários. Diversos foram queimados. Alguns morreram asfixiados em celas demasiado pequenas para o número de presos que continham. Muitos foram sujeitos a trabalhos forçados na praia de Fernão Dias. Um dos castigos consistia em «esvaziar o mar»: presos com correntes, eram obrigados a entrar no mar para encher grandes selhas de água salgada, apenas para as despejar em terra, pouco depois.
Um dos sobreviventes, o senhor Francisco Bonfim, contou que foi preso a 10 de fevereiro, com outros funcionários: “Meteram-nos num jipe e fomos para Fernão Dias. Ali o Zé Mulato deu ordem para nos acorrentar. Puseram-me a cabeça na bigorna, cravaram-me uma corrente ao pescoço, outras na cintura e nos tornozelos e fui mandado “esvaziar o mar”, com uma pipa - um barril de 200 litros cortado ao meio. Prenderam-me uma corda à cintura, que outro preso segurava enquanto eu entrava no mar. Foi assim todo o dia. À noite fui para a cela, e apareceu um preso com um papel, a dizer que o Sr. Zé mandou dizer para escrever tudo sobre a guerra da Trindade. “Mas eu não sei nada!” “Sabe, todos os funcionários sabem. Vocês querem matar o governador e pôr o engenheiro Salustiano.”
Bonfim escreveu, mas não foi suficiente: “O preso voltou com o papel, porque o Zé Mulato tinha dito que não chegava: “Tem de dizer que foi assim.” Lá vou escrever. No dia seguinte voltei a esvaziar o mar. No 2º dia, na praia, apareceu o Sr. Gorgulho e o polícia disse-me: “Está ali o Sr. Governador. Vai lá ter.” E eu aproximei-me e disse: “Sr. Governador, o que é que eu fiz, para estar aqui, acorrentado?” E ele disse: “Você está a fazer teatro. Esteve numa reunião. Com o sr. Pedronho, Teixeira, queriam matar todos os brancos e pôr o eng. Salustiano no meu lugar.” “Isso nunca aconteceu!” “É verdade, é tão verdade como vocês terem morto o Amaral a machim. E com se mataram com machim são selvagens, trato-vos como selvagens. Já não são funcionários. Já fiz uma portaria exonerando todos vocês. Durante os 4 anos que vou estar em S. Tomé, daqui não sais.”
Entretanto, o preso que segurava a corda quando ele ia ao mar encher a pipa perguntou-lhe se ele era o Bonfim que jogava futebol. Quando soube que sim, disse-lhe que não fosse tão longe no mar, nem enchesse tanto a pipa. À noite, na cela, voltou o homem do papel: “Sr. Zé diz que não chega, tem de escrever mais.” Bonfim voltou a escrever. O próprio Zé Mulato foi à cela: “Tens de escrever, nós sabemos tudo, o sr. Pedronho e o sr. Teixeira já disseram que você esteve numa reunião.” “Completei mais a mentira”, resumiu o Sr. Bonfim. “E no dia seguinte fui para a cidade.”
Nessa noite, vieram buscá-lo à cela e levaram-no à Polícia, onde viu caras que nunca tinha visto em S. Tomé: “Vem cá para confirmar o que disse em Fernão Dias.” “O que eu escrevi em Fernão Dias é tudo mentira, obrigaram-me a mentir.” Então levaram-no para outra sala, onde estava outro conterrâneo, dizendo: “Aqui o seu amigo diz que o senhor esteve numa reunião.” “E eu disse ao senhor: “Eu penso que vieram a S. Tomé para saber a verdade. A verdade é o que eu lhe disse. Tudo isto que eu escrevi é mentira, fomos obrigados a mentir. Mas se quer que eu continue a mentir, eu volto a mentir.” Então ele perguntou onde é que eu fui educado. “Nunca saí daqui, tenho a quarta classe.” Voltei para a cela, estive uns dois meses, até que saímos todos em liberdade.”
Nativo são-tomense vítima de tortura. 1953. AFMSMB
Interrogados sob tortura, chicoteados, submetidos à utilização de uma cadeira eléctrica, muitos presos foram obrigados a confessar o seu envolvimento numa revolta que, segundo Gorgulho, pretenderia matar o governador e os colonos e distribuir entre si as mulheres brancas. Mais tarde, a própria PIDE havia de negar a existência da conspiração referida pelo governador.
E, ao contar-me os tormentos por que passara, foi nesse momento que o senhor Bonfim se emocionou: “O que me custou mais foi ter sido obrigado a mentir!” A intervenção, a pedido de alguns santomenses, do advogado Manuel João da Palma Carlos, permitiu clarificar a inventona e levar à destituição de Gorgulho. Um conjunto de fatores ajudou a que os massacres em São Tomé se tornassem rapidamente conhecidos no exterior. Alda Espírito Santo, que regressara de Lisboa pouco antes, a 9 de Janeiro, e vai secretariar o advogado Palma Carlos na sua investigação, faz chegar as notícias aos amigos do Centro de Estudos Africanos e habituais visitas da sua casa de Lisboa, no nº 47 da Rua Actor Vale: “Confesso-vos que, se eu não estivesse cá a viver, a ver e sentir a exterminação total a que pretendiam reduzir os nativos, eu julgaria que em tudo isto houve uma boa parte de exagero. Eu desejo fazer uma exposição simplesmente baseada em dados concretos para que façais sentir aí todo o estendal de crimes que se passou aqui, porque é impossível que fique no silêncio toda esta tragédia que estamos vivendo e que em Portugal se continue a julgar que foi uma rebelião de nativos, quando tudo o que se passou não foi mais do que uma matança em série, uma loucura colectiva de parte da quase totalidade da população branca às ordens do governador e seus acólitos.”
Ainda em 1953, o massacre é denunciado num folheto em língua francesa, com fotografias das milícias formadas por colonos e também por auxiliares negros, tendo esta a seguinte legenda: “Os trabalhadores forçados importados das outras colónias portuguesas foram obrigados a participar no massacre.”
No número de abril/julho de 1955, a revista Présence Africaine publica o artigo "Massacres à São Tomé", assinado por Buanga Fele (pseudónimo de Mário Pinto de Andrade), onde é patente o mesmo cuidado de evitar a divisão entre “autóctones” e trabalhadores vindos de outras colónias: “A máxima ‘dividir para reinar’ teve aqui também o seu papel. Os grandes proprietários incitaram os trabalhadores forçados negros à pilhagem e mesmo ao combate contra os autóctones.”. E, no seu penúltimo parágrafo, Mário profetiza a permanência na memória coletiva dos mortos de 53: “todos esses homens destruídos pela pilhagem e a pirataria dos representantes dos primeiros “colonizadores” do continente negro se erguem como acusadores.”
Em Janeiro de 1961, Mário Pinto de Andrade reedita, em Conacri, a sua coletânea “Poetas Negros de Expressão Portuguesa”, onde inclui o poema de Alda Espírito Santo, “Onde estão os homens caçados neste vento de loucura” (“O sangue caindo em gotas na terra/ homens morrendo no mato/ e o sangue caindo, caindo…/ Fernão Dias para sempre na história/ da Ilha Verde, rubra de sangue, /dos homens tombados/ na arena imensa do cais.”… (…) Nossas vidas enterradas/ nos campos da morte, /os homens do cinco de Fevereiro/ os homens caídos na estufa da morte /clamando piedade/ gritando pela vida,/ mortos sem ar e sem água/ levantam-se todos/ da vala comum/ e de pé no coro de justiça/ clamam vingança...)
Também em 1962, Miguel Trovoada, num depoimento em Rabat, volta a sublinhar a necessidade de fazer justiça aos mortos de 1953: “O sangue vertido pelos inocentes, os órfãos, as viúvas, reclamam impacientemente por justiça. É todo um povo sofredor que reclama justiça, essa justiça que o colonialismo nunca lhe poderá dar.”
Na praia de Fernão Dias foi erguido após a independência de São Tomé e Príncipe, um memorial em honra dos mártires do massacre de 1953, mas seria demolido em agosto de 2009, com a desculpa do início dos trabalhos de construção do porto de águas profundas …
Imagem de destaque: Retrato de trabalhadores contratados, de origem moçambicana, para trabalho na Roça Boa Entrada, em São Tomé e Príncipe. C.1894-1916. AFMSMB
Quem dê uma volta pela cidade de Coimbra, e ande há algum tempo por estes lados, constata com grande tristeza que as casas velhas e arruinadas, apresentando sinal evidente de abandono completo, são mais que muitas e têm aumentado com o passar do tempo. São edifícios, uns, antigos e até com interesse arquitetónico; outros, não muito velhos, mas em estado avançado de degradação; e, ainda outros, de referência histórica, que qualquer dia ruirão em cima das pessoas que tenham o azar de passar no momento. Encontram-se em zonas centrais da cidade, Baixinha e Alta, e, para o objectivo destas duas linhas que escrevemos, salientamos três (ou quatro): duas casas medievais, uma perto da Igreja de Santiago, à Rua Sargento-Mor, junto à qual se encontra uma placa identificativa; outra, que pensamos que seja também medieval pela semelhança com a anterior, por detrás da Fonte Nova, na rua de Montarroio. Uma terceira, da qual iremos falar um pouco, o edifício do antigo Teatro Sousa Bastos, do qual só existem as paredes exteriores que, por mero milagre, ainda não caíram. Estes três casos falam por si sobre o estado calamitoso da cidade de Coimbra quanto a edifícios e habitação, estado que vem de há muito atravessando as diversas vereações, socialistas, na maior parte do tempo, e PSD e associados.
Casa Mediveal, Rua Sargento-Mor (Foto do autor MC, 2024)
Quem é um pouco mais velho ainda se encontra bem lembrado dos filmes que passavam naquela sala, já mais de cinema do que teatro em fase mais tardia, típica de bairro popular, e também estudantil, filmes geralmente de acção, onde predominavam as coboiadas e cuja acção muitas das vezes passava facilmente da tela para a sala, com o pessoal em quase batalha campal; nessas alturas a polícia, vamos lá ver porquê, nunca se encontra presente. O Cine-Teatro Sousa Bastos era bem conhecido em toda a cidade e constituía sem dúvida um ícone incontornável, assim constituía dever da Câmara Municipal intervir, apesar do edifício ser de propriedade privada, quando este deixou de ter a sua função e foi atirado propositadamente para o abandono, tomando posse administrativa do mesmo. Nem que fosse numa primeira fase posse meramente administrativa e não expropriação invocando interesse público, coisa que poderia ter feito na justa medida em que seria legal e haveria mais do que argumentos para o fazer.
Esta possibilidade foi levantada, tendo-se formado um movimento em meados da década de 90 do século passado, “Movimento Salvem o Sousa Bastos”, que dinamizou o processo fazendo com que a questão fosse levada a discussão em reunião da Assembleia Municipal. Foi em Fevereiro de 1996, cuja notícia sai no jornal local “Diário de Coimbra” de 14 desse mês, onde se ficou a saber que a reunião foi manipulada e boicotada pelo então presidente da Câmara, o socialista Manuel Machado, o homem que mais tempo esteve à frente de uma câmara, quer como presidente quer como vereador, talvez o maior dinossauro vivo do poder autárquico, a quem os especuladores imobiliários, agentes, patos bravos e novos ricos, devem estar eternamente gratos.
Nessa sessão da Assembleia Municipal, o homem argumentou que o Teatro Sousa Bastos não daria um bom teatro municipal devido à área, reduzida, e à localização, difícil acesso; o alvará e a licença de utilização já teriam caducado; sendo propriedade privada, o proprietário teria o direito de apresentar um projecto para a reconversão que melhor entendesse, projecto que já estaria na câmara em fase de pré-aprovação, estaria somente à espera de parecer do IPPAR relacionado com a prospeção arqueológica; compromete-se (diz) em agendar uma reunião entre o Movimento Salvem o Sousa Bastos e o proprietário para possível . Entretanto, a reunião foi-se alongando no tempo, os deputados foram saindo discretamente, e quando chegou o momento de votação das duas moções apresentadas, uma pelo presidente da Junta de Freguesia de Almedina e a outra pelo grupo parlamentar da CDU, Machado deu a cessão encerrada por falta de quórum, e nada fica decidido.
Casa com característica medieval, Rua de Montarroio (Foto do autor MC, 2024)
Alguns aspectos que devem ser salientados para se perceber esta negociata, e os negócios em família do PS em geral. Nomeadamente, conhecer os outros protagonistas envolvidos no processo: a Reitoria da Universidade de Coimbra, a Secretaria de Estado da Cultura, a empresa compradora e a família Mendes Abreu. A aquisição do Teatro Sousa Bastos foi feita por uma empresa privada, da qual fez parte como sócio Mendes Silva, ex-presidente da Câmara Municipal de Coimbra (entre Janeiro de 1983 a Dezembro de 1985, como independente pela lista do PS) e quando ainda vigorava o acordo entre as três entidades oficiais: Câmara, Secretaria de Estado e Reitoria. Nada fizeram para tomar conta do imóvel e deixaram campo aberto para a sua alienação alegando dificuldade de aprovação da verba para esse efeito.
Em 1989, o Teatro Sousa Bastos, ainda de pé, era utilizado pela Cooperativa de Teatro Bonifrates e o alvará ainda se encontrava em vigor, mas na posse da família Mendes de Abreu, por coincidência proprietária do outro teatro privado na cidade, o Teatro Avenida. Este teatro foi demolido dando origem ao actual centro comercial Avenida, que, passado todo este tempo, ainda possui metade das lojas às moscas. Ora, Judite Mendes de Abreu, da família com o mesmo apelido, foi eleita presidente da Câmara Municipal de Coimbra, em Dezembro de 1976, e presidente da Assembleia Municipal, em 1983, sempre como independente nas listas do Partido Socialista. O seu nome foi atribuído a uma das salas do edifício dos Paços do Concelho pelo actual presidente, em Janeiro de 2022.
O presidente José Manuel Silva, eleito por uma coligação variada de sete partidos, desde o PSD, CDS ao RIR e Volt, “Juntos Somos Coimbra”, foi recentemente questionado pela imprensa sobre o destino do Teatro Sousa Bastos, agora reduzido a quatro paredes em risco iminente de ruir, admitiu a possibilidade, vaga e remota, de posse administrativa do edifício por parte do município, “sem precisar em que termos e condições” (da imprensa). Parece que não se terá rido nem engasgado, sabendo bem que o facto está consumado e não faltará muito tempo para os serviços camarários desbloquearam o processo de construção de um edifício de seis andares, mais um mamarracho; agora, já não se coloca a falta de área para construção, onde caberão “32 frações, 30 T0 e 2 T1, destinadas a residência de estudantes”. Será um edifício em plena zona histórica da cidade, considerada Património Mundial da Humanidade, bem como a Rua da Sofia, em 2013.
Casa da Nau, edifício do Séc. XV, onde ainda se encontra a Real República Prá-Kys-Tão, mas prestes a ir ao fundo, situada diante do Teatro Sousa Bastos (Foto do autor MC, 2024)
Em 2019, seis anos depois da nomeação pela Unesco, Carlos Fiolhais manifestara a sua tristeza quanto ao abandono de alguns edifícios, de referência pelo seu passado e tamanho, na Rua da Sofia. Carlos Fiolhais desabava nestes termos: «Jorge de Sena, que faria 100 anos em 2019, escreveu sobre a Sofia um poema satírico inserto no livro Dedicácias. Não a poeta Sophia, que foi exactamente sua contemporânea (também faria cem anos este ano) e com quem ele manteve correspondência. Mas sobre a rua da Sofia em Coimbra. O engenheiro civil, feito poeta, romancista e crítico literário, refere a Rua da Sofia como símbolo do provincianismo cultural português. O poema começa assim “Sabe de Hegel, de Sartre, de fenomenologia, / mas andou na rua da Sofia”, terminando ”Não há filosofia/ que salve quem andou na rua da Sofia.” Se Sena vivesse agora e passeasse como eu fiz nestes dias natalícios pela rua da Sofia, na Baixa coimbrã, ficaria ainda mais ácido…» (10 de Janeiro de 2019, De Rerum Natura).
Desde 2019 a situação de Coimbra só se tem agravado… e muito. E, infelizmente, não é só na Rua da Sofia e na Alta de Coimbra, zonas que deveriam ser objecto de uma atenção e cuidados redobrados pelo facto de constituírem Património Mundial da Humanidade, mas toda a cidade em geral. E, então, em questão de limpeza e higiene do espaço público nem vale a pena falar, pelo menos para já.
Imagem de destaque: Edifício, ou o que resta dele por incúria alegadamente intencional, do Teatro Sousa Bastos, que foi inaugurado em 15 de Junho de 1914. Este teatro, por sua vez, teve origem em um outro, Theatro de D Luiz I, inaugurado em 22 de Dezembro de 1861. Assim se vai destruindo a História Cultural da Cidade de Coimbra pela ganância. (Foto do autor MC, 2024)
Poeta de combate me chamaram. De combate serei. Não mercenário! Poeta de combate é um operário das palavras que nunca se entregaram. Poeta de combate! E porque não? Sou poeta. Serei também soldado. O meu canto será um canto armado e o meu nome de guerra uma canção. Poeta de combate me quiseram os que cedo da luta desertaram ou aqueles que nunca combateram. Poeta de combate eu hei de ser até quando o meu povo precisar ou nada mais houver a combater.
(in "Amor Combate", Joaquim Pessoa. Moraes Editores)
O arqueólogo, especialista em cultura islâmica, desfaz vários mitos da História. Defende que não houve invasões muçulmanas em massa na Península Ibérica – Entrevista conduzida por Carlos Torres (“Sábado”, 23 de fevereiro de 2018)
"Quando cá vim pela primeira vez, em 1976, trazido pelo presidente da Câmara, o Serrão Martins, meu aluno de História na Faculdade de Letras de Lisboa, havia uma grande figueira junto a este buraco. Espreitei lá para dentro, aquilo estava cheio de lixo, e logo na altura apanhei vários cacos de cerâmica islâmica".
Sentado no que resta das paredes de uma casa com 900 anos, Cláudio Torres aponta para o terreiro junto ao castelo: "Os miúdos costumavam vir para aqui brincar. Havia hortas, assavam-se galinhas, namorava-se às escondidas. Em 40 anos, mudámos isto: já desenterrámos o bairro almóada do século XII, o baptistério do século VI e o palácio episcopal. Se continuarmos a escavar, vamos encontrar o fórum romano".
Hoje com 78 anos, Cláudio Torres anda a escavar Mértola desde 1976. O arqueólogo instalou-se em definitivo com a mulher e as filhas na vila alentejana em 1985. Fundador e director do Campo Arqueológico de Mértola (trabalho que lhe valeu, em 1991, o Prémio Pessoa), é um dos mais conceituados investigadores da civilização islâmica no Mediterrâneo.
Em entrevista à SÁBADO, a propósito da edição 711 (o ano, segundo a História, que marca o início do domínio islâmico na Península Ibérica), o arqueólogo aproveita para desfazer vários mitos das invasões muçulmanas e da reconquista.
Com tantas e tão interessantes informações, decidimos dividir a entrevista em três partes, a publicar hoje e nos próximos dois dias. Na primeira, o arqueólogo aborda o que aconteceu realmente em batalhas como Covadonga e Poitiers (tidas como decisivas para travar o avanço muçulmano), assim como as conquistas de Coimbra e de Lisboa.
Na segunda parte, Cláudio Torres explica como era o actual território português em 711, fala da corrida ao ouro em Mértola e do grande contraste entre as gigantescas e opulentas cidades do sul e as urbes miseráveis como Paris e Londres, feitas de casas de madeira e ruas de lama.
Por fim, o arqueólogo aborda o seu percurso pessoal, as aventuras políticas no PCP, as prisões pela PIDE, a fuga de Portugal para Marrocos num barco a motor, o exílio na Roménia e em Budapeste e ainda o que Portugal poderá fazer para combater os radicais islâmicos do Daesh.
No ano 711, os exércitos muçulmanos que vieram do Norte de África invadiram a Península Ibérica e cinco anos depois já dominavam todo o território pensinsular, antes sob alçada dos visigodos. Como foi possível essa progressão tão rápida? As coisas não foram bem assim. A arqueologia tem uma linguagem diferente da história escrita. A história escrita é escrita por aqueles senhores que sabem escrever, enquanto a arqueologia vai buscar os restos dos que não sabem escrever. São coisas habitualmente contraditórias. Hoje sabemos, por causa da arqueologia, que não houve nenhuma invasão em 711, não vieram exércitos nenhuns.
Mas isso é o que se aprende nas aulas de História. Pois, mas a realidade não tem nada a ver com o que é contado nos manuais.
Então, o que aconteceu? Vejamos… a Península Ibérica, nesse século VIII, tem uma capital que é Toledo. E através dos restos do velho império romano ainda há ligações históricas ao Mediterrâneo, no sul há um conjunto enorme de portos ligados ao Mediterrâneo: Sevilha, Málaga, Almeria, etc, e no sul do que é hoje o território português há Mértola e, numa época mais tardia, Tavira. Pensou-se que Mértola era só uma zona portuária e que a grande cidade era Beja, mas hoje, por razões arqueológicas, estamos convencidos que não. Mértola era uma grande cidade, um grande porto marítimo. Ora, as grandes religiões do Mediterrâneo, o judaísmo, o cristianismo, o islão, que vieram da zona do actual Líbano e Israel, obviamente que não são nunca impostas pelas armas. São religiões de salvação, a sua força tem a ver com o Além. Quer dizer, as pessoas aqui vivem na miséria, são dominadas pelos ricos, mas a sua vingança é depois da morte. Aí, eles é que mandam e os ricos nem entram no Céu. Essas religiões estendem-se rapidamente para os mais pobres, para os dominados. E chegam cá pela dinâmica mercantil dos portos. Não podemos dizer que os cristãos invadiram e conquistaram a Península Ibérica e ela ficou cristã, ou, em relação ao islão, dizer que vieram os muçulmanos a cavalo e de camelo, conquistaram tudo e impuseram o islão, isso é completamente impensável e estúpido.
Mas não houve batalhas, não há nada que prove a vinda desses exércitos muçulmanos do Norte de África? Houve sempre batalhas, mas isso não tem nada a ver com a expansão de religiões deste tipo. A religião islâmica veio através do comércio, dos portos. O diálogo é a base do comércio, e é através do diálogo que se expandem as ideias, as religiões, as coisas novas. O islão não é imposto à espadeirada. Os militares, quando vêm fazer uma conquista, matam, defendem-se, não há diálogo.
A Península Ibérica não foi ocupada militarmente pelos muçulmanos em 711? Só mais tarde.
Quando? No final do século XI, início do século XII. Aí é que há o primeiro império almorávida, e depois almóada, que inclui o Norte de África e a zona da Tunísia, e apanha o sul da Península Ibérica. É um império cujo domínio, tal como aconteceu com o romano e outros, é de uma série de tribos e de militares, não tem nada a ver com religiões.
Portanto, os muçulmanos não conquistaram a Península Ibérica no século VIII? Não. Em 711 pode ter havido batalhas e escaramuças, mas isso é normal, houve sempre batalhas na zona do estreito de Gibraltar. Ao contrário do que se pensa, o estreito servia para unir, só começou a separar quando aconteceu a primeira invasão séria na Península Ibérica, feita pelos cristãos, pelos cavaleiros da Ordem de Clunny, no século XIII. Aí sim, vieram tropas, hordas militares, e entrou neste espaço o catolicismo, que era uma religião diferente da que estava cá, que era o cristianismo.
Claudio Torres (Foto "Sábado")
E que chegou quando? Nos séculos V e VI havia na Península Ibérica dois tipos de cristianismo. Na zona de Toledo era um cristianismo ariano, da classe dirigente, dos visigodos. Mais a sul havia outro, ligado à Tunísia, à Alexandria, que era o donatismo, um cristianismo monofisita, de um só Deus, que ia contra a trindade, o Pai, Filho e Espírito Santo. Havia na altura uma guerra entre o sul do Mediterrâneo, donatista e monofisita, com Bizâncio e Roma, que eram católicos. O sul da Península Ibérica era donatista. Sabemos isso com toda a certeza, até pela arqueologia.
Encontraram vestígios? Encontrámos em Mértola um cemitério com lápides funerárias desses donatistas, que eram hostis à trindade. Esse cristianismo, que antecede o islão, já é monoteísta, com um só Deus.
E o que aconteceu na Península Ibérica? Toda essa base cristã do sul, esse cristianismo monofisita converteu-se ao islão devido aos contactos com os portos do Mediterrâneo, com Alexandria, com a Tunísia, o Oriente. Sabemos isso do ponto de vista histórico e arqueológico. Em Mértola, temos os cemitérios dos antigos cristãos monoteístas, temos uma basílica paleo-cristã do século VI e por cima do cemitério cristão temos um cemitério muçulmano já dos séculos VIII e IX. Agora estamos a fazer esse estudo arqueológico, que é a ligação entre um pai que ainda era cristão e um filho que já era muçulmano. O filho quis ser enterrado junto do pai, e sabemos isso porque conhecemos bem os rituais de enterramento muçulmanos, com a cabeça virada para sul. Os resultados vão ser dados pela análise de ADN, mas certamente que vamos constatar que um pai cristão já tem um filho muçulmano. O que vem provar o fenómeno da continuidade.
A entrada do islão na Península Ibérica faz-se pelo comércio? Precisamente. É através dos comerciantes que vêm nos barcos, até porque é uma religião parecida com a cristã, de salvação, de diálogo.
Há uma convivência sadia entre cristianismo e islão? O cristianismo monofisita, do Norte de África e do Sul da Península, vem desde o século V. E a maioria vai-se convertendo lenta e pacificamente ao islão. O que resta desses cristãos ainda existe hoje no Egipto, são os coptas, que são monoteístas. Em todo o norte de África, até há bem pouco tempo ainda havia comunidades fortes de donatistas, na Síria, no Líbano, no Iraque – estão agora a liquidá-los na Síria. Ainda conheci, no norte da Síria, várias aldeias em que cada uma ainda tinha a sua comunidade cristã. Viam-se as torres da igreja e o minarete. Só agora é que estão a rebentar aquilo tudo.
Nos livros de História destaca-se a batalha de Covadonga, em 720, em que Pelágio derrota os exércitos muçulmanos. Também é um mito? O norte da Península Ibérica faz parte de outro território. Há uma espécie de fronteira a meio, que são as montanhas. O sul é Mediterrâneo, o norte é Atlântico, e a fronteira são a serra da Estrela, a serra de Gredos, Guadarrama, serras que vão até ao Ebro. E tudo é diferente do sul para o norte, as rodas dos carros, as técnicas de construção… as casas no sul são de taipa, no norte são de pedra. O norte tem uma ligação forte além-Pirenéus desde Carlos Magno. Ainda hoje existem os caminhos de Santiago, que fazem a ligação de Toulouse, na França, à Galiza. Já o sul, sempre esteve mais ligado ao Mediterrâneo.
O que é que aconteceu realmente em Covadonga? Houve tropas muçulmanas tão a norte? Iam lá para saquear. Tal como vinham do norte saquear as cidades do sul, roubar mulheres, crianças, gado, riquezas. Toda a Idade Média é feita dos chamados ataques de saqueio, de grupos a cavalo que vão atacar as cidades, e por isso a cidade é defendida com muralhas, com tropas. E então eles atacam os arredores, roubam as casas, levam mulheres e crianças para escravizar.
Mas não eram ataques entre cristãos e muçulmanos? Podia haver cristãos e muçulmanos no mesmo bando de saqueadores? Claro. Muitos dos bandos que iam atacar Santiago de Compostela, que foi saqueado por exércitos do sul, também tinham membros de tropas das Beiras e de Trás-os-Montes. Eram cavaleiros ligados aos senhores feudais do norte. Eram tudo menos muçulmanos. Iam roubar, só que em vez de irem para sul, iam para norte. Houve sempre cumplicidades nos ataques às cidades, porque mantinham uma certa autonomia, eram quase cidades-Estado, com o seu governo próprio e os seus poderes, as suas riquezas.
Há também registos de uma grande batalha em Poitiers, em 732, em que se refere que é aí que as forças muçulmanas são impedidas de conquistar o Norte da Europa, numa batalha ganha por Charles Martel. Isso é outro mito. Nessa altura, o atravessamento dos Pirenéus por tropas muçulmanas nunca aconteceu. Houve lutas, mas no sul de França. A França também teve os seus mouros, os albigenses ou cátaros, que foram conquistados pelo reino de França. Eram gente do Mediterrâneo, viviam no sul de França e tinham uma religião diferente dos do Norte. Eram considerados heréticos e foram atacados pelo rei de França, foram massacrados e o seu território foi conquistado e incorporado na França.
Tinham influência do Norte de África? Eram do Mediterrâneo, estavam ligados ao comércio. As zonas de comércio são diferentes das zonas de camponeses. Havia trocas, tinha-se outra visão do mundo. Nessa altura havia o norte feudal, com os senhores agarrados aos seus castelos a dominar o território e o maralhal eram escravos ligados à terra. O sul era diferente: aí entra o comerciante, há contacto com os portos. E o sul de França também era assim.
Quando é que a religião começa a ser usada na reconquista? Com a reconquista há um outro cristianismo a entrar na Península Ibérica, o católico, que vem de Roma. Houve tentativas, no século VI, de Bizâncio conquistar o Ocidente. Houve batalhas, Bizâncio conquistou parte do Norte de África, a actual Tunísia, e um pedaço da Península Ibérica, na costa do Mediterrâneo. Mas nunca conseguiu conquistar esta parte do extremo, do actual Algarve, que era hostil a Bizâncio.
Quando é que a fé entra na reconquista? No final do século XI, com as cruzadas? Antes de irem para o Oriente, as cruzadas começam aqui, na Península Ibérica, com a Ordem de Clunny, que depois vai dar a grande Ordem de Cister, e a reconquista, em Portugal, é comandada pela Ordem de Cister, sediada em Alcobaça, onde está o grande convento. Onde se dá o grande choque é em Coimbra, é aí a fronteira do Mediterrâneo. A reconquista é nos séculos XI e XII, e nessa altura a cidade tinha um cristianismo ligado ao sul, moçárabe, que não tinha nada a ver com Roma. Portanto, em 1111 dá-se o choque, é aí que se dá a grande batalha, perdida pelos cultos cristãos do sul, em que Coimbra é conquistada pelos franceses da Ordem de Cister.
Comandados por D. Henrique? Coimbra é conquistada pelo D. Henrique, o pai do D. Afonso Henriques, que falava francês. O primeiro a falar alguma coisa de português ou parecido deve ter sido o D. Afonso Henriques. Aquilo era gente de fora. Não tinham muito a ver com isto, nem sequer tinham ideia que havia aqui um cristianismo diferente. A conquista de Coimbra foi uma transformação total. Depois, pouco a pouco foram andando para sul. Por exemplo, D. Afonso Henriques não conquistou Lisboa aos mouros, foi aos cristãos, porque a maioria ainda era cristã. Aliás, há documentos de um cruzado inglês que refere que as pessoas na rua gritavam, antes de serem mortas: "Valha-me Santa Maria!"
Mas aprendemos na escola que D. Afonso Henriques conquistou Lisboa aos mouros. Isso não é verdade? Claro que não. Lisboa era, na altura, uma cidade mais ao menos autónoma, tinha um território muito importante, que englobava toda a zona do baixo Tejo, que ia até Santarém. Era uma cidade importantíssima, porque permitia o contacto com o Norte, era o grande porto que permitia a navegação do Mediterrâneo para o Báltico: os barcos ficavam em Lisboa à espera que o vento virasse, porque o vento dominante é o noroeste, que é violento, e quando há muito vento nem pensar em seguir viagem, por isso os barcos às vezes ficavam retidos em Lisboa um mês. O mesmo acontecia no cabo de São Vicente, porque para dar a volta ao cabo era preciso que o vento virasse, os barcos ficavam lá, daí ter surgido ali a escola de Sagres.
Imagem de destaque: Ataque ao Castelo de Lisboa em 1147 - Jaime Martins Barata.
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos
António Gedeão, in 'Linhas de Força'
Galileu Galilei
Galileu Galilei foi um importante astrónomo, físico e matemático italiano.
Ele é considerado um marco da revolução científica nas áreas da física e da astronomia.
Os estudos de Galileu foram fundamentais para o desenvolvimento da mecânica (movimento dos corpos) e a descoberta sobre os planetas e os satélites.
Fundador da Ciência Moderna e Pai da Física Matemática, uma de suas relevantes contribuições reside, propriamente, na criação do método científico.
Biografia
Galileu Galileu: pai do método científico
Galileu Galilei (em italiano Galileo Galilei) nasceu na cidade de Pisa, Itália, no dia 15 de fevereiro de 1564. Passou grande parte de sua vida em sua cidade natal.
Com 10 anos de idade foi estudar no Monastério de Santa Maria de Vallombrosa, donde destacou-se por ser um aluno exemplar.
Posteriormente, já com 18 anos, seu pai resolve matriculá-lo na Universidade de Pisa, no curso de Medicina.
Contra vontade do pai, abandonou o curso em 1585 e resolveu se dedicar aos estudos da matemática clássica.
Contudo, desde cedo Galileu esteve interessado nos fenômenos astronômicos e nos cálculos matemáticos, os quais o tornaram um dos mais importantes cientistas do século XVI.
Suas teorias serviram de apoio e inspiração às ideias posteriores de Isaac Newton. Podemos citar as três Leis dos Movimentos dos Corpos (princípios da inércia, dinâmica, ação e reação) e a Lei da Gravitação Universal.
Diante de seu notório brilhantismo, em 1588 foi indicado para ocupar a Cátedra de Matemática na Universidade de Pisa.
Quatro anos mais tarde, em 1592, foi nomeado professor da Cátedra de Matemática na Universidade de Pádua, e ali permaneceu 18 anos.
Viajou para Veneza, Roma e Florença a fim de aprofundar seus estudos bem como divulgar suas ideias.
Entretanto, considerado um herege pelo Tribunal da Santa Inquisição, foi acusado e perseguido pela Igreja Católica que o fez negar suas teorias. Foi condenado à prisão domiciliar, pelo resto da vida.
Morreu cego, na cidade de Florença, no dia 08 de janeiro de 1642 no mesmo ano em que nasceu Isaac Newton.
Em 1992, o Papa João Paulo II absolveu Galileu, reconhecendo que a igreja tinha cometido um erro ao condená-lo.
Invenções de Galileu
Além de filósofo, professor, físico e astrônomo, Galileu foi um inventor. Suas criações o auxiliaram no aprofundamento de teorias sobre o movimento dos corpos, a inércia e os astros.
Como exemplo, podemos citar: o relógio de pêndulo, o binóculo, o telescópio astronômico, a balança hidrostática, o compasso geométrico, uma régua calculadora.
Galileu aprimorou o telescópio, tornando-o um instrumento para observações astronômicas.
Principais Ideias e Descobertas
Defensor do Heliocentrismo de Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu refutou as ideias de Aristóteles (384 a.C. - 322 a. C), uma vez que acreditava que a terra não estava no centro do universo (Geocentrismo).
Além disso, em 1589, publica um texto que discorda da teoria proposta pelo filósofo grego sobre o peso dos corpos em queda livre. Dessa maneira, demostrou que a velocidade da queda independe do peso dos corpos.
Tentou medir a velocidade da luz, mas os equipamentos usados não foram capazes de fazer tal medição.
Ao tomar conhecimento de um instrumento que permitia ver objetos à longas distâncias, construiu seu próprio telescópio.
Conseguiu aperfeiçoar o equipamento, chegando a um aumento de 30 vezes, o que lhe permitiu fazer inúmeras observações dos corpos celestes.
Entre suas descobertas astronômicas destacam-se o relevo da Lua, a composição estelar da Via Láctea, os Satélites de Júpiter e as fases de Vênus.
Frases de Galileu
"A condição natural dos corpos não é o repouso, mas o movimento."
"Todas as verdades são fáceis de perceber depois de terem sido descobertas; o problema é descobri-las."
"A Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o Universo."
A PIDE assassina o general Humberto Delgado, por ordem de Salazar, depois de o fazer cair numa cilada. O pide Casimiro Monteiro foi o autor dos disparos. Rosa Casaco também participou no assassínio juntamente com Agostinho Tienza e Ernesto Lopes Ramos. António Gonçalves Semedo, Eduardo Sousa, Lopes Veloso, Barbieri Cardoso, Pereira de Carvalho e Silva Pais estiveram também envolvidos no crime de Badajoz. Foi a 13 de Fevereiro de 1965. Parece que agora ninguém se lembra.
A câmara municipal de Lisboa autorizou a construção de um condomínio de luxo no local onde ainda se encontra o edifício que foi a sede central da polícia política do regime fascista. Parece emblemática esta atitude da edilidade laranja. As coincidências em política raramente acontecem, com certeza que não estamos perante uma coincidência. Esta decisão teve um antecedente, precisamente da edilidade anterior de João Soares que deu aval à apresentação do projecto. “Socialistas” e “democratas” estão de acordo num ponto: para quê a memória histórica?
Em tempo de revisão da história, quase que passa por verdade oficial de que o fascismo não existiu em Portugal, terá existido quanto muito um regime autoritário centrado em poder pessoal, a prova desse facto terá sido o “pequeno” número de vítimas, quer de presos quer de mortes. A polícia política, PIDE/DGS, terá cometido alguns excessos, mas simples incidentes esporádicos, atribuídos quanto muito à inexperiência de algum agente mais novato. É assim que cantam as sereias da democracia de opereta que foi instituída após o 25 de Abril.
Humberto Delgado foi assassinado, uma verdade que não é possível esconder. Os seus assassinos foram deixados em paz após uma farsa de julgamento. Pouca gente se lembrará das peripécias deste julgamento. Dos responsáveis do regime fascista, e do assassínio, um já tinha morrido e os outros foram mandados para o sossego do Brasil. Rosa Casaco foi viver para Espanha, mas sempre atravessou a fronteira sem que as autoridades o detivessem ou solicitassem a sua extradição. Casimiro Monteiro foi para a África do Sul onde terá morrido.
Não é por acaso que, fazendo hoje, dia 13 de Fevereiro, quarenta anos de um dos assassinatos mais hediondos do fascismo português (isto se há algum menos hediondo?), os nossos governantes e os nossos figurões bem pensantes não se lembrem do que aconteceu. A nossa burguesia gosta de ter as digestões sem sobressaltos e a convivência entre “velhos” e “novos” democratas não deverá ser incomodada.
Em tempo de degenerescência acelerada da democracia de Abril, a preservação da nossa memória histórica é uma tarefa urgente e inadiável. Não são apenas as gerações vindouras que têm o direito de saber o que aconteceu em meio século de história, nós, os da geração de agora, temos que ter presente o passado para saber encontrar rumos para o futuro e num momento em que sobra a ausência de alternativas.
Houve fascismo em Portugal e se não torturou e matou mais gente é porque a resistência não foi assim grande, foi o suficiente para se manter de pé durante tanto tempo. Há que manter viva a memória dos crimes do fascismo, por muito que isso incomode.
Os pides responsáveis pelo assassínio de Humberto Delgado (da esquerda para a direita e de cima para baixo): Silva Pais, Barbieri Cardoso, Pereira de Carvalho,Rosa Casaco, Casimiro Monteiro, Agostinho Tienza, Ernesto Lopes Ramos, António Gonçalves Semedo, Eduardo Sousa e Lopes Veloso (Foto in "Diário Popular"; foto "Humberto Delgado" in "DN")
13 de Fevereiro de 2005
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A propósito do "bom nome" de Silva Pais
A tentativa de branquear uma das figuras mais sinistras do regime fascista, e através dela o próprio regime, por meio de um processo judicial para defender o bom nome da dita figura, e o à vontade com que isto é feito, revela que o ambiente político é propício a tal. Juntando às recentes intimidações policiais sobre sindicalistas e jovens manifestantes conclui-se que o sistema de democracia parlamentar está a mostrar a sua verdadeira natureza: branquear o fascismo. O texto que segue está publicado na página do Facebook de Humberto Delgado, de autoria de Iva Delgado, a propósito do julgamento relacionado com a peça «A Filha Rebelde».
Julho de 2011
Trata-se de ofensa ao bom nome de Silva Pais? De o acusar de um crime que não cometeu? De o enredar em teias de suspeição não provadas? De um simples mal-entendido sobre um cidadão como outro qualquer? Estas questões estão a ser levantadas hoje, num tribunal em Lisboa, como se Fernando Silva Pais tivesse sido um pacato major de um pacato Portugal sob o remanso governativo de Oliveira Salazar.
Os ofendidos, um sobrinho e uma sobrinha de Fernando Silva Pais, invocam o direito à reparação da memória deste e pedem justiça na forma de indemnização monetária. A acusação visa concretamente a peça de teatro "A Filha Rebelde" de Margarida Fonseca Santos, baseada na obra homónima dos jornalistas José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz. A peça, segundo a acusação, pode levar o espectador a concluir que Silva Pais foi o mandante do assassinato de Humberto Delgado.
Está em causa a cadeia de responsabilização em regimes ditatoriais. No julgamento dos nazis em Nuremberga, a questão era a de saber se quem se "limitava" a cumprir ordens superiores podia ser desresponsabilizado. A Justiça e a História concluíram que não podia. Mas no caso português, curiosamente, a questão é colocada ao contrário: não se pergunta se Silva Pais responde historicamente pelas ordens recebidas de Salazar, mas sim se responde pelos actos cometidos pelos seus subordinados. Por muito absurdo que possa parecer, é mesmo isso que está hoje em causa.
É confrangedor ver a inversão de valores em relação ao papel dos tribunais na era democrática. Se todos os descendentes de figuras históricas do Estado Novo se aproveitassem da legislação democrática para processar por difamação os autores de livros de história, biografias, ensaios, peças jornalísticas, obras de ficção, peças de teatro, séries televisivas, filmes, etc., teríamos uma paralisação intelectual, artística, histórica e cultural jamais vista. Seria a censura absoluta e total. Pior ainda, os autores praticariam a auto-censura.
O julgamento da história e a memória colectiva seriam abandonadas a si mesmos, à deriva por labirintos da memória individual, por trilhos ínvios do esquecimento, por deturpações oportunísticas.
Alguém pode defender que o Estado Salazarista não era um Estado fortemente hierarquizado? Alguém de boa vontade pode afirmar que qualquer agente do Estado podia agir por conta própria sem informar o seu superior hierárquico? Alguém pode defender que um caso tão notório como o caso Humberto Delgado estaria consignado ao âmbito de subalternos? É não ter noção mínima do que foi o salazarismo.
Qualquer pessoa minimamente informada sabe que o director da PIDE despachava directamente com Salazar. Ora Salazar escolhia a dedo os seus homens, deles dependia a eficácia do poder, deles dependiam a execução das suas ordens e o cumprimento adequado da sua política.
Querer defender o "bom nome" de seu tio e ao mesmo tempo pretender desresponsabilizá-lo é um contra-senso, para não dizer um mau serviço prestado à "memória" desse alto responsável do Estado Novo. É impensável alhear o major Silva Pais dos actos cometidos pela sua polícia política. Esse papel tem uma configuração histórica própria. Assumi-lo tem mais "dignidade" que a menorização patética, por via pseudo-sentimental, de um parente falecido.
Quem se interessar por este caso e concordar ou discordar com o acima escrito pode dar a sua opinião, divulgar ou simplesmente aderir.
Silva Pais em visita a salazar no Hospital da Cruz Vermelha
Dia 9 de Fevereiro de 1974, um sábado. O responsável pela Fábrica de Cimento de Nova Maceira, no Dondo, chega a Muanza, sul de Inhaminga. Acompanhado de um agente da PIDE/DGS, o engenheiro Góis vem visitar a pedreira de calcário que abastece aquela unidade industrial. Desloca-se às ordens do patrão, António Champalimaud, que pretende saber “O que se passa” neste lugar periférico da Gorongosa.
Na frente da pedreira, o director da Cimenteira depara-se com um cenário montado pelo seu gerente em Muanza, um branco de nome Jacinto. Doze corpos de nativos, passados pelas armas, jazem espostejados por terra “De forma a que todos vejam o que acontece a quem apoiar os terroristas”.
Jacinto orienta, no local, uma força de matança em série constituída por elementos da Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil de Moçambique - OPVDCM, acolitados por efectivos da 2.ª Companhia do Batalhão de Artilharia 6221, incumbidos de “montar segurança à pedreira”.
O engenheiro confere, num ápice, a informação que desliza pela cidade da Beira há já algum tempo e chegou agora de forma mais consistente aos ouvidos no Dondo. “Centenas e centenas de homens, arrebanhados em inúmeras aldeias de Manica, da Zambézia e, sobretudo, de Sofala, estão a ser sumariamente executados em Muanza”.
O proprietário da serração em Cheringoma mais próxima de Muanza está presente nesta visita ao complexo da pedreira. O seu nome é José Mendonça Teixeira e pede para falar. Garante ao administrador vindo de Nova Maceira que “Este sistema de limpeza já vigora há uns meses e é o mais eficaz para acabar com a guerra”. Acrescenta que “As valas, lá atrás, já têm à volta de uns três mil turras”. Um número redondo que o colaborador de Champalimaud já trazia na cabeça.
O madeireiro Teixeira, o subchefe da OPVDC, o furriel do Destacamento, o PIDE da Lusalite e o gerente Jacinto olham fixamente o enviado da Fábrica. Sem pestanejar. Permanecem assim até o silêncio se esfumar com a ruidosa chegada, lá atrás, de mais um camião carregado de pretos.
O ACELERAR DA GUERRA
Inhaminga situa-se a cerca de 60 km de Muanza, distância assinalada ainda em milhas ao longo da linha de caminho de ferro que sobe da Beira para Sena. Continuando, depois, paralela ao rio Zambeze, até Moatize.
No distrito de Tete, quando se atingiu o mês de Agosto de 1973, a FRELIMO tinha conseguido saltar para a margem direita do Zambeze, superando um obstáculo formidável: a barragem de Cabora Bassa e a sua albufeira. Avançou para sul e entrou em Manica. E no início de 1974 encontrava-se às portas de Vila Pery. Para leste, descendo do Niassa, a guerrilha completava o efeito de tenaz com a travessia da extensa Zambézia, reforçando de forma expressiva a sua acção em Sofala.Objectivo: Beira.
Em Inhaminga, o primeiro relatório da tropa portuguesa referindo um ataque directo ao exército colonial data do último dia de Julho, cinco meses antes. No cruzamento Mazamba-Goronga, a 40 km da vila, foram registados dois feridos numa emboscada. A resposta foi desproporcionada, para o que concorreu o trabalho complementar da PIDE/DGS.
Os soldados portugueses invadiram aldeias, arrasaram e incendiaram todas as palhotas. Os pides seleccionaram adultos para serem torturados, na mira de obter informações. O chefe tribal foi barbaramente espancado na situação de pendurado de uma árvore pelos pés. No final do suplício levaram o idoso, ainda vivo, para uma prisão na Beira. A população - velhos, mulheres e as suas crianças -fugiu aterrorizada. Os novos alistaram-se na FRELIMO, como aconteceu, entre outros lugares, em Nhansole com catorze rapazes.
A distribuição estratégica dos grupos de guerrilha em Sofala tomou-se perceptível nos dois ataques seguintes, a 16 e 17 de Agosto. Em menos de 24 horas, duas Berliet do Exército foram alvejadas em Massanza, resultando feridos, com gravidade, três soldados portugueses. Um jipe, lotado de agentes da PIDE/DGS, foi baleado 7 km para sul de Muanza. De Muanza a Massanza distam cerca de 100 km. No rescaldo do primeiro ataque sofrido, a tropa colonial atingiu mortalmente uma moleira que, no momento, assomava à picada com um filho ao colo. Que também morreu. Os militares assaltaram também a escola da Missão prendendo a turma inteira. O professor Carlito Chapo e os seus alunos foram todos levados para o quartel em Inhaminga onde, no dia seguinte, sofreram sevícias pelos mesmos agentes da PIDE/DGS que sobreviveram ao ataque da guerrilha em Muanza.
Na terça-feira 21, ainda nesse mês de Agosto, o presidente da Câmara de Inhaminga deslocou-se à Missão e intimou o assistente religioso Jan Tielemans para ser interrogado, "De hoje a oito dias", na delegação da PIDE/DGS na Beira. Este missionário, que nos últimos anos desenvolvera com sucesso um projecto agrícola no Lundo, foi acusado de "possuir documentos sobre os acontecimentos de Viriamu, em Tete, no ano passado".
DA TORTURA AO NAPALM
Até final do ano, lnhaminga viveu horrorizada o clima angustiante da guerra suja que alastrou, de forma progressiva, a esta região. Penosamente, o Comando-Chefe tentava transplantar a experiência de Nangade - símbolo da empresa dos "aldeamentos" no Rovuma - para a Zona Operacional de Tete - ZOT, e para o Comando Territorial do Centro - CTC. O plano consistia em "criar uma barreira intransponível ao terrorismo no seu caminho para Sul". Mas os guerrilheiros já se encontravam a percorrer, sem dificuldade, esses mesmos caminhos disputando as mesmas populações.
Nas margens do rio Bawa, em Thombo, um administrador de Posto mais inflamado antecipou-se ao programa de concentração das populações e proclamou a criação pessoal de um aldeamento em pleno coração da tribo Suere. De novo, os jovens partiram para o mato, e os mais velhos recusaram ser "aldeados". A reacção da FRELIMO veio a seguir, através da destruição das viaturas da tropa que patrulhavam a construção desse aldeamento privado.
Sem aviso prévio, a companhia de caminhos-de-ferro Trans-Zambezia Railways - TZR despediu em Novembro a maior parte dos trabalhadores das bombas de água e outro pessoal que operava ao longo da Linha de lnhaminga. Os poucos que não foram "mandados embora", a TZR despachou-os, igualmente sem qualquer explicação, para instalações de que esta multinacional dispunha no Corredor da Beira, muito longe das suas habitações. Foram substituídos por soldados rodesianos que ocuparam postos nas bombas de água de Mazamba, a 25 km de lnhaminga, Nhamatope, mais para norte, e Muanza, a sul. O medo cresceu nos funcionários da TZR deslocalizados.
Em Novembro de 1973, o Quartel-General em Nampula ordenou ao batalhão estacionado em lnhaminga um "novo plano de acção que devia passar ao terreno de imediato". E a Companhia de Comando e Serviços do BART 6221 deu início ao "reconhecimento ofensivo e destruição de palhotas" traçado na mesma ordem superior. A devastação começou em Nhantaze, perto do rio Timbuine, 30 quilómetros para o interior da Goronza, a ocidente de Muanza.
Ao mesmo tempo, a PIDE/DGS decidiu reforçar a sua rede de agentes e operacionais em lnhaminga. Os seus informadores deslocam-se constantemente às aldeias onde, de palhota em palhota, lêem avisos escritos em língua Sena onde se acusam os camponeses de "fornecer alimentos aos terroristas". No final de cada incursão no mato, com o apoio da tropa, os pides regressavam sempre a Inhaminga com várias famílias detidas, "para interrogatório" e martírio.
Em Dezembro, a força aérea da Rodésia - Special Air Service - estendeu os bombardeamentos, incluindo com napalm, à faixa que vem de Tete até Inhaminga,abrangendo a parte norte da Gorongosa. Os ataques dos dias 22, 24, 26 e 29 destacaram-se pela grande intensidade de fogo. No dia seguinte ao Natal, a Coluna da 1.ª Companhia do BART 6221, em missão de reabastecimento a Sena, accionou uma mina que destruiu a Berliet à cabeça e deixou cinco dos seus homens moribundos.
A GUERRILHA ATINGE A BEIRA
Primeiros instantes de 1974. O Comandante-Chefe das Forças Armadas de Moçambique, General Tomás Bastos Machado, festeja, discretamente, no aquartelamento do Fingoé, a "passagem de ano".
As comunicações são péssimas, mas o oficial de quatro estrelas está rodeado de forte dispositivo de tropas especiais que lhe garantem, ao som do conjunto «Os Unimogues do Ritmo», que toca no refeitório, celebrar em segurança a entrada de mais um ano de guerra em Moçambique.
No momento de erguer as improvisadas taças de plástico com cerveja morna, Tete profundo, a FRELIMO lançava o "fogo de artifício" na linha para Inhaminga. Uma série de explosões fez descarrilar comboios em Inharuca, e entre Machipanda e Beira. O número de feridos desta obriga a arrancar de Manica uma composição de socorro, que outro ataque do Inimigo também imobiliza, rapidamente. A oito quilómetros daqui, potentes rebentamentos projectaram pelo ar duas chaimites do exército. O dia de Ano Novo não acaba sem a destruição das bombas de água onde, em Novembro, a TZR tinha substituído guardas moçambicanos por rodesianos.
Na cidade da Beira há já guerrilheiros - alguns armados - que se passeiam pelas ruas principais, jantam nos restaurantes do cais, vão ao cinema no Scala ou no Olympia. Na manhã seguinte, os representantes da TZR sobrevoam de avioneta as bombas de água destruídas. Cantante Pinho, engenheiro-chefe da companhia, Elídio Tavares, director, e José Augusto Barros, administrador, declaram as bombas "irreparáveis".
A PIDE/DGS abre novas instalações em Inhaminga, inauguradas com a detenção do Superior da Missão Católica, padre holandês Josep Martens, "para efeitos de interrogatório".
É ano velho em Inhaminga.
O CALENDÁRIO DA AGONIA - 1974
1 de Janeiro. A 1.ª CART montou segurança à Ponte Dona Ana sobre o rio Zambeze, que liga Sena a Mutarara. Trata-se da maior ponte ferroviária de toda a Africa Austral - 3750 metros -, construída nos anos 30 pelo engenheiro Edgar Cardoso.
2 de Janeiro. O Exército chega a Inharuca para dar início à "Operação de salvamento e recuperação do descarrilamento do comboio ocorrido na passagem de ano. Reza a Ordem de Serviço que Dois grupos de combate da 2.ª CART fazem a abertura da linha lnhaminga - Vila Fontes motivada por em 3123H30DEZ73 o comboio Sena-Beira ter accionado uma mina em lnharuca (3503,5.1730,5) (Operação Libélula 1). Durante esta operação foi capturado um elemento suspeito que transportava dentro de um saco uma caçadeira desmontada. Na mesma data, UM grupo de combate da 2.ª CART deu escolta ao engenheiro da TZR até lnhatope e Mazamba onde a 31DEZ duas acções IN tinham destruído as bombas de água da TZR - Operação Libélula 2".
3 de Janeiro. A bomba de água na Estação de Inhaminga foi alvo de ataque e ficou seriamente danificada. Por esse motivo, a tropa colonial deteve alguns transeuntes acidentais transportando-os para a esquadra da polícia onde, na condição de suspeitos, foram violentamente agredidos. Nestes calabouços encontrava-se sem culpa formada o régulo de Massanza. A sua situação foi denunciada pelo Padre Martens quando este perguntou às autoridades o porquê da gritaria lancinante que continuamente ecoava, dir-se-ia, por toda Inhaminga. Eram as mulheres ali detidas que, dessa forma, procuravam, e conseguiram, chamar a atenção sobre o seu chefe tribal.
4 de Janeiro. Dois grupos de combate da 2.a CART iniciaram a Operação Libélula 4 com a finalidade de dar protecção, durante parte do seu percurso, a um comboio com materiais de construção para a barragem de Cabora Bassa.
5 de Janeiro. A 1.ª CART dá por concluída a Operação COLINA 4, "um reconhecimento ofensivo de 4 dias que terminou com a destruição de 30 palhotas".
6 de Janeiro. Chega a Inhaminga nova composição ferroviária com material para a barragem, desta vez acompanhada por militares do Comando das Cargas Críticas, estrutura com efectivos e vagões preparados para defesa do comboio com fogo anti-aéreo, dirigida directamente pelo Comando-Chefe em coordenação com o Comando Operacional da Defesa de Cabora Bassa. Partira da Beira e registava já irremediável atraso pelo trabalho de desactivação de várias minas detectadas ao longo da linha. Comboio e Comando foram ainda alvo de fogo cerrado na própria estação de Inhaminga.
7 de Janeiro. Dez quilómetros após a retoma da marcha do comboio, à passagem da Milha 104, a guerrilha accionou à distância novo engenho explosivo que, desta vez, destruiu os carris numa distância de 20 metros. A PIDE/DGS entendeu castigar mais uma vez o professor de Massanza, preso desde 16 de Agosto, agora como "suspeito-implicado" no recente atentado ao "comboio para a barragem". As agressões com matracas de borracha e cintos com fivela, os polícias juntam, a partir desta data, um novo aparelho recebido de Lisboa - uma "máquina de choques eléctricos".
8 de Janeiro. "Um grupo de combate da 2.ª CART iniciou a Operação Libélula 5 com a finalidade de reconhecimento ofensivo e perseguição a um grupo inimigo que em 0721H30 atacou a pedreira da Companhia de Cimentos de Moçambique na Muanza. Neste dia, a 1.ª CART efectua a Operação COLINA5, nomadização e emboscada que terminou com a destruição de 8 palhotas". Neste dia, um avião DC47/Dakota da FAP, ido da Beira para Vila Cabral, foi abatido antes de chegar ao destino.
12 de Janeiro. 1.ª CART faz "Operação COLINA 7; nomadização e emboscada que terminou com a destruição de 20 palhotas e a captura de 7 elementos que tinham desertado do Centro de Instrução de Grupos Especiais (GE) durante a recruta no Dondo".
14 de Janeiro. As autoridades em Inhaminga reúnem e combinam, no decorrer da semana que hoje começa, tomar várias "medidas de defesa e prevenção". O comandante da Companhia de Artilharia ordenou a "evacuação de toda a população que reside perto da linha do caminho-de-ferro entre Santa Fé e a Milha 100. Mais decretou recolher obrigatório em Inhaminga a partir das 20 horas, para os brancos, e das 18 horas, para os pretos". Estes, durante as "buscas diárias realizadas pelas NT" - Nossas Tropas às suas habitações, serão avisados do "perigo de morte que corre todo aquele que seja visto nas imediações do caminho-de-ferro". O coordenador da PIDE/DGS, chefe Gorgulho, determinou "aplicar o método dos choques eléctricos na cabeça e no sexo não apenas aos adultos mas também às crianças" que, no entanto, serão poupadas a esta tortura "se confessarem ter visto os pais a fornecer alimentos aos terroristas".
20 de Janeiro. A l.a CART cuml)riu a Ol)eração COLINA 11, nomadização e emboscada. "Durante esta operação foram destruídas 60 palhotas e libertada do controle IN uma mulher".
23 de Janeiro. As 3h30, uma hora antes do nascer do Sol, a FRELIMO atacou o aquartelamento do Exército em Inhaminga. O telhado do refeitório foi destruído e as janelas todas estilhaçadas. Os guerrilheiros afastaram-se. Não houve baixas, mas a tropa foi incapaz de qualquer reacção. Só duas horas depois soldados saíram à rua e abateram com rajadas dois homens que passavam a caminho do seu trabalho - Catemo, o pintor da TZR, e Creva, funcionário municipal da Inspecção da Madeira, ambos pessoas muito conhecidas na comunidade de Inhaminga. A população branca, em pânico com a "acção terrorista", manifestou-se logo nessa manhã junto do aquartelamento metralhado. O comandante reagiu, aos primeiros gritos na rua, determinando que os corpos dos cidadãos pretos Catemo e Creva permanecessem expostos na via pública durante todo o dia, e justificou a sua decisão com a necessidade de "mostrar a determinação do Exército em defender as famílias do terrorismo". Os brancos que se juntaram no local exigiram, ali mesmo, que a tropa fosse destruir a bomba de água da Missão. Os padres foram ruidosamente acusados de "apoiar os guerrilheiros".
24 de Janeiro. Chegou a Inhaminga o Governador da Beira, Coronel Souza Telles, "para se inteirar da situação e tratar de ouvir as queixas dos brancos". É-lhe exigida "atitude firme contra os missionários", insistentemente acusados de proteger a guerrilha e de esconder os seus elementos dentro da própria Missão, alimentando-os e prestando-lhes cuidados aos ferimentos de guerra. De maneira exacerbada, os colonos também garantiram ao Governador que "a Missão sempre funcionou como depósito de armas e munições da FRELlMO". Neste contexto, o alto representante do Governo Geral autorizou uma minuciosa revista a todas as instalações da Missão em Inhaminga. As buscas foram acompanhadas pelo Presidente da Câmara, pelo chefe da PIDE/DGS, pelo intendente da OPVDCM, pelo próprio Governador da Beira e por muitos brancos armados que devassaram a instituição religiosa durante longas horas. Nada foi encontrado que comprometesse os religiosos. Apesar disso, o Presidente da Câmara foi incumbido de notificar o Superior da Missão de que, a partir de agora, os padres e os seus colaboradores não poderiam sair do centro urbanizado de Inhaminga. O padre Martens considerou que a situação assim criada correspondia a "prisão domiciliária". E recordou, acautelando decisões futuras das mesmas autoridades, que a bomba de água da Missão abastece não apenas a comunidade missionária mas também a maior parte das famílias brancas que vivem em Inhaminga. O Superior foi obrigado a aceitar por escrito as ordens recebidas, sob a ameaça de "sofrer medidas mais graves, caso continuasse a alegar neutralidade em relação ao conflito". O Governador deu por finda a vistoria, sugerindo aos missionários que "Em vez de apoiarem os selvagens, deveriam antes dedicar-se a convencer os gentios a deslocar-se para os aldeamentos construídos para eles pelo Governo". Cá fora, durante o dia, foram espalhados por áreas estratégicas da vila - como as imediações do aquartelamento - panfletos redigidos em português, em inglês e em chisean, exigindo a libertação do chefe tribal Moisés Pangacha. A guarda ao quartel, que não conseguiu detectar quem distribuíra os papéis, acabou por abrir fogo intimidatório sobre os barracos onde se depositam os "terroristas" antes de serem transportados para as valas de execução, nas imediações do aeródromo. Alguns morreram, por antecipação.
28 de Janeiro. Na Missão, o número de crianças que ali procura curativos aos flagelos sofridos por parte dos agentes da PIDE/DGS aumenta de dia para dia. A Irmã Joana anotou o nome de Nhamataka Miti, 10 anos de idade, e Tembo Lole, de 8, com dedos a sangrar por lhes terem sido arrancadas unhas. Haviam respondido Não à pergunta "Os turras estão lá em tua casa?" Os miúdos não recorreram ao hospital porque "Também tem pide". Hoje, um helicóptero da Força Aérea munido de altifalante passou amanhã a convocar "Toda a população de Massanza para se juntar no último dia de Janeiro, quinta-feira, dentro de três dias". Folhetos coloridos caídos do céu reforçavam que "Os habitantes vão ser deslocados para novos aldeamentos", ainda por construir. A FRELIMO atacou pela terceira vez o aquartelamento do Exército em Inhaminga. Ao cair da tarde chegaram 60 GE - Grupos Especiais apresentados pelo Governador do Distrito como "parte de um contingente de 650 já deslocados do Norte, lá de Cabo Delgado, para o Dondo".
31 de Janeiro. Manhã cedo, várias Berliet partiram de Inhaminga para Massanza com o objectivo de recolher a população local, conforme o anunciado três dias antes. Quando a tropa lá chegou a povoação encontrava-se deserta. Os seus habitantes tinham partido para o interior da Gorongosa. A Norte, "Grupo IN emboscou a coluna da 1.ª CART de reabastecimento a Sena sem consequências".
OS CAMIÕES DA MORTE
1 de Fevereiro. O 8º. período de actividades do BART 6221, que hoje tem infcio, não trouxe alterações de monta em relação ao previsto no papel. Dá ênfase à necessidade de "operações conjuntas CCS/2ª. CART" mas, sobre a situação de Muanza, o Comandante Tenente-Coronel Rubi Marques decide "Manter uma secção de combate na Pedreira com reforço da sua auto-defesa" - a Operação Ovo 6.
2 de Fevereiro. Seis carruagens de um comboio misto, passageiros e mercadorias, oriundo da Beira, foram pelos ares na passagem pela Milha 65, a cerca de 10 km da estação de Cundué. A PIDE/DGS chegou ao local e prendeu um seminarista de Murraca, o único preto que viajava no comboio sinistrado.
3 de Fevereiro. A Milha 94, mais perto de Inhaminga, os guerrilheiros interceptaram João Carrelo, mecânico da empresa Codauto, que viajava de jipe para a Beira. Nada se sabe sobre a sua reacção, mas quando tentou fugir foi abatido. Acorreram alguns soldados que prontamente detiveram, de forma avulsa, homens e mulheres atraídos ao local pela curiosidade dos tiros. Neste domingo, a morte do mecânico Carrelo esvaziou de colonos a primeira missa na Missão, mas encheu o centro da vila com uma pequena multidão de brancos assustados. Em cólera, voltaram a dar à tropa e à polícia "exemplos de como se deve tratar os pretos". Três africanos, que se preparavam para entrar no autocarro de Quelimane, foram encurralados na padaria, perto da paragem, e sovados "até o sangue espirrar". Os colonos repetem que estas agressões, "em defesa das suas famílias", provam o "Ódio ao terrorismo" que sentem. No final arrastaram as vítimas até à entrada da Esquadra da polícia e deram início a um cortejo automóvel que, por entre gritos e disparos para o ar, passeou pelas ruas de Inhaminga, até ao pôr do Sol, o cadáver do branco Carrelo morto de manhã.
4 de Fevereiro. Uma anunciada Delegação de "Bons Católicos" foi denunciar àPIDE/DGS o facto de a Missão manter a porta aberta durante a noite "para receber os terroristas". O responsável da Missão foi imediatamente chamado à polícia. Na ausência do Superior, compareceu o padre Andreas van Kampen, que repetiu aos pides ser a porta da Missão fechada, todos os dias, por ele próprio, às 5,30 horas da noite, só reabrindo de manhã. Um numeroso grupo de membros da OPVDC partiu, fortemente armado e sem desvendar intenções, para Muanza. A PIDE/DGS prendeu o professor da escola em Dimba, Luanga Manuel Chomba. Mais panfletos lançados de uma avioneta convocaram desta vez "toda a população da comunidade de Moisés Pangache para ser trasladada para Inhaminga". Páraquedistas do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas 31- BCP 31, estacionado na Beira, chegaram a Inhaminga. A Beira deslocou-se o Superior da Missão, padre Josep Martens, que, acompanhado do Administrador Apostólico, Monsenhor Francisco Nunes Teixeira, Bispo de Quelimane, e do Vigário-Geral da Diocese, padre José António Souza, apresentou queixas formais ao Governo do Distrito sobre "maus tratos infligidos às populações em Inhaminga, perpetrados pela tropa, pelos brancos e pelos agentes da PIDE/DGS".
7 de Fevereiro. Uma patrulha do Exército transportada em Unimog chega a Cundué, para sul de Inhaminga, já depois de Nhondima e perto do local onde estrada e linha do comboio se cruzam. A força chega ao centro da localidade e os elementos da população ali presentes, junto às lojas, dispersam e afastam-se rapidamente. Alguns desatam acorrer e a tropa faz "fogo de prevenção" ou atira a matar, mesmo que estejam quietos - como aconteceu com o guarda do armazém de madeira na Estação de caminhos-de-ferro, José Thembo. Quando o Exército reparou nele, Thembo encontrava-se sentado à porta da sua palhota, juntamente com a mulher, Farenca, os filhos Carlos, Rita, Rufa e Chana, mais a cunhada Flora, todos paralisados de medo. Rajadas de cartucheira inteira atingem o guarda na cabeça e a cunhada numa perna. A mulher caiu para trás, fulminada. José e Flora, que ainda davam sinais de vida, foram levados para dentro da palhota, a que a tropa chegou fogo. O estalar do colmo pelas chamas, cada vez mais forte, abafou os gritos lancinantes das criaturas a serem queimadas. O Condué fora "pacificado", e o relatório da operação apresentou "bons resultados".
9 de Fevereiro. O dia em que o enviado da fábrica do Dondo toma conhecimento factual do santuário de massacre montado em Muanza - e que constitui a abertura, em destaque, deste capítulo - coincide com novos ataques da FRELIMO em Inhaminga. Os alvos de hoje foram as bombas de água da vila, o acampamento dos pára-quedistas na estação dos caminhos-de-ferro e o palacete de férias do Governador de Sofala. Uma coluna de viaturas da tropa, que regressava do Caia, foi alvejada pelos guerrilheiros, que provocaram um morto e vários feridos. Um comboio de passageiros sofreu o descarrilamento de 12 das suas carruagens, quando passava em Derunde, no local onde os parafusos dos carris haviam sido desapertados. Tropas de Comandos e de Pára-quedistas efectuaram uma operação de limpeza à aldeia de Dimba, obrigando a sua população a abandonar as palhotas que a seguir foram reduzidas a cinza. Os agentes da PIDE/DGS ameaçam, a partir de hoje, individualmente, todos os régulos da região de Inhaminga para que obriguem os nativos a deslocarem-se para os novos aldeamentos. Chico Romão, chefe tribal de Souce, perguntou onde foi construído o "seu aldeamento", uma vez que queria ir pelo seu pé. Luís Nhaguta, agricultor da região muito popular pela quantidade e qualidade da lavoura que produzia, foi igualmente intimado a abandonar as suas machambas, "Os camiões vêm buscar toda a gente nos próximos dias". Romão e Nhaguta recusaram-se a partir, motivo pelo qual deram entrada nos calabouços de Inhaminga, sofrendo agressões diárias. Até chegarem os prometidos camiões, então com destino diferente.
10 de Fevereiro. A FRELIMO ataca a pedreira de Muanza, mata o gerente Jacinto e a sua mulher, e fere gravemente comandante e subcomandante do Destacamento da 2ª. CART no local. No momento, os quatro percorriam de jipe a zona das valas. O responsável pela segurança militar à pedreira foi evacuado "zero-horas" para o Hospital de Lourenço Marques. Milícias brancos da OPVDC e mercenários pretos dos GE encerraram as escolas com paredes e telhado do Corredor de Inhaminga, começando pela de Santa Fé, no paralelo de Pangache. Patrões das serrações e régulos que operam e habitam perto da linha do caminho-de-ferro queixaram-se ao Exército do fogo que constantemente vitima os seus trabalhadores e habitantes, atingidos pelos disparos dos soldados que, "em missão de vigilância e protecção", viajam dentro dos comboios. "Eles vêm à janela da carruagem, apontam aos desgraçados e atiram a matar", reclama João Menano, o madeireiro de Inhaminga, para quem "nem tudo o que é preto é turra, alguns são meus e fazem-me falta".
11 de Fevereiro. No dia seguinte ao ataque em Muanza, o BART 6221 reage e faz avançar uma força no terreno. Regista a Ordem de Serviço da Unidade que a "Operação OUVIDO 9,1" Grupo de Combate da "1ª. CART iniciou batida e perseguição do IN onde ontem pessoal da 2ª. CART destacado na Pedreira de Muanza havia sofrido uma emboscada". Sem resultados.
13 de Fevereiro. Na Missão, após o acto litúrgico da manhã, católicos que trabalham em Inhaminga e habitam a periferia mostram-se apavorados com as atitudes continuadas dos militares portugueses que "sempre fazem mal nas nossas famílias". Queixam-se aos religiosos que "agora cada vez fazem mais entrar na palhota, mostram G-3 ao homem e violam mulher ou filha, mesmo pequena, e isso traz gente muito assustada com medo em Inhaminga". Deram o exemplo mais recente de Catarina Bramo, mulher de Rengo Charengi, violada por dois soldados. Esta mulher dirigiu-se ao hospital onde o médico confirmou os motivos da dor, dos danos, das ofensas e o grau de violência, "Tudo visto pelo senhor Director". Com esta Declaração, assinada pelo dr. Arménio Janeiro, Catarina e Rengo foram apresentar queixa no quartel da tropa. Aqui, o casal foi informado de que "Ninguém se pode queixar da tropa. Vão-se embora!"
14 de Fevereiro. Mais um contingente de 160 GE chegou a Inhaminga, que já não dispõe de espaço para levantar bivaque. O chefe Gorgulho da PIDE/DGS contactou a Missão exigindo que esta tropa seja aí alojada. O Superior recordou ao polícia que tal só seria possível com autorização conjunta do Bispo da Diocese e do Governador do Distrito. O pide retira-se e escolhe a Escola de Santa Fé, encerrada nas vésperas pelos colonos. Os GE, quando se instalaram, intimaram os professores a obrigar "As alunas, só as raparigas, a voltar para a escola porque vai haver aulas."
O genocídio que o exército israelita está a perpetrar hoje em Gaza não é um deslize, mas o desdobramento lógico de um projecto imperialista e colonial estabelecido no final do século XIX: o sionismo. Para compreender adequadamente o que está acontecendo hoje, é necessário compreender as origens e os desafios desta ideologia e movimento.
A Questão Judaica
Desde tempos imemoriais, o povo judeu viveu espalhado por todo o mundo. Mesmo séculos antes da queda de Jerusalém para o Império Romano (70 d.C.), 3,5 milhões de judeus viviam na diáspora, enquanto apenas meio milhão residiam na Palestina.
A situação das várias comunidades judaicas na diáspora era muito diversificada. Alguns eram prósperos e livres. Nessas regiões, notáveis judeus ocupavam até posições de autoridade.Noutros, os judeus viviam na base da sociedade, eram oprimidos e eram facilmente alvo de anti-semitismo.
No final do século XIX, o capitalismo estava em grave crise. Grandes setores da população empobreceram. Para promover a unidade nacional e desviar a atenção da crise, o establishment precisava de um bode expiatório, e naquela altura eram os judeus. Houve surtos de anti-semitismo na Europa Oriental e Ocidental. A Rússia czarista foi abalada por brutais pogroms [antijudaicos] em 1881, e em França houve o caso Dreyfus no final do século XIX.
Duas respostas foram formuladas nesse período em relação a esta onda anti-semita. Para judeus progressistas como Karl Marx e Moses Mendelsohn, a batalha tinha de ser travada no terreno contra tudo o que fosse reaccionário. Outros, como Theodor Herzl, o fundador do sionismo, optaram por fugir. Segundo eles, os problemas dos judeus só poderiam ser resolvidos num Estado judeu próprio. Esse foi imediatamente o cerne do sionismo.
Fraco apoio dentro da população judaica
Vários locais foram inicialmente considerados para tal estado judeu, incluindo Uganda, Quênia, Argentina e Palestina. Em última análise, a escolha recaiu sobre a Palestina. Esse país tinha a vantagem de que os mitos da Torá poderiam ser usados para mobilizar os judeus em todo o mundo.Além disso – como veremos mais adiante – este plano teve o total apoio do imperialismo britânico.
O sionismo foi criado por um punhado de intelectuais judeus. Teve muito pouco apoio em seus estágios iniciais. A oposição feroz a esta nova ideologia veio de vários círculos judaicos. O movimento reformista, os judeus ortodoxos e o movimento socialista que se opôs à ideia de um estado judeu.
No século XIX, a burguesia judaica estava, na sua maior parte, bem integrada na sociedade burguesa e na economia capitalista. Portanto, eles estavam focados na assimilação e não na segregação. Eles acharam absurda a ideia de um Estado judeu próprio; não estava de forma alguma de acordo com seus interesses. Sob a influência da Internacional Comunista, os trabalhadores judeus tinham pouco entusiasmo pelo sionismo.
Foi principalmente entre a pequena burguesia e mais especificamente entre os intelectuais que o sionismo emergiu e encontrou seguidores. A crise do capitalismo atingiu duramente a classe média e dentro deste sistema havia poucas perspectivas de resolução dos seus problemas.
Em resumo, nos primeiros anos, o sionismo foi apoiado principalmente por intelectuais pequeno-burgueses e representou apenas um pequeno movimento minoritário dentro do judaísmo. Antes da Primeira Guerra Mundial, o movimento sionista não conseguiu se tornar um ator importante dentro do judaísmo.
A migração para a Palestina defendida pelos sionistas foi igualmente pequena. Entre 1881 e 1925, quase quatro milhões de judeus emigraram da Europa. Mas apenas 1% deles procurou refúgio na Palestina na altura.
Apoio imperialista e nazista
Se os sionistas recebessem pouco apoio dos bairros judeus, poderiam contar com a Grã-Bretanha. No final do século XIX, o imperialismo estava em pleno andamento e um Estado judeu na Palestina convinha aos imperialistas britânicos. Há várias razões para isso.
Os britânicos queriam o controle do Oriente Próximo. Um Estado judeu naquela região, sob influência britânica, poderia ser muito útil neste sentido. A Palestina é estrategicamente muito importante devido à sua proximidade com o Canal de Suez (inaugurado em 1869), que dá acesso à rota mais curta para a Ásia. A partir de 1935, o petróleo desempenhou um factor igualmente importante: o fornecimento de petróleo do Iraque para o Mar Mediterrâneo também passou pela Palestina.
No final do século XIX, o Império Otomano estava nas últimas e neste vácuo havia uma possibilidade real de formar um grande e forte Estado árabe. No início do século XIX, o [paxá otomano] Muhammad Ali do Egipto já tentava construir um forte império árabe que, além do Egipto, também incluía a Síria e partes do Sudão. Com a criação de um estado judeu, os britânicos queriam evitar isso.
Finalmente, com a criação de um Estado judeu, os britânicos queriam impedir que a França, um grande rival imperialista, se apoderasse desta região estratégica. Sob Napoleão (Bonaparte), a França já havia tentado anexar o Egito e a Síria.
Em 1838, os britânicos abriram seu primeiro consulado em Jerusalém. A missão incluía encorajar informalmente os judeus a virem para a Palestina, prometendo protegê-los. Quase 60 anos antes dos sionistas judeus realizarem os seus congressos, os britânicos não só gostaram da ideia de instalar o povo judeu aqui, mas já tinham começado a implementá-la.
A Declaração Balfour expressou o plano do imperialismo britânico de dividir e conquistar a região da Palestina, promovendo o sionismo.
Em 1917, o secretário de Relações Exteriores britânico, Arthur James Balfour , escreveu a Lionel Walter Rothschild , membro de uma proeminente família de banqueiros judeus Rothschild na Grã-Bretanha. [Era] uma carta ao movimento sionista, que ficaria na história como a Declaração Balfour. Nele, ele afirmou que o governo britânico estava positivo quanto ao estabelecimento de um “Lar Nacional para o Povo Judeu na Palestina” e que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para facilitar este projecto.
As aspirações dos sionistas pequeno-burgueses coincidiram com os interesses geopolíticos do imperialismo britânico. Em grande medida, o sionismo é um produto das grandes empresas britânicas. Em qualquer caso, sem a Grã-Bretanha o projecto sionista nunca poderia ter-se desenvolvido ou alcançado os seus objectivos na Palestina.
Mas não era apenas do imperialismo britânico que os sionistas procuravam apoio. Por exemplo, os sionistas alemães concluíram vários acordos de cooperação com os nazis. Judeus alemães ricos poderiam emigrar para a Palestina juntamente com [parte de] seu capital. Com essa capital judaico-alemã, os sionistas na Palestina foram capazes de desenvolver a infra-estrutura económica para receber judeus da Alemanha. Em troca, os sionistas alemães quebraram o boicote que a maioria das organizações judaicas na Europa e nos EUA tinham declarado contra o comércio de produtos alemães.
Na Palestina, a Agência Judaica criou uma comissão para investigar os problemas dos judeus na Alemanha. David Ben-Gurion, [que se tornou] o primeiro primeiro-ministro de Israel, escreveu sobre isto na altura: “Não é tarefa do comité defender os direitos dos judeus na Alemanha. O comitê só deveria estar interessado no problema dos judeus alemães na medida em que eles podem emigrar para a Palestina.”
Foi graças a esses acordos que os judeus alemães “constituíram a classe super-alta em Israel” naquela época.
Após a Segunda Guerra Mundial, o papel de patrono e facilitador seria assumido principalmente pelos Estados Unidos, com a Europa como parceiro júnior.
Projeto Colonial
Os judeus podem ter sido um povo sem país, mas a Palestina certamente não era um país sem povo. No final do século XIX, quase meio milhão de palestinianos viviam entre a Jordânia e o Mar Mediterrâneo. Para transformar a área em um estado “judeu”, foi necessário retirar a população indígena.
Por outras palavras, o projecto defendia o colonialismo dos colonos, semelhante ao que os europeus tinham feito anteriormente na América do Sul e do Norte, na África do Sul, na Austrália e na Nova Zelândia.
Todos os projectos de colonialismo de colonização são movidos pela chamada “lógica da eliminação”, que é a lógica de fazer desaparecer ao máximo a população nativa. A história acima mostra que esta lógica conduz inevitavelmente à desumanização, à privação de direitos, à limpeza étnica e ao genocídio.
Desde o início, os objectivos dos sionistas eram claros, embora inicialmente não os declarassem abertamente. Em 1895, Theodor Herzl escreveu em seu diário:
“Tentaremos levar a população sem um tostão para o outro lado da fronteira, procurando-lhe emprego nos países de trânsito, ao mesmo tempo que lhe negamos emprego no nosso país. (…) Tanto o processo de expropriação como o de remoção dos pobres devem ser realizados de forma discreta e circunspecta.”
E não foram apenas palavras. Os sionistas compraram o maior número possível de terras, construíram a sua própria estrutura estatal paralela e criaram milícias.
Gradualmente, a liderança sionista mostrou menos timidez e manifestou-se abertamente a favor de um Estado judeu exclusivo. Em 1940, Josef Weitz, chefe do Departamento de Colonização da Organização Sionista Mundial, já não fazia rodeios: “Deve ficar claro que não há espaço no país para ambos os povos [árabe e judeu]. (…) Se os árabes [palestinos] o abandonarem, o país tornar-se-á amplo e espaçoso para nós. (…) Não há aqui espaço para compromissos.
“Não há outra maneira senão transferir os árabes [palestinos] daqui para os países vizinhos, transferir todos eles, salvo talvez [os árabes palestinos de] Belém, Nazaré e a velha Jerusalém. Não deve sobrar nenhuma aldeia, nem uma tribo [beduína]”.
A carta do Likud, partido de Netanyahu, também deixa pouco à imaginação. Afirma: “O direito do povo judeu à terra de Israel é eterno e indiscutível” e “entre o Mar e o Jordão só haverá a soberania israelita”.
Estamos aqui a lidar com o colonialismo de colonização não adulterado, que aliás se enquadrava perfeitamente no espírito da época, que se caracterizava pelo impulso colonizador dos países europeus. No final do século XIX, quase todas as áreas não colonizadas na Ásia e na África foram invadidas e colonizadas.
Por exemplo, em 1870, apenas 10% de África pertencia a potências europeias; este número aumentou para 90% no período anterior à Primeira Guerra Mundial. Na Conferência de Berlim (1885), a África foi simplesmente dividida entre os colonizadores europeus.
O sionismo enquadra-se nesse quadro e pode, por outras palavras, ser considerado como o último projecto colonial europeu.
Solução de dois estados?
O carácter colonial agressivo tornou-se imediatamente claro com a proclamação e formação do Estado judeu em 1948. Isto foi acompanhado pela Nakba (“catástrofe” em árabe): um massacre em massa da população palestina, a destruição de 500 aldeias e a deportação de aproximadamente metade da população palestina. Uma resolução das Nações Unidas previa o regresso de todos os palestinianos expulsos, mas isso nunca foi cumprido.
A partir de então, tratou-se de lutar pelo menor número possível de palestinianos na maior área anexada possível. A Guerra dos Seis Dias de 1967 quadruplicou o território de Israel. Ocupou a Faixa de Gaza, a Península do Sinai (devolvida ao Egipto em 1979), a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) e as Colinas de Golã (retiradas à Síria).
Os Acordos de Oslo de 1993 e 1995 foram mais uma consolidação do projecto colonial. Estes acordos pretendiam resolver o conflito israelo-palestiniano. Previam o chamado autogoverno palestiniano e abririam caminho ao estabelecimento de um Estado palestiniano.
Mas esse autogoverno era uma piada. Na verdade, esta “solução de dois Estados” nada mais foi do que uma táctica diversiva que permitiu a Israel continuar a desapropriar os palestinianos. A paz foi apenas um pretexto para Israel ganhar tempo e continuar a construir colonatos judaicos.
E isso aconteceu. Meio milhão de colonos vivem agora na Cisjordânia ocupada e esse número está constantemente a aumentar. A vida dos palestinianos torna-se tão difícil quanto possível: são humilhados, assediados e roubados. Milhares deles, incluindo crianças, foram raptados e passam anos em prisões em Israel.
Mas isso não é nada comparado com a Faixa de Gaza. Lá, [2,2 milhões] de residentes foram submetidos a um bloqueio total desde 2007 e a faixa foi reduzida a um campo de concentração.
Hoje, apenas uma pequena parte da Palestina original permanece.
Conclusão ou Fim do Projeto Sionista/Imperialista?
O ataque surpresa a partir de Gaza e o subsequente cerco à Faixa de Gaza constituem um ponto de viragem no projecto sionista. Um retorno ao estado anterior de coisas é impossível.
O exército israelita entrega-se à violência primitiva e bárbara baseada na mais moderna tecnologia, incluindo a inteligência artificial. Oficialmente, o objectivo é eliminar o Hamas. Mas a severidade e a crueldade da operação revelam que esta é uma desculpa para tornar a área inabitável e para deportar completamente a população.
Segundo o filósofo anti-sionista Moshé Machover, ele próprio judeu, residente em Israel, esse plano já existe há muito tempo. Em 2014, ele disse: “[O regime israelita está] na verdade à espera de um momento em que o povo palestiniano possa ser expulso permanentemente para os países vizinhos. Isso só será possível durante uma guerra em grande escala e temo que Israel esteja preparado para provocá-la.”
Vários planos já foram divulgados para deportar toda a população de Gaza para o exterior. O Ministro da Agricultura, Avi Dichter, fala abertamente de “uma nova 'Nakba'”.
Não há dúvida de que a guerra actual está totalmente em linha com o antigo sonho sionista de governar a região desde “o mar até ao Jordão”.
O apoio imperialista a esse sonho também ficou bastante claro quando, pouco depois de 7 de Outubro, os líderes dos EUA e da Europa correram para Tel Aviv para apoiar o governo israelita. Os EUA também enviaram imediatamente dois navios de guerra, cargas de munições e forneceram 14,5 mil milhões de dólares em ajuda.
A razão pela qual Israel é tão importante para os EUA é claramente afirmada por Robert F. Kennedy Jr., o sobrinho politicamente inconsistente do presidente John F. Kennedy: “Israel é crítico para os EUA. A razão pela qual é crítico é porque é um baluarte para nós no Médio Oriente. É quase como ter um porta-aviões no Médio Oriente. É o nosso aliado mais antigo, há 75 anos.”
Mas, por tanta selvageria, os sionistas pagam um preço. Como afirma a antropóloga libanesa Leila Ghanem, Israel está gradualmente a tornar-se “o país mais odiado do mundo”.
Desde o início da guerra, milhões de pessoas em todo o mundo saíram às ruas contra o genocídio em Gaza, os sindicatos interromperam as entregas de armas e oficiais e soldados israelitas foram acusados em tribunais internacionais e nacionais.A melhoria das relações que Tel Aviv tinha com os países da região está em risco.
Para as pessoas do Sul Global, o projecto sionista é um anacronismo dos nossos tempos e não tem futuro. A “exceção israelense” deve acabar. O povo palestiniano oprimido, sujeito ao terror mas que resiste a este “último projecto colonial”, adquiriu um grande valor simbólico [para as pessoas que enfrentam o imperialismo].
Como resultado do que está a acontecer em Gaza, [o antigo Presidente dos EUA Barack] Obama alerta para uma nova onda de anti-semitismo. É a ironia da história: o sionismo, que queria ser uma solução para o anti-semitismo, é agora ele próprio a causa do anti-semitismo.
O imperialismo também está em má situação. O apoio de facto ao horror em Gaza desmascara a retórica sobre os direitos humanos e a democracia. O contraste com que o Ocidente lidou com a Rússia após a invasão da Ucrânia versus o seu apoio a Israel hoje não poderia ser maior.
A guerra contra Gaza está a acelerar a instabilidade das relações Norte-Sul. O Ocidente está a ficar cada vez mais isolado e perdeu definitivamente a sua credibilidade entre os países do Sul global.
Gostaria de terminar com as palavras de Leila Ghanem: “A batalha por Gaza é a batalha de todos nós. …As palavras de Miguel Urbano ainda ressoam nos meus ouvidos: 'Onde o imperialismo concentra as suas forças militares, políticas, económicas e mediáticas, aqueles que o confrontam fazem-no em nome de toda a humanidade.' A queda de Gaza será a queda de todos nós face à barbárie capitalista. O mérito desta solidariedade é ter apontado o dedo ao nosso inimigo de classe.” (trabalhadores.org).
Imagem: Estátua do fundador do sionismo Theodor Herzl, inaugurada em 2012 na sinagoga Mikveh Israel em Tel Aviv. É chamado de “Herzl encontra o Imperador Guilherme II”
Nem todas as mortes possuem o mesmo peso, elas valem pelo significado que têm para as pessoas queridas ou para a classe social a que pertencem e cujos interesses se encontram subordinadas. Os matadores do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro são criminosos para os partidários da monarquia e dos defensores das actuais classes possidentes e respectivo status quo, mas heróis para os partidários da república nos princípios do século XX e das classes submetidas à exploração, à tirania e à injustiça de todos os tempos e independentemente da nacionalidade. Heróis ou criminosos, uma questão de classe.
Em 31 de Janeiro de 1891 rebentou no Porto o primeiro movimento revolucionário republicano, que foi violentamente reprimido pelo regime monárquico – acontecimento que foi pobremente relembrado pelos actuais democratas e republicanos, que se esquecem de que a democracia, com as liberdades e direitos individuais que eles tanto incensam, a devem a esses primeiros lutadores que sacrificaram a própria vida por um ideal; os monárquicos afadigam-se na tarefa de revisão da história e não enjeitam a provocação. A morte do rei e do herdeiro do trono possui um significado político e simboliza o estertor de um regime retrógrado, corrupto, responsável pelo atraso do país (o mais atrasado da Europa) e profundamente desprezado pelo povo; o monarca era uma personagem inútil, corrupto e cioso dos seus privilégios e cujo modo de vida era, juntamente com a família, delapidar o erário público que nunca era suficiente para satisfazer os apetites de quem, no dizer de Aquilino, “ primava na guitarra, nos touros, na caça, tudo geórgica e santo ripanço”.
João Franco, o odiado primeiro-ministro nomeado pelo rei, governou em ditadura, rasgou a Carta Constitucional, reprimiu ferozmente trabalhadores, republicanos e até sectores dissidentes da monarquia, encheu as prisões e sobrelotou os navios com desterrados para o exílio das colónias, os assassínios de opositores e de trabalhadores em greve era acontecimento corrente no reinado de D. Carlos. O monarca não poderia deixar de ser responsabilizado pela situação em que o país se encontrava, com a agravante da obsessão – e é bom salientar – de encontrar sempre expediente em sacar mais dinheiro ao erário público a fim de fazer face aos gastos crescentes da sua vida ociosa e demais elementos da corte, onde primava a corrupção e o deboche. Tanto o rei como a rainha eram tristemente famosos, sendo objecto de inúmeras anedotas e da chacota do reino, pelas aventuras amorosas, não escondendo D. Amélia os seus apetites sexuais vorazes, que não olhavam a sexo, o que constituía um escândalo, para mais, naqueles tempos e numa sociedade fechada e ainda muito ruralizada.
É deprimente assistir-se ao espectáculo ridículo dos cronistas do reino contemporâneos, tipo Rui Ramos, que se esfalfam em apresentar o rei D. Carlos como o “primeiro chefe de estado” português do século XX, como se isso lhe conferisse alguma importância particular, como um “homem bom”, um “amante da Constituição”, que mais não passam de tremendas falsidades facilmente desmascaradas pelos factos; o discurso agora desenvolvido de que teria sido um “grande artista”, um “amante das ciências” e da “vida do mar” são enfeites para justificar a sua vida ociosa e de desprezo para com o povo, que lhe retribuía na mesma moeda, ilustrado nas palavras que proferia sempre que regressava de viagem no iate real, pago com o sangue e suor do povo: “Lá voltamos nós outra vez para a piolheira!”. Portugal era – e é bom repeti-lo – o país mais atrasado da Europa em termos económicos e culturais e as “reformas” não se destinavam, como alguém querer comparar agora à política “reformista” de Sócrates, em modernizar o país, mas para obrigar o povo a fazer mais sacrifícios a fim de pagar a bancarrota crónica das finanças públicas.
A notícia da morte do último monarca português foi aplaudida pela maioria do povo, como bem relata o correspondente do “Jornal de Frankfurt” a propósito de um lojista que teve a ousadia de colocar no seu estabelecimento uma bandeira monárquica como forma de luto pela morte do rei: “Desde que tive conhecimento do sucedido, pus a bandeira a meia-haste. Mas imediatamente os meus clientes e as pessoas das minhas relações acorreram a interpelar-me sobre se eu tinha perdido o juízo ou se queria liquidar as minhas amizades. Perguntei-lhes se eles não achavam que as pessoas, de qualquer maneira, experimentavam um sentimento de comiseração. Você, meu caro senhor, não pode imaginar as coisas que eu ouvi! Não tive outro remédio senão esconder a bandeirinha”.
Manuel Buíça e Alfredo Costa
O povo escondia o seu pesar pela morte de um indivíduo pelo qual não possuía qualquer estima, substituindo-o pelo regozijo, tal como o faziam muitos socialistas nos parlamentos por essa Europa republicana fora. Para a classe operária e para o povo, nomeadamente de Lisboa, a vida do monarca odiado não teve qualquer peso. Mas a morte de Manuel Buíça e de Alfredo Costa já teve, eles sacrificaram a vida para apressar o fim de um regime execrado. A romagem aos túmulos dos denominados regicidas foi feita ininterruptamente até 1940 e só foi interrompida pela destruição dos mesmos a mando do regime fascista. Salazar temia pela vida e relembrar os heróis da república era um mau exemplo, exactamente como pensam os actuais políticos burgueses e, como não pôde deixar de afirmar o palhaço pretendente a uma coisa não existe, que atentados contra chefes de Estado não são bons exemplos. Se os actuais políticos temem pela vida é porque são capazes de sentirem também a consciência pesada.
Erguer uma estátua ao último monarca português é uma provocação vil que bem demonstra a natureza de carácter da classe política nacional mais ligada ao poder, cada vez mais igual aos seus congéneres monárquicos e sintoma da degenerescência do actual regime político. Porta aberta para que, mais dia, menos dia, em outra homenagem semelhante, os mesmos políticos com Cavaco à frente venham a erguer uma estátua ao velho ditador de Santa Comba que, como querem fazer crer os nosso revisores da história, até teria sido boa pessoa se não fossem as más companhias que o rodeavam, tal como o seu antecessor monárquico.
A única coisa que nos merece referência em relação à morte de D. Carlos é que a violência exercida foi insuficiente, sofreu do espírito de conspiração que predominava na época, deveria ter-se estendido a toda a classe de políticos, que o rodeavam e o vieram substituir, e ser exercida pelas massas, numa consequente revolução socialista que substituísse a monarquia por uma república operária a exemplo da Revolução Bolchevique. A revolução republicana de 1910 não derrubou os alicerces do Antigo Regime e o resultado não se fez esperar, dezasseis anos depois instalou-se o fascismo salazarista, numa versão modernizada da monarquia do século XIX, e ao que agora se assiste por força na integração na União Europeia deveria ter acontecido no princípio do século passado. Ficamos parados um século a contemplar a História.
Coimbra, 03 de Fevereiro de 2008
Imagem de destaque: Monumento funerário erguido a Alfredo Costa e Manuel Buíça que foi destruído por Salazar em 1940 e que urge reerguer em memória de quem sacrificou a vida pela liberdade e pela democracia. Cada classe tem os seus heróis e estes, mesmo que as suas acções não tivessem sido as mais adequadas ou eficazes, são indubitavelmente heróis populares.
Bibliografia:"D. Carlos I, Rei de Portugal", Jean Pailler. Bertrand Editora, 2005.