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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

PIDE: Métodos de tortura utilizados

29.05.24 | Manuel

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I1 - As cisternas do Fortaleza de Peniche onde os presos deixaram inscrições até 1966 (Foto in "Dossier P.I.D.E. - Os Horrores e Crimes de uma Polícia". Ed. Agência Portuguesa de Revistas. Lisboa. 1974)

 O presente capítulo baseia-se em extractos de depoimentos de ex-presos políticos antifascistas. Não pretende de modo nenhum ser exaustivo e refere-se apenas a acontecimentos recentes, dos últimos anos do regime. Dá no entanto uma ideia clara dos métodos utilizados pela criminosa organização; particularmente no que se refere à "tortura do sono", (usada contra todos os presos), há que ter em conta os seus efeitos imediatos – alucinações, perturbações cardiovasculares, como também o seu efeito a longo prazo sobre a saúde do torturado. Nesta tortura participavam todos os agentes que estavam de serviço na sede e delegações da PIDE. Para isso havia um burocrático serviço de escala com a duração de 4 horas, a que os pides chamavam "turnos".

Antes do interrogatório:

  1. PRISÃO: Podia ser de madrugada, em qualquer local, geralmente sem mandato de prisão ou de busca, acompanhada da recusa em informar o preso da acusação.

"Tinham-nos ido buscar às 7 horas da manhã, tendo aparecido sem mandato de captura e agredindo desde de logo o meu marido violentamente”. (1)

2- BUSCA: Era feita por uma equipa especializada em buscas, constituída por um chefe de brigada e 3 agentes. A busca era geralmente muito minuciosa: livros, recortes, postais, fotos, cartas, candeeiros, louças, autoclismos, caixas, cadernos, discos, etc. Mesmo nesta fase era vulgar que os pides não dissessem que a pessoa estava presa ou ia para a prisão.

"Estiveram todo o dia em minha casa rasgando cartazes, roubando, recolhendo livros. Obrigaram-me a estar virada para a parede para não ver o que apanhavam, e esse truque teve ligação com o facto de me apresentarem em interrogatório papéis que não tinham apanhado em minha casa; eu ouvi-os dizer que não tinham apanhado nada. Eram muitos e deixaram a minha casa com as portas arrombadas. Não sei quanto tempo lá ficaram mas apreenderam cartas, cartazes, postais, mais de 500 livros e mesmo discos ”. (1)

3 - CHEGADA À PRISÃO: Podia ou não haver passagem pela sede da PIDE; depois o preso era levado para Caxias; geralmente num carro vulgar, acompanhado por 2 ou 3 agentes. A chegada a Caxias era normalmente seguida de um processo que tendia à "despersonalização". Os seus aspectos principais eram:

- a identificação (fotografia e impressões digitais) ,

- corte de cabelo, barba ou bigode,

- apreensão de alguns objectos pessoais, particularmente, os óculos, relógio, atacadores e algumas roupas.

"Fui preso sem mandato de captura, às 8 horas da manhã, sendo depois levado para a Rua António Maria Cardoso, onde fui despojado de tudo que levava comigo, indo depois para Caxias”. (1)

"Fui conduzido para a António Maria Cardoso com uma toalha a servir de venda nos olhos. Lá fui seviciado por um agente que disse ter oito anos de guerra no Ultramar e que contra ele não se voltavam”. (1)

4- PERIODO DE ISOLAMENTO: O preso era colocado numa cela sozinho ou em certos casos, tinha um companheiro temporário que podia ou não ser "bufo". Tudo era manipulado pela PIDE com o fim de privar o preso de todo o contacto social e sensorial. Assim:

  1. a) celas - pequenas, com casa de banho, paredes nuas, mesa, cadeira e cama;
  2. b) refeições - eram de sofrível qualidade, dadas à porta a fim de evitar o contacto com o carcereiro. Para além do carcereiro que trazia as três refeições, o preso só via um agente da PIDE que a qualquer hora entrava na cela e, normalmente sem falar, fazia uma busca e saía rapidamente";
  3. c) proibição de livros, revistas e correspondência - ao preso era unicamente dado papel e lápis e era-lhe expressamente dito que "só poderia escrever ao Sr. Director";
  4. d) proibição de visitas.

"Deixaram-me em Caxias numa cela de isolamento só com a roupa do corpo, sem caneta nem papel para escrever à família. A custo me deram uma toalha e papel higiénico. Recusaram-me o dinheiro. Estive 5 dias assim, sem nada para fazer, sem ninguém para falar, sem poder escrever à família. Depois, duas vezes me vieram buscar e voltavam a trazer-me para a cela sem me fazerem nada, só para me enervarem”. (1)

Durante o período de isolamento as reacções psicológicas seguiam, geralmente as seguintes fases:

- fase de agitação, impaciência, agressividade;

- fase de inércia, descuido com a higiene pessoal, passividade e quebra das defesas físicas.

INTERROGATÓRIO:

1- CARACTERÍSTICAS: Era feito num centro especial para interrogatórios a cerca de 200 metros a sul do bloco da prisão, sendo o transporte em carrinha prisional, com motorista e um agente, ambos à frente (2) . Iniciava-se geralmente uma ou duas horas depois do preso estar a dormir. A sua duração era imprevisível, podendo levar de algumas horas a vários dias, geralmente com interrupções de mais do que um dia que, em muitos casos, precediam a visita.

Antes e durante o interrogatório as visitas do médico tinham como função assegurar primeiramente aos torturadores que o preso tinha condições de saúde que permitiam a tortura e por outro lado tratar o preso quando a sessão fosse longe de mais ou pudesse deixar traços que não conviessem à polícia.

"Depois do 5° dia foram buscar-me quando já estava deitada às 22 horas e estive dois dias, até às 24 horas do 7° dia sem dormir. Estava menstruada e nem algodão me quiseram dar. Ameaçavam-me e tentavam outros tornar-se meus amigos. A minha família soube de mim e ao fim de dois dias mandaram-me dormir para ter visita no dia seguinte”. (1)

"Uma noite vieram buscar-me para interrogatórios. Desta vez estive nas mãos dos pides 8 dias sem dormir, dois deles sem cadeira. Ao cabo destes 8 dias desistiram e levaram-me para Caxias. Durante estes 8 dias os interrogatórios eram feitos a variadíssimas horas, de preferência à noite. No decorrer dos interrogatórios as ameaças, intimidações e provocações foram frequentes”. (1)

2- MÉTODOS USADOS: Ultimamente a PIDE vinha-se especializando em técnicas de tortura psicológica sem no entanto ter abandonado a tortura física. Qual a razão deste especialização? No fundamental eram duas as razões:

- por um lado, não deixava traços visíveis e portanto era mais fácil enganar a opinião pública nacional e internacional;

- por outro lado, a influência crescente da polícia e métodos americanos no treino da PIDE, o que levou à "cientificação" da tortura, particularmente pela aplicação ao interrogatório dos conhecimentos adquiridos em cerca de 20 anos de investigação em Psicologia Experimental sobre "privação sensorial" feita, na sua maior parte, em Universidades norte-americanas e muitas vezes subsidiada pelo Ministério da Defesa dos EUA.

Estas técnicas não eram sempre utilizadas da mesma maneira: existiam várias combinações possíveis. Além disso, os torturadores eram suficientemente flexíveis para usar técnicas diferentes conforme as circunstâncias de cada caso individual. Para isso os pides jogavam com os seguintes elementos:

  1. a) filiação partidária;
  2. b) preso intelectual ou trabalhador;
  3. c) acontecimentos da história pessoal que pudessem ser utilizados contra o preso;
  4. d) situação dos familiares;
  5. e) possibilidade de chantagem económica, etc.

Existiam no entanto técnicas que pela frequência e pelos efeitos que provocavam, merecem ser mencionadas:

- Estátua: de pé, por vezes voltado para a parede sem a tocar e de braços abertos.

"Sofri 3 noites e 4 dias seguidos de estátua com períodos de espancamento pelo agente Santos Costa. Quando já não me podia manter de pé com as pernas inchadas, deram-me uma cadeira e fiquei mais dois dias em tortura de sono”. (1)

"Em seguida obrigaram-me a permanecer de pé 3 dias e noites consecutivas e como me tivesse recusado a comer enquanto fosse torturado, quiseram-me introduzir um tubo no estômago para alimentação" (1).

"Estive em tortura de estátua por tempo que sou incapaz de determinar, embora julgue que não foi por muito tempo; provocou-me grande inchaço nos pés e dilatação das veias por todo o corpo. Um dos sapatos rebentou”. (1)

"Fui forçado a permanecer dois dias consecutivos de pé pelo agente Magalhães da Silva precisamente no momento em que os pés, devido ao inchaço, já não cabiam nos sapatos e as mãos já não podiam permanecer em posição normal”. (1)

- Privação do sono: o preso era impedido de dormir durante vários dias consecutivos. Para isso bastava, por exemplo, o bater duma moeda na mesa, ou então a agressão física quando o preso fechava os olhos.

"Estive 22 dias em tortura de sono sendo distribuídos por 4, 13, 1, 2, 1. No período dos 13 dias deixaram-me dormir à 5ª noite na própria sala do interrogatório. Esta tortura provocou-me alucinações”. (1)

"Durante os 67 dias que permaneci em isolamento fui sujeito à tortura pela privação total do sono durante 12 dias em dois períodos: o primeiro de 4 e o segundo de 8 dias consecutivos. Durante os períodos de tortura de sono, fui sujeito ainda a outros tipos de violência tais como: duas sessões de brutal espancamento a soco, pontapé, golpe de cutelo e ainda batendo com a cabeça nas paredes, ambas efectuadas pelos agentes Inácio Afonso e Magalhães da Silva”. (1)

"Estive na tortura do sono de 30/1 a 6/2 e novamente de 8/2 a 14/2. Não sei os nomes dos pides que se revezavam em turnos para me impedir de dormir, mas poderei identificá-los pessoalmente, pelo menos a 4 ou 5 deles. Estes pides espancavam-me à bofetada, a pontapé e uma vez com cassetete. O inspector Mortágua deu-me uma forte sova de soco e pontapé, bastante demorada no 3º ou 4° dia de sono" (1).

"Comecei nessa noite, após um interrogatório, a tortura de sono que duraria 8 dias e 8 noites. Durante este período, fui interrogada pelo inspector Mortágua, pelo agente Inácio Afonso, pelo inspector Óscar Piçarra Cardoso e um outro agente que assistia mas de quem não sei o nome. Durante a tortura do sono, as agentes que me vigiavam para que eu não dormisse chamavam-se: Alzira, que sendo dactilógrafa fazia aquele serviço à noite como biscate; Leontina, e uma tal de Teresa Leite, de Braga, mas moradora na calçada do Carmo, em Lisboa. Esta mulher, "autêntico protótipo de agente da Gestapo: numa noite de interrogatório dei-me vários socos na testa onde partiu a corrente de metal do seu relógio, atingindo-me na vista que, durante mais de 8 dias, ficou negra e a doer-me imenso”. (1)

-Ameaças pessoais ou familiares: “ Durante os interrogatórios, era principalmente o inspector Óscar Cardoso que me pressionava mais, falando-me dos meus filhos, do que sofreriam com a minha ausência, etc., e também dos restantes familiares que estavam presos 'por minha causa'”. (1)

"O Abílio Pires era o mais sádico: dizia que me podiam levar para a Guiné (eu estava mobilizado) e matavam-me lá, sendo assim mais um 'morto em combate'”. (1)

“... E ainda às habituais ameaças de morte ou de loucura, de prisão de familiares e amigos, de fazerem passar a minha mulher pelas mãos de todos os chefes de brigada, além das habituais cenas de insultos da mais baixa espécie”. (1)

"O chefe de brigada Inácio Afonso socou-me por duas ou três vezes com extrema violência, fez um simulacro de fuzilamento, encostando-me uma pistola à cabeça e ameaçou-me com uma faca de mato gabando-se de que me ia por os intestinos à mostra ‘como fiz aos 'turras' em Angola' (palavras dele) ”. (1)

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I2 - Os estranhos buracos do inferno da Fortaleza de Peniche (Foto in "Dossier P.I.D.E. - Os Horrores e Crimes de uma Polícia". Ed. Agência Portuguesa de Revistas. Lisboa. 1974)

TORTURA FÍSICA:

-Maus tratos em geral: por exemplo: queimar a carne com pontas de cigarros, pontapés, obrigar a defecar ou a urinar de pé, ou no caso das mulheres, na frente dos torturadores com ameaças de violação.

"No 8° dia do sono, em virtude das alucinações auditivas comecei a gritar. Entraram na sala dois agentes que tentaram manietar-me. Como reagisse, esbofetearam-me, insultaram-me, conseguindo rachar-me um lábio, que também ficou negro. Nessa altura fui amordaçada com um adesivo largo e uma toalha turca dobrada, e agarrada pelos braços. Estive assim um espaço de tempo mas não posso precisar quanto. Tanto a Leontina como o inspector Mortágua ameaçavam-me de me por o outro olho igual ao que estava negro. Mortágua ameaçava-me muita vez de me bater, e de me deixar ali até eu dar em doida. No que era acompanhado pelos outros agentes”. (1)

“O pide chegou ao ponto de me provocar queimaduras na orelha esquerda com um fósforo”. (1)

"Fui espancado pelo Santos Costa, enquanto 4 agentes me seguravam e o inspector Rodrigues Martins me cravava as unhas nas orelhas provocando sangue. Também me queimaram os dedos com um isqueiro”. (1)

"No 2° dia entrou na sala o Santos Costa e, sem me fazer qualquer pergunta, puxa por um chicote e espanca-me com raiva, gritando e acompanhando isto de joelhadas nas minhas pernas; as dores eram horríveis doíam muito mais do que o chicote, porque eram dadas mesmo no músculo e deixavam grandes manchas negras. Durante a noite entrou um pide aos gritos chamando-me nomes e dizendo que eu tinha de falar senão rebentava comigo. De braço dado comigo começou a andar à volta da sala dizendo-me para eu gritar com ele e como eu não gritava dava-me cotoveladas no estômago ou no peito que me faziam dobrar; andou nisto um bocado até eu ficar tonto e com fortes dores no peito, e depois abandonou-me a rir e gozou o espectáculo de me ver naquele estado”. (1)

“… Foram 4 agentes que me espancaram, eu caí e então choveram pontapés nas costas e murros na cara. Deixaram-me a cara toda negra, sentia dores nas pernas e nas costas. Recordo-me também que sangrava da boca e do nariz”. (1)

-Uso de altifalantes: gravações de vozes, gritos e choros, que eram colocados em salas vizinhas e transmitidos para a sala de tortura para que o preso ficasse com a convicção de que amigos ou familiares seus estavam a ser torturados.

"Os gritos que ouvia eram gritos de pessoas a serem torturadas e eram outro género de tortura que me faziam sentir pequenino no meio de tanto horror. Tenho a dizer que esses gritos eram verdadeiros; tratava-se de uma gravação e o som era emitido por dois altifalantes disfarçadamente colocados em duas paredes da sala; os gritos eram sempre os mesmos e por isso só me causaram efeito ao princípio, depois só o barulho incomodava ”. (1)

Estas torturas provocavam entre outros os seguintes efeitos:

  1. a) Desorientação – o preso não era capaz de saber há quanto tempo se encontrava em interrogatório.
  2. b) Perturbação da concentração com falhas de memória e dificuldade em prestar atenção.
  3. c) Alucinações – era de longe o efeito mais perigoso. Os torturadores apercebiam-se rapidamente de que o preso tinha chegado ao período de alucinações pelo seu comportamento, e era frequente que tentassem aumentar as alucinações com sugestões e ameaças.

Eram frequentes as alucinações auditivas, como por exemplo, ouvir vozes de pessoas conhecidas, sons estranhos, etc.

"Deixaram-me junto a uma das tomadas de electricidade e então comecei a falar com pessoas amigas contando o que me tinham feito. Recordo-me perfeitamente que ouvia as pessoas a responderem-me. Apesar da violência dos espancamentos dessa noite, a verdade é que passei o resto do dia menos mal, passei-o a falar para a ficha que eu tinha arrancado da parede; falava com pessoas amigas mas tinha a consciência do sítio onde estava”. (1)

As alucinações mais frequentes eram as visuais, como por exemplo, ver as paredes a moverem-se ou animais que se mexiam no chão ou nas paredes.

"Na noite de 23 para 24 comecei a ver muitas coisas na sala: via bichos enormes, no plástico da porta de entrada. Via aí coisas horríveis, entre elas via-me entre grades com a cara disforme, outras vezes via pessoas muito amigas: andei a noite toda a passear na sala e de vez em quando um bichinho que eu nunca cheguei a ver saltava-ma para as costas e cravava-me as unhas; então lançava-me contra a parede esfregando-me na parede e o bicho fugia escondendo-se não sei onde. Recordo-me que algumas vezes via as unhas do referido bicho, eram muitas unhas, o bicho estava agarrado ao pé da mesa mas do lado contrário ao meu e por isso só lhe via as unhas vincadas ao pé da mesa; nunca cheguei a perceber que espécie de bicho seria. Sabia que tudo isto eram alucinações causadas pelos dias sem dormir mas a verdade é que tudo isto me incomodava; passei muito tempo a correr com o bicho, porque as suas unhas me doíam”. (1)

Notas:

(1) - Extractos de depoimentos prestados por ex-presos sujeitos a torturas pela PIDE.

(2) - Isto a partir de 1971, pois, até aí, funcionavam no terceiro andar da Rua António Maria Cardoso.

 Documentos:

“A PIDE, a sua Organização e seus Quadros” – Tribunal Cívico Humberto Delgado

“Elementos para a História da PIDE – Para o Tribunal que Julgue a PIDE” – AEPPA (Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas)

Fonte

O massacre na indonésia

27.05.24 | Manuel

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Escritor relembra massacre de 1 milhão de comunistas e simpatizantes na Indonésia

Em entrevista ao Tricontinental, Martin Aleida comenta o legado do Lekra, braço cultural do Partido Comunista

Daniel Giovanaz/Brasil de Fato

Cerca de um milhão de comunistas e simpatizantes foram assassinados na Indonésia, Sudeste da Ásia, entre 1965 e 1966. O dossiê nº 35 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social é baseado no relato de um sobrevivente. Aos 76 anos, o jornalista Martin Aleida relembra o horror daquele período e comenta o legado do Instituto para a Cultura do Povo (Lekra), braço cultural do Partido Comunista da Indonésia (PKI).

O PKI protagonizou as lutas anti-imperialistas que resultaram na independência do país, colonizado pela Holanda até 1945, e se tornou o terceiro maior partido comunista do mundo, atrás do chinês e do soviético, com 3,5 milhões de membros.

Aleida foi preso aos 21 anos e libertado aos 22, em 1966. Enquanto ele esteve atrás das grades, o Lekra, o PKI e o jornal onde ele trabalhava foram colocados na ilegalidade. Entre os mortos na repressão estavam o secretário-geral do partido, D. N. Aidit; dois membros-chave do Comitê Central, M. H. Lukman e Lukman Njoto; e dois outros líderes do Partido, Sudisman e Ir Sakirman.

O massacre aos comunistas foi o primeiro capítulo de um golpe liderado pelo general Hadji Mohamed Suharto, que comandaria o país de 1967 a 1998. Eram tempos de Guerra Fria, e Suharto era apoiado pelos Estados Unidos – “talvez mais conhecido pela CIA do que pelo povo indonésio na época”, conforme o dossiê do Tricontinental.

O nome Martin Aleida foi adotado nesse período – antes, ele se chamava Nurlan. Sob o pseudônimo, foram escritos romances e contos, ficção e não ficção sobre a violência, o sofrimento dos trabalhadores indonésios e a resistência ao regime. O último livro é de memórias, "Romance nos Anos de Violência", em que relembra justamente o massacre e a resistência em meio à brutalidade do imperialismo.

Cultura revolucionária

O Lekra tinha, à época do massacre, 200 mil membros. “Era provavelmente a maior organização cultural não estatal que já existiu no mundo”, ressalta o dossiê.

Aleida diz ter sido “atraído pelo ponto de vista da organização de que a literatura deveria tomar partido e defender a justiça da maioria oprimida – os trabalhadores, camponeses e pescadores”. O assassinato da maioria dos integrantes e a destruição física de documentos do Lekra criaram uma lacuna de memória sobre a organização, que completaria 70 anos em agosto.

Eis o valor das palavras e lembranças de Aleida. O objetivo do Lekra, segundo ele, era contribuir para a construção de um movimento comunista robusto, para além do PKI: “O Lekra era a vanguarda do trabalho cultural comunista”. Além do braço cultural, havia federações de jovens, mulheres, trabalhadores e camponeses.

Durante o primeiro congresso nacional, o Lekra foi dividido em sete institutos: literatura, artes plásticas, cinema, teatro, música, dança e ciência. No horizonte estavam, por exemplo, a sistematização da música popular e tradicional, a identificação dos aspectos decadentes, feudais ou antirrevolucionários que persistiam na Indonésia, e o desenvolvimento de um programa de educação político-cultural que incentivasse a produção criativa.

Além da instância nacional, havia organizações regionais e afiliadas locais. Foram formadas 21 afiliadas em seu primeiro ano de existência. Em 1963, dois anos antes do golpe, já havia 200 afiliadas e 100 mil membros.

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"Camponeses reividicam", ilustração publicada em 1964. As reivindicações escritas são (de cima para baixo): UUPA [lei agrária 1960], UUD 45 [Constituição Indonásia de 1945] e demokrasi [democracia] / Reprodução / Arte: S. Pudjanadi

“A ideologia estética do Lekra encontrou sua práxis nas noites culturais, onde artistas, militantes e pessoas comuns se encontravam”, descreve o dossiê. “Liderados pelo Lekra e muitas vezes hospedados por suas líderes femininas, esses eventos foram organizados em momentos oficiais do movimento, como comemorações de momentos significativos e celebrações internacionalistas. Com uma mistura de música, dança e teatro, essas noites culturais eram locais para praticar, testar, avaliar e transformar teorias abstratas em seres concretos”.

Para se ter uma ideia do sucesso dessas iniciativas, uma noite cultural de comício eleitoral do PKI em 1955, em Surakarta, atraiu 1 milhão de pessoas.

“O Lekra estimula iniciativas criativas, estimula a bravura criativa e o Lekra aprova todos os tipos de formas e estilos, desde que fiel à verdade e que se esforce para criar a mais alta beleza artística”, diz um documento interno de 1959.

Um dos princípios-chave do Lekra era, literalmente, “descer de cima”. “Significa, literalmente, ir para a base – trabalhar, comer, viver com trabalhadores, camponeses sem terra e pescadores”, explicou Martin ao Tricontinental.

O dossiê lembra que dramas “realistas revolucionários” foram desenvolvidos para tratar de temas conjunturais da época, como a reforma agrária. A peça “Fogo nos arrozais”, de 1964, escrita por Kusni Sulang, por exemplo, passou a incluir atores camponeses após a crítica de líderes partidários locais. Camponeses também assistiam aos ensaios e contribuíam com críticas e sugestões.

“Através desse processo elaborado, as preocupações dos camponeses foram elevadas a uma produção criativa e trazidas de volta aos camponeses para representação e avaliação. O processo foi definido por uma negociação contínua entre as visões do Partido e as realidades da vida camponesa. As contribuições do pensamento marxista nas práticas e princípios artísticos do Lekra são claras”, diz o texto.

Mais perto do que parece

O Brasil de Fato conversou com Tings Chak, responsável pela entrevista com Martin Aleida que deu origem ao dossiê. Ela relata que o jornalista expressa urgência em contar o que viveu à geração mais jovem e não esconde em nenhum momento que trabalhou para o Partido Comunista, apesar da repressão que existe até hoje na Indonésia.

“Desde 1965, essa história tem sido pouco contada”, lamenta Tings. “O partido e suas organizações continuam banidos na Indonésia, e muitos artistas foram mortos, desapareceram ou estão exilados. Até hoje, vestir uma camiseta com símbolo comunista ou ter um livro marxista pode ser motivo para prisão”.

Comandante do golpe, o general Suharto permaneceu impune até a morte, em 2008.

A coautora do dossiê acrescenta que o Lekra oferece novas interpretações sobre a cultura no marxismo em relação às experiências da China e da União Soviética.

“O Lekra expande nossa imaginação sobre as possíveis contribuições de artistas e trabalhadores da cultura. Eles estavam na cidade, mas também no campo, vivendo, trabalhando e produzindo arte a partir dessa experiência, respondendo às necessidades do seu tempo e mobilizando as pessoas”, diz. “Infelizmente, essa história ainda é muito restrita aos meios acadêmicos, inacessível ao grande público”.

Tings lembra que o horror vivido na Indonésia tem conexões com a repressão vivenciada no Brasil e na América Latina. A “Operação Jacarta” de 1965, que leva o nome da capital da Indonésia, foi replicada, por exemplo, durante o golpe militar no Chile, em 1973 – também protagonizado pela CIA.

“A história da América Latina, nos últimos anos, tem sido a história do imperialismo estadunidense. Embora a Indonésia pareça distante, as realidades estão conectadas pelo imperialismo”, completa a coautora do dossiê. “Quando Bolsonaro heroifica o [torturador] Ustra, fica clara essa conexão e a necessidade de se debater os movimentos anticomunistas e antidemocráticos que continuam se fortalecendo”, finaliza.

Edição: Rogério Jordão

Imagem de destaque: "Aqueles perseguidos e expulsos de suas terras": obra de arte indonésia de 1960 - Reprodução / Arte: Amrus Natalsya

Fonte

O caso Assange: um lampejo de esperança

23.05.24 | Manuel

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Por Dr. Binoy Kampmark 

Foi fraco, mas havia mais do que apenas um lampejo de esperança. Na jornada atormentada (e atormentadora) que o fundador e editor do WikiLeaks, Julian Assange, suportou, 20 de maio de 2024 proporcionou outra parada. Tal como aconteceu com muitas dessas paragens ao longo dos anos, envolveu advogados. Muitos deles.    

A ocasião era se o Supremo Tribunal de Justiça do Reino Unido concederia a Assange autorização para recorrer da sua extradição para os Estados Unidos para enfrentar 18 acusações, 17 escavadas na monstruosa pedreira que é a Lei de Espionagem de 1917. Ele é procurado por receber e publicar informações confidenciais dos EUA. materiais governamentais incluindo telegramas diplomáticos, os arquivos dos detidos na Baía de Guantánamo e as guerras no Iraque e no Afeganistão. Qualquer sentença computada, calculada glacialmente em 175 anos, significaria efetivamente o seu fim. 

As notícias no domínio jurídico têm sido muitas vezes desconfortáveis ​​para Assange e os seus apoiantes. Os EUA foram favorecidos, repetidamente, em vários recursos, acumulando a maior parte das vitórias desde que anularam com sucesso a decisão da juíza Vanessa Baraitser de proibir a extradição em Janeiro de 2021 por motivos de saúde mental. Mas o juiz Johnson e Dame Victoria Sharp, do Supremo Tribunal de Justiça de Londres, prometeram manter o assunto interessante.   

Um ponto de discórdia fundamental no processo tem sido se a Primeira Emenda protegeria a actividade editorial de Assange no decurso de qualquer julgamento nos EUA. A atitude do procurador central dos EUA no processo de extradição, Gordon Kromberg, e do ex-secretário de Estado e ex-diretor da CIA Mike Pompeo, tem sido de forte desaprovação de que tal deveria acontecer. 

As observações de Pompeo num infame discurso em Abril de 2017 enquanto director da CIA no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais rotularam abertamente a WikiLeaks como “um serviço de inteligência hostil” que fazia proselitismo na causa da transparência e ajudava potências como a Rússia.  Assange “e a sua espécie” “não estavam nem um pouco interessados ​​em melhorar as liberdades civis ou em aumentar a liberdade pessoal.  Eles fingiram que a liberdade da Primeira Emenda dos EUA os protege da justiça.” Eles estavam “errados” em pensar assim. 

Em 17 de janeiro de 2020, Kromberg apresentou uma declaração juramentada ao tribunal distrital do Reino Unido que foi esclarecedora sobre o assunto .  O seguinte permanece relevante:

“Relativamente a qualquer contestação da Primeira Emenda, os Estados Unidos poderiam argumentar que os cidadãos estrangeiros não têm direito às protecções ao abrigo da Primeira Emenda, pelo menos no que diz respeito à informação de defesa nacional, e mesmo que tivessem esse direito, que a conduta de Assange está desprotegida devido à sua cumplicidade em atos ilegais e na publicação de nomes de fontes inocentes sob grave e iminente risco de dano.” 

Em Março de 2024, o Tribunal Superior rejeitou sucintamente seis dos nove argumentos apresentados por Assange, como parte do seu esforço para procurar uma revisão de todo o caso. Os juízes, ancorando-se no raciocínio inicial do juiz do tribunal distrital, recusaram-se a aceitar que ele estava a ser acusado de um crime político, algo proibido pelo Tratado de Extradição EUA-Reino Unido, ou que a CIA tinha violado o privilégio advogado-cliente ao ter espionou-o na embaixada do Equador em Londres, sem falar na séria reflexão dada ao sequestro e assassinato.    

Os juízes deram à acusação um forte ramo de oliveira, o que implica que o caso de extradição seria mais forte se uma série de garantias pudessem ser dadas pela acusação dos EUA. Estas foram, por sua vez, que fossem oferecidas a Assange as proteções da Primeira Emenda, apesar de ele não ser considerado jornalista; que não seja prejudicado, tanto durante o julgamento como na sentença, em razão da sua nacionalidade, e que não seja sujeito à pena de morte. A insistência em tais empreendimentos tinha um ar  um tanto irreal e confuso . 

Garantias defeituosas: a tortura judicial de Assange continua

Em 16 de abril, o Departamento de Estado dos EUA apresentou as garantias sem dentes numa nota diplomática ao Crown Prosecution Service (CPS). 

“Assange não será prejudicado por razões de nacionalidade relativamente às defesas que possa procurar levantar no julgamento e na sentença.” Se extraditado, ele ainda poderia “levantar e procurar fazer valer no julgamento (que inclui qualquer audiência de condenação) os direitos e proteções concedidos ao abrigo da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos .  A decisão quanto à aplicabilidade da Primeira Emenda é exclusivamente da competência dos tribunais dos EUA.”   

As autoridades dos EUA comprometeram-se ainda a evitar procurar ou impor a pena de morte. “Os Estados Unidos são capazes de fornecer essa garantia, uma vez que Assange não é acusado de um crime elegível à pena de morte, e os Estados Unidos garantem que ele não será julgado por um crime elegível à pena de morte.” Isto só pode ser tomado como conjectura, dada a liberdade que a acusação tem para apresentar novas acusações que acarretam a pena de morte, caso Assange se encontre em cativeiro nos EUA. 

No tribunal, Edward Fitzgerald KC, representando Assange, explicou com fria sobriedade que tal garantia não garantia que Assange pudesse confiar na Primeira Emenda no julgamento.

“Não obriga a acusação a considerar o ponto que deu origem às preocupações deste tribunal, ou seja, o ponto de que, como cidadão estrangeiro, ele não tem o direito de confiar na Primeira Emenda, pelo menos em relação a uma questão de segurança nacional.” Em qualquer caso, os tribunais dos EUA dificilmente estavam vinculados a ela, um ponto sublinhado no depoimento  prestado pela testemunha de defesa e antigo juiz distrital dos EUA, Professor Paul Grimm. Concluiu-se que a garantia era “claramente inadequada” e “causaria prejuízo ao requerente com base na sua nacionalidade”. 

As observações escritas apresentadas ao tribunal pela equipa jurídica de Assange também argumentaram que a discriminação “com base no facto de uma pessoa ser estrangeira, quer com base no facto de ser um cidadão estrangeiro ou um cidadão estrangeiro, está claramente dentro do âmbito da proibição [contra a extradição sob a Lei de Extradição do Reino Unido de 2003]. O “preconceito em julgamento” deve incluir a exclusão, por motivos de cidadania, dos direitos substantivos fundamentais que podem ser invocados em julgamento. Segundo o argumento dos EUA, os procedimentos de julgamento poderiam discriminar com base na cidadania.” 

Em resposta, os EUA apresentaram argumentos de qualidade avassaladora.  Através de James Lewis KC, foi alegado que o Supremo Tribunal tinha errado no seu acórdão de Março ao equiparar “preconceito em razão da nacionalidade estrangeira com discriminação em razão da cidadania estrangeira”. A Lei de Extradição do Reino Unido menciona “nacionalidade” em vez de “cidadania”. Esses termos não eram “sinônimos”.     

De acordo com Lewis, o Artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), que protege jornalistas e denunciantes, foi qualificado pela conduta “dentro dos princípios do jornalismo razoável e responsável”. Um factor neste contexto “se é razoável e responsável é onde a publicação ocorreu – dentro do território de um Estado-Membro ou fora do território de um Estado-Membro”. 

As alegações escritas da acusação resumem os pontos. A aplicabilidade da Primeira Emenda ao caso de Assange dependia “dos componentes de (1) conduta em solo estrangeiro (fora dos Estados Unidos da América); (2) cidadania não americana; e (3) informações de defesa nacional”. Assange, elaborou Lewis, “poderá contar com isso, mas isso não significa que o escopo cobrirá a conduta da qual ele é acusado”. 

A acusação sugeriu que a antiga denunciante do Exército dos EUA, Chelsea Manning, uma fonte vital para o WikiLeaks, não tinha podido confiar na Primeira Emenda, limitando a possibilidade de as suas protecções se estenderem à cobertura de Assange. 

Mark Summers KC, também representando Assange, ficou perplexo.

“O facto de se ter descoberto que Chelsea Manning não tinha reivindicações substanciais da Primeira Emenda não diz absolutamente nada. Ela era funcionária do governo, não uma editora.   

Ele também destacou que “Você pode ser cidadão sem ser cidadão [mas] não pode ser cidadão sem nacionalidade”. Concluiu-se que a discriminação decorrente da cidadania resultaria em discriminação com base na nacionalidade, e nada alegado pela acusação em termos de jurisprudência sugeria o contrário. 

Não convencida pelo raciocínio distorcido da acusação, Dame Victoria Sharp concordou em conceder autorização a Assange para recorrer, alegando que corre o risco de discriminação em virtude da sua nacionalidade, na medida em que afecta o seu direito de fazer valer as protecções conferidas pelo Artigo 10 do CEDH e a Primeira Emenda. 

Resta saber se esta vitória legal para o enfermo australiano produzirá uma colheita doce em vez dos frutos amargos que produz. Ele continua a ser o prisioneiro político mais proeminente da Grã-Bretanha, detido em condições imperdoáveis, cuja fiança foi recusada e sujeito a condições de prisão aprovadas indiretamente por aqueles em Washington. Entretanto, a campanha pública para retirar a acusação e procurar a sua libertação continua a amadurecer. 

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Cristãos, Muçulmanos e Judeus: um Único Estado Secular

21.05.24 | Manuel

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Por Roger Copple

Se conseguirmos resolver os problemas na Palestina – Israel, a Terra Santa para cristãos, muçulmanos e judeus – todo o resto será moleza. O que acontece na Palestina-Israel tem repercussões em todo o mundo, por isso é tão importante aprender mais sobre o sionismo, o imperialismo e a crise do Médio Oriente, especialmente agora considerando a situação catastrófica em Rafah, Gaza.

O primeiro Congresso Sionista Mundial foi estabelecido em 1897 por Theodore Herzl. A partir da década de 1920, os judeus, principalmente da Europa, começaram a imigrar cada vez mais para a Palestina. Anos mais tarde, após o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial, a ideia de criar uma pátria segura para os judeus na Palestina através  do sionismo  tornou-se mais popular.

O filme Lawrence da Arábia foi sobre como o Império Britânico convenceu os árabes a se revoltarem contra o Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial.

Os britânicos prometeram aos árabes uma pátria independente após a guerra. No entanto, após os britânicos capturarem a região da Palestina, o secretário de relações exteriores britânico, Arthur Balfour, escreveu uma carta em 2 de novembro de 1917, agora referida como Declaração Balfour, para Lord Nathaniel Rothschild , um dos líderes da comunidade judaica britânica. Nessa carta, Balfour expressou o apoio britânico a um “lar nacional para o povo judeu” na terra da Palestina. A rica família Rothschild daria então  doações privadas  para ajudar os judeus a comprar terras na Palestina.

Arthur Koestler resumiu melhor a Declaração Balfour conforme citado neste vídeo de 3 minutos: “Uma nação prometeu solenemente a outra nação o país de um terceiro.” A coroa decidiu que a Palestina é para os judeus, garantindo assim (ênfase minha) um Médio Oriente perpetuamente dividido.”

A Bíblia diz que Satanás é o pai de todas as mentiras. E quer acreditemos ou não que ele é real ou não, tem havido uma influência satânica e um controlo da sociedade ao nível mais profundo pelos imperialistas ao longo da história. Vivemos num  mundo caído, literal ou metaforicamente. Os imperialistas satânicos ainda estão no comando do mundo e é por isso que o mundo é como é. É por isso que não há paz e harmonia no mundo.

No final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), as potências mundiais vitoriosas (Grã-Bretanha, EUA, Itália e França) reuniram-se em Versalhes, França, para começar a estabelecer algumas novas nações baseadas em grupos étnicos históricos. O Emir Faisal (o líder da Revolta Árabe  contra os Otomanos) defendeu a independência dos países árabes, mas em 24 de julho de 1922, a Liga das Nações, influenciada pelas potências europeias, decidiu através do  Mandato Britânico  que os britânicos, e não os árabes, ficariam encarregados da  Palestina Obrigatória. O Mandato Britânico durou de 1922 a 1948. Embora os imperialistas britânicos tenham prometido aos árabes palestinianos uma pátria durante a Primeira Guerra Mundial, a sua verdadeira intenção era estabelecer um Estado judeu. Era mentira. Foi um engano.

O Império Britânico, e aquilo que podemos agora chamar de Globalistas Bilionários, percebeu que colocar os colonos judeus europeus bem no meio do Médio Oriente seria um forte aliado para desestabilizar propositadamente a região árabe rica em petróleo. O derrotado Império Otomano foi dissolvido e grande parte do território foi dividido pela Grã-Bretanha e pela França, traçando ativamente as fronteiras para manter os árabes divididos.

A razão pela qual um dos homens mais ricos do mundo daquela época, Lord Nathaniel Rothschild, e o Império Britânico queriam um estado judeu no meio de uma região árabe do mundo foi propositalmente criar divisão, dificuldades e conflitos ali para, em última análise, ganhar mais poder. e controle sobre aquela região e, eventualmente, sobre o mundo. É a velha estratégia de dividir para conquistar. Infelizmente, essas mesmas forças e famílias ainda trabalham hoje, e é por isso que há tão pouca paz, justiça, liberdade e democracia no mundo.

Depois que a Assembleia Geral da ONU adotou a resolução para dividir a Palestina entre árabes e judeus em 29 de novembro de 1947, a Grã-Bretanha anunciou que o término do seu mandato sobre a Palestina entraria em vigor em 15 de maio de 1948. No dia anterior, em 14 de maio de 1948, o O Estado de Israel foi proclamado.

Os judeus sionistas aceitaram o novo plano de partição da ONU de Novembro de 1947, mas os árabes recusaram por todos os tipos de razões, conforme explicado  aqui. No dia seguinte ao Estado de Israel ter sido proclamado pelos judeus sionistas, as nações árabes vizinhas declararam guerra a Israel na Primeira Guerra Árabe-Israelense de 1948, mas os árabes perderam, e os historiadores debatem as razões disso.

Como resultado da primeira Guerra Árabe-Israelense de 1948, o Estado de Israel controlou a área que a ONU lhe tinha proposto em Novembro de 1947, bem como quase 60 por cento da área que tinha sido proposta para o Estado Árabe! Foi um ganho muito grande. Durante esta primeira guerra árabe-israelense em 1948, mais de 700.000 árabes palestinos fugiram ou foram expulsos de suas casas que ficavam no território hoje considerado parte de Israel, como resultado da guerra. Foi então que o problema dos refugiados palestinianos começou. Os árabes referem-se a esta catástrofe de 1948 como a Nakba.

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Pontos Básicos Sobre o Conflito Sionista Israelo-Árabe Palestino

Fevereiro de 1956 Mapa do Plano de Partição da ONU para a Palestina, adotado em 29 de novembro de 1947, com o limite do plano de partição anterior da UNSCOP adicionado em verde. (Do Domínio Público)

De acordo com o livro clássico A Limpeza Étnica da Palestina, de Ilan Pappe, a remoção ou limpeza étnica dos palestinos pelas milícias sionistas e pelo novo exército israelita tornou-se sistemática em 1948 com  o Plano Dalet (ou Plano D) . Os tumultuosos acontecimentos ocorridos entre 1948 e 7 de outubro de 2023 (ao longo de 75 anos) não são discutidos neste artigo.

Guerra Israel-Hamas começou com o  ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, que matou 1.139 cidadãos israelenses (revisado de 1.400). Agora, depois de mais de 7 meses de combates, a destruição de Rafah – a última zona segura para os palestinianos em Gaza – é iminente. De acordo com  English.Almayadeen.net , Israel em 19 de maio de 2024 matou 35.456 em Gaza e feriu 79.476, desde 7 de outubro de 2023.

De acordo com um  documento que vazou,  o plano israelense é empurrar os palestinos de Gaza para campos de refugiados no deserto do Sinai, no Egito. Mas de acordo com um artigo de  Chris Hedges  há algumas semanas,

“O cais temporário que está a ser construído na costa mediterrânica de Gaza não existe para aliviar a fome, mas para conduzir os palestinianos para navios e para o exílio permanente.”

A actual crise no Médio Oriente poderá evoluir para uma Terceira Guerra Mundial, à medida que aumentam as tensões e o ódio entre as nações. O sionismo não criou um lugar seguro para os judeus na Palestina. Só fez com que os árabes no Médio Oriente se sentissem cada vez mais indignados em relação ao Estado de Israel, e não deveria ser muito difícil compreender porquê. Alguns diriam mesmo que o que os nazis fizeram aos judeus, os judeus sionistas israelitas estão a fazer aos palestinianos, especialmente em Gaza.

O que será necessário para trazer cura, perdão e reconciliação entre árabes muçulmanos e judeus israelitas na terra da Palestina?

Os indivíduos e as nações do mundo precisam de instar fortemente os cidadãos de Israel a removerem a influência do sionismo. Além disso, o Hamas em Gaza precisa de estar disposto a renunciar se os cidadãos de Gaza já não o apoiarem.

Existe uma forma de criar uma pátria segura para os judeus, muçulmanos e cristãos que actualmente vivem no  Estado de Israel   e no  Estado da Palestina ocupado por Israel . É uma solução secular de Estado único. Uma solução secular de um Estado  é melhor do que uma  solução de dois Estados , mas mesmo uma solução de dois Estados seria melhor do que o actual estado de apartheid de colonialismo de colonos. No entanto, o recente vencedor do Prémio Pulitzer, Nathan Thrall, falando no Democracy Now, afirmou que falar sobre uma solução de dois Estados ou de um Estado é apenas uma distracção porque Israel fará o que quiser.

O Presidente Biden, no seu recente discurso sobre o Estado da União, foi aplaudido quando disse que apoiava uma solução de dois Estados para Israel. Mas uma solução de dois Estados não reduziria as hostilidades entre israelitas e palestinianos, e as disputas territoriais entre as duas nações continuariam. Portanto, não é a melhor forma de criar uma Palestina livre.

Nem todos os cristãos e judeus apoiam o sionismo, mas a maioria dos cristãos evangélicos, batistas, pentecostais e de megaigrejas o fazem com sua crença no pré-milenismo dispensacionalista. E essas igrejas são atualmente as que mais crescem! Os evangélicos dos EUA são um eleitorado importante para Israel, mas os cristãos evangélicos mais jovens estão a tornar-se menos apoiantes de Israel. Como afirmado no subtítulo deste artigo : O tratamento dispensado por Israel aos palestinianos é cada vez mais visto como injusto – está a afastar os jovens fiéis da igreja do sionismo cristão. Não são apenas os  judeus ultraortodoxos  que se opõem ao sionismo; há outros judeus também. Os judeus ultraortodoxos acreditam que os judeus devem esperar pela vinda do Messias para os conduzir de volta à terra de Israel.

O proeminente pastor evangélico americano Dr. Chuck Baldwin, que foi o candidato presidencial do Partido da Constituição para as eleições presidenciais dos EUA em 2008, disse que pregou o sionismo cristão por mais de 30 anos antes de renunciar a ele, conforme contado nesta entrevista.

As igrejas protestantes, católicas romanas, ortodoxas orientais e da paz, em declínio , felizmente não apoiam  o sionismo cristão nas suas interpretações bíblicas do fim dos tempos. Praticando a não-violência que Jesus demonstrou nos Evangelhos, estas igrejas precisam de se opor e de se manifestar contra as guerras intermináveis ​​que só beneficiam o complexo militar-industrial sionista. Ao estudar e discutir profundamente a Bíblia, crescer espiritualmente e desafiar os poderes que não deveriam existir, essas igrejas podem começar a retornar e serão mais agradáveis ​​a Deus.

Uma integração secular de um só Estado de judeus, muçulmanos e cristãos na Palestina-Israel poderia até tornar-se um modelo democrático para estabelecer a paz mundial se capacitarmos igualmente os sete maiores partidos políticos numa legislatura unicameral e dermos a esses partidos políticos um controlo proporcional sobre a corrente dominante, mídia também.

A paz na Palestina-Israel não deverá acontecer em breve. De acordo com uma pesquisa recente,  2/3 dos judeus israelitas opõem-se à ajuda humanitária aos palestinianos que passam fome em Gaza. Mas isso pode mudar se os judeus israelitas (e também os árabes palestinianos) puderem ser inspirados por uma nova visão e sonho que crie uma situação vantajosa para todos.

Um  artigo da CNN  de 11 de março de 2024, escrito por Nadeen Ebrahim, foi intitulado “A divisão entre Biden e Natanyahu aumenta à medida que o líder israelense promete pressionar com a operação Rafah”. Mas sabemos que isto é um mero tapa no pulso de Netanyahu. Um  artigo  no The Conversation do professor M. Muhannad Ayyash em 24 de julho de 2023 foi intitulado “Biden diz que os EUA teriam que inventar um Israel se ele não existisse”. Ayyash concluiu: “Os comentários francos de Biden deixam claro que o 'vínculo' EUA-Israel não se trata de defender a democracia. Pelo contrário, sempre foi, e ainda é, uma questão de interesses imperiais americanos na região.” Mas é contraproducente acreditar que será assim para sempre. Os poderes que não deveriam existir moldam as nossas percepções públicas, mas à medida que mais e mais indivíduos acordam e se unem, ainda podemos criar um mundo muito melhor.

RESPOSTA [Agir agora para acabar com a guerra e acabar com o racismo] A Coalizão é uma organização nacional que seleciona dias para protestos nacionais nos EUA e em todo o mundo quando é urgente. Nas mãos de Rafah! Dia Nacional de Protesto em 2 de março, 120 cidades se inscreveram para participar.

Quando fiz uma pesquisa online sobre “Cristãos contra o genocídio em Gaza” há algumas semanas, encontrei um grupo existente chamado  Cristãos por uma Palestina Livre, e isso me deu a ideia de que talvez existam outros cristãos na minha área que apoiam uma Palestina livre. Palestina. Esta organização acredita no poder da desobediência civil não violenta para curar e transformar as nossas comunidades. Procura confrontar directamente os poderes do imperialismo através da acção directa não violenta, como Jesus fez. Depois que entrei para a organização, eles me enviaram um kit de ferramentas útil do Dia de Ação para um evento que ocorreria em 18 de março, que copiei e colei em um documento  aqui   para outros possíveis organizadores.

A organização “Cristãos por uma Palestina Livre” já obteve conquistas noticiosas que são louváveis, mas o que é necessário agora é um grupo mais inclusivo com um objetivo mais específico, e que seria “Cristãos, Muçulmanos e Judeus por uma Comunidade Secular”. Solução de Um Estado na Palestina-Israel.”

Imaginem as ramificações se muitas mais cidades se registarem na  Coligação ANSWER  em futuros dias nacionais de protesto em apoio a uma Palestina Livre. Isso poderia mudar o mundo. Caso contrário, se nos sentirmos desamparados e sem esperança, a situação só irá piorar.

Obviamente é contraproducente para os árabes muçulmanos e cristãos na Palestina apoiarem o Estado Sionista de Israel. Os judeus não precisam mais do sionismo. Na verdade, eles nunca precisaram disso. Foi um erro terrível levado a cabo pelos imperialistas. Sob o Império Otomano, judeus, muçulmanos e cristãos na Palestina davam-se muito bem. A Palestina-Israel precisa de se tornar uma nação laica de Estado único que dê direitos iguais a todos, por mais difícil que isso possa parecer. Essa é a melhor maneira de criar uma pátria segura para todos os judeus, muçulmanos e cristãos que ali vivem. E se a maioria dos cidadãos de um novo estado secularizado da Palestina – Israel, escolher a religião do Cristianismo, do Islamismo ou do Judaísmo – deixe estar.

Os cidadãos do Estado Sionista de Israel precisam abolir o sionismo democraticamente.

Os cidadãos de Gaza votaram no Hamas, provavelmente por desespero.

No entanto, se lhes for dada a opção de uma solução secular de Estado único para toda a Palestina-Israel, os cidadãos de Gaza e da Cisjordânia aceitarão esta solução como uma alternativa muito melhor do que aquela sob a qual vivem agora. Mas também será necessária pressão internacional para deter os imperialistas que transformaram o mundo num inferno, como se inspirados pelo próprio Satanás.

Uma maneira de mostrarmos nosso amor a Deus é buscar justiça para todos.

Fontes:

O que é a Declaração Balfour? E como isso bagunçou o Oriente Médio? –3 min, 19 seg–2018

Aljazeera: Como Israel foi criado – 14 min, 28 seg – junho de 2023

Al Jazeera . com: Sobre o que é o conflito Israel-Palestina? Um guia simples – por Linah Alsaafin – 9 de outubro de 2023 Este artigo inclui o vídeo acima “Como Israel foi criado”.

MSN. com: O conflito Israel-Palestina explicado para manequins – História de Mohammad Bilal – 5 minutos de leitura – outubro de 2023

Israel e Palestina: Manny Man faz história – por John D Ruddy – 52 min, 7 seg – abril de 2024

A imagem em destaque é da Jewish Voice for Labor

Fonte

A insurreição de Maio – «Diário» de um marginal»

18.05.24 | Manuel

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António José Saraiva

 23 de Maio de 1968

Na reunião de ontem no grande anfiteatro da Sorbonne nota-se que qualquer coisa «ne va pas». O ambiente mudou insensivelmente. Há um presidente severo, que quer impor a disciplina à assembleia. Há um velhote que dá espectáculo, parodiando o próximo discurso de De Gaulle. Pode ser um velho anarquista ou um leitor do Canard Enchainé . Risos, mas frieza. A assembleia é mais organizada, tecnicamente, mas a sala parece mais vazia. Os oradores revelam o que se está passando: Séguy, secretário-geral da CGT, anunciou que está pronto a encetar negociações com o Governo. «C'est un SALAUD!», grita um moço titubeante e pálido, com um murro na mesa, ao micro. Outro, mais universitário, diz: «Há palavras que um revolucionário deve banir do seu vocabulário: uma delas é 'revendication' . Não se trata de reivindicar, mas de fazer a revolução.» Outro, ainda, quer que os estudantes e operários adoptem um «serment», jurando solenemente lutar pela revolução até ao fim, e que a este documento se associe J.-P. Sartre. Mas há oradores do lado oposto. Não ousam falar claramente dos sindicatos e das «reivindicações», mas um deles previne a assembleia contra as provocações que poderiam indispor a população contra os estudantes – como seria uma tentativa de ocupação da ORTF para evitar a difusão do discurso do general De Gaulle.

Na rua, a manifestação contra o «interdit de séjour» de Cohn-Bendit foi a primeira vitória do Governo. Alguns milhares de manifestantes – menos do que se poderia esperar – detêm-se diante da barragem dos CRS que fecha o acesso à Assembleia Nacional. Ordem de dispersar às 10:30. Este resultado dá os limites do movimento puramente estudantil, porque foi desautorizado pelos sindicatos. CGT e UNEF estão à beira da ruptura. Esta manhã, o L 'Humanité dá só algumas linhas à manifestação de ontem, que o France-Soir relata em várias colunas, com fotos. A CGT anulou, em resultado do anúncio da manifestação, um encontro com a UNEF e publicou um comunicado onde se lê: «Organisation sérieuse et responsable, la CGT ne saurait discuter qu' avec des interlocuteurs également sérieux et responsables.» Alguns postos do correio reabriram, é o princípio do fim da greve. O Governo, o PC e os sindicatos concertam-se para pôr termo à anarquia. O L 'Humanité nem sequer dá uma notícia própria à «interdiction de séjour» contra Cohn-Bendit.

Durante dias pareceu que a sociedade industrial moderna, tal como aparece nos países capitalistas, ia estalar. A famosa «sociedade de consumo», que é na realidade uma sociedade de «produção pela produção» e que parecia irremediável, dançava estranhamente. Pelo menos assim o sentia quem ouvia os oradores da Sorbonne e lia o Action Française . Era a primeira revolução numa sociedade industrial avançada. Mas o que se passa realmente?

Há de um lado os que contestam essa sociedade, cujo nome próprio é «tecnocracia», por terem consciência da alienação dos homens a uma estrutura tecnocrática cujo fim é a multiplicação do capital. Abaixo o sacrifício dos homens à Produção! Abaixo a arregimentação carneiral! Abaixo o ensino que visa a produzir produtores cegos! Viva a autodeterminação de todas as formas! Viva a espontaneidade! Abaixo a cultura, que é l'inversion de la vie! Viva a imaginação! A imaginação no poder! Abaixo as academias, os institutos, os sindicatos, os partidos! Abaixo a obra de arte como objecto imóvel, como capital! Viva a criação, na Sorbonne, no Odéon ocupado, na rua! Viva a espontaneidade, viva o homem, vivam os homens, e as crianças e os adolescentes – tudo quanto está vivo!

Mas os operários, que ganham na maioria menos de mil francos por mês, ainda esperam muito da sociedade de abundância. Eles querem antes de mais participar nos bens que se produzem. O tempo da contestação da sociedade industrial não chegou para eles. A abolição do capitalismo só lhes é útil se lhes trouxer rapidamente uma maior soma de bens de consumo, o que de modo algum é certo. O operário americano consome mais que o soviético ou o chinês.

Há, desta forma, dois movimentos: o da contestação espiritual da sociedade tecnocrática – que é o dos jovens de cultura mais avançada; e o que pretende uma participação maior nos benefícios da mesma sociedade, que é o dos operários, para quem a expressão «sociedade de consumo» não tem sentido.

É por isso que o secretário-geral da CGT pode declarar que a «autogestão» não passa de um engano. De facto, não é só o arremedo de autogestão introduzido pelo gaullismo que ele recusa, mas o próprio princípio da autogestão. Deixa estar o sistema, beneficiemos o mais possível, tal é no fundo a directriz cegetista. Modifiquemos a repartição da produção: é tudo. O princípio da insurreição operária que se deu a partir do dia 15 de Maio, e que alastrou até nove milhões de grevistas (número dado hoje pelo L'Humanité ), começou sob o impulso dos estudantes, mas está acabando sob a direcção dos sindicatos. Os operários imitaram dos estudantes formas de acção – a ocupação das fábricas –, mas apenas isso. Eles são apenas candidatos a um lugar mais cómodo na sociedade estabelecida. O que os aliena é justamente o futuro possível nessa sociedade. E o Marcuse tem certamente razão em dizer que a sociedade capitalista digere as suas contradições e que, finalmente, só é contestada no seu próprio princípio pelos grupos marginais. Só que isso é verdade tanto para as sociedades capitalistas como para as sociedades de colectivismo burocrático, chamadas «socialistas». Os grupos marginais, tradicionalmente contestadores, são os intelectuais, os estudantes, as minorias raciais (como os negros da América), que não foram integrados.

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24 de Maio

Hoje será a decisão. Tudo depende de os sindicatos e o Governo terem o controlo da «rua». O jornal Action Française, nº. 2, diz «La rue vaincera»; não é esse o sentimento dos sindicatos, porque na rua, ao contacto com os estudantes, os jovens operários escapam ao controlo dos dirigentes sindicais. Estes resolveram também descer à rua, enquadrando as suas tropas, que manifestarão ao mesmo tempo que as dos movimentos estudantis e intelectuais. O poder está sob a pressão das massas, que avançam à frente dos dirigentes, como sucedeu na revolução russa de 1917. Mas há um chefe que os sinta e defina? Um Lenine? É evidente que um Séguy e um Waldeck Rochet não estão à altura da situação. Um movimento revolucionário é para eles coisa absolutamente nova. Vão a reboque de Cohn-Bendit, apesar de o atacarem. O pretexto para as manifestações estudantis nas noites de 22 e 23 foi a «interdiction de séjour» de Cohn-Bendit. A CGT condenou essas manifestações, mas elas desencadearam outras a que a CGT se associa de mau grado.

A massa está na rua. Enviados dos estudantes espalham-se pelos bairros a explicar aos passantes do que se trata. À esquina da Rua dos Gobelins vi um moço muito jovem explicando a teoria da mais-valia a um grupo de pequenos burgueses. Um moço rosado e loiro, olhos azuis, «bem-educado», iluminado como um apóstolo, que acreditava no paraíso do mundo «socialista» já existente. Um dos argumentos dos passantes era a inflação: de que serve aumentar os salários se a moeda valer menos? Mas o jovem queria levar a discussão para outro nível. A um cadre que falava com eloquência lembrou o problema do desemprego dos cadres a partir dos 35-40 anos, depois de sugados pela máquina capitalista produtiva. Aí o homem não teve resposta. Mas uma mulher de 35 anos não se deu por vencida e falou na falta de liberdade nos países «socialistas». O moço invocou o que conhecia pessoalmente desses países, de uma visita que fez a um deles que não quis nomear.

Paris é um vasto comício disperso. Os estudantes tentam romper o cerco em que a CGT quer isolá-los, e é bem provável que o consigam. É uma questão de luta contra o relógio. Há ou não há negociações antes da hora H? Tudo depende disto. Mas hoje a polícia vai perder o pé. O Eliseu, a radiotelevisão, a Prefeitura, tudo vai ficar à mercê dos manifestantes. Só se a CGT mantiver a «ordem» haverá governo amanhã.

Entretanto começa a haver provas do poder obreiro. O Paris Presse-Intransigeant, jornal de grande informação da direita, que sai à mesma hora do L 'Humanité, mas tem dez ou vinte vezes mais leitores em tempo normal, não saiu por decisão do sindicato dos impressores. Começa a censura do novo poder, Que pode fazer o De Gaulle? Sair em beleza, se tiver tempo. As horas para ele estão contadas, e não é certo que possa falar esta noite às 20 horas.

Os estudantes procuram desde já definir o «novo poder». Um manifesto que apanhei em frente do Odéon Pour le pouvoir des conseils ouvriers, redigido por mão evidentemente universitária e assinado pelo «Conseil pour le maintien dês occupations», tenta explicar como se pode formar uma democracia de conselhos operários federados, que serão «le seul pouvoir délibératif et exécutif pour tout le pays». Basta que, por força da necessidade urgente, certos sectores essenciais da economia recomecem o trabalho sob o contrôle dos operários que ocupam as usinas. Será preciso pôr em marcha os caminhos-de-ferro e as tipografias, distribuir os víveres, fazer moeda. Através deste processus pratique desenha-se o novo poder. Outro manifesto distribuído hoje declara: «Posons dês maintenant les jalons de notre pouvoir de demain (ravitaillement direct, organisation des services publics: transports, information, logement, etc.).» Nestes documentos falta a assinatura dos sindicatos e quase todos os signatários são movimentos estudantis e intelectuais: «Comités d'action» do 22 de Março, dos liceus, do Odéon, do CNRS, e vários comités de acção ditos «estudantes-operários».

 

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 25 de Maio

Tudo está débordé, extravasando-se. Eu, que escrevo, estou assim também, contraditório comigo mesmo. Que pensar das últimas barricadas, as da última madrugada? Que pensar da reunião da assembleia geral do CNRS, que votou por maioria uma moção solidarizando-se com o Cohn-Bendit e tudo o que aconteceu na noite e madrugada de 24 para 25? Será que todos igualmente – os que votaram – estavam nesse sentimento? Será que alguns aderiram apenas porque temos tendência a dizer sim, numa situação destas, aos mais extremistas, ou, melhor, temos receio de dizer não, ou porque a pressão psicológica é muito forte, ou porque receamos o nosso próprio medo? Há uma lei segundo a qual, dada uma inclinação de plano numa assembleia, todas as atitudes obedecem a essa inclinação. Quantos foram condenados por um grupo em que cada um consultado separadamente votaria a absolvição? A inclinação faz que quando um diz «mata» o outro acrescenta «esfola».

Transbordando, sinto-me sem pé nesta questão. Mas tentemos pontos de referência:

Ontem, entre as 23.30 e as 2.30, vi uma barricada na Rua Victor Cousin, relativamente estreita. Cada lado tocava numa livraria. Alguns moços, rodeados por mirones e passantes, acumulavam rapidamente caixas de papelão, tábuas, molduras para anúncios. Um automóvel é deitado de lado; e em seguida, mesmo junto, outro, trazido de mais longe, um belo carro de oito lugares. Imediatamente um dos moços tenta inutilmente incendiar o primeiro carro. Depois, com um ferro pontiagudo, fura o reservatório de gasolina do carro maior. A gasolina escorre para o lado do hotel onde estou. Nova tentativa para acender o fogo. Em seguida, o papel acumulado e as madeiras são metodicamente regados de gasolina ou outro líquido inflamável. Perto há um ataque ao posto de polícia de Panthéon. Estalam bombas. Os flics sobem pela Rua Soufflot em direcção ao posto. Há no ar gás lacrimogéneo, e os ocupantes dos prédios deitam água para a rua. Os de baixo gritam «merci!» (a água é uma defesa contra estes gases). Há também quem deite lenços ensopados em água que protegem como máscaras antigás. Tudo se passa com calma. Os rapazes são metódicos neste trabalho. Há pares sentados na borda do passeio, curiosos. Passam ambulâncias pela Rua Cujas. Mas outra barricada aparece, num abrir e fechar de olhos, ao cimo da Rua Cujas, junto à Faculdade de Direito. Há sempre carros para ir buscar. Atrás desta, na Praça do Panthéon, mostra-se, de súbito, uma massa de CRS, entre o Panthéon e a Biblioteca de Ste. Geneviève. Os carros da Cruz Vermelha, que transportam feridos para o posto de socorros montado pelos estudantes na Sorbonne, já não podem passar; desesperados, buzinando, buscam outras saídas.

Dentro do quarto onde estou há nervosismo, sobretudo quando começa a crescer o lume na barricada. Insisto com a gerente para ir chamar os bombeiros. Chegam dentro de minutos pela Rua Victor Cousin; os homens saltam diante da barricada. Mas na barricada gritam: «Foutez le camp! Allez-vous en!» Isso com pedras na mão, prestes a atirar. Os bombeiros fazem marcha atrás, e o incêndio cresce. Já o prédio da livraria está todo chamuscado: é daquele lado que está o amontoado de papel. Mas foi do lado do hotel que escorreu a gasolina. Magda tira os seus papéis para o interior do quarto. Eu começo a atirar jarros de água, seguido pela Alfreda. Mas os rapazes respondem debaixo atirando com pavés às janelas. Todos dentro do quarto ficam amedrontados. Fecha-se a janela precipitadamente e há uma discussão. Eu vejo nisto uma imposição de força e não percebo como é possível expor dois prédios e duas livrarias a um risco de incêndio. Sinto que, em tal situação, são os menos escrupulosos e os mais violentos que impõem a lei aos outros. Mas, à excepção da Alfreda, ninguém quer ouvir isto. Têm medo dos próprios ouvidos. Alguém murmura: «Eu cá não digo nada.» A dona do hotel, aterrorizada, grita da janela, antes de saltar da rua o pavé : «Oui, les barricades c'est bien! Mais ça!». Sinto-me à beira de um regime de terror, eu, que sou um marginal permanente. Sinto que este domínio dos violentos não acontece só nas revoluções: o nacional-socialismo alemão foi possível graças a bandoleiros sem escrúpulos, como o foi a cena da carruagem do metro dominada por dois voyous , contada nesse filme soberbo que é L 'Incident . Não, não vou nisto.

Por fim, os CRS avançam pelo alto da Rua Cujas. Os da barricada dispersam-se e chegam os bombeiros. O fogo apaga-se. Um alívio.

Mas isto é o imediato e o particular. Tentemos uma perspectiva mais ampla. Os estudantes foram ou não extravasados pelos «barricadeiros»? O que é que está na origem dos incêndios das barricadas, que esta noite se levantaram na Rua de Lyon, nas Halles e em todo o Quartier Latin, desde a Praça Maubert, a Praça St. Michel e a Praça Denfert?

Distingamos: há os «revolucionários» que praticam a guerrilha urbana com convicção. Trata-se de destruir a sociedade dita burguesa. Incêndios, mesmo que seja de prédios ou de bibliotecas, são um meio de acção. São coerentes. E há todo um mundo obscuro que aqui se «desrecalca». O fogo foi sempre uma atracção; os pirómanos são os exagerados de um sentimento geral. Há zonas profundas que se movimentam. A violência jaz adormecida, mas não morta, em cada um de nós. Eu estava no hotel; mas se estivesse na rua talvez tivesse ganas de incendiar tudo. Somente estou, apesar de tudo, demasiado instalado, e o desabamento geral, o desencadeamento das forças recalcadas, sobretudo à escala de uma multidão, inquieta-me. Mas não é só isto. A violência deixa-nos desarmados, sem meio para tomar a nossa própria decisão; em certo momento só nos resta associarmo-nos à violência, de um lado ou de outro. O indivíduo é impossível nestas situações. É esse indivíduo que em nós resiste, que em mim, pelo menos, resiste. Não quero ser violado.

Diante disto, a discussão sobre a responsabilidade do que se passa esta noite é perfeitamente fútil. Há força pura; não há razões. Segundo a UNEF, a provocação veio da polícia, porque não deixou sair da Rua de Lyon em relação à Bastilha o cortejo organizado, sobretudo, pelo Movimento 22 de Março. Mas é evidente que os participantes neste cortejo, anarquistas, trotsquistas, maoistas, são os que preconizam a acção violenta contra o conjunto «burguês». É absurdo, portanto, acusar o dito conjunto e a sua polícia, de agir pela força. Desde o momento em que se escolhe a violência, aceita-se a violência. Acho por isso idiotas as discussões (por vezes hipócritas) sobre a responsabilidade das consequências de uma guerra de guerrilha e as lamentações sobre a sorte das vítimas. A justiça, neste caso, deixa de existir dentro de nós. Torna-se uma espécie de justiça objectiva, transcendente, que sanciona um resultado de facto. Quem ganhou, ganhou.

Resta-nos, aos que sentimos a justiça dentro, confrontar o resultado com um critério que só tem existência na consciência individual.

É injusto todo o resultado que anule a nossa autodeterminação individual – e quando digo nossa digo a de todo e qualquer. É injusta a máquina que, mexendo-se-lhe num botão, esmaga a gente que passa e que grita. É injusta essa espécie de máquina humana, a centopeia negra, de milhares de botas, inumanamente mascarada como os cavaleiros teutónicos, que avança ritmicamente, mecanicamente. É injusta a maioria que se impõe numericamente, inumanamente cilindrando e apagando como bulldozers o lume de alma que temos cada um. Somos nós que determinamos afinal o que é justo e injusto, nós e não as máquinas, nós e não os números. E basta dizer isto para se ver que essa «justiça objectiva», «histórica», «revolucionária», etc., é uma palavra sem sentido. Justiça, como sentimento, é interioridade. Rebela-se contra toda a imposição exterior. Rebela-se contra os factos, e os incêndios e as multidões.

Será isto o fundo do que sinto?

É um dos fundos, pelo menos. Porque também sei o que é ser violento e gregário. Mas a alternativa que se me põe é existir ou não existir como indivíduo .

A reunião da assembleia geral do CNRS é interrompida para ouvir uma notícia. Corre que haverá esta noite um coup de force do exército para ocupar a Sorbonne, o CNRS, etc. Pede-se à assistência que apresente voluntários para ocupar o CNRS esta noite e resistir «symboliquement», claro. Levanta-se uma voz de mulher perguntando se não será preciso procurar antes saber se a notícia é verdadeira, porque numa noite anterior também constou que a Sorbonne ia ser ocupada pela polícia. Risos acolhem este comentário.

Alguma coisa se prepara de um lado ou de outro. Só é possível que o governo ocupe a Sorbonne quando as negociações com os sindicatos estiverem mais adiantadas. De outra forma seria o prolongamento da greve geral. Quanto ao Movimento 22 de Março e outros movimentos revolucionários, é evidente que vão continuar a guerrilha urbana.

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26 de Maio

O dia 24 era decisivo, e foi, pelo menos para já. O De Gaulle falou, o governo não caiu. As duas manifestações, a da CGT e a dos estudantes, não se juntaram. As insurreições dos estudantes em Paris, Lyon e Nantes acabaram como incêndios que se extinguem. No dia seguinte começaram as negociações entre o governo, os sindicatos e os patrões. Ontem, o Quartier Latin estava defendido por barreiras de estudantes, no Bulevar St. Michel só se viam alguns guardas. Hoje, todo o Bulevar está guardado por polícias. Nunca julguei que o referendo anunciado pelo De Gaulle pudesse realizar-se. Começo agora a admiti-lo. A revolução não foi quebrada, decerto, mas o desabamento do Estado foi evitado; o momento em que «tudo era possível» passou. O De Gaulle não é o czar Nicolau II, nem Luís XVI. Limitou-se a aguentar. Mas teve uma grande ajuda no PC, que recuou perante uma revolução que não era a sua.

Previsões: dentro de dois meses o referendo responderá NÃO. Queda do governo. Novas eleições. Governo Federação-PC. Início de uma social-democracia à sueca. Mas os estudantes e o 22 de Março não desaparecerão da cena. A «contestação» irá para a frente. Uma elaboração teórica precisará o contorno de uma sociedade futura, sem ditadura do proletariado, uma espécie de liberalismo levado ao extremo. Então este ideal será o de toda a Europa e dos EUA.

Perspectiva para a Universidade: o problema principal é o da relação entre estudantes e professores. Numa sociedade que não pode dispensar a técnica, é evidente que tem de haver professores. Não é possível substitui-los por estudantes, sobretudo se supusermos que estes nada aprenderam. Mas os professores devem integrar-se na comunidade estudantil, viver dentro dela. Daqui resulta, evidentemente, o reforço da corporação universitária, auto-determinada. A Universidade será um todo de estudantes-e-professores, professores formados na corporação estudantil, tendo o espírito da corporação estudantil. É por isso que me parece um tanto mítico (além de demagógico) o projecto, que parece dominar no CNRS, de unir a investigação científica e a Universidade. A pesquisa científica encontra o seu fim em si mesma, na busca da objectividade. O ensino encontrará o seu fim nos problemas humanos dos estudantes.

Se a corporação universitária se formar nos termos acima ditos, ela será o motor da história das sociedades industriais nos próximos anos. A ocupação da Sorbonne é o princípio de um processo que não mais acabará. Ela resulta já da existência de uma corporação estudantil embrionária, que tomou consciência de si mesma e que se vai institucionalizar e reforçar com a adesão dos professores ou a substituição dos actuais por outros capazes de se integrarem nessa corporação.

Que significa, neste contexto, a proclamada abertura da Universidade aos operários, segundo a expressão que, de repente, se espalhou: ouvrier-étudiant? Mais um mito? Mais uma demagogia?

Não. Talvez antes uma mistura que o tempo decantará. Haverá sempre, em qualquer sociedade que seja, estudos teóricos, susceptíveis de interessar só uma parte da gente, mesmo com sacrifício de facilidades sociais. O teórico puro é um marginal (com tanto direito a existir como os outros marginais). Por isso, haverá sempre universidades, diga o que disser o Sartre, que neste ponto repete o Cohn-Bendit.

Mas a relação da Universidade com o resto da colectividade é que pode vir a ser diferente. Por um lado (e é o mais superficialmente óbvio), a composição social variará se a sociedade se transformar de tal modo que a influência do meio familiar seja menos determinante do que é o da escola elementar e secundária. Nos países adiantados não é o problema económico que impede o acesso de filhos de operários à Universidade, mas o meio onde eles se formam na infância e na adolescência. A escolha do meio social transmite-se por família. Basta que a educação desde a infância seja igual para todos para este processo se transformar. Então a selecção se fará, mais livremente do que hoje, por vocação, isto é, por natureza. Haverá vocações universitárias e outras não universitárias.

Por outro lado, a corporação universitária atrás definida intervirá na sociedade com uma força multiplicada. Ela será um factor decisivo na Cidade («Polis», mas não é o momento de empregar nomes gregos).

Ao fim e ao cabo, a expressão «operário-estudante» é uma fórmula de conjuntura, que serve hoje a táctica da luta universitária para transformação do conjunto da sociedade. Ela vale contra a táctica da CGT e do PC, que tenta evitar a união revolucionária de operários e estudantes.

(in "Maio e a Crise da Civilização Burguesa" de António José Saraiva. Ed. Gradiva, 2005)

Palestina: 76 anos depois da 'nakba'

15.05.24 | Manuel

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Por Carolina Bracco

Em 1948, os palestinos chamaram de catástrofe ('nakba') a violência da desapropriação que os deixou apátridas. Que palavra se atreveria a nomear o genocídio a que Gaza está a ser submetida?

Nas primeiras décadas do século XX, após a Primeira Guerra Mundial, a Palestina pôs fim a 400 anos de domínio otomano e foi ocupada pela Grã-Bretanha. Para os sionistas, que conheciam o campo internacional, a luta para estabelecer um Estado Judeu no país foi desde o início uma batalha que seria travada neste terreno. Para tanto, procuraram conquistar a vontade e as mentes dos setores influentes após a queda do Império.

O sionismo foi fundado com base na superioridade europeia e na sua missão civilizadora. Isto estava enraizado nas ligações que tinha com o imperialismo europeu e na ideia de criar uma “pequena Europa” no Médio Oriente. Assim, o nacionalismo judaico foi inserido na tradição já forjada pelo Orientalismo, e a desumanização dos palestinos derivou dos preconceitos ocidentais contra o Islão, os árabes e o Oriente.

A constante actualização deste preconceito é evidente na recente caracterização feita dos palestinianos como “animais humanos” convertidos em capital nas mãos de um Estado que procura não só a sua aniquilação física, mas também ontológica e epistemológica. Este necrocapitalismo, cujo catálogo de horrores se renova diariamente, baseia a sua impunidade e imunidade no poder que lhe é conferido pela aceitação, silêncio e cumplicidade do mesmo campo internacional que levou à sua criação e permite a sua perpetuação ao longo do tempo.

O isolamento e desmembramento da nação palestiniana foi desde o início um dos objectivos do sionismo. Quando o projecto de colonização judaica se estabeleceu firmemente na Palestina, a população local ficou isolada do mundo exterior e não tinha meios para enfrentar este avanço na frente externa ou interna. Foi uma época de mudanças rápidas e violentas, que desmantelou o antigo regime feudal/religioso otomano para instalar um novo modo de governo – secular/capitalista – no quadro de dois projetos colonizadores que estavam em conflito: o britânico e o sionista.

Após a retirada britânica e a instalação do Estado de Israel na maior parte do território da Palestina histórica, os sionistas continuaram com estratégias em duas frentes com o objectivo comum de negar a existência do país e da sua população original. Exteriormente, foi concebido um aparelho de propaganda para dar uma imagem correcta do novo Estado. Para dentro, promoveu-se o desmantelamento da sociedade nativa com a destruição de cidades e vilas.

O terror como estratégia deliberada para expulsar a população local com o objectivo de “desarabização” foi levado a cabo através de intimidação, guerra psicológica, bombardeamentos da população civil, expulsões em massa, execuções sumárias, abusos, roubos, violações de raparigas e mulheres. A limpeza étnica foi seguida de “memoricídio” e “toponimídio” como formas de despalestinizar o território.

A remoção da Palestina histórica da cartografia foi concebida para fortalecer o novo Estado, mas também para cimentar o mito do vínculo inquebrável entre os dias dos israelitas bíblicos e o regime israelita moderno. Os palestinos chamaram esta sucessão de acontecimentos trágicos que levaram à perda definitiva da sua terra natal em 15 de maio de 1948, al-nakba, "a catástrofe".

Nos primeiros anos após a nakba, devido ao trauma colectivo, não foi possível articular narrativas contra-hegemónicas que desafiassem a perspectiva sionista. A força disto reside na sua apresentação como um projeto civilizatório que legitimou as matanças e expulsões sob a lógica colonizadora. Assim, apesar das provas esmagadoras de violações, roubos e execuções sumárias, nenhum israelita foi julgado por crimes de guerra em qualquer ocasião, desde 1948 até agora.

Ao apresentar-se como uma continuidade do senso comum instalado no Ocidente sobre as populações árabes como atrasadas e imprudentes, a narrativa sionista domina o discurso público e tem historicamente tornado os seus crimes invisíveis. Portanto, o caso palestiniano demonstra que não basta documentar as atrocidades perpetradas contra o seu povo, mas que também é necessário um enquadramento para apoiar e consolidar uma contra-narrativa.

Edward Said chamou esse recurso de “permissão para narrar”. Num artigo com esse título, escrito após a invasão israelense do Líbano e os massacres perpetrados nos campos de Sabra e Shatila (1982), ele ressalta que os fatos não falam por si, mas requerem uma narrativa socialmente aceita para absorvê-los, sustentá-los e distribuí-los. Isto foi articulado de diferentes maneiras ao longo da história, e as leituras da nakba sofreram transformações semelhantes que podem ser agrupadas em quatro momentos principais.

A primeira corresponde ao período imediatamente anterior e posterior a maio de 1948, quando foram apresentados os argumentos e as origens da derrota árabe. Foi nesse mesmo ano que o termo nakba foi proposto com base num texto de Costantine Zuraiq, apesar de inicialmente ter coexistido com termos eufemísticos como al-ightisab (a violação) ou al-ahdatz (os acontecimentos). A violação como metáfora da colonização ocupa um lugar predominante no imaginário palestiniano, ligando a perda da pátria a uma ferida mortal à honra nacional.

No nível simbólico, a imagem da nação como mulher está inscrita no discurso nacionalista com tal poder que a dominação colonial e a usurpação do território são frequentemente vistas como uma violação deste corpo feminino. Esta representação teve um forte impacto na consciência política e no lugar atribuído às memórias e à construção da memória colectiva. Desta forma, as relações e representações de género influenciam o discurso nacionalista de forma tácita e explícita, complicando o ato de recordar e o conteúdo das memórias das mulheres sobre a nakba.

Uma segunda narrativa foi articulada a partir da derrota militar na guerra de 1967 e da ocupação do resto da Palestina histórica (Jerusalém Oriental, Cisjordânia e Gaza). Nessa altura, formou-se um movimento nacional autónomo que conseguiu posicionar-se em sintonia com a ascensão das revoluções do Terceiro Mundo e nas relações com outros movimentos políticos e culturais de esquerda. Durante a revolução palestiniana (1968-1982) tentou-se construir um imaginário em torno de uma nova identidade; o fedayeen que libertaria sua terra natal do ocupante estrangeiro. As organizações políticas apresentaram-se como heróicas e construíram uma nova identidade revolucionária para o povo palestiniano.

Um terceiro momento começa com o fim do período de revolução e a expulsão da liderança – centrada na Organização para a Libertação da Palestina – do Líbano (1982) seguida pela Primeira Intifada (1987-1993). Estas transformações no movimento de libertação nacional, que viu o seu papel na revolta popular minado, e o início das negociações com Israel desenvolveram um interesse renovado na nakba, reivindicando o direito de regresso dos refugiados como uma cláusula inegociável.

Além disso, a partir da década de 1980, os mitos do sionismo começaram a ganhar força com a desclassificação parcial dos arquivos militares israelitas. Surgiu então um grupo de "novos historiadores" israelenses, que começaram a ser vistos no Ocidente como a autoridade máxima na nakba. Esta tendência contribuiu para reforçar o domínio israelita e pró-israelense do discurso histórico e da historiografia sobre a Palestina.

Somente no quarto e último momento após a assinatura dos Acordos de Oslo (1993) e a criação da Autoridade Nacional Palestina (ANP) é que uma tendência mais poderosa ficou evidente em torno da construção de uma contranarrativa relacionada à permanência e à atual consequência da nakba. A ANP promoveu a construção de um Estado neoliberal que celebra ações simbólicas ao mesmo tempo que permite a continuidade da colonização e desapropriação palestina assegurada pela coordenação conjunta de segurança com Israel e pelo fluxo de doações que recebe para esse fim.

Este estado de coisas foi cristalizado na noção de al-nakba al-mustamerra (a catástrofe permanente), que explica a incessante cadeia de ataques que a população palestiniana tem sofrido desde 1948 até ao genocídio que está a ser levado a cabo em 2024, em Gaza, onde o regime do apartheid reitera os assassinatos impiedosos, as violações e a destruição do tecido social, construtivo, institucional e humano.

A forma como os palestinianos vivenciam, recordam e nomeiam a sucessão de ataques à sua existência ao longo do tempo é mediada pela divisão do trabalho por género, pelas identidades sexuais, pelos papéis das mulheres e pelo seu lugar no contexto social (um dos mais avançados do mundo árabe), mas também pela experiência colonial e seu impacto nas relações de género, principalmente na construção de um nacionalismo judeu masculinizado e militarizado, construído em oposição ao “outro” feminizado.

Há imagens recentes de soldados israelitas posando em lingerie e trajes tradicionais de mulheres palestinianas diante de homens nus atacados por cães, que lembram – e superam em horror – as imagens da prisão iraquiana de Abu Ghraib. Tal como fizeram nessa ocasião os líderes militares norte-americanos, os altos dirigentes do regime israelita falam de “casos isolados”, escondendo que se trata de abusos sexuais que devem ser contabilizados a par das habituais violações nas prisões como um método de tortura que reforça a feminização, como forma de humilhação e submissão.

Em 1948, os palestinos chamaram de catástrofe (nakba) a violência da expropriação que os deixou sem pátria; Em 1967, o termo retrocesso (naksa) foi adoptado para se referir à ocupação de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental por colonos supremacistas, e revolução (thawra) para o movimento que procurou libertar os territórios a partir de 1968 em 1987 e 2000. A palavra intifada (revolta) varreu o mundo quando a população civil se rebelou contra a ocupação militar israelita e a noção de al-nakba al-mustamerra (a catástrofe permanente) foi apresentada como eloquente para descrever um estado de coisas contínuo.

Que palavra se atreveria a nomear as atrocidades a que a população palestiniana de Gaza tem sido submetida durante meses?

Fonte: LaHaine.org

Poderá ser Fátima objecto da História?

13.05.24 | Manuel

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Luís Reis Torgal*

A historiografia de Fátima, feita com base em documentos, dificilmente poderá progredir.

A História, como historiografia científica (não apologética), já produziu alguns textos fundamentais sobre Fátima. Além disso, surgiram textos polémicos e de divulgação de valor desigual, alguns que quase esqueceram aquilo que cientistas da História tentaram analisar, com base nos documentos possíveis, ao longo de muitos anos. Ficou claro — porque a História não julga, mas procura a interpretação objectiva — que a mensagem de Fátima se foi modificando desde 1917, tendo sempre como limites a própria política do Estado e da Igreja. Por isso, se ela é nacionalista (recordem-se os cânticos que se continuam a entoar nos templos e nas procissões) e anticomunista, nunca foi antifascista e nem sequer antinazi, apesar da guerra, das perseguições racistas e do Holocausto.

Ninguém põe em causa que Fátima acabou por ser um fenómeno social de tipo religioso e popular, mas poderá sempre questionar-se se a Igreja não foi apoiando, enquadrando e mesmo criando esse fenómeno, desde o início, tomando como modelo Lourdes e dando-lhe a configuração de um lugar de peregrinação (e não de romaria) e de penitência pelos “pecados do Mundo”, salientando o “pecado do ateísmo” e não o pecado do racismo. Como poderia fazê-lo se o próprio cardeal patriarca, Manuel Gonçalves Cerejeira, nas suas pastorais, bem como outros membros da Igreja oficial atacaram frontalmente o comunismo, mas justificaram, em alguns textos, a própria Inquisição, como instituição unificadora da religião em Portugal?

Por isso também é indubitável que Fátima é, acima de tudo, um fenómeno político, de oposição da Igreja ao laicismo e ao anticlericalismo republicanos (recorde-se, porém, que não há anticlericalismo sem haver clericalismo) e, depois, ao comunismo e em defesa do citado nacionalismo. A Igreja, que sempre desejou (como na Itália fascista) um acordo com o Estado, aceitou a Concordata de 1940. Dava-lhe regalias, como a impossibilidade do divórcio nos casamentos católicos (artigo 24.º), e direitos, alguns injustamente tirados durante a República, como a posse dos templos, mas também concordou que os bispos só fossem nomeados se o Estado não visse razões políticas que o impedissem (artigo 10.º).

Do mesmo modo, Igreja e Estado acabaram por naturalmente defender ou por aceitar as causas da beatificação e da santificação dos videntes Francisco e Jacinta, mesmo que à custa da própria ciência médica, dado que os “milagres” apontados para as justificar foram sempre mais objectos da “fé” (devido ao exame feito, em encomenda, por médicos católicos, num caso, pelo menos, contra o diagnóstico de clínicos hospitalares) do que da ciência. A Igreja promoveu essa “santificação, mas o Estado esteve presente nas duas situações, quando os papas aqui as vieram anunciar. E o 25 de Abril, que consagrou ou devia ter consagrado o princípio da secularização da sociedade civil e da separação do Estado das Igrejas (embora pela letra da lei só prescrevesse — o que é formal e talvez substancialmente diferente — a “separação das Igrejas do Estado”), já sucedeu há mais de 40 anos!

É verdade que teólogos e membros da hierarquia católica têm tentado actualizar a mensagem de Fátima, cujo santuário mariano jamais poderia ser posto em causa (nem isso alguém pretende, como princípio, embora o possa considerar arrumado no âmbito das crenças católicas, de variado tipo, e criticar o seu tom de exploração da crendice popular). Não pretende por razões eclesiásticas, religiosas, sociais e políticas. Foi assim que, continuando afirmações já apresentadas anteriormente pelo próprio Ratzinger (Bento XVI) e tomando como exemplo declarações do Papa Francisco, se afirmou que as chamadas “aparições de Fátima” eram afinal “visões” ou, talvez melhor, experiências religiosas ou místicas e que Fátima deveria ser mais um lugar de alegria e de defesa da paz e da caridade (ou da fraternidade) do que da penitência, tese que afinal se deveria sustentar nas Escrituras e que Erasmo fixou no velho princípio “Monachatus non est pietas”, ou seja, o monacato ou o isolamento monástico praticado, de oração e penitência, no cristianismo de então (tal como sucedeu recentemente com a irmã Lúcia) não significa, por si só, “piedade”, amor ao próximo, afirmado e vivido. E como essa caridade poderia ser vivida pelos católicos e por todos os homens de boa vontade (como o é em muitos casos) neste tempo conturbado, onde grassa o fundamentalismo religioso, as mortes de inocentes, as perseguições e as fugas desesperadas!

Teólogos e padres de variada formação discutiram a mensagem, desde o padre Mário de Oliveira, injustamente esquecido devido à sua categórica negação de Fátima, ao meu colega Doutor Anselmo Borges, ao dominicano Frei Bento Domingues, ou até a D. Carlos Azevedo, cuja formação de historiador lhe dá também uma noção da objectividade. Foi talvez o que de mais interessante fez a Igreja, mais ou menos oficial ou marginal. Mas o certo é que continuou a ideia do sacrifício, o pagamento de promessas, a ideia de que Fátima seria sempre (mesmo que não se diga ou até se diga o contrário) um “dogma de fé”, justificado pela santificação com os respectivos milagres (num futuro próximo será, obviamente, Lúcia a ser promovida a Santa Lúcia, o que é mais do que lógico, dado que foi ela com a Igreja oficial a promover o fenómeno de Fátima). E tudo isso com a presença do Estado que vê em mais dois santos portugueses um “sucesso nacional”.

Resta a pergunta, que foi a razão deste artigo: será que Fátima pode ser um objecto da História? Será que a historiografia de Fátima pode vir a progredir? A História, como ciência (nunca completamente imparcial, mas não confessional, como toda a Ciência), feita com base em documentos, dificilmente poderá progredir. Porquê? Porque por mais que tenha feito o Santuário de Fátima na recolha e divulgação de documentos (a que chamou Documentação Crítica de Fátima), e por mais que acreditemos que divulga tudo o que pode, o certo é que só se poderá evoluir no aprofundamento do objecto desde que se dêem a conhecer algumas fontes, como o epistolário oficial e particular do cardeal patriarca D. Manuel Gonçalves Cerejeira ou a correspondência e o arquivo integral do “quarto mensageiro” (como já lhe chamaram) Nunes Formigão. Sem isso, apenas poderemos completar os estudos de documentos publicados ao longo do tempo, que obviamente nos mostram que se acreditava (ou não) nos “milagres” de Fátima, como se acredita nos “milagres” ou na intercessão de Santo António, ou da santa feita pelo povo Maria Adelaide, em Arcozelo, ou da Alexandrina de Balazar, que Cerejeira, já em período de decadência e fora do patriarcado, assegurava que, por seu intermédio, se conseguira salvar Salazar do atentado de 4 de Julho de 1937 (como o bispo de Coimbra também afirmava, mas por intercessão da Rainha Santa) ou conseguira a difícil decisão de o Estado fundar tardiamente a Universidade Católica em 1971 (Mensageiro de Bragança, 7 de Dezembro de 1973). São, afinal, ainda possíveis estudos de história religiosa, que supõem uma análise ideológica, política ou psicológica, como o são de análise técnica e formal de documentos ou de sociologia ou de antropologia religiosas. Pouco mais.

E, felizmente, agora podem realizar-se em liberdade, ao contrário do que sucedeu no Estado Novo. Recordemos que o professor Sílvio Lima foi demitido em 1935 sobretudo por ter criticado a obra de Cerejeira A Igreja e o pensamento contemporâneo (1924), ainda nessa altura somente padre e professor de História da Faculdade de Letras de Coimbra, que propunha como tese a recristianização dos intelectuais, e por ter escrito como dissertação para as provas para professor extraordinário da mesma faculdade a obra, ainda publicada pela Imprensa da Universidade (logo extinta por Salazar) e de imediato censurada, O Amor Místico. Noção e valor de uma experiência religiosa (1934), que pretendia dar uma explicação psicológica das experiências místicas.

Algo de idêntico sucedeu mais tarde com padres que visaram o aggiornamento da Igreja, como — só para citar um caso significativo — aconteceu com a exoneração compulsiva (embora efémera, em resultado de um recurso) de Joaquim Ferreira Gomes como professor também da Faculdade de Letras de Coimbra, porque havia escrito o livro “revolucionário” O Padre num mundo em transformação (1968).

*Professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Imagem de Vasco Gargalo

Artigo original em publico

Os depoimentos contraditórios da irmã Lúcia sobre as “aparições de Fátima”

10.05.24 | Manuel

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Luís Filipe Torgal*

No passado dia 13 de Fevereiro, morreu aos 97 anos (faria 98 anos em 30 de Março) Lúcia de Jesus dos Santos. E, com seu abandono do mundo dos vivos, estão criadas condições para a hierarquia da Igreja Católica consumar aquilo que há muito parece ser o seu desejo: beatificar a mais importante das videntes de Fátima. Os fatimistas indefectíveis - e os políticos mais oportunistas - irão entretanto produzir sobre ela os já previsíveis discursos hagiográficos, os quais não deixarão de apregoar as suas incomensuráveis virtudes católicas e invocar o seu piedoso protagonismo na história das aparições de Fátima. A lamentável morte da irmã Lúcia poderá até servir de álibi para relançar no país e no mundo a imagem de um santuário que no último ano parece ter perdido demasiados peregrinos e, ainda, fornecer fundamentos para que o Vaticano apresse também o processo de beatificação de uma outra preciosa figura do panteão fatimista: o cónego Nunes Formigão.

No entanto, à margem de uma história mística e laudatória que sucessivos cronistas católicos, com o imprimatur da hierarquia da Igreja, souberam tão bem construir e difundir desde 1917, importa responder com rigor e objectividade a esta incontornável questão: qual o papel desempenhado pela irmã Lúcia em todo o processo das aparições de Fátima?

Neste breve e necessariamente preambular artigo de jornal, queria apenas propor aos leitores um exercício (que, obviamente, não é original) de análise comparativa de um conjunto de documentos fundamentais que permitirá ajudar a responder à questão supracitada: os interrogatórios efectuados pelo pároco de Fátima à mais velha dos pastorinhos, entre Maio e Outubro de 1917 (ver: Documentação Critica de Fátima I. 1992), os interrogatórios aos videntes Lúcia, Francisco e Jacinta, feitos oficialmente pelo cónego Nunes Formigão, entre Setembro e Novembro de 1917 (ver op. cit.), os interrogatórios oficiais de Lúcia, realizados pelo mesmo cónego e o padre Manuel Marques dos Santos, em 1924 (ver Documentação Critica de Fátima II. 1999), e as primeiras memórias redigidas pela freira Carmelita, entre 1935 e 1941, por ordem do bispo de Leiria, D, José Alves Correia da Silva (ver Memórias da Irmã Lúcia. 8ª edição. 2000) - também ele um protagonista incontornável do processo das aparições e culto da Cova da Iria.

Do primeiro documento, datado de 1917, - e, sem dúvida, o mais fidedigno ressaltam duas ideias singelas e pouco originais: oração e a devoção, através da recitação do Rosário; o cumprimento escrupuloso desse popular preceito espiritual teria como contrapartida o final da guerra (de 1914-18) e a implantação da paz no mundo. Neste interrogatório vale ainda a pena reter a falsa profecia presumivelmente avançada por "Nossa Senhora" (em 13 de Outubro de 1917) sobre o final imediato da guerra, efectuada nos seguintes termos: "a guerra acaba ainda hoje; esperem cá pelos seus militares muito breve".

Os segundos e terceiros documentos supracitados, de 1917 e 1924, introduzem elementos novos que complementam e tornam a mensagem primitiva mais intricada. Atestam o mandamento Mariano da recitação do Rosário em prol do fim da guerra e da implantação da paz no mundo. Contudo, acrescentam à prática da oração os conceitos explícitos de penitência e conversão, aludem ao ensinamento por Maria de uma jaculatória cujo conteúdo consubstancia a existência de um mundo trinitário pós-terreno onde o Céu, por um lado, e o Purgatório e o Inferno, por outro lado, se configuram respectivamente como os destinos dos piedosos (ou seja, dos fiéis ou convertidos aos mandamentos católicos) e dos pecadores. Os mesmos textos mencionam pela primeira vez um (e não três) enigmático(s) e polémico(s) segredo(s) revelado(s) por "Nossa Senhora" às crianças e uma misteriosa aparição, em 1916, de um anjo a Lúcia e a outras crianças da freguesia de Fátima. E reformulam já a profecia feita sobre o final da guerra, agora apresentada em duas versões ambíguas e literariamente retocadas: "Se o povo se emendasse, acabava a guerra", ou "convertam-se, a guerra acaba hoje, esperem pelos seus militares muito em breve".

Os últimos textos aqui citados, as memórias escritas pela irmã Lúcia, depois de 1935, com singulares e misteriosos pormenores, os quais contrastam aliás com as respostas lacónicas e simples que emitiu nos diversos inquéritos de que foi alvo logo após os acontecimentos de 1917, retomam e ampliam intangíveis revelações, algumas já avançadas em primeira mão pelo cónego Nunes Formigão, ao longo da década de 20: entre muitas outras novidades, a morte precoce de Jacinta e Francisco, a visão de um Inferno dantesco e do Imaculado Coração de Maria cercado de espinhos, o famigerado pedido da "Virgem" para "consagrarem a Rússia ao Seu Imaculado Coração". E a referência ao final da guerra, que aqui foi feita de maneira a depurar as perplexidades que as mensagens anteriores encerravam: “A guerra vai acabar e os militares voltarão em breve.”

Em face do exposto, podemos inferir que a história e a mensagem de Fátima que conhecemos através das palavras de Lúcia não são lineares. Isto é, muitos dos factos por ela narrados foram gradualmente alterados e efabulados entre 1917 e os anos 30. E podemos também adiantar, através da análise das diferentes mensagens, que essas transformações estão directamente relacionadas com as diferentes conjunturas politico-ideoiógicas que se verificaram, entre 1917 e a década de 30 do século passado, em Portugal e no mundo.

A quem cabe a responsabilidade desta inequívoca falsificação da história? Não creio que se possa atribuir a Lúcia cuja vida pública e privada foi controlada e mesmo amordaçada desde 1921 (tinha então 14 anos). Pode e deve antes imputar-se a sectores poderosos da hierarquia da Igreja Católica que oportunamente souberam utilizar a última das videntes de Fátima como precioso peão ao serviço de um ambicioso e permanente movimento de renascimento católico de dimensões nacional e mundial.

Sei bem que, hoje como ontem, - num mundo pragmático, contaminado pela preponderância do "parecer" sobre o "ser" - os argumentos que sustentam esta perspectiva de nada valem e aqueles que a advogam são até rotulados, por sectores católicos mais conservadores e intolerantes, de ateus e anticlericais obstinados ou então de loucos inspirados por maquiavélicas teorias da conspiração. São esses mesmos sectores que em público preferem sistematicamente ignorar, omitir ou desvalorizar as contradições que a história de Fátima encerra e branquear os axiomáticos paradoxos consubstanciados nos depoimentos de Lúcia (e de outros cronistas) com o fundamento de que, afinal, o culto da Cova da Iria se impôs ao mundo - e tal facto, na opinião deles, legitima o argumento de que as "aparições de Fátima" beneficiaram da mão de Deus.

Em verdade vos digo, não creio que Deus possa abençoar aqueles que em nome de Cristo se assenhorearam deste culto de primitiva expressão popular - igual a tantos outros que existem no pais – e depois construíram de modo premeditado um conjunto elaborado de representações místicas com o desígnio supremo de disciplinar, angariar e manipular fiéis. Contudo, estou já profundamente convicto de que a irmã Lúcia sairá inocente de tal julgamento divino.

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Panfleto distribuído por organização secreta da Igreja católica em Fátima, aquando das eleições europeias em 2004, apelando ao voto nos partidos defensores da inclusão na Constituição Europeia da referência ao cristianismo.

*Historiador

(Artigo publicado em “Público”, 21/02/05)

A Intifada Estudantil dos EUA: A Nova Alavancagem do Soft Power da Palestina

07.05.24 | Manuel

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Mohamad Hasan Sweidan

Uma onda sem precedentes de protestos estudantis nos EUA em apoio a Gaza desmantelou o poder brando israelita e deixou-o nas mãos dos palestinianos.

Em 18 de abril, estudantes da Universidade de Columbia, em Nova York, iniciaram uma manifestação no gramado do campus para protestar contra os laços financeiros contínuos da instituição da Ivy League com empresas ligadas à ocupação israelense da Palestina e à guerra brutal contra ela relacionada a Gaza.

As manifestações espalharam-se rapidamente por outras importantes universidades dos EUA, incluindo a Universidade de Nova Iorque, Yale, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e a Universidade da Carolina do Norte, à medida que os apelos ao fim da guerra e ao apoio ao estado ocupante se tornavam mais altos.

Esta onda crescente de activismo estudantil nos EUA e em todo o mundo é crucial: representa o impacto do poder brando da onda de resistência da Operação Al-Aqsa e, tal como outros movimentos estudantis históricos e de massa dos EUA contra o apartheid sul-africano e a Guerra do Vietname, provavelmente para abalar o apoio americano à agressão israelense.

Durante décadas, os EUA retrataram Israel como um farol de democracia numa região dominada por regimes autoritários, chamando-lhe frequentemente “a única democracia” na Ásia Ocidental para justificar o seu apoio inabalável.

Recentemente, porém, a percepção pública mudou, especialmente entre os jovens ocidentais, que se referem cada vez mais aos israelitas como “terroristas” e “colonizadores”. Esta mudança no discurso, impulsionada pela disseminação global de informação e activismo, terá um impacto significativo na entidade sionista.

A reputação de Israel no mundo já estava manchada quando a África do Sul apresentou acusações de genocídio contra o Estado no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) no início deste ano - a primeira vez que Israel enfrentou tais alegações a este nível.

Em Março, o TIJ apelou a Israel para que tomasse medidas imediatas e eficazes para garantir o fornecimento de alimentos essenciais aos residentes da Faixa de Gaza, citando a grave fome existente.

Um duro golpe para a marca israelense

“Soft power” é definido por Joseph Nye como “a capacidade de alcançar o que se deseja através da atração em vez da coerção ou pressão”.

Joshua Kurlantzick, membro sénior para o Sudeste Asiático no influente Conselho de Relações Exteriores, argumenta que “o poder brando pode ser mais eficaz do que o poder duro na obtenção de resultados políticos porque influencia as preferências de outros em vez de forçá-los a mudar através da coerção”.

Esta forma de influência provém de cultura, valores e políticas que são geralmente atraentes e moralmente legítimas – e, portanto, mais difíceis de controlar.

As décadas de "marca nacional" ou iniciativas de soft power de Tel Aviv no Ocidente, destinadas a consolidar profundamente a ideia de Israel como a "única democracia" na Ásia Ocidental que partilha os "valores judaico-cristãos" do Ocidente, deveriam justificar O apoio incondicional de Washington ao estado ocupante.

No entanto, foi necessária uma dura demonstração de força por parte dos palestinianos para quebrar este domínio narrativo no Ocidente. Poucas semanas após a Operação Inundação de Al-Aqsa, as populações ocidentais viram pela primeira vez a verdadeira face do sionismo – desencadeada num ataque militar esmagador aos hospitais, universidades, infra-estruturas e civis de Gaza.

Se Tel Aviv não tivesse respondido com “força dura”, o sentimento no Ocidente poderia ter permanecido firmemente do lado de Israel. Em vez disso, as populações ocidentais têm lutado com estas cenas horríveis e com os palestinianos no terreno em Gaza, aumentando o apoio à causa palestiniana em todo o mundo através do “soft power”.

As guerras da Ásia Ocidental não conseguiram alcançar o que os tiroteios em Gaza conseguiram: não só colocar a solução de dois Estados e a causa palestiniana de volta ao topo da agenda internacional, mas também a viabilidade do projecto colonial de Israel pela primeira vez na sua curta história de o estado é discutido em um nível amplo e em linguagem descuidada.

Reconhecer a Palestina como um estado

Na área do soft power, a resistência palestina colocou a Palestina de volta no mapa. Hoje, Espanha, Irlanda, Malta, Eslovénia e Noruega concordaram em reconhecer o Estado da Palestina – um passo crucial influenciado pela crise humanitária em Gaza e pelos fracassos estratégicos da outrora bem-sucedida máquina militar israelita.

Nenhum destes desenvolvimentos diplomáticos teria ocorrido sem a Operação Al-Aqsa Flood, que desencadeou eventos subsequentes.

A Axios relata, citando dois responsáveis ​​dos EUA, que o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, pediu ao Departamento de Estado que realizasse uma revisão e apresentasse opções políticas para o possível reconhecimento de um Estado palestiniano pelos EUA e pela comunidade internacional após a guerra de Gaza.

Embora não sejam esperadas mudanças significativas num futuro próximo, o documento salienta que isto representa uma possível mudança na política externa dos EUA.

Até a Grã-Bretanha, que foi responsável pela definição do mandato que levou à criação de Israel, concordou em reconhecer um Estado palestiniano logo após um cessar-fogo em Gaza, sem esperar pela conclusão de longas conversações de paz.

O impacto da guerra de Gaza também é evidente no contraste nas votações do Conselho de Segurança da ONU: desde um projecto de resolução em 2014 que recebeu apoio mínimo até uma forte maioria a favor da adesão plena da Palestina em Abril de 2024 - com o único voto dissidente dos EUA.

O Mapa do Poder: Protestos Estudantis pela Palestina

Em pouco mais de uma semana, milhares de estudantes nos EUA reuniram-se em protestos exigindo o fim do genocídio em Gaza, a suspensão da ajuda militar dos EUA a Israel, a separação dos fundos universitários das instituições, empresas e universidades israelitas, e a preservação de seus O direito de protestar no campus sem ter que enfrentar consequências é necessário.

Durante estas manifestações, mais de 900 pessoas foram presas em pelo menos 15 faculdades em todo o país, com dezenas de activistas estudantis brutalmente atacados pelas forças de segurança do Estado.

Um aspecto notável destas manifestações foi a presença de bandeiras associadas a movimentos de resistência como o Hezbollah do Líbano, há muito demonizado pelo establishment dos EUA. Esta mudança reflecte a forma como os outrora difamados movimentos de resistência da Ásia Ocidental ganharam força moral entre os estudantes universitários americanos e estão a influenciar o pensamento dos futuros líderes dos EUA.

Por outro lado, o primeiro-ministro israelita, nascido e educado nos EUA, Benjamin Netanyahu, classificou os protestos universitários como "horríveis" e descreveu os activistas estudantis - muitos deles judeus - como "anti-semitas".

Tel Aviv vê os protestos no campus como uma ameaça existencial de longo prazo para Israel e teme o impacto que estes jovens influenciadores poderiam ter na política externa dos EUA.

Neste contexto, dois representantes do estado de Nova Iorque, apoiados por ambos os principais partidos e financiados em particular pela organização sionista AIPAC com cerca de 1.329.480 dólares no ciclo eleitoral 2022-2024, apresentaram um projecto de lei que visa a “monitorização estrita do “Anti- Semitismo” nas universidades – uma medida vista como influenciada pelo lobby israelita.

Conversas sobre poder duro

O apelo ao apoio à Palestina também ressoou fora dos campi universitários dos EUA. Além do Japão e da Coreia do Sul, grandes manifestações apelando ao fim do conflito de Gaza estão agora a ter lugar também na Alemanha, França, Itália, Grã-Bretanha e Irlanda.

Isto reflecte uma mudança mais ampla observada nas sondagens de opinião dos EUA desde o início da guerra de Gaza, indicando uma desaprovação crescente do conflito entre os jovens ocidentais, que representam cerca de 20,66 por cento da população dos EUA.

A Guerra de Gaza e os acontecimentos regionais influenciaram profundamente a percepção da vulnerabilidade de Israel. Incidentes como as operações de resistência de 7 de Outubro e o ataque retaliatório iraniano de 13 de Abril revelaram a dependência absoluta de Israel dos governos ocidentais - em termos de armas e cobertura política - que agora recorreram ao uso da força para reprimir os críticos.

Portanto, qualquer discussão sobre o declínio do poder brando de Israel e do movimento global de protesto juvenil deve reconhecer e honrar o poder duro que o Eixo da Resistência demonstrou no avanço da libertação nacional da Palestina.

A capacidade de influenciar “por atração” requer legitimidade moral, que Israel perdeu irrevogavelmente com o assassinato de mais de 34 mil civis na Faixa de Gaza, 72% dos quais mulheres e crianças.

A cada dia que passa e a cada banho de sangue israelita adicional, a projecção do poder brando da Palestina só se fortalece, aumentando a crescente pressão global contra o uso desproporcional do poder duro por parte de Israel.

Imagem de destaque: Banksy

Original

Dia Mundial da Liberdade de Imprensa: Jornalistas de Gaza mortos por Israel são homenageados

04.05.24 | Manuel

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Por Jessica Corbett

“Afirmar que estas mortes são acidentais não é apenas incrédulo, é um insulto à memória de profissionais que viveram as suas vidas ao serviço da verdade e da exactidão”.

Enquanto a comunidade internacional assinalava o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, na sexta-feira, jornalistas e defensores de todo o mundo lamentaram e celebraram os mortos no ataque contínuo de Israel à  Faixa de Gaza.

O Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), sediado nos EUA,  identificou publicamente  pelo menos 97 trabalhadores da comunicação social mortos desde que  Israel  lançou a sua guerra de retaliação em 7 de outubro: 92 jornalistas palestinianos, três libaneses e dois jornalistas israelitas.

“Desde o início da guerra entre Israel e Gaza, os jornalistas têm pago o preço mais elevado – as suas vidas – para defender o nosso direito à verdade. Cada vez que um jornalista morre ou é ferido, perdemos um fragmento dessa verdade”, disse o diretor do programa do CPJ, Carlos Martínez de la Serna, em comunicado na sexta-feira. “Os jornalistas são civis protegidos pelo direito humanitário internacional em tempos de conflito. Os responsáveis ​​pelas suas mortes enfrentam dois julgamentos: um sob o direito internacional e outro perante o olhar implacável da história.”

A Repórteres Sem Fronteiras (RSF) – ou Repórteres Sem Fronteiras – coloca  o número de jornalistas mortos em Gaza acima de 100.  O Monitor do Oriente Médio relata que  pelo menos 144 membros da imprensa estão entre os 34.622 palestinos que as forças israelenses mataram  em  menos de sete meses no que o Tribunal Internacional de Justiça  classificou  uma campanha plausivelmente genocida.

A RSF divulgou na sexta-feira   seu Índice Anual de Liberdade de Imprensa. Na sua secção sobre o Médio Oriente, o grupo  afirma:

A Palestina  (157.º), o país mais perigoso para os jornalistas, está a pagar um preço elevado. As Forças de Defesa de Israel (IDF) mataram até agora mais de 100 jornalistas em Gaza, incluindo pelo menos 22 no decurso do seu trabalho. Desde o início da guerra,  Israel  (101.º) tem tentado suprimir as reportagens provenientes do enclave sitiado, enquanto a desinformação se infiltra no seu próprio ecossistema mediático.

No marco dos seis meses de guerra, em Abril, Jonathan Dagher, chefe do departamento da RSF no Médio Oriente,  declarou  que “este massacre tem de parar. Os repórteres de Gaza devem ser protegidos, aqueles que o desejam devem ser evacuados e as portas de Gaza devem ser abertas aos meios de comunicação internacionais.”

“Os poucos repórteres que conseguiram sair testemunham a mesma realidade aterrorizante de jornalistas sendo atacados, feridos e mortos”, continuou ele, criticando as IDF por “silenciar aqueles que são movidos pelo dever de relatar os fatos”.

“A RSF apela à comunidade internacional, aos seus líderes e aos seus governos, para que façam tudo para aumentar a pressão sobre as autoridades israelitas para acabar com este desastre”, acrescentou Dagher. “O jornalismo palestino deve ser protegido com urgência.”

O grupo com sede em Paris  nomeou  jornalistas palestinianos que cobrem Gaza para um prémio anual da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) – uma honra que receberam durante uma cerimónia na quinta-feira.

“Todos os anos, o Prémio UNESCO/Guillermo Cano presta homenagem à coragem dos jornalistas que enfrentam circunstâncias difíceis e perigosas”,  afirmou  Audrey Azoulay, diretora-geral da organização da ONU. “Mais uma vez este ano, o prémio lembra-nos a importância da acção colectiva para garantir que os jornalistas de todo o mundo possam continuar a realizar o seu trabalho essencial de informar e investigar.”

Nasser Abu Baker, presidente do Sindicato dos Jornalistas Palestinianos e vice-presidente da Federação Internacional de Jornalistas, aceitou o prémio em nome dos seus colegas no enclave sitiado.

“Os jornalistas em Gaza suportaram um ataque sustentado do exército israelita de uma ferocidade sem precedentes – mas continuaram a fazer o seu trabalho, como testemunhas da carnificina à sua volta”,  disse ele . “É justificado que sejam homenageados no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. O que temos visto em Gaza é certamente o ataque mais prolongado e mortal à liberdade de imprensa na história. Este prémio mostra que o mundo não se esqueceu e saúda o seu sacrifício pela informação.”

Mariam Abu Dagga, fotojornalista de 31 anos do  Independent Arab  deslocada na cidade de Rafah, no sul de Gaza,  disse à CNN : “Estamos cobrindo a guerra em Gaza porque este é o nosso dever jornalístico. Está-nos confiado… Desafiámos a ocupação israelita. Desafiámos as circunstâncias difíceis e a realidade desta guerra, uma guerra genocida.”

“Sempre que um jornalista é alvo, perguntamo-nos quem entre nós terá a oportunidade de ser alvo amanhã”, disse Abu Dagga, que também notou o impacto emocional de tarefas como fotografar crianças sob os escombros.

Embora Israel tenha  afirmado repetidamente – como fez à  CNN  na sexta-feira – que “as IDF nunca visaram, e nunca irão, deliberadamente atingir jornalistas”, membros da imprensa e outros lançaram dúvidas sobre tais comentários.

“Durante demasiado tempo, Israel conseguiu operar impunemente no território palestiniano ocupado, e isso incluiu o assassinato ocasional de repórteres, como a jornalista palestiniana-americana Shireen Abu Akleh, em 2022”, disse Simon Adams, presidente do Centro para Vítimas. da Tortura,  disse  ao  Inter Press Service.

Dado o número de jornalistas mortos em Gaza desde Outubro, disse ele, “afirmar que estas mortes são acidentais não é apenas incrédulo, é um insulto à memória de profissionais que viveram as suas vidas ao serviço da verdade e da exactidão”.

Simon apelou a que todas as mortes de jornalistas em Gaza fossem denunciadas ao Tribunal Penal Internacional e afirmou que “o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa deveria ser celebrado com uma braçadeira preta este ano”.

Imagem: Parte do Muro de Separação (também conhecido como Cerca de Segurança) entre Israel e a Palestina. Aqui está um retrato de Shireen Abu-Akleh, morta pelas Forças de Defesa de Israel em Jenin em 11 de maio de 2022 (Flickr)

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