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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Você salvou Julian Assange

29.06.24 | Manuel

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Por Chris Hedges

A maquinaria obscura do império, cuja falsidade e selvageria Julian Assange expôs ao mundo, passou 14 anos a tentar destruí-lo. Eles cortaram seu financiamento, cancelando suas contas bancárias e cartões de crédito. Eles inventaram alegações falsas de agressão sexual para extraditá-lo para a Suécia, de onde seria enviado para os EUA. 

Eles o prenderam na Embaixada do Equador em Londres por sete anos depois que ele recebeu asilo político e cidadania equatoriana, recusando-lhe passagem segura para o aeroporto de Heathrow. Eles orquestraram uma mudança de governo no Equador que o viu despojado do seu asilo, assediado e humilhado por uma equipe dócil da embaixada. Eles contrataram a empresa de segurança espanhola UC global na embaixada para gravar todas as suas conversas, inclusive aquelas com seus advogados. 

A CIA discutiu o sequestro ou assassinato dele. Eles providenciaram para que a Polícia Metropolitana de Londres invadisse a embaixada – território soberano do Equador – e o prendesse. Eles o mantiveram por cinco anos na prisão de alta segurança HM Belmarsh, muitas vezes em confinamento solitário. 

E ao mesmo tempo levaram a cabo uma farsa judicial nos tribunais britânicos, onde o devido processo foi ignorado para que um cidadão australiano, cuja publicação não estava sediada nos EUA e que, como todos os jornalistas, recebeu documentos de denunciantes, pudesse ser acusado de espionagem. Agir.

Eles tentaram repetidamente destruí-lo. Eles falharam. Mas Julian não foi libertado porque os tribunais defenderam o Estado de direito e exoneraram um homem que não tinha cometido nenhum crime. Ele não foi libertado porque a Casa Branca de Biden e a comunidade de inteligência têm consciência. Ele não foi libertado porque as organizações de notícias que publicaram as suas revelações e depois o atiraram para debaixo do autocarro, realizando uma cruel campanha de difamação, pressionaram o governo dos EUA. 

Ele foi libertado – foi-lhe concedido um acordo judicial com o Departamento de Justiça dos EUA, de acordo com  documentos judiciais  – apesar destas instituições. Foi libertado porque, dia após dia, semana após semana, ano após ano, centenas de milhares de pessoas em todo o mundo se mobilizaram para condenar a prisão do jornalista mais importante da nossa geração. Sem esta mobilização, Julian não seria livre.

Os protestos em massa nem sempre funcionam. O genocídio em Gaza continua a impor o seu terrível preço aos palestinianos. Mumia Abu-Jamal  ainda está encarcerado numa prisão da Pensilvânia. A indústria dos combustíveis fósseis devasta o planeta. Mas é a arma mais potente que temos para nos defendermos da tirania. 

Esta pressão sustentada – durante uma audiência em Londres em 2020, para minha alegria, a juíza distrital Vanessa Baraitser do tribunal de Old Bailey que supervisionava o caso de Julian, queixou-se do barulho que os manifestantes faziam na rua lá fora – lança uma luz contínua sobre a injustiça e expõe a amoralidade da classe dominante. É por isso que os espaços nos tribunais britânicos eram tão limitados e os activistas de olhos embaçados faziam fila do lado de fora já às 4 da manhã para garantir um lugar para jornalistas que respeitassem, o meu lugar foi garantido por Franco Manzi, um polícia reformado.

Essas pessoas não são celebradas e muitas vezes desconhecidas. Mas eles são heróis. Eles movem montanhas. Eles cercaram o parlamento. Eles ficaram sob a chuva torrencial do lado de fora das quadras. Eles eram obstinados e firmes. Eles fizeram ouvir suas vozes coletivas. Eles salvaram Julian. E quando esta terrível saga terminar, e Julian e sua família, espero, encontrarem paz e cura na Austrália, devemos honrá-los. Eles envergonharam os políticos na Austrália por defenderem Julian, um cidadão australiano, e finalmente a Grã-Bretanha e os EUA tiveram de desistir. Eu não digo para fazer a coisa certa. Isto foi uma rendição. Deveríamos estar orgulhosos disso. 

Conheci Julian quando acompanhei seu advogado, Michael Ratner, em reuniões na Embaixada do Equador em Londres. Michael, um dos grandes advogados dos direitos civis da nossa época, sublinhou que o protesto popular era uma componente vital em todos os casos que intentava contra o Estado. Sem ela, o Estado poderia levar a cabo a perseguição aos dissidentes, ao desrespeito pela lei e aos crimes na escuridão. 

Pessoas como Michael, juntamente com Jennifer Robinson, Stella Assange, a editora-chefe do WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson, Nils Melzer, Craig Murray, Roger Waters, Ai WeiWei, John Pilger e o pai de Julian, John Shipton, e o irmão Gabriel, foram fundamentais na luta. Mas eles não poderiam ter feito isso sozinhos.

Precisamos desesperadamente de movimentos de massa. A crise climática está a acelerar. O mundo, com exceção do Iêmen, permanece passivo assistindo a um genocídio transmitido ao vivo. A ganância insensata da expansão capitalista ilimitada transformou tudo, desde os seres humanos até ao mundo natural, em mercadorias que são exploradas até à exaustão ou ao colapso. A dizimação das liberdades civis acorrentou-nos, como advertiu Julian, a um aparelho interligado de segurança e vigilância que se estende por todo o mundo.

A classe dominante global mostrou a sua mão. Pretende, no Norte global, construir fortalezas climáticas e no Sul global utilizar as suas armas industriais para bloquear e massacrar os desesperados da mesma forma que está a massacrar os palestinianos.

A vigilância estatal é muito mais intrusiva do que a utilizada pelos regimes totalitários anteriores. Críticos e dissidentes são facilmente marginalizados ou silenciados nas plataformas digitais. Esta estrutura totalitária – o filósofo político Sheldon Wolin chamou-lhe “totalitarismo invertido” – está a ser imposta gradualmente. Julian nos avisou. À medida que a estrutura de poder se sente ameaçada por uma população inquieta que repudia a sua corrupção, a acumulação de níveis obscenos de riqueza, guerras intermináveis, inépcia e repressão crescente, as presas que ela expôs a Julian serão expostas a nós. 

O objectivo da vigilância generalizada, como escreve Hannah Arendt em “As Origens do Totalitarismo”, não é, em última análise, descobrir crimes, “mas estar presente quando o governo decide prender uma determinada categoria da população”. E porque os nossos e-mails, conversas telefónicas, pesquisas na web e movimentos geográficos são registados e armazenados perpetuamente em bases de dados governamentais, porque somos a população mais fotografada e seguida na história da humanidade, haverá “evidências” mais do que suficientes para nos capturar caso o Estado considere necessário. Esta vigilância constante e os dados pessoais aguardam como um vírus mortal dentro dos cofres do governo para se voltarem contra nós. Não importa quão trivial ou inocente seja essa informação. Nos estados totalitários, a justiça, tal como a verdade, é irrelevante.

O objectivo de todos os sistemas totalitários é inculcar um clima de medo para paralisar uma população cativa. Os cidadãos procuram segurança nas estruturas que os oprimem. Prisão, tortura e assassinato estão salvos para renegados incontroláveis ​​como Julian. O Estado totalitário alcança este controlo, escreveu Arendt, ao esmagar a espontaneidade humana e, por extensão, a liberdade humana. A população está imobilizada pelo trauma. Os tribunais, juntamente com os órgãos legislativos, legalizam os crimes do Estado. Vimos tudo isso na perseguição de Julian. É um prenúncio sinistro do futuro.

O Estado corporativo deve ser destruído se quisermos restaurar a nossa sociedade aberta e salvar o nosso planeta. O seu aparato de segurança deve ser desmantelado. Os mandarins que gerem o totalitarismo corporativo, incluindo os líderes dos dois principais partidos políticos, académicos tolos, especialistas e uma comunicação social falida, devem ser expulsos dos templos do poder. 

Protestos de rua em massa e desobediência civil prolongada são a nossa única esperança. Se não nos levantarmos — que é com o que o Estado corporativo conta — ver-nos-emos escravizados e o ecossistema da Terra tornar-se-á inóspito à habitação humana. Aprendamos uma lição com os homens e mulheres corajosos que saíram às ruas durante 14 anos para salvar Julian. Eles nos mostraram como isso é feito.

Imagem: Livre como um pássaro - por Sr. Fish

Fonte

Bloqueio da Ponte 25 de Abril: “Dias de Brasa”

26.06.24 | Manuel

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Durante seis meses, milhares de cidadãos indignados deram corpo ao maior movimento de desobediência civil do século XX português e que ditou o fim do cavaquismo no governo.

Texto de Alberto Matos escrito em 2014 que bem descreve os acontecimentos. Acompanham fotos da revista “Visão” de 27 de Junho de 1994.

Passam hoje 20 anos sobre o primeiro bloqueio da Ponte 25 de Abril, considerada o “acontecimento do ano de 1994”

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Dos confrontos ressaltam a brutal agressão dos “ninjas” da GNR face à resistência passiva do ex-oficial fuzileiro Duarte Silva; e o tiroteio da PSP à queima-roupa, na madrugada de 25 de Junho, atirando para uma cadeira de rodas o jovem Luís Miguel Figueiredo, então com 18 anos. (Foto na "Visão")

Durante seis meses, milhares de cidadãos indignados deram corpo ao maior movimento de desobediência civil do século XX português que ditou o fim do cavaquismo no governo.

Dias depois das eleições para o Parlamento Europeu, nas quais sofreu a sua primeira derrota, o governo de Cavaco Silva aumentou a portagem da Ponte 25 de Abril de 100$00 para 150$00. Estava no auge a arrogância do cavaquismo, após duas maiorias absolutas, em 1987 e 1991.

O buzinão arrancou de imediato e durou até ao final do ano. Em causa estava não apenas um aumento brutal de 50%, mas sobretudo a consciência coletiva da INJUSTIÇA de tal medida numa ponte mais do que paga - os 20 anos fixados pelo governo de Salazar há muito tinham expirado.

O próprio Cavaco deitou gasolina na fogueira, ao declarar em tom de gozo: “como automobilista, também era capaz de buzinar”. Ao fim de uma semana de buzinão, face a um governo surdo, os camionistas iniciaram o bloqueio às 6 da madrugada de 24 de Junho, uma sexta-feira. Às 10 da manhã aterrou de helicóptero o MAI, Dias Loureiro, que deu ordem para a carga policial depois do fracasso das ”negociações” com os camionistas, pelas 11 horas. 

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Dos confrontos ressaltam a brutal agressão dos “ninjas” da GNR face à resistência passiva do ex-oficial fuzileiro Duarte Silva; e o tiroteio da PSP à queima-roupa, na madrugada de 25 de Junho, atirando para uma cadeira de rodas o jovem Luís Miguel Figueiredo, então com 18 anos.

O povo tinha ocupado a praça da portagem e não deixou levantar o bloqueio que, desde o início da manhã, se estendera também ao sentido norte-sul. A palavra de ordem “NINGUÉM ARREDA PÉ”, resgatada ao vocabulário do PREC, atingiu a máxima expressão até à brutal carga policial, pelas 16 horas.

Dos confrontos ressaltam a brutal agressão dos “ninjas” da GNR face à resistência passiva do ex-oficial fuzileiro Duarte Silva; e o tiroteio da PSP à queima-roupa, na madrugada de 25 de Junho, atirando para uma cadeira de rodas o jovem Luís Miguel Figueiredo, então com 18 anos.

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Após o período de isenção de portagens, alargado a Julho e Agosto, a luta reacendeu-se: o acesso a Lisboa pelo sul chegou a estar bloqueado durante dias. No decorrer do processo ficou claro que o aumento da portagem se destinava a financiar a construção da ponte Vasco da Gama, numa negociata conduzida pelo ministro Ferreira do Amaral que entregou à Lusoponte, durante 50 anos, o monopólio da exploração de todas as travessias do Tejo.

Apesar da intransigência cavaquista e da hipocrisia de dirigentes do PS - Guterres, futuro primeiro-ministro, Sampaio, Presidente da Câmara de Lisboa e futuro PR, Armando Vara, vendedor de promessas nunca cumpridas - os aumentos dos preços das portagens foram moderados pela intensidade desta luta.

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Onde estão hoje:
    •    Joaquim Ferreira do Amaral - Presidente da Lusoponte
    •    Dias Loureiro - “reformado” do BPN”, a gente paga…
    •    Durão Barroso - ainda Presidente da Comissão Europeia
    •    Cavaco Silva - ainda Presidente da República
    •    Os filhotes do cavaquismo, em versão austeritária, estão no governo.

24 de Junho 2014

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Alberto Matos

José do Telhado

22.06.24 | Manuel

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por Camilo Castelo Branco

 A civilização é a rasa da igualdade: desadadora as distinções; é forçoso que os bandoleiros tenham todos os mesmos tamanhos, e roubem civilizadamente, urbanamente. Ladrão de encruzilhada, que traz o peito à bala e o bacamarte apontado ao inimigo, esse há-de ser o expiatório dos seus confrades, mais alumiados e aquecidos do sol benéfico da civilização. Roubar industriosamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo. Os daquela escola tropeçam nas honras, nos títulos, nos joelhos dos servis, que lhes rojam em venal humilhação; os outros, quando escorregam acham-se encravados nos artigos 343, 349, 87, 433, 351, e mais cento e setenta artigos do Código Penal.

Diz algum tanto como exemplo desta lastimável anomalia a história de José Teixeira da Silva do Telhado, o mais afamado salteador deste século.

Vulto de romance não o tem, porque neste país nem se completam ladrões para o romance. Disse-me uma dama francesa de eminente espírito, que em Portugal era a natureza, o céu e o ar que faziam os romances. Nem isso minha senhora. Aqui anda sempre o gume do prosaísmo a podar os da natureza, mal eles infloram. Frutos de servir para a novela, levantada da comezinha chaneza dum conto à lareira, nem mesmo os deixam amadurar na fama e nas façanhas de um salteador.

Senão, vejam:

José do Telhado nasceu em 1816, na aldeia de Castelões, comarca de Penafiel. Seu pai era o famigerado Joaquim do Telhado, capitão de ladrões, valente como as armas, e raio devastador em franceses que ele matava, porque eram franceses, e porque eram ladrões, posto que, na qualidade de da nação espoliada, o senhor Joaquim chamasse somente a si o que era fazenda nacional. Um tio-avô de José Teixeira, chamado ele o Sodiano, já salteador de porte, e infestara o Marão durante muitos anos. Se arripiássemos carreira na linhagem do senhor José do Telhado, iríamos encontrar-lhe avoengo em Roma, com uma sabina roubada no colo.

A infância de José Teixeira correu desassinalada dalgum facto que presagiasse as porvindouras maldades. O pai escondia dos filhos o roubo homicida. Voltando das excursões demoradas explicava licitamente a ausência, e regalava a família de farta mesa e esquisitas prendas do estrangeiro, cujos direitos ele não pagava decerto, nem as tomadias lhe eram enccarregadas pelo fisco.

Tinha José Teixeira uma tia, irmã de sua mãe, casada em Lousada com um francês, hábil no lucrativo mester de castrador.

Este francês tinha uma filha, de toda a bizarria e gentileza, muito estimada, e educada com certos ares de senhora. O primo já de criança a preferia a todas, e dos catorze anos em diante sentiu que o magoava a ausência.  Saudoso dela, pediu ao tio que lhe ensinasse o ofício, e o tivesse consigo algum tempo de aprendizagem. O francês anuiu à proposta, e a moça, que adivinhara o segredo, não cabia na pele de contente. Esteve José Teixeira cinco anos na companhia de sua prima, e desses anos falava ele com lágrimas, quando me contava pueris incidentes, entalhados em sua memória com o buril da paixão. Era a caça o seu emprego nas horas desocupadas; mas, as mais das vezes, o caçador assomava num outeiro, donde avistava a varanda, em que sua prima costurava, e aí estava contemplativo nela até que as sombras da noite, baixando da serra, lhe escondiam o lenço branco da prima, que o chamava a repetidos acenos.

Que era isto senão doce poesia, como ela abrolha nas mais bem formadas almas?

Onde estava o instinto do salteador naquele tempo?

Quando ele, ao descer a última quebrada da serra, colhia flores silvestres para toucar os cabelos da prima, que bom coração de Gessner, que eflúvios do meigo Florian lhe recendiam no ambiente da vida!

Forçado já pelo amor e pela honra, José Teixeira, aos dezenove anos, pediu sua prima ao pai. Negou-lha o francês, dizendo que estivera muitos anos a ganhar dote a sua filha para casá-la com lavrador abastado. O moço, amante e honrado, revelou ao tio a culpa, cujo remédio estava no casamento. O francês recebeu a confissão como insulto, e repeliu de si a violentos empurrões o sobrinho. José Teixeira escassamente pôde dizer a sua prima que lhe fosse leal, e o esperasse até ao dia em que ele pudesse desprezar o património.

Foi o moço para Lisboa, e jurou bandeiras no segundo regimento de lanceiros, denominado o da Rainha.

A esbelta figura de José Teixeira era o encanto dos oficiais. Nenhum camarada caía tão airoso na sela, nem meneava mais garboso a lança. O cavalo entendia-lhe o mais ligeiro tremor de pernas, e enfeitava-se orgulhoso do possante e galhardo moço, que lhe embridava os ímpetos, para realçar-lhe as soberbas graças.

Na conhecida revolta dos marechais, em 1837, saiu José Teixeira na comitiva do duque de Saldanha, e mostrou quem era nos combates do Chão da Feira e Ruivães.

«Lá ouvi» — me dizia ele — «a cantiga das primeiras balas, e algumas me queimaram o cabelo, e vinham dizer-me ao ouvido que estivesse sossegado. O barão de Setúbal disse-me uma vez que choviam balas; e eu mostrei-lhe a lança, e disse: cá está o guarda-chuva, meu general: deixe chover!»

Não esqueceu o valente Schwalback o afoito gracejo, quando a derrota lhe desordenava as filas. Como, em remate da luta, tivesse de emigrar para Espanha, o barão de Setúbal levou consigo, como sua ordenança, José do Telhado.

Fez-se a convenção de Chaves, a tempo que o lanceiro recebia carta de sua prima, chamando-o a toda a pressa para se casarem com o consentimento do pai. Requereu o soldado a baixa, e obteve-a do barão de Vilar de Turpim, comandante da terceira divisão militar. Recebeu-o o francês em braços paternais, e dotou a filha com abundantes bens para mediania aldeã.

Ditosos derivaram os primeiros anos deste suspirado enlace. José do Telhado era querido dos seus vizinhos, porque aos ricos nada pedia, e aos pobres dava os sobejos da sua renda e do seu trabalho de castrador. O seu primeiro filho era o complemento daquela conjugal felicidade; e os outros que depois vieram a mais a aumentavam, porque sobrava o pão e o agasalho para todos.

Quem não invejaria José do Telhado há dezoito anos? Quantos, benquistos hoje do mundo e afortunados, olhariam então cobiçosos para o tecto do ditoso casal de Caíde?

José do Telhado, em 1845, levado de sua generosa intrepidez defendeu, na feira de Penafiel, um vizinho perseguido por muitos. Foi luta grandemente desigual, donde ele saiu moribundo, arrancado de entre os muitos que caíram em roda dele. Venceu a morte, ladeado dos carinhos da esposa, que, com suas próprias mãos, lhe curava os ferimentos, e robustecia o espírito qubrantado pelo desaire.

Seguiu-se a revolução popular de 1846.

A populaça carecia de um chefe, e rejeitava os ilustres caudilhos, que saíram de suas casas nobres a especular com o braço do povo. Conclamaram à uma José Teixeira, e quase o forçaram a comandá-los.

O chefe, conhecendo-se obscuro de mais para aceitar a responsabilidade e prestígio de cabecilha guerrilheiro, convenceu os seus amigos da precisão de se ajuntarem, sob outro chefe, às legiões populares que confluíam para a cidade heróica.

Entrou José do Telhado ao serviço da Junta na arma de cavalaria. Comprou cavalo, e fardou-se à sua custa a todo o primor. Repartia do seu dinheiro com os camaradas carecidos, e recebia as migalhas do cofre da Junta para valer aos que de sua casa nada tinham.

José Teixeira empenhou-se grandemente para satisfazer o que era capricho, e em parte largueza de alma.

Acompanhou a expedição a Valpaços, e foi dado como ordenança ao senhor visconde de Sá da Bandeira. As proezas cometidas nessa temerosa sortida batalha, estão escritas na condecoração da Torre-e-Espada, que o general por sua própria mão lhe apresilhou na farda. Fora o caso que do comor duma ribanceira alguns soldados do regimento traidor apontavam as armas ao general, conturbado pela fumaça das descargas. José Teixeira arranca do cavalo a toda a brida, toma as rédeas do cavalo do general, e obriga-o a saltar um valado. Mal deram o salto, passaram as balas poucas polegadas acima da cabeça de ambos. A este tempo três soldados de cavalaria avançavam desapoderados sobre o visconde de Sá. José Teixeira embarga-lhes a arremetida, e desarma o primeiro de um golpe, fere mortalmente o segundo, e persegue o terceiro, que fugia, até lhe arrancar a vida pelas costas. Quando voltou da facção já o general tinha suspensa a medalha, que o valente recebeu com mais delicadeza que entusiasmo de honras.

Feito o convénio de Gramido, José Teixeira arrancou as divisas de sargento e foi para casa, onde o esperava a saudosa e atribulada mulher com os seus cinco filhos.

Como se disse, a casa estava onerada de dívidas, os credores perseguiam-no, e as autoridades, avessas à sua política, esquadrinhavam disfarces para o afligirem.

Joaquim do Telhado, irmão de José, mantinha nessa época as tradições de família, saindo à estrada, com um séquito de populares foragidos à perseguição política.

Mal pude estudar o espírito de José Teixeira na penosa passagem de vida honrada para a malta de seu irmão. Averiguei artificiosamente aquela fase de sua alma; mas ele teimava nesta resposta:

— Eu via-me quase pobre, e perseguido pelos credores e pelas autoridades. Pedi às pessoas importantes, que me sacrificaram, o patrocínio necessário para arranjar uma qualquer ocupação fora da minha terra, mas ninguém me atendeu. Contentar-me-ia com um lugar de guarda do contrato; e, se mo dessem, teria feito muitos serviços, e seria ainda hoje um homem útil e honrado, e teria educado os meus pobres meninos.

José Teixeira nunca proferiu as palavras os meus pobres meninos, que se lhe não vidrassem os olhos.

A hoste de Joaquim do Telhado, quando viu a adesão do valente José, nomeou-o chefe, e o irmão submeteu-se.

Estreou-se José Teixeira na noite de 12 de Dezembro de 1849, salteando de surpresa uma casa na freguesia de Macieira, que tinha nomeada de rica em dinheiro velho. O proprietário, Maciel da Costa, foi ferido, e arrastado para confessar onde tinha a saca das peças, ao mesmo tempo que o criado, seu único doméstico, gemia amarrado de mãos para as costas, pedindo a Deus que terminasse depressa o inventário dos haveres de seu amo.

Era valioso o tesouro do lavrador, e a repartição foi equitativa.

Poucos dias depois, tirada a devassa, José Teixeira foi pronunciado com seu irmão, se bem que Joaquim já o estava nos célebres roubos de Canelas do Douro, Margaride e Baião.

A mulher de José Teixeira, quando soube que seu marido estava culpado num crime, que a infeliz nem sequer sonhara, tentou suicidar-se, e matar com ela os filhos. Contiveram-na eles, de todo desamparados pelo pelo pai, que resolveu ir para o Brasil depois da pronúncia.

De feito, embarcou o fugitivo com passaporte na barca Oliveira em fins de 1849. Apresentou-se no Rio de Janeiro ao cônsul geral, dando-se a profissão de de carpinteiro. Passou à província do Rio Grande do Sul. Tirou em Porto Alegre passaporte para Santa Catarina. Visou-o em S. José, com destino a Sorocaba, em Março de 1851, e já em Novembro desse mesmo ano assaltava em Portugal a casa do doutor António Fabrício Lopes Monteiro, de Santa Marinha do Zêzere.

O Comércio do Porto, bosquejando uma biografia de José do Telhado, até à data da sua prisão em 1859, escreve que ele «voltou do Brasil, segundo se diz, por ter feito um grande roubo naquele império».

Perguntei ao preso que razão teve para sair do Brasil.

— Saudades de minha mulher e dos meus meninos — respondeu.

— Mas é fama que o senhor fizera lá um grande roubo.

— É mentira. Eu andei por lá dezenove meses tão aflito do coração, que não parava em parte nenhuma. Cuidei de morrer de saudades, e por isso vim, sem já me dar de ser preso e enforcado. O que eu queria era estar perto dos meus meninos, e morrer onde minha mulher me aparecesse à hora da morte.

Agora vão em fileira os crimes de José do Telhado, indicados no libelo geral de acusação, depois de sua volta a Portugal.

O assalto do Zêzere, já mencionado, foi infrutuoso por a desesperada tenacidade com que os sitiados se defenderam.

Seguiu-se o vulgarizado assalto de Carrapatelo, à casa de D. Ana Vitória de Abreu e Vasconcelos. Esta senhora estava com visitas, que tinham ido desanojá-la da morte de seu pai, falecido poucos dias antes. Era de noite. Os cães, reclusos em casa, latiam impacientes. Um criado abriu-lhes a porta, e pela abertura recebeu na cabeça um golpe de machado. Penetrou a horda na cozinha, e um dos invasores, para aquietar os gritos do criado, cortou-lhe a voz na garganta com uma bala de pistola. Entraram à saleta onde estavam as espavoridas senhoras, e trouxeram-nas processionalmente à beira do cadáver, observando-lhes que teriam igual destino se fizessem motim, e não entregassem o dinheiro que estava em casa. Entregou a senhora sem hesitação o dinheiro e valores que tinha, excepto um anel, que José do Telhado urbanamente lhe devolveu, tirando-o da mão dum subordinado. O facto seria galante, se o chefe não dissesse, no mesmo ponto, que José Joaquim de Abreu, o recém-morto pai da senhora, tinha trinta mil cruzados em moeda. A dama ignorava que tal dinheiro houvesse em sua casa, e respondeu que só sabia do que entregara. Foram, em seguimento a tal resposta, novamente conduzidas as senhoras ao espectáculo do cadáver, e ajoelharam para receberem a morte.

Neste lance, lembrou-se uma criada que o dinheiro poderia estar no quarto não aberto ainda, desde que o defunto saíra para a cova, e proferiu, em voz alta, a sua conjectura. Ficaram três sentinelas às damas, e José do Telhado entrou ao quarto, arrombou as gavetas, e senhoreou-se das sacas do dinheiro. Voltando à cozinha, mandou erguer as moribundas senhoras, conduziu-as à saleta, onde as tinha encontrado, recomendou-lhes que estivessem caladinhas, que eram bonitas, fechou-as por fora, e retirou-se a passo mesurado.

Eram sete os quinhões a repartir do espólio, reputado em quarenta mil cruzados; mas, passados três meses, encontramos a mesma malta no lugar de Paradela, em Celorico de Basto, saqueando a casa de Domingos Gonçalves Camelo. Vê-se que tinham ambições arremessadas! Abundava aí dinheiro de remota herança, que a senhora Maria Francisca, amante da vida, denunciou à quarta ou quinta cronhada, que lhe deram, em igualdade com o marido.

Na noite de 22 de Maio deu José do Telhado batalha campal à tropa, no local denominado «Eira dos Mouros». O destacamento de Infanteria 2 conseguira capturar dois salteadores, e descera com eles a uma estalagem, para descansar. Aí o surpreendeu a horda com o chefe montado em fogosa égua. Chegou ele ao terreiro da estalagem, e exclamou: «Carregai com quartos, rapazes, que está aqui José do Telhado.»

Saíu fora a tropa, e empenhou-se um tiroteio, que rematou pela retirada do destacamento. O chefe sustentou sempre a vanguarda da avançada, fazendo fogo de pistola e clavina.

Estavam os dois salteadores prisioneiros na cavalariça da estalagem: um fugira logo que rompeu o fogo, o outro ficara na impossibilidade de erguer-se sobre as pernas cortadas de balas.

— Vem! — disse o capitão ao salteador ferido.

— Não posso: matem-me, que estou sem pernas.

— Faz o acto de contrição — retrucou o chefe.

O ferido resmoneou o acto de contrição, e a estalajadeira verteu lágrimas piedosas.

José do Telhado estirou-a com uma bofetada, e desfechou contra o peito do camarada, dizendo:

—Acabaram-se-te os trabalhos, e os meus estão em começo. Adeus! - O cadáver não podia responder a este saudoso vale do seu chefe.

(…)

 (“Memórias do Cárcere”, Camilo Castelo Branco. Parceria A. M. Pereira, 2011)

Quando Israel queimou refugiados vivos, os media tradicionais chamaram de “acidente trágico”

17.06.24 | Manuel

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Por Robin Andersen

Enquanto o mundo assistia nas redes sociais e respondia com indignação, os meios de comunicação social corporativos dos EUA, mais uma vez, forneceram cobertura aos perpetradores do genocídio de Israel. 

Durante o fim de semana do Memorial Day, Israel bombardeou refugiados famintos de Gaza amontoados em tendas em Rafah, para onde Israel lhes havia ordenado que fossem. Como escreveu Jeffrey St. uma zona humanitária segura da ONU . O folheto acrescentava: “Não nos culpe depois de avisarmos você”.

No entanto, sem aviso, Israel atingiu o acampamento com pelo menos oito mísseis espalhando fogo através do acampamento de tendas de plástico (Quds News, 26/05/24). Alguns refugiados morreram queimados, na sua maioria mulheres e crianças, deixando-os desmembrados e carbonizados .

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Imagem:  CounterPunch ( 31/05/24 ): “Quando as bombas israelenses metralharam a zona segura, as tendas de plástico pegaram fogo, lançando chamas que atingiram dois metros de altura, antes que as estruturas em chamas e derretidas desabassem sobre as pessoas lá dentro, muitas delas crianças que tinha acabado de passar a noite na cama.

O mundo viu o terror do massacre nas redes sociais e internacionais. Imagens mostraram a área do ataque envolta em chamas enquanto os palestinos gritavam, choravam, corriam em busca de segurança e procuravam ajudar os feridos. “Eles disseram às pessoas para se mudarem para lá e depois os mataram”, postou Richard Medhurst (28/05/24).

Um menino chora de horror e medo ao ver a tenda de seu pai queimar com ele dentro. Um homem segura o corpo de seu bebê carbonizado e agora sem cabeça , vagando por aí, sem saber o que fazer ou para onde ir. Uma criança ferida e faminta convulsiona de dor enquanto um médico luta para encontrar uma veia para uma intravenosa em seu braço emaciado (Al Jazeera, 27/05/24).

A Al Jazeera (citada por Quds News, 26/05/24 ) citou uma fonte da Defesa Civil: “Acreditamos que o exército de ocupação usou armas internacionalmente proibidas para atingir os deslocados em Rafah, a julgar pela dimensão dos incêndios que eclodiram nos alvos. site."

A mídia noticiosa dos EUA noticiou o massacre da tenda, alguns com mais veracidade do que outros. Mas a maioria dos meios de comunicação social repetiu as falsas alegações de Israel de que se tratou de um acidente, entrelaçando mensagens de desinformação em descrições atenuadas da cena. Com sintaxe confusa, omitiram palavras como “genocídio”, “massacre” e “fome”. A maioria deixou de fora a linguagem do direito internacional que é mais capaz de explicar os crimes sem precedentes contra a humanidade que Israel está a cometer. A reportagem corporativa deixou o massacre da tenda desprovido de contexto e empatia, ignorou acções que precisam de ser tomadas e, em última análise, facilitou o genocídio israelita em curso contra os palestinianos.

Incorporado com uma invasão ilegal

Quando a NBC News ( 28/05/24 ) informou de Gaza que “os tanques israelenses alcançaram o centro da cidade pela primeira vez, de acordo com a equipe da NBC News no terreno”, ela não disse que a tripulação da NBC estava incorporada aos invasores israelenses. força.

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Imagem: Ao ser incorporada às forças israelenses, a NBC ( 28/05/24 ) apresentou notícias literalmente do ponto de vista das FDI.

A mesma frase continuava dizendo que Israel estava “desafiando a pressão internacional para deter uma ofensiva que fez com que quase 1 milhão de pessoas fugissem de Rafah”. Mas Israel não estava apenas “desafiando…a pressão”; violou uma ordem direta do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) para suspender o seu ataque a Rafah. No entanto, os repórteres da NBC chegaram a Rafah com um exército que ignorava o direito internacional para cometerem mais genocídio em Gaza.

Compare as palavras da NBC com aquelas usadas por Ramy Abdu (26/05/24), presidente do Euro-Med Human Rights Monitor, que postou: “Na resposta mais mortal à decisão do Tribunal Internacional de Justiça, o exército israelense teve como alvo um grupo de deslocados tendas de pessoas em Rafah, matando aproximadamente 60 civis inocentes até agora.”

Em uma postagem, Francesca Albanese (26/05/24), relatora especial da ONU para os direitos humanos na Palestina, incluiu ações internacionais que precisavam ser implementadas:

#Genocídio de Gaza‌ não terminará facilmente sem pressão externa: Israel deve enfrentar sanções, justiça, suspensão de acordos, comércio, parcerias e investimentos, bem como participação em fóruns internacionais.

O preconceito da CNN sobre Israel foi revelado. Mas a CNN é a norma, não a exceção. Jonathan Cook

Tais sanções raramente são discutidas na mídia oficial, mas estão se tornando mais urgentes, dada a reportagem do New York Times ( 29/05/24 ) de que Israel pretende estender o genocídio até o restante de 2024. Embora o Times tenha noticiado a indignação global e Nas manifestações contra o massacre de Rafah, as palavras “genocídio” e “massacre” não foram utilizadas, nem houve qualquer menção à possibilidade de sanções contra Israel.

Visando o 'Hamas', não os civis

Em vez de recorrer ao Tribunal Penal Internacional, ao Tribunal Internacional de Justiça ou a quaisquer atores humanitários na região, a NBC ( 28/05/24 ) citou um porta-voz do Conselho de Segurança da ONU:

Israel tem o direito de ir atrás do Hamas, e entendemos que este ataque matou dois importantes terroristas do Hamas que são responsáveis ​​por ataques contra civis israelenses. Mas, como já deixamos claro, Israel deve tomar todas as precauções possíveis para proteger os civis.

A alegação de Israel de que matou dois líderes do Hamas tornou-se a justificativa para o ataque, que foi amplamente repetido na mídia corporativa. Sobre as imagens da NBC de tendas em chamas e cenas de assassinato, o cabeçalho dizia: “Dezenas de mortos no acampamento de Gaza num ataque aéreo contra dois comandantes do Hamas”.

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Fonte

Os mortos eram ligados ao Hamas sempre que possível. Na parte inferior do vídeo, as legendas listavam o número de mortos, seguido de “de acordo com os serviços de emergência em Gaza controlada pelo Hamas”.

A advogada de direitos humanos e acadêmica da Rutgers, Noura Erakat (27/05/24) expôs a tentativa de vincular crianças assassinadas ao Hamas. Sobre a foto de um bebê queimado, ela postou estas palavras duras:

Você já viu um bebê queimado? Você pode imaginar seus gritos finais e escancarados? E tudo o que Israel tinha para lhe dizer era “Hamas”, então você olha para ela e dá de ombros. Sua ignorância intencional é genocida.

CounterPunch (31/05/24) citou Jeremy Konyndyk, ex-chefe de ajuda humanitária da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, dizendo: “Bombardear um acampamento cheio de pessoas deslocadas é um crime de guerra claro e total”, que acrescentou, “Mesmo que as tropas do Hamas estivessem presentes, isso não isenta as FDI da obrigação de proteger os civis. Isso não transforma um acampamento em uma zona de tiro livre.”

‘Um incidente trágico’

Na NBC (28/05/24), sob as imagens dos horrores ardentes de Rafah, o chyron dizia: “Netanyahu: Ataque mortal, um incidente trágico”.

Em resposta à alegação de “acidente” de Israel, jornalistas, activistas e utilizadores das redes sociais, incluindo a deputada Rashida Tlaib, reagiram com incredulidade e críticas fulminantes àqueles que a afirmaram. Essa foi a reação que o repórter da Axios e analista da CNN, Barak Ravid ( 27/05/24 ), recebeu quando postou: “Última hora: Netanyahu diz que o ataque aéreo em Rafah no domingo foi 'um erro trágico' e acrescenta que será investigado”. Katie Halper ( 27/05/24 ) respondeu a Ravid com: “É bom ver você usando sua posição como jornalista para fazer comunicações para o governo israelense”.

E Tlaib (27/05/24) comentou:

Isso foi intencional. Você não mata acidentalmente um grande número de crianças e suas famílias repetidamente e pode dizer: “Foi um erro”. O maníaco genocida Netanyahu disse-nos que quer limpar etnicamente os palestinianos.

Ela terminou com a pergunta: “Quando você vai acreditar nele?”

Sana Saeed (27/05/24), crítica de mídia da Al Jazeera +, postou as primeiras páginas de quatro publicações impressas que repetiam a alegação de acidente de Netanyahu. O New York Times usou “Tragic Accident”, enquanto “Tragic Mistake” foi preferido pela revista Time, Forbes e AP. Nas manchetes, ela os chamou de “propagandistas do genocídio disfarçados de jornalistas”.

'O que Israel compartilhou conosco'

Mas a CNN (28/05/24) parecia estar competindo pelos propagandistas mais valiosos, elaborando os detalhes improváveis ​​oferecidos pelas IDF para descrever a versão oficial israelense do que aconteceu. Tudo começou com Netanyahu falando ao Knesset: Apesar de nossos melhores esforços para não prejudicar aqueles que não estão envolvidos, infelizmente um erro trágico aconteceu ontem à noite. Estamos investigando o caso.

Depois de quatro parágrafos de detalhes do massacre – “corpos queimados, inclusive de crianças, puderam ser vistos sendo retirados dos destroços por equipes de resgate” – a CNN voltou às justificativas. A longa e ofegante cadeia de detalhes começou:

Uma autoridade dos EUA disse à CNN na segunda-feira que Israel disse ao governo Biden que usou uma munição de precisão para atingir um alvo em Rafah, mas que a explosão do ataque acendeu um tanque de combustível próximo e iniciou um incêndio que engolfou um campo para palestinos deslocados e levou a dezenas de mortes.

Mas as afirmações não puderam ser confirmadas; “Foi o que Israel compartilhou conosco”, disse o funcionário.

Mas o ataque a Rafah não foi de forma alguma um único “golpe” de “precisão”, já que numerosas fontes relataram que múltiplas bombas atingiram o campo. E a Al Jazeera (27/05/24) informou que os ataques de drones israelenses também atingiram o Hospital do Kuwait, o único hospital em funcionamento na área, matando dois médicos. Também destacou que nenhum aviso de evacuação veio antes da greve.

Desinformação em constante mudança

Em uma postagem X (27/05/24), o cofundador do Intercept, Jeremy Scahill, observou a mudança na narrativa vinda de Israel:

Netanyahu admite agora que Israel realizou os horríveis atentados bombistas que incineraram seres humanos em Rafah na noite passada e transformaram um campo de refugiados num fogo infernal. Presumo que todas as pessoas que alegaram que se tratava, na verdade, de um ataque falhado com foguetes do Hamas, irão agora apressar-se a corrigir-se.

Como observamos após o massacre da farinha (FAIR.org, 22/03/24), a série de diferentes declarações falsas de Israel imediatamente após um massacre é uma estratégia de propaganda das FDI destinada a confundir e atrasar. Concentrar-se na mudança de falsidades desvia a atenção do massacre e desvia as câmaras das imagens horríveis do massacre de armas fornecidas pelos EUA. Desta forma, os massacres tornam-se normalizados.

Repetir e discutir a constante mudança de desinformação israelita de negação, discutir armas e declarações oficiais, também permite que os meios de comunicação social corporativos dos EUA evitem padrões facilmente observáveis ​​dos massacres em curso em Israel, além de desviar a atenção do público do sofrimento. Mas nas redes sociais, as imagens brutas e os gritos de indignação dos utilizadores indicam que a distância emocional fabricada entra em colapso online.

Alguns usuários expressaram extrema angústia após visualização prolongada de tais imagens. Um organizador palestino (27/05/24) disse:

Estou tremendo incontrolavelmente desde ontem à noite. Não consigo pegar o bebê decapitado que foi queimado vivo. A mulher está gritando na minha cabeça. Os corpos decompostos de bebês fora da minha cabeça. A garota cujo corpo estava preso na parede. Mensagem final de Hind para PRCS…. E agora. Como você assiste tudo isso e não sente a alma morta?

A filha de refugiados palestinos postou (27/05/24):

O massacre da farinha, o massacre das tendas, o massacre do hospital, o massacre do campo de refugiados, o massacre do “corredor seguro”, os massacres intermináveis, nas casas, nas ruas, nas tendas, a pé – oito meses de massacre após massacre após massacre.

Outro usuário (27/05/24) perguntou: “Por que tantos erros israelenses envolvem o lançamento de vários mísseis contra pessoas que eles garantiram que estão em zonas seguras?”

'Apagão intencional da mídia'

Foi o jornal israelense Haaretz (29/02/24) que expôs as reportagens da mídia corporativa dos EUA como propaganda repetida em um artigo intitulado: “No Israel de Netanyahu, o horror de Rafah não foi nem 'um acidente' nem excepcional”. O editorial zombou do uso de “acidente trágico” para descrever o “incidente horrível”. Observou que “Netanyahu levou 20 horas para produzir a declaração vergonhosa, que, como sempre, carecia de qualquer resquício de arrependimento pela morte de ‘não combatentes’”.

O Haaretz ridicularizou o “apagão intencional da mídia em relação ao alcance da morte e da destruição nos últimos oito meses”. Cético quanto à afirmação de que “não se esperava que causasse danos a civis não combatentes”, o jornal observou que, se for verdade, “isto envolve um fracasso contínuo a nível estratégico”.

Imagem: LA Progressive (07/06/24): “Em resposta a este massacre… o melhor porta-voz dos EUA conseguiu reunir foi exortar Israel a ser 'transparente' sobre o ataque.”

Em 29 de Maio, os meios de comunicação social corporativos dos EUA começaram a reportar extensivamente que as bombas israelitas lançadas sobre Rafah, que queimaram vivos os refugiados palestinianos, foram fabricadas nos EUA. Um fragmento de munições foi filmado pelo jornalista palestino Alam Sadeq e postado no X (27/05/24) pelo ex-especialista em explosivos do Exército dos EUA, Trevor Ball, dois dias antes. Muito se falou sobre o fato de que o decreto era menor do que as bombas usuais de 2.000 libras usadas para destruir Gaza e eram as bombas preferidas que a administração Biden havia enviado a Israel.

Como disse o New York Times (29/05/24), “as autoridades dos EUA têm pressionado Israel a usar mais deste tipo de bomba, que dizem poder reduzir as vítimas civis”. O extenso relatório incluía um desenho da bomba, os detalhes do seu fabrico e afirmações de que a sua utilização por Israel indicava que eles tentaram matar menos civis. Qualquer menção ao “erro trágico” e ao “tanque de combustível explodido” desapareceu, esquecido como notícia falsa de ontem.

Mas um longo debate sobre como o fogo poderia ter começado não conseguiu apontar o óbvio, que só vem no final, quando um sargento aposentado da Força Aérea dos EUA observa: “Quando você usa uma arma que se destina a ser de precisão e baixo –danos colaterais em uma área onde os civis estão saturados, isso realmente nega o uso pretendido.”

À medida que as atrocidades de Israel continuam a aumentar em Gaza, o LA Progressive (07/06/24) escreveu que embora Biden afirmasse se preocupar com a perda de vidas civis em Gaza e que um ataque israelense em Rafah seria uma “linha vermelha”, “os acontecimentos das últimas semanas demonstraram que nenhuma destas afirmações é de facto verdadeira.” Acrescentou que há um mês, o Hamas concordou com um acordo de cessar-fogo mediado pelo Egipto “que se parecia muito com o acordo de cessar-fogo agora promovido pela administração Biden”, mas Israel respondeu rejeitando também esse acordo.

Além disso, Israel fechou a área fronteiriça entre Israel e o Egipto, impedindo qualquer ajuda ou fornecimento de chegar à Gaza devastada pela fome. Os autores concluíram: “O que aconteceu foi uma série horrível de massacres contra civis, que a administração Biden continua a tentar minimizar, desculpar e explicar”.

Nos últimos oito meses, os meios de comunicação social dos EUA ajudaram Biden a “explicar” tais atrocidades. Eles não pararam de repetir a propaganda de Israel e agiram como canais voluntários para a desinformação israelita. Já passou da hora de pararem de fazê-lo e começarem a relatar o que realmente está acontecendo no terreno em Gaza, e não através dos olhos das FDI.

FAIR

A “inevitabilidade” da Primeira Guerra Mundial

12.06.24 | Manuel

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Musil e meta-Musil: a inevitável Iª Guerra Mundial

David P. Goldman, “Spengler”[*]

O Ocidente não estava grávido, em agosto de 1914; só estava com prisão de ventre. Em vez de parir o futuro, esvaziou os intestinos com fúria.

Nenhum desastre na história do mundo foi mais previsível nem de preparação mais demorada. O grande romance de Robert Musil, O homem sem qualidades, [1] mostra a elite vienense nos meses antes da guerra, com suas preocupações pequenas, sem se dar conta de que o mundo dela estava às vésperas de sumir. É o maior antirromance europeu, porque a premissa autorreferencial – os protagonistas não sabem o que todos os leitores sabem – impede que o romance tenha fim. Não há escolhas certas, porque nada pode impedir que aquele mundo-bolha exploda. Depois de Musil – meta-Musil, por assim dizer – vem a grande evacuação. O romance é considerado obra-prima no mundo de língua alemã. Poucos norte-americanos o conhecem e, dentre esses, ainda menos são os que compreendem o romance.

Agora, quando se aproxima o 100º aniversário da Iª Guerra Mundial, ouviremos número infindável de variações de lamentos pela Civilização Ocidental. Todos dirão mais ou menos o seguinte: no auge de sua prosperidade, de descobertas científicas e de realizações de grande arte, as nações europeias, de repente, inexplicavelmente, mergulharam em massacres mútuos e prepararam o terreno para o grande massacre que viria, de 1939 a 1945. Nada disso. Está errado, simplesmente errado.

A Europa já fizera a mesma coisa antes, por duas vezes: primeiro, na Guerra dos 30 Anos, de 1618-1648; e depois, outra vez, nas Guerras Napoleônicas, de 1797-1814.

As baixas francesas nas Guerras Napoleônicas foram comparáveis às da Iª Guerra Mundial, em relação à população. A França perdeu de 1,4 a 1,7 milhões de homens, sob Napoleão, de uma população total de 29 milhões. Tipicamente, no século XVIII, homens de 17-49 anos constituíam 1/5 da população. O total de contingente militar humano da França Napoleônica era de menos de 6 milhões de homens, o que significa que as baixas alcançaram 23-28% do total da população masculina ativa, mais do que na Iª Guerra Mundial. Muitos mais de outras nações também morreram; dos 500 mil soldados do exército poliglota de Napoleão que marchou para a Rússia em junho de 1812, só 16 mil voltaram.

Os eventos de 1914-1939, como Winston Churchill disse bem, foram “uma segunda Guerra dos 30 Anos”. De fato, a primeira Guerra dos 30 Anos foi, em vários sentidos, pior. Matou quase metade da população da Europa Central e deixou vazias grandes áreas da Espanha e da França.

Obnubilados como somos pela ideia de Progresso, do Iluminismo, rapidamente apagamos o precedente de nossos próprios problemas. Na leitura “das Luzes”, a Guerra dos 30 anos foi conflito religioso, a última orgia de sangue da superstição medieval, antes que a Idade da Razão varresse de vez as teias do fanatismo. É absolutamente falso: depois da revolta inicial, abortada, dos Protestantes da Boêmia contra o Império Austríaco, a Guerra dos 30 Anos tornou-se conflito franco-espanhol, luta de fanáticos dos dois lados, que acreditavam que a respectiva nação teria sido escolhida por Deus para ser agente Dele na Terra. Foi guerra religiosa, afinal de contas, mas guerra entre duas leituras nacionalistas pervertidas do cristianismo católico. A mesma megalomania etnocêntrica impeliu as nações da Europa na direção de 1914.

A guerra poderia ter sido evitada, afinal; e montar cenários nos quais teria sido evitada é uma espécie de prática artesanal doméstica, para historiadores. Esses cenários são mal disfarçadas ‘lições' de política para o presente. Sou autor de um livro desses, de cenário em que a guerra seria evitada, a saber, uma guerra alemã preventiva contra a França durante a Primeira Crise do Marrocos de 1906 (vide “Why war comes when no one wants it” , Asia Times Online , 2/5/2006).

As causas objetivas da guerra são bem conhecidas e infindavelmente analisadas. A Alemanha tinha a economia e população que mais rapidamente cresciam; os rivais, para conter sua influência, a cercaram.

– Com a população estagnada, a França não poderia esperar reconquistar para si as províncias de Alsácia e Lorena que perdera para a Alemanha em 1870 – nem vencer qualquer guerra futura, a menos que fosse guerra imediata. Da paridade em meados do século 19, em 1914 a população alemã já era 1,5 vezes maior que a da França.

– A Alemanha não poderia concentrar seu exército num ataque esmagador contra a França, se esperasse até a Rússia ter construído sua rede ferroviária interna.

– A Áustria não conseguiria manter as etnias fracionadas dentro do Império, sem castigar a Sérvia. Não poderia garantir direitos iguais aos sérvios, sem provocar os húngaros, que tinham posição privilegiada no império; só restava suprimi-los.

– A Rússia não poderia manter controle sobre a parte oeste industrializada do império – Polônia, Ucrânia, os estados do Báltico e a Finlândia – se a Áustria humilhasse seu aliado sérvio, e a Rússia dependia dessas províncias para o grosso dos impostos que arrecadava.

– A Inglaterra não poderia manter o equilíbrio de poder na Europa, se a Alemanha esmagasse a França.

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Alianças na Primeira Guerra Mundial (1914-1918)

Nenhuma dessas potências conseguiria prosseguir sem encarar risco existencial: no caso da França, uma posição enfraquecida, sem esperanças, ante a Alemanha; no caso da Alemanha, uma eventual ameaça por uma Rússia industrializada; no caso da Áustria, rompimento do Império, por efeito de agitação eslavófila; no caso da Rússia, a perda das províncias do oeste, que cairiam na órbita teutônica; e no caso da Inglaterra, a irrelevância no continente, com desafio inevitável contra seu poderio nos mares.

Há vários excelentes relatos dos eventos que levaram à eclosão da guerra em agosto de 1914, um mais recente dos quais é Os Sonâmbulos, de Christopher Clark. [2] Cada um dos combatentes, de fato, dar-se-ia melhor se conseguisse declinar dos combates. Mas isso significaria abrir mão da reivindicação de superioridade nacional que motivara os combates. Combateram, em outras palavras, não porque tivessem, no sentido estrito da palavra, de combater, mas por causa do tipo de gente que eram. Evan deixa implícito que não estariam raciocinando. Mas com o quê, então, estariam sonhando?

Os europeus lutaram a Grande Guerra de 1914 para evitar converterem-se no que são hoje. Mas, como o homem na história de Somerset Maughan, [3] que tinha encontro com a morte em Samarra, deram um jeito de apressar o encontro.

Ainda causa escândalo na Alemanha, que o maior romancista alemão do século XX, Thomas Mann, tenha saudado com entusiasmo a chegada da guerra. Tinha o “coração incendiado” na declaração de guerra, e “sinto-me em triunfo com o colapso do odiado mundo da paz, com a desgraça da corrompida “civilização” mercantil-burguesa, eternamente inimiga do heroísmo e do gênio”. Mann louvou o “indispensável papel, como missionário”, da Alemanha; contrastou a Kultur alemã à mercenária Zivilisation ocidental.

Mann capturara o humor nacional. A Alemanha combateu a Iª Guerra Mundial sob o estandarte da Kultur. Em 1915, 93 dos principais intelectuais e artistas alemães assinaram manifesto em que justificavam o clamor da Alemanha por guerra, em nome da superioridade cultural. Esse é o cerne de uma fala de feia fama de Hans Johst, autor de uma peça teatral de propaganda nazista, Schlageter,[4] apresentada no aniversário de Hitler, depois de os nazistas terem chegado ao poder, em 1933: “Quando ouço a palavra cultura, solto a trava da minha pistola”. Entende-se, em geral, que essa fala mostraria que os nazistas eram analfabetos, o que não é verdade; Hitler era pintor, mau pintor, mas pintor; e amante da música. Na verdade, sempre manifestou rancor contra o sacrifício inominável que o velho regime exigia, a serviço dos velhos ideais.

Thomas Mann entusiasmava-se com a estética da guerra: as mesmas qualidades e as mesmas atitudes que dão forma à arte dão forma à guerra. Por estranho que soe, por mais que perturbe, Mann estava absolutamente certo: a arte e a guerra exigem o mesmo irrestrito comprometimento existencial.

Num artigo de 2010, argumentei que isso ajuda a explicar por que os israelenses tão frequentemente são músicos tão notáveis, os melhores musicistas do mundo clássico. Não apenas herdaram muitos dos melhores professores da Europa Central, mas, como nação, amam e buscam, muito mais do que temem e rejeitam, o risco; e o que faz as grandes interpretações musicais é um senso de risco. “Und setzet ihr nicht das Leben ein/Nie wird euch das Leben gewonnen sein” cantam os soldados da cavalaria de Wallenstein, no drama de Schiller, de 1799, sobre a Guerra dos 30 Anos: se você não aposta a própria vida, não ganha a vida para você mesmo. Com a Alemanha destroçada em 1945, Mann declarou então que a cultura alemã chegara ao fim. Esse é o ponto de seu grande romance do pós-guerra, Doutor Fausto: [5] o protagonista, Adrian Leverkuhn, enlouquece compondo uma cantata atonal cujo objetivo é “retomar” a 9ª Sinfonia de Beethoven – para substituir por aleatoriedade vazia, a harmonia ordenada do passado europeu.

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Europa durante a Guerra dos 30 anos (1618-1648)

Os asiáticos, que abraçaram em grandes números a música clássica ocidental, devem estranhar muito que essa arte magnífica seja tão negligenciada em suas terras de origem. A resposta é que nós, no ocidente, nós todos, soltamos a trava da pistola quando ouvimos a palavra “cultura”. A cultura harmoniosa, ordeira e otimista da Europa de pré-1914 é carregada de lealdade à tradição, quer dizer: de atitudes que nos levaram para as trincheiras. Desprezamos a cultura, porque abominamos a autoridade, a tradição, a lealdade, quer dizer, virtudes que os asiáticos ainda cultivam. Abominamos arte que exija de nós que reconheçamos autoridade superior – do gênio subordinado à tradição, ao precedente – e preferimos uma cultura popular que tudo nivelaria, com a qual nós podemos nos identificar como supostos iguais (vide American Idolatry, Asia Times Online, 29/8/2006). Mas há uma dimensão da arte ocidental – a abertura para o risco – que a maioria dos asiáticos tem muita dificuldade para entender.

O importante historiador católico ´George Weigel observa que, em 1914, até o clericato católico “bebeu fundo no poço de um nacionalismo que parecia além do alcance da crítica cristã moral. Assim, quando o Colégio de Cardeais se reuniu em setembro de 1914 para eleger um sucessor do Papa Pio (...), o cardeal alemão Felix von Hartmann disse ao cardeal belga Desiré Mercier “Espero que não tenhamos de falar de guerra”, ao que Mercier respondeu de bate pronto: “E eu espero que não tenhamos de falar de paz”.  

Weigel cita o capelão alemão que cantava “Fúria sobre a Alemanha! Oh, grande guerra santa da liberdade!”, e o bispo anglicano de Londres, que conclamava os fiéis de sua congregação a matar alemães: “Matem-nos, não matar por matar, mas matar para salvar o mundo; matar os bons, e também os maus. Matar”. Weigel pensa que esse nacionalismo maligno tem raízes no século anterior à Iª Guerra Mundial. Não concordo. A megalomania da “nação eleita” motivou franceses e espanhóis, os dois lados da Guerra dos 30 Anos. Como escrevi em meu livro de 2011, How Civilizations Die (and Why Islam is Dying, Too) [Como as civilizações morrem (e por que o Islã também está morrendo)]:

Não só os interesses temporais do estado francês, mas a crença apaixonada em que a França seria A Nação Eleita, motivaram Richelieu e Tremblay a prolongar as guerras religiosas dos anos 1620s por trinta anos, matando vasta proporção da população da Europa Central (…) Se a Guerra dos 30 Anos foi genuinamente guerra religiosa, de católicos contra protestantes, a França, como o mais poderoso país católico, deveria ter apoiado a Áustria católica. Mas a França não podia apoiar a demanda das dinastias Habsburgo austríaca e espanhola, que queriam o título imperial e o direito de representar a Cristandade. E a França, em vez de apoiar, decidiu arruinar a Áustria e a Espanha, para estabelecer-se ela mesma.

Como os franceses (...) a corte espanhola também acreditava que a Espanha era a nação escolhida por Deus como sua Procuradoria terrena. O monge e teórico político Juan de Salazar escreveu, em 1619, em seu tratado Politica Española que “os espanhóis foram eleitos para realizar o Novo Testamento assim como Israel foi eleito para realizar o Velho Testamento. Os milagres com que a Providência favoreceu a política espanhola confirmam essa analogia do povo espanhol com o povo judeu, de modo que a similaridade dos eventos em todas as épocas, e o modo singular como Deus manteve a escolha e o governo do povo espanhol, declaram que esse é o povo escolhido pela lei da graça, assim como o outro foi o escolhido antes, no tempo das escrituras (...) Daí se pode concluir, das atuais circunstâncias, como das sagradas Escrituras, que a monarquia espanhola perdurará por muitos séculos e será a última monarquia”. Segundo Stanley Payne, aí se vê “atitude não incomum na corte e em parte da elite de Castela”.

E adiante:

A atormentada urgência de cada nação de ser “a escolhida”, experimentada na pele, começou com a primeira conversão de pagãos europeus; estava incorporada na Cristandade Europeia, na fundação. Cronistas cristãos põem os monarcas europeus recém batizados no papel de reis bíblicos; e suas nações, no papel de Israel bíblico. A primeira vez que se ouviu autoproclamação como “nação escolhida” foi no auge da primeira das Idades das Trevas: do cronista do século VIº, São Gregório de Tours (538-594); e do clérigo ibérico do século VIIº, Santo Isidoro de Sevilha.

Os Santos Isidoro de Sevilha e Gregório de Tours foram, de certo modo, os Bialystock e Bloom, [6] da Idade das Trevas; os Produtores do show “a fundação da Europa”: venderam 100% do show a cada um e a todos os reizinhos. Não se pode culpar os produtores. Transmutar os invasores bárbaros que infestavam o arruinado império dos romanos, em cristãos, foi talvez o mais notável feito político de toda a história mundial, mas requereu muita lábia, que teria consequências assustadoras, chocantes, no longo prazo. Os restos das imundícies do velho paganismo europeu acumularam-se nos enroscados intestinos da Europa, até que os terríveis eventos de 1914-1945 puseram tudo para fora.

A visão autenticamente católica de um império universal não conseguiu impor-se, ela própria, sobre os reclamos mais tangíveis de sangue e terra. Os europeus não lutaram as guerras de 1618, 1814 ou 1914 como cristãos, mas como criptopagãos. Essa foi a discussão entre os críticos judeus, de Heinrich Heine a Franz Rosenzweig e Siegmund Freud. Freud escreveu:

Não podemos esquecer que todos os povos que hoje se destacaram na prática do antissemitismo só se tornaram cristãos em tempos relativamente recentes, às vezes obrigados por compulsão sangrenta. Pode-se dizer que todos foram ‘mal batizados' [também “mal cristianizados” (NTs)]; sob um fino verniz de cristianismo, permaneceram o que seus ancestrais sempre foram, barbaramente politeístas. Ainda não superaram o ressentimento e a rejeição que lhes inspira a nova religião, que lhes foi imposta; e que eles projetaram sobre a fonte da qual veio a eles o cristianismo. [7]

Os homens não são moderados. Não somos tão diferentes de nossos pais como gostamos de crer. Os europeus hedonistas, sem filhos, de hoje, são o mesmo povo que lutou e morreu aos milhões pelo rei pelo país em 1618 ou 1814. Qualquer coisa pela qual valha a pena viver vale também que se morra por ela; se não se consegue pensar em nada por que morreríamos, implica que tampouco temos algo por que viver – exatamente como os europeus de hoje. A Europa aprendeu por muito tempo que sangue e terra, Kultur e Grandeur, eram itens pelos quais não valeria a pena lutar. Mas a Europa nada encontrou, pelo qual viver, depois que rejeitou para sempre os deuses nacionais de seu passado violento. Está morrendo de nervoso e tédio, desgostosa do próprio passado e descuidosa do próprio futuro, sem querer pôr filhos no mundo nem, que fosse, para assegurar a própria sobrevivência por mais um século.

“Muito foi salvo”, escreveu um soldado da Grande Guerra, J R R Tolkien, mas “muito tem agora de morrer”. Apesar de Hans Johst, a cultura europeia não morrerá: como aconteceu com a guarda da cultura grega clássica, que passou para as mãos de europeus, a arte europeia – pelo menos, com certeza, sua música – passará para as mãos de asiáticos.

Notas dos tradutores

[1] MUSIL, Robert [1880-1942], O homem sem qualidades (1930-33-43), Nova Fronteira, 1978, trad. Lya Luft e Carlos Abbenseth, 2 vol., 786 pp (romance inacabado).

[2] CLARK, Christopher. Os sonâmbulos: como eclodiu a primeira guerra mundial, 1914 . São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

[3] “ Encontro com a morte em Samarra ” . É o trecho final de uma peça escrita por Somerset Maughan em 1932. Lê-se, em português

[4] Schlageter, Albert Leo : sobre o personagem título.

[5] MANN, Thomas [1875-1955]. Doutor Fausto (1947), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, trad. Herbert Caro, s/d.

[6] Referência aos personagens do filme The Producers , primeiro filme de Mel Brooks, de 1968 (Zero Mostel faz o papel de Max Bialystock, produtor de uma peça teatral; e Gene Wilder é Leo Bloom, seu secretário). Em português, lê-se alguma coisa ( de segunda mão ) em O Estado de S.Paulo , em 1969 sobre a peça teatral (“Os Produtores”) que foi montada no Brasil; talvez ajude a entender a metáfora.

[7] FREUD, S. Moisés e o monoteísmo (1939 [1934-38]). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XXIII.

[*] Spengler, apelido de David P. Goldman, escreve a coluna Spengler para o Asia Times Online e contribui frequentemente para as publicações The Tablet , First Things  (2009-2011) e outras. Foi Chefe Global de Pesquisa de Dívida do Bank of America (2002-2005), Diretor Global de Estratégia de Crédito do Credit Suisse (1998-2002). Ocupou cargos importantes nas organizações financeiras Bear Stearns e Cantor Fitzgerald. Foi colunista da revista Forbes (1994-2001). Seu livro How Civilizations Die (and why Islam is Dying, Too) foi lançado em setembro de 2011.

[*] Spengler, apelido de David P. Goldman, escreve a coluna Spengler para o Asia Times Online e contribui frequentemente para as publicações The Tablet, First Things (2009-2011) e outras. Foi Chefe Global de Pesquisa de Dívida do Bank of America (2002-2005), Diretor Global de Estratégia de Crédito do Credit Suisse (1998-2002). Ocupou cargos importantes nas organizações financeiras Bear Stearns e Cantor Fitzgerald. Foi colunista da revista Forbes (1994-2001). Seu livro How Civilizations Die (and why Islam is Dying, Too) foi lançado em setembro de 2011.

Fonte

O desembarque do Dia D

09.06.24 | Manuel

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Foi o Exército Vermelho que libertou Auschwitz. “Operação Bagration” (verão de 1944)

A Operação Bagration do Exército Vermelho, e não os desembarques do Dia D, acabaram com o fascismo alemão durante o verão de 1944

Por Dr. Leon Tressell

Desde a invasão russa da Ucrânia tem havido um ritmo crescente de tentativas de reescrever a história da Segunda Guerra Mundial por parte dos meios de comunicação e políticos ocidentais.

Num evento para comemorar o 80º aniversário da libertação de Auschwitz este ano, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von Der Leyen , nunca sequer mencionou que foi o Exército Vermelho quem libertou o campo de extermínio.

Entretanto, o Presidente Biden, durante um discurso recente no Cemitério Militar de Arlington, disse que o Exército dos EUA tinha “libertado o continente” do fascismo e não mencionou o papel do Exército Vermelho na vitória sobre a Alemanha nazi.

Narrativas concorrentes sobre a importância do Dia D

O governo do Reino Unido está a realizar uma série de eventos para comemorar o 80º aniversário do desembarque do Dia D. No seu site, o Reino Unido declara orgulhosamente que os desembarques foram “um ponto de viragem na Segunda Guerra Mundial” para:

“O Dia D alterou o curso da história, sinalizando o início do fim para a Alemanha nazista. … O estabelecimento de uma frente segura na Normandia foi crucial para as forças aliadas lançarem novas ofensivas, levando à libertação de Paris, ao impulso para Alemanha e, em última análise, à vitória.”

Esta narrativa é ainda exemplificada no artigo de Ian Carter do Imperial War Museum de Londres, Why D-Day Was So Important To Allied Victory . Carter faz a afirmação grandiosa e historicamente imprecisa de que a invasão aliada da Normandia desempenhou um papel mais importante na derrota da Alemanha nazista do que as derrotas sofridas na Frente Oriental:

“O exército alemão sofreu uma catástrofe maior do que a de Estalinegrado, a derrota no Norte de África ou mesmo a massiva ofensiva soviética de verão de 1944.”

O historiador americano Peter Kuznick, professor de história na American University e co-autor, com Oliver Stone, de The Untold History Of The United States , comentou sobre a narrativa de que foram os desembarques do Dia D que quebraram a espinha do fascismo alemão. Em entrevista à The Real News Network em 9   de junho de 2019:

“Para os americanos, a guerra começa em Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941. E depois há alguns combates no Norte de África e no ponto fraco, e em Itália. Mas a verdadeira guerra para os americanos começa em 6 de junho de 1944, com a invasão da Normandia no Dia D. Então os americanos derrotaram sozinhos os alemães e marcharam direto para Berlim. E os americanos vencem a guerra na Europa. Esse é um mito muito, muito infeliz e perigoso que foi perpetrado. … Essa não é a realidade. A realidade é que o sucesso na Normandia se deve em grande parte ao facto de os alemães já estarem bastante enfraquecidos a essa altura, porque estavam a sofrer uma surra, e estavam em retirada por toda a Europa à frente do Exército Russo, à frente do vasto Exército Vermelho. Exército, que então libertava os campos de concentração.”

 

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Um LCVP (Landing Craft, Vehicle, Personnel) do USS Samuel Chase, tripulado pela Guarda Costeira dos EUA, desembarca tropas da Companhia A, 16ª Infantaria, 1ª Divisão de Infantaria (a Big Red One) caminhando para a seção Fox Green da Praia de Omaha (Calvados, Basse-Normandie, França) na manhã de 6 de junho de 1944. Soldados americanos encontraram a recém-formada 352ª Divisão Alemã ao pousar. Durante o pouso inicial, dois terços da Empresa E foram vítimas. (Do Domínio Público)

Em completo contraste com esta narrativa pró-americana, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova , fez a seguinte declaração no 75º aniversário dos desembarques do Dia D:

“Como observam os historiadores, o desembarque na Normandia não teve um impacto decisivo no resultado da Segunda Guerra Mundial e da Grande Guerra Patriótica. Já havia sido pré-determinado como resultado das vitórias do Exército Vermelho, principalmente em Stalingrado (no final de 1942) e Kursk (em meados de 1943)”,

Antes de prosseguir, aqui está minha isenção de responsabilidade. O meu avô lutou no Norte de África com o 8º Exército britânico , por isso este artigo não está a criticar a contribuição dos soldados aliados, mas apenas procura dar equilíbrio histórico à narrativa altamente politizada sobre quem desferiu o golpe decisivo na Alemanha nazi durante 1944.

Importância das derrotas alemãs durante 1943

Os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial em 7 de dezembro de 1941, após o ataque japonês à base naval americana em Pearl Harbor. Já em Junho de 1942, a União Soviética instou os seus aliados americanos e britânicos a abrirem uma segunda frente na Europa Ocidental. Os EUA e o Reino Unido levariam mais dois anos para finalmente lançarem a invasão da França. Entretanto, o Exército Vermelho suportou o peso do poderio militar alemão e milhões de pessoas morreram na guerra racial genocida travada pelos nazis na Frente Oriental.

 

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O USS Arizona queimou por dois dias após ser atingido por uma bomba japonesa no ataque a Pearl Harbor. (Do Domínio Público)

Em junho de 1944, a eventual derrota da Alemanha nazista já havia sido estabelecida pelas vitórias do Exército Vermelho em Stalingrado (agosto de 1942 a fevereiro de 1943) e Kursk (julho a agosto de 1943) durante 1943. Em Stalingrado, havia perdido o Sexto Exército e quatro exércitos aliados. de mais de 500.000 homens. Entretanto, em Kursk tinha perdido 30 divisões (mais de 500.000 homens), incluindo 7 divisões Panzer equipadas com os novos tanques Panther e Tiger, 1.500 tanques, 3.000 canhões e 3.500 aviões de guerra.

Tanto os generais alemães como os soviéticos que escreveram depois da guerra concordam sobre as consequências catastróficas das derrotas da Wehrmacht durante 1943. O Coronel General Heinz Guderian, que se tornou Chefe do Estado-Maior General em 1944, admitiu que, no final de 1943, a Wehrmacht “tinha sofrido um derrota decisiva. … A partir de agora, o inimigo estava na posse indiscutível da iniciativa.”

80 anos atrás: Batalha de Kursk em 1943: a maior batalha de tanques da história

O Marechal de Campo Manstein repetiu a avaliação de Guderian sobre as consequências catastróficas das derrotas alemãs durante 1943. Em suas memórias, ele observou que, no final de 1943, a Wehrmacht:

“… encontrou-se travando uma luta defensiva que não poderia ser nada mais do que um sistema de improvisações e paliativos… Manter-nos no campo e, ao fazê-lo, desgastar ao máximo as capacidades ofensivas do inimigo, tornou-se toda a essência do luta.”

O marechal Zhukov, vice-comandante do Exército Vermelho, observou mais tarde a natureza decisiva das derrotas infligidas à Wehrmacht alemã durante 1943:

“Não só os grupos selecionados e mais poderosos dos alemães foram destruídos aqui, mas a fé do exército alemão e do povo alemão na liderança nazista e na capacidade da Alemanha de resistir ao poder crescente da União Soviética foi irrevogavelmente destruída.”

 

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Soldados soviéticos em Polotsk, 4 de julho de 1944 (do domínio público)

Os historiadores americanos David Glantz e Jonathan House, no seu relato sobre a Frente Oriental Quando os Titãs Enfrentaram Como o Exército Vermelho Parou Hitler , declaram que 1943 foi um período ruinoso e fatalmente destrutivo para o exército alemão:

“Organizacionalmente, a Wehrmacht estava claramente em declínio no final de 1943. Além da morte do Sexto Exército e de vários exércitos aliados, a força Panzer alemã e a força de transporte aéreo foram destruídas repetidamente. Centenas de divisões de infantaria comuns foram reduzidas a dois terços da sua força, com mobilidade decrescente e defesas antitanque inadequadas.”

“De facto, depois de Kursk, instalou-se um ciclo vicioso. Cada novo revés forçou os alemães a comprometer as suas tropas de substituição recém-recrutadas e as suas unidades Panzer remodeladas para combater mais rapidamente e com menos treino. Tropas mal treinadas sofreram um número anormal de baixas antes de aprenderem a dura realidade do combate. Estas baixas, por sua vez, significaram que os comandantes tiveram que convocar a próxima onda de substituições numa fase ainda mais precoce do seu treino.”

No verão de 1944, a Wehrmacht alemã era incapaz de conduzir uma ofensiva geral numa frente ampla. Estava a recuperar das enormes perdas infligidas pela campanha de Inverno do Exército Vermelho de 1943-44, que levou à destruição de grandes porções do Primeiro Panzer, do Sexto, do Oitavo e do Décimo Sétimo Exércitos. 16 divisões alemãs compostas por mais de 50.000 homens foram completamente destruídas, enquanto 60 outras divisões foram reduzidas a fragmentos de sua antiga força.

Objetivos para as ofensivas soviéticas de verão de 1944

Considerações geopolíticas mais amplas entraram nas deliberações do comando do Exército Vermelho ao definir os objectivos para a sua campanha de Verão de 1944. A longamente adiada segunda frente de invasão de França foi um factor no pensamento de Estaline. Ele estava ciente de que a força liderada pelos americanos que desembarcava na Normandia estaria em uma corrida com o Exército Vermelho para chegar primeiro a Berlim. Em 1943, Stalin reuniu-se com Churchill e Roosevelt na Conferência de Teerã para começar a planejar o futuro da Europa no pós-guerra, que previa a divisão da Alemanha em zonas de influência. Estaline estava determinado a que o Exército Vermelho chegasse primeiro a Berlim e assim tivesse a iniciativa de dividir a Alemanha e garantir que a Europa de Leste se tornaria uma zona tampão satélite para a União Soviética.

Em Março de 1944, o Comité de Defesa do Estado, liderado por Estaline e pelo Estado-Maior do Exército Vermelho, começou a analisar as suas opções para a ofensiva de Verão. Foi finalmente resolvido que o Exército Vermelho atacaria e destruiria o seu inimigo mais difícil: o Grupo de Exércitos Centro, que estava concentrado na Bielorrússia. A libertação da Bielorrússia colocaria o Exército Vermelho na Polónia e deixá-lo-ia posicionado ao longo da rota mais directa para Berlim e teria a vantagem adicional de deixar o Grupo de Exércitos Norte isolado das suas linhas de abastecimento e incapaz de recuar.

A campanha de verão envolveria cinco ofensivas diferentes de norte a sul, que seriam escalonadas ao longo da frente de 2.000 milhas. A Operação Bagration recebeu o nome do general russo que foi mortalmente ferido em 1812 na batalha de Borodino. Estava programado para começar em 22 de junho, quase quinze dias após a ofensiva contra a Finlândia, que pretendia expulsar este aliado alemão da guerra.

O Exército Vermelho realizou uma redistribuição maciça de tropas em estrito sigilo, que foi parte de seu engano altamente bem-sucedido que levou o Alto Comando Alemão a esperar que as principais ofensivas fossem dirigidas contra o Grupo de Exércitos Sul e o Grupo de Exércitos Norte.

Em meados de junho, o Exército Vermelho havia realizado a tarefa hercúlea de manobrar 14 exércitos de armas combinadas, juntamente com 1 exército de tanques, 118 divisões de rifle, 4 exércitos aéreos e 2 corpos de cavalaria. Esta enorme força compreendia 1.254.300 homens, 2.715 tanques, 24.363 peças de artilharia apoiadas por 2.306 lançadores de foguetes Katyusha e 5.327 aviões de combate apoiados por 700 bombardeiros da Força de Bombardeiros de Longo Alcance.

A logística envolvida na preparação das quatro frentes militares envolvidas na Operação Bagration dá uma ideia da escala massiva do ataque iminente. As quatro frentes do exército foram apoiadas por 70.000 camiões e 90-100 comboios por dia, levando combustível e munições até às linhas de partida da ofensiva iminente.

Começam as ofensivas de verão

Três dias depois dos desembarques do Dia D, em 9 de junho, quase 1.000 aviões de combate iniciaram a ofensiva que tiraria a Finlândia da guerra. Também teve o benefício adicional de manter o Grupo de Exércitos Centro distraído do principal ataque soviético que se formava cuidadosamente na frente das defesas alemãs.

Operação Bagration 23 de junho - 19 de agosto de 1944

Em 19 de junho, os guerrilheiros soviéticos desencadearam mais de 10.000 cargas de demolição, destruindo os trilhos, o material rodante, os ramais e os cruzamentos alemães na frente central. Nas 4 noites seguintes, 40.000 demolições espalharam a destruição na retaguarda da rede de transporte alemã.

A Operação Bagration do Exército Vermelho, e não os desembarques do Dia D, acabaram com o fascismo alemão durante o verão de 1944

Fonte: Banco de dados da Segunda Guerra Mundial

Finalmente, em 23 de Junho, quase no terceiro aniversário da invasão da União Soviética pela Wehrmacht, o Exército Vermelho lançou o seu ataque surpresa massivo contra o Grupo de Exércitos Centro.

A Operação Bagration alcançou surpresa tática completa e logo deixou o Grupo de Exércitos Centro cambaleando. O Alto Comando Alemão parecia completamente inconsciente da catástrofe iminente que envolvia rapidamente as suas forças. Hitler recusou permissão para qualquer tipo de defesa flexível que envolvesse retiradas táticas de unidades alemãs e não estava disposto a sancionar quaisquer reforços importantes enviados ao Grupo de Exércitos Centro.

Já em 24 de junho, o Grupo de Exércitos Centro enfrentava uma ameaça muito séria a toda a sua posição. John Erickson em seu relato magistral da Frente Oriental, The Road To Berlin: Stalin's War With Germany Vol.2, comentou:

“Desse ponto em diante, o Grupo de Exércitos Centro foi apanhado numa situação impossível e progressivamente encharcado pelo fogo russo, sem qualquer grau de flexibilidade, mas desprovido de qualquer reforço eficaz. … A situação do Terceiro [exército] Panzer e do Quarto Exército era séria: para o Nono Exército ao sul, rapidamente se tornou catastrófica.”

Uma semana após o lançamento da Operação Bagration, o sistema defensivo alemão entrou em colapso. As quatro frentes do Exército Vermelho libertaram Vitebesk, Orsha, Moghilev e Bobruisk e avançaram em direção a Minsk. Eles mataram mais de 130 mil soldados alemães, fizeram 66 mil prisioneiros e destruíram 900 tanques alemães e milhares de veículos. As baixas do Exército Vermelho foram tão elevadas que a 2ª Frente Bielorrussa foi forçada a retirar-se e a recuperar. Apesar das pesadas baixas, o Exército Vermelho não deu sinais de abrandar o ritmo da sua ofensiva.

 

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Veículos abandonados do 9º Exército Alemão em uma estrada perto de Bobruisk (Do Domínio Público)

Os três exércitos alemães que compunham o Grupo de Exércitos Centro estavam em desordem e em retirada precipitada. Eles foram ordenados a seguir uma política de terra arrasada que não deixava recursos para o avanço do Exército Vermelho, que se deparou com numerosos crimes de guerra alemães. John Erickson observou que:

“Minsk, com as suas fábricas dinamitadas e as suas instalações destruídas, estava na maior parte em ruínas; durante a maior parte da Bielorrússia, as tropas soviéticas avançaram através de aldeias queimadas e cidades destruídas, o gado desapareceu e a população diminuiu terrivelmente. Mais de uma vez, unidades do Exército Vermelho encontraram carroças carregadas de crianças destinadas à deportação para o Reich.”

Minsk, capital da Bielorrússia, caiu em 3 de julho, e o Exército Vermelho agiu para cercar e destruir o Quarto Exército Alemão, cuja força já havia caído para cerca de 105.000 homens.

40.000 soldados alemães morreram tentando escapar do cerco soviético. Em 11 de julho, os remanescentes do Quarto Exército, sem munição e combustível, se renderam.

O Exército Vermelho alcançou total sucesso tático e estratégico e abriu uma lacuna de 250 milhas na frente alemã, deixando o Grupo de Exércitos Centro com escassas 8 divisões à sua disposição.

As estimativas das surpreendentes perdas alemãs sugerem que o Grupo de Exércitos Centro perdeu 25-28 divisões, mais de 450.000 homens, enquanto outros 100.000 caíram nas frentes sul e norte.

As baixas soviéticas foram igualmente horríveis, com o Exército Vermelho sofrendo mais de 230.000 mortos e 800.000 feridos.

Durante as violentas ofensivas do Exército Vermelho no final de junho e julho de 1944, os Aliados Ocidentais lutaram para sair da cabeça de ponte da Normandia. A Operação Bagration e as ofensivas que a acompanharam, que levaram o Exército Vermelho aos subúrbios orientais de Varsóvia, ultrapassaram os seus objectivos iniciais e quebraram a espinha dorsal do grupo militar mais forte da Alemanha, deixando o regime de Hitler diante da derrota.

Avaliações da Operação Bagration

Todas as avaliações do impacto da Operação Bagration concordam que esta desferiu um golpe devastador e catastrófico nas capacidades militares do fascismo alemão.

Os historiadores americanos David M. Gantz e Jonathan House notaram as terríveis consequências da Operação Bagration para a Wehrmacht alemã:

“A destruição de mais de 30 divisões e a carnificina provocada numa série de divisões sobreviventes, acompanhada por um avanço mecanizado soviético de mais de 300 quilómetros. Dizimou o Grupo de Exércitos Centro, o mais forte grupo militar alemão, abalou severamente o Grupo de Exércitos Sul da Ucrânia e trouxe o Exército Vermelho para as fronteiras do Reich.”

John Erickson, em sua avaliação da importância histórica da Operação Bagration, comentou:

“Quando os exércitos soviéticos destruíram o Grupo de Exércitos Centro, alcançaram o seu maior sucesso militar na Frente Oriental. Para o exército alemão no leste foi uma catástrofe de proporções inacreditáveis, maior que a de Stalingrado,….”

Esta avaliação é apoiada por generais alemães e soviéticos.

De acordo com o historiador militar alemão, General von Buttlar, a Operação Bagration deixou a Wehrmacht alemã em desordem e destruiu a sua capacidade de montar uma resistência eficaz ao Exército Vermelho. Ele observou que “a derrota do Grupo Central de Exércitos pôs fim à resistência organizada dos alemães no Leste”.

O marechal Zhukov, em suas memórias, fez uma avaliação detalhada das ramificações militares e geopolíticas da Operação Bagration:

“Em dois meses, as tropas soviéticas derrotaram dois grandes agrupamentos estratégicos alemães, libertaram a Bielorrússia, completaram a libertação da Ucrânia e libertaram uma parte considerável da Lituânia e do leste da Polónia. Nestas batalhas, a 1ª, 2ª e 3ª Frentes Bielorrussas e a 1ª Frente Báltica derrotaram 70 divisões. Trinta divisões foram derrotadas pela 1ª Frente Ucraniana nas regiões de Lvov-Sandomir… a derrota dos grupos do Centro e do Norte da Ucrânia, a captura de três grandes cabeças de ponte no Vístula e a chegada a Varsóvia aproximaram as nossas frentes de ataque de Berlim, agora a apenas 600 km [370 milhas] de distância… A Roménia e a Hungria estavam perto da retirada da aliança alemã.”

Durante junho-julho de 1944, a Operação Bagration quebrou a espinha dorsal da formação militar mais forte da Wehrmacht alemã e desferiu um golpe mortal no fascismo alemão, do qual não conseguiu se recuperar. A narrativa britânica/americana de que o Dia D desferiu o golpe mortal no fascismo alemão não resiste a um exame minucioso.

Os historiadores militares americanos Glantz e House observaram que, '...apesar da necessidade dos alemães de direcionar novas divisões e equipamentos para o leste, durante junho e julho a Wehrmacht ainda foi capaz de conter a cabeça de ponte aliada na Normandia.'

Em 17 de julho de 1944, 57 mil prisioneiros de guerra alemães, capturados durante a Operação Bagration, desfilaram pelas ruas de Moscou. O motivo para isto foi pôr fim a todos os rumores de que o Exército Vermelho não tinha desempenhado o papel decisivo na destruição das capacidades militares da Wehrmacht alemã.

O historiador militar John Erickson observou como:

“Os russos ressentiram-se das sugestões de que as tropas alemãs tinham sido transferidas da Bielorrússia para oeste para combater os exércitos aliados invasores: o desfile dos prisioneiros foi em parte concebido para abafar conversas 'absurdas' deste tipo. A principal frente de batalha, e aqui os comentadores soviéticos citaram directamente os gritos de angústia alemães, situava-se no leste, onde se travavam batalhas de dimensões ‘apocalípticas’.”

Já se passaram 80 anos desde os importantes acontecimentos na frente oriental durante o verão de 1944 que quebraram a espinha dorsal do fascismo alemão e o deixaram diante da derrota. Deveríamos celebrar esta vitória e recordar os enormes sacrifícios feitos pelo Exército Vermelho.

Dito isto, não devemos ser complacentes com a derrota do fascismo alemão. As condições que ajudaram a dar origem ao fascismo estão a começar a ressurgir e receberão um enorme estímulo na próxima crise económica global.

Bertolt Brecht alertou sobre isso ao escrever após a Segunda Guerra Mundial. Brecht alertou:

“Não se alegrem com a derrota dele, homens. Pois embora o mundo se levantasse e parasse o bastardo. A cadela que o deu à luz está no cio novamente.

Imagem em destaque: Dois tanques Panzer IV destruídos pertencentes à 20ª Divisão Panzer, junho de 1944 (do domínio público)

Fonte

Quatro frases que fazem crescer o nariz do Pinóquio

05.06.24 | Manuel

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por Eduardo Galeano

  1. Somos todos culpáveis pela ruína do planeta

A saúde do mundo está um asco. 'Somos todos responsáveis' , clamam a vozes de alarme universal, e esta generalização absolve: se todos nós somos responsáveis, ninguém o é. Tais como coelhos, reproduzem-se os novos tecnocratas do meio ambiente. É a taxa de natalidade mais alta do mundo: os peritos geram peritos e mais peritos, que se ocupam em envolver o tema no papel celofane da ambiguidade. Eles fabricam a brumosa linguagem das exortações ao 'sacrifício de todos' nas declarações dos governos e nos solenes acordos internacionais que ninguém cumpre. Estas cataratas de palavras – inundação que ameaçam converter-se numa catástrofe ecológica comparável ao buraco do ozono – não se desencadeiam gratuitamente. A linguagem oficial afoga a realidade para conceder impunidade à sociedade de consumo, a qual é imposta como modelo em nome do desenvolvimento e das grandes empresas que lhes extraem o sumo. Mas as estatísticas confessam. Os dados ocultos debaixo do palavrório revelam que 20 por cento da humanidade comete 80 por cento das agressões contra a natureza, crime a que os assassinos chamam suicídio e é a humanidade inteira quem paga as consequências da degradação da terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, do enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos naturais não renováveis. A senhora Harlem Bruntland, que dirige o governo da Noruega, comprovou recentemente que se os 7 mil milhões de habitantes do planeta consumissem o mesmo que os países desenvolvidos do Ocidente, "fariam falta 10 planetas como o nosso para satisfazer todas as suas necessidades". Uma experiência impossível. Mas os governantes dos países do Sul que prometem a entrada no Primeiro Mundo, passaporte mágico que tornará ricos e felizes todos nós, não deveriam apenas ser processados por roubo. Não estão apenas a gozar-nos, não: além disso esses governantes estão a cometer o delito de apologia do crime. Porque este sistema de vida que se apresenta como paraíso, fundado na exploração do próximo e na aniquilação da natureza, é o que nos está a enfermar o corpo, a envenenar a alma e a deixar-nos sem mundo.

  1. É verde o que se pinta de verde

Agora os gigantes da indústria química fazem a sua publicidade em cor verde, e o Banco Mundial lava a sua imagem repetindo a palavra ecologia a cada página dos seus relatórios e tingindo de verde os seus empréstimos. "Nas condições dos nossos empréstimos há normais ambientais estritas", esclarece o presidente do supremo banco do mundo. Somos todos ecologistas, até que alguma medida concreta limite a liberdade de contaminação. Quando o Parlamento do Uruguai aprovou uma tímida lei de defesa do meio ambiente, as empresas que lançam veneno para o ar e apodrecem as águas sacaram subitamente a sua recém comprada máscara verde e gritaram a sua verdade em termos que poderiam ser assim resumidos: "os defensores da natureza são advogados da pobreza, dedicados a sabotar o desenvolvimento económico e a espantar o investimento estrangeiro". O Banco Mundial, em contrapartida, é o principal promotor da riqueza, do desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez por reunir tantas virtudes, o Banco manejará, junto à ONU, o recém criado Fundo para o Meio Ambiente Mundial. Este imposto sobre a má consciência disporá de pouco dinheiro, 100 vezes menos do que haviam pedido os ecologistas, para financiar projectos que não destruam a natureza. Intenção inquestionável, conclusão inevitável: se esses projectos requerem um fundo especial, o Banco Mundial está a admitir, de facto, que todos os seus demais projectos fazem um fraco favor ao meio ambiente. O Banco se chama Mundial, assim como o Fundo Monetário se chama Internacional, mas estes irmãos gémeos vivem, cobram e decidem em Washington. Quem paga, manda, e a numerosa tecnocracia jamais cospe no prato onde come. Sendo, como é, o principal credor do chamado Terceiro Mundo, o Banco Mundial governa nossos países cativos que a título de serviço da dívida pagam aos seus credores externos 250 mil dólares por minutos, e lhes impõe a sua política económica em função do dinheiro que concede e promete. A divinização do mercado, que compra cada vez menos e paga cada vez pior, permite estufar de quinquilharias as grandes cidades do mundo, drogadas pela religião do consumo, enquanto os campos se esgotam, apodrecem as águas que os alimentam e uma crosta seca cobre desertos que antes foram florestas.

  1. Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra

Pode-se dizer tudo de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: o bom Al sempre enviava flores aos velórios das suas vítimas. As empresas gigantes da indústria química, petrolífera e automobilística pagaram boa parte das despesas da Eco 92. A conferência internacional que no Rio de Janeiro se ocupou da agonia do planeta. E essa conferência, chamada Cimeira da Terra, não condenou as transnacionais que produzem poluição e dela vivem, e nem sequer pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que torna possível a venda de veneno. No grande baile de máscaras do fim do milénio, até a indústria química veste-se de verde. A angústia ecológica perturba o sono dos maiores laboratórios do mundo, que para ajudar a natureza estão a inventar novos cultivos biotecnológicos. Mas estes desvelos científicos não se propõem encontrar plantas mais resistentes às pragas sem ajuda química, procuram sim novas plantas capazes de resistir aos praguicidas e herbicidas que esses mesmos laboratórios produzem. Das 10 maiores empresas de sementes do mundo, seis fabricam pesticidas (Sandoz, Ciba-Geigy, Dekalb, Pfiezer, Upjohn, Shell, ICI). A indústria química não tem tendências masoquistas. A recuperação do planeta ou o que nos resta dele implica a denúncia da impunidade do dinheiro e a liberdade humana. A ecologia neutral, que se parece antes com a jardinagem, faz-se cúmplice da injustiça de um mundo onde a comida sã, a água limpa, o ar puro e o silêncio não sã direitos de todos e sim privilégios dos poucos que podem pagá-los. Chico Mendes, operário da borracha, caiu assassinado em fins de 1988, na Amazónia brasileira, por crer naquilo que acreditava: que a militância ecológica não pode ser divorciada da luta social. Chico acreditava que a floresta amazónica não poderá ser salva enquanto não se fizer a reforma agrária no Brasil. Cinco anos depois do crime, os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100 trabalhadores rurais morrem assassinados a cada ano na luta pela terra, e calcularam que quatro milhões de camponeses sem trabalho vão para as cidades abandonando as plantações do interior. Adaptando os números de cada país, a declaração dos bispos retrata toda a América Latina. As grandes cidades latino-americanas, inchadas até rebentar pela invasão incessante de exilados do campo, são uma catástrofe ecológica: uma catástrofe que não se pode entender nem mudar dentro dos limites da ecologia, surda perante o clamor social e cega perante o compromisso político.

  1. A natureza está fora de nós

Nos seus 10 mandamentos, Deus esqueceu de mencionar a natureza. Dentre as ordens que nos enviou do monte Sinai, o Senhor teria podido acrescentar, por exemplo: "Honrarás a natureza da qual fazes parte". Mas isso não lhe ocorreu. Há cinco séculos, quando a América foi apresada pelo mercado mundial, a civilização invasora confundiu a ecologia com a idolatria. A comunhão com a natureza era pecado. E merecia castigo. Segundo as crónicas da Conquista, os índios nómadas que usavam cascas para se vestirem jamais descascavam o tronco inteiro, para não aniquilar a árvore, e os índios sedentários plantavam cultivos diversos e com períodos de descanso, para não cansar a terra. A civilização que vinha impor as devastadoras monoculturas de exportação não podia entender as culturas integradas na natureza, e confundiu-as com a vocação demoníaca ou a ignorância. Para a civilização que se diz ser ocidental e cristã, a natureza era uma besta feroz que era preciso domar e castigar a fim de que funcionasse como uma máquina, posta ao nosso serviço desde sempre e para sempre. A natureza, que era eterna, devia-nos escravatura. Muito recentemente soubemos que a natureza se cansa, como nós, seus filhos, e soubemos que, como nós, pode morrer assassinada. Já não se fala em submeter a natureza, agora até os seus verdugos dizem que há que protegê-la. Mas tanto num como noutro caso, natureza submetida e natureza protegida, ela está fora de nós. A civilização que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento e o grandote com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem, enquanto o mundo, labirinto sem centro, dedica-se a romper o seu próprio céu.

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Palestina: A barbárie que não cabe em Hollywood

01.06.24 | Manuel

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O Ministério da Saúde de Gaza regista milhares de feridos após a ofensiva israelita. “Mais de 13.000 crianças foram assassinadas”, confirmou em março o porta-voz da Unicef, James Elder, na rede social.

Jonathan Glazer, o diretor britânico de origem judaica, de 'The Zone of Interest', filme vencedor na categoria Melhor Filme Internacional, ousou apontar o dedo para Israel na cerimônia do Óscar.

Quase um mês após o início da agressão contra Gaza, jornalistas do meio de comunicação americano The New York Times foram instruídos sobre algumas restrições ao uso dos termos: “território ocupado”, “genocídio”, “campo de refugiados”, “Palestina”, “massacre” e “combatentes”, entre outros.

Recentemente, circulou a informação de que, em novembro de 2023, um memorando interno, escrito por Susan Wessling, editora de normas do NYT, editor internacional Philip Pan e outros funcionários adjuntos, chegou aos jornalistas como “orientação sobre alguns termos e outras questões”, em relação ao conflito que começou em outubro.

Num documento interno, obtido pela plataforma jornalística ‘The Intercept’, lê-se quais os termos que não podem usar sobre a Faixa de Gaza, um enclave palestiniano. A lei do silêncio, a mediatização dos termos e a proclamada liberdade de expressão são evidentes repetidamente na imprensa e no cinema.

Para onde a desumanização nos leva

 

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Jonathan Glazer na cerimónia de atribuição do Óscar (Aqui)

Jonathan Glazer, o diretor britânico de origem judaica, de 'The Zone of Interest', filme vencedor na categoria Melhor Filme Internacional, ousou apontar o dedo para Israel na cerimônia do Oscar.

Seu filme conta a história do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, e sua esposa Hedwig, que se esforçam para construir uma vida de sonho para sua família, em uma casa com jardim a poucos metros do horror. Do outro lado do muro está o campo de concentração e extermínio da Alemanha nazista.

O discurso de Glazer – autor cult com apenas quatro filmes e veterano do videoclipe – contestado por organizações judaicas nos Estados Unidos e políticos israelenses, começou assim:

“Todas as nossas decisões – ao fazer o filme – procuraram refletir e confrontar-nos no presente. Não para dizer 'Veja o que eles fizeram então', mas 'Veja o que fazemos agora'. “Nosso filme mostra aonde a desumanização nos leva.”

O realizador do filme refere-se aos últimos 7 meses, dos últimos 75 anos. Segundo a analista síria Bouthaina Shaaban, as nossas vidas mudaram: “O mundo inteiro conhecia, antes de 7 de Outubro, a horrível situação que os palestinos têm suportado nos últimos 75 anos, e conheceu especialmente o cerco de Gaza, que foi descrita como a maior prisão ao ar livre do mundo, imposta pelo último regime de apartheid da história moderna.

Mas ninguém seria capaz de imaginar como uma vasta máquina militar, apoiada e alimentada pela maior potência militar do mundo, encurralaria 2,2 milhões de civis para demolir as suas casas mesmo sobre as suas cabeças, matando as equipas de médicos juntamente com os doentes. e feridos que procuram tratamento médico, deixando quase todos os hospitais completamente fora de serviço.”

Após suas palavras na cerimônia, Glazer sentiu que os aplausos foram tímidos. Ele sabia que o seu discurso não era mais uma denúncia dos horrores da guerra: “Levado à sua pior versão, moldou todo o nosso passado e presente. "Neste momento estamos aqui como homens que rejeitam que o seu carácter judaico e o Holocausto tenham sido usados ​​para uma ocupação que arrastou tantas pessoas inocentes para o conflito, sejam elas as vítimas do 7 de Outubro em Israel ou do actual ataque a Gaza".

Depois do diretor britânico de origem judaica, ninguém mais se atreveu a abordar o tema do massacre contra o povo palestino.

Na última gala do 96º. Na edição dos Óscares, um grupo de artistas representados pelos Artistas pelo Cessar-Fogo, expressou subtilmente o seu repúdio a essa agressão. Eles usavam um impressionante botão vermelho preso nas roupas, como uma exigência que exige um cessar-fogo em Gaza.

Figuras renomadas usaram o detalhe, incluindo Mark Ruffalo, a cantora e compositora Billie Eilish, a diretora Ava DuVernay e o ator Maher-shala Ali. Quase 400 celebridades assinaram o pedido de cessar-fogo, incluindo Bradley Cooper, Cate Blanchett e America Ferrera (https://www.artists4ceasefire.org/). Um enfeite com a bandeira da Palestina, que não deixa espaço para simbolismo, foi usado pelos atores de ‘Anatomia de uma Queda’: Milo Machado-Graner e Swann Arlaud.

Hollywood

Os judeus são considerados os “pais fundadores” do que hoje conhecemos como Hollywood.

Um relatório do Pew Research Center estima que em 2020 havia mais de 5,8 milhões de judeus vivendo nos Estados Unidos. Segundo estimativas do Gabinete Central de Estatísticas do governo israelita, a sua população total em 2021 era de 9.449.000 habitantes. Destes, 6.982.000 são judeus (73,9% da população total). Depois há a França, com mais de 400 mil, segundo dados de 2018.

O dedo apontado para Israel não foi bem recebido por grande parte da comunidade judaica em Hollywood. Embora proclamem que o mundo artístico é progressista e apoia as causas sociais, o controlo governamental em Hollywood inclui a manipulação, a censura e a produção de guiões de acordo com os objectivos da Estratégia de Segurança e Defesa dos Estados Unidos.

Aqueles que não aplaudiram o polêmico discurso de Jonathan Glazer ou aqueles que o fizeram timidamente já sabiam o peso que viria depois dele.

A mídia especializada ‘Variety’ citou o conteúdo de uma carta contra a fala do diretor inglês. “Rejeitamos que o nosso Judaísmo seja sequestrado com o propósito de estabelecer uma equivalência moral entre um regime nazi que procurou exterminar uma raça de pessoas e uma nação israelita que procura impedir o seu próprio extermínio.” (…) “Dá credibilidade ao moderno libelo de sangue que alimenta um crescente ódio antijudaico em todo o mundo, nos Estados Unidos e em Hollywood. O actual clima de crescente anti-semitismo apenas sublinha a necessidade do Estado Judeu de Israel, um lugar que sempre nos acolherá, como nenhum outro Estado o fez durante o Holocausto retratado no filme de Glazer."

O cineasta Glazer estava nervoso ao fazer seu discurso, seguindo as regras desafiadoras de Hollywood. Agora o estigmatizaram, como inimigo público da capital do cinema. A sua voz, a mais directa sobre a guerra de Israel contra os palestinianos em Gaza e a cumplicidade americana, foi uma expressão dissidente, quase mais transcendente do que o evento anual de auto-elogio da indústria cinematográfica.

Lembremo-nos de como, em 1978, houve controvérsia sobre a questão palestina. Vanessa Redgrave foi vaiada ao denunciar um pequeno grupo de vândalos com expressões sionistas, que atacaram um documentário sobre os palestinos. A reação contra a artista aconteceu quando ela aceitou o Oscar de melhor atriz coadjuvante por ‘Julia’.

Naquela mesma noite do Oscar de 2024, o ator, músico e produtor irlandês Cillian Murphy recebeu o Oscar de melhor ator, por ‘Oppenheimer’. Conta a história do físico Julius Robert Oppenheimer, filho de um casal de imigrantes judeus de origem alemã, que desenvolveu a bomba atômica; Ele foi constantemente investigado pelo FBI nos anos seguintes e posteriormente acusado de ser um risco para a segurança nacional. A sua perseguição é considerada parte do macarthismo ou da “caça às bruxas” anticomunista.

A mensagem resumida do premiado ator Cillian Murphy foi: “Para o bem ou para o mal, todos vivemos no mundo de Oppenheimer. Então, eu realmente gostaria de dedicar isso aos pacificadores de todos os lugares.”

Agenda de conscientização

É assim mesmo: se eles apenas interpretarem seus comentários como anti-semitas, ou tomarem dessa forma, Hollywood simplesmente irá demiti-lo. Aliás, a principal agência de talentos do mundo do cinema, a United Talent Agency (UTA), informou que a atriz Susan Sarandon não era mais sua cliente.

A atriz de 77 anos, conhecida pelo seu ativismo político em diversas causas progressistas, participou numa marcha a favor dos palestinianos em Nova Iorque e publicou comentários de apoio aos palestinianos na sua rede social, segundo vários relatos da mídia americana.

“Há muitas pessoas que têm medo de ser judias neste momento e estão começando a ver como é ser muçulmano neste país, muitas vezes sujeito à violência.” A atriz disse, com o microfone na mão, em um vídeo publicado pelo The New York Post em sua conta no YouTube.

Já no dia 4 de novembro de 2023, logo após a invasão de Gaza, publicou: “Não é preciso ser palestino para se preocupar com o que está acontecendo em Gaza. Estou com a Palestina. “Ninguém é livre até que todos sejam livres.”

Susan Sarandon, cinco vezes vencedora do Oscar, estava no meio da multidão na Union Square, subiu na traseira de um caminhão e pediu um cessar-fogo em Gaza. Ele disse aos manifestantes para conversarem entre si – incluindo amigos judeus – e respirarem fundo antes de falar sobre a guerra de Israel.

Talento e caráter. Sarandon tem o British Academy Film Award (BAFTA) e o Screen Actors Guild Award de melhor atriz, além de nove indicações ao Globo de Ouro. Os cinco Oscars foram conquistados em: o primeiro (1980) por ‘Atlantic City’. Depois ‘Thelma & Louise’ (1991), onde dividiu candidatura com Geena Davis. Em 1992, 'Óleo de Lorenzo'; 'O Cliente' em 1994 e em 1995, 'Pena de Morte'.

Além de ser uma excelente atriz, é muito comprometida com diversas organizações humanitárias; Ela é embaixadora do UNICEF e faz parte da Heifer International há uma década (doa animais de fazenda para famílias). Em 2010, foi nomeada embaixadora da boa vontade nas Nações Unidas (ONU).

Em 2019, Sarandon produziu um documentário narrando os esforços da empresária Mariam Shaar, utilizando a culinária nacional palestina, para dar oportunidade às mulheres refugiadas.

Shaar montou uma carrinha de alimentos, aproveitando a experiência das mulheres que vivem no campo de refugiados no município de Burj al Barajneh, na periferia sul de Beirute e onde vivem milhares de palestinianos.

Os refugiados palestinos, descendentes de famílias que fugiram ou foram forçados a fugir durante os combates desde a criação do Estado de Israel em 1948, vivem em condições superlotadas e precárias.

Corria o ano de 1947, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou a resolução para criar dois Estados na Palestina, um árabe (43%) e outro judeu (57%); então os países árabes rejeitaram a disparidade.

Em 6 de janeiro de 1949, as Nações Unidas impuseram uma trégua à primeira guerra árabe-israelense, que começou no mesmo dia da declaração de Independência, 15 de maio de 1948. Até esse dia, mais de 300 mil palestinos haviam sido expulsos de seus territórios. casas, sob o falso slogan do movimento sionista dizia: Uma terra sem povo para um povo sem terra.

A Naqba palestiniana significou o êxodo em massa de milhares de pessoas que fugiram para o Egipto, Líbano, Jordânia e Síria, onde se instalaram em campos de refugiados. Israel manteve o território concedido pelas Nações Unidas e aumentou-o pela força, com a expulsão de 800 mil palestinos, expropriados de suas casas.

Susan Sarandon conhece a história. O documentário 'Soufra' conta que a veterana atriz norte-americana ajudou a Women's Program Association (WPA) a angariar fundos para construir um centro de educação pré-escolar, que irá criar empregos e educar cerca de 100 crianças.

A sua forma específica de ajudar foi dar visibilidade - através do filme - ao projecto Soufra (significa mesa de comida abundante), que conta o esforço de Mariam Shaar para montar uma carrinha e preparar comida, aproveitando os talentos culinários das mulheres que vivem neste campo de refugiados no Líbano.

A postura pró-Palestina tem um preço em Hollywood. Há poucos dias, a atriz mexicana Melissa Barrera, prestes a fazer o próximo filme da franquia ‘Pânico VII’, foi demitida por seu ativismo social. Barrera postou declarações em suas histórias no Instagram, chamando essa guerra de genocídio e limpeza étnica. Mais tarde, a produtora Spyglass Media Group disse que as suas publicações sobre Gaza nas redes sociais eram “anti-semitas”.

Barrera, que estrelou 'In the Heights', escreveu nas suas redes sociais: Gaza está actualmente a ser tratada como um campo de concentração.

Melissa Barrera esteve em Park City para a estreia de seu novo filme com o qual reaparece nas telonas: 'Your Monster', na seção Midnight do Festival de Sundance. O festival internacional de cinema acontece anualmente nas duas últimas semanas de janeiro na cidade de Park City, próxima à capital do estado de Utah, nos Estados Unidos.

O Hollywood Reporter descreveu manifestantes gritando “Palestina Livre” e “Parem a guerra” na calçada da rua principal de Park City enquanto grande parte de Hollywood frequentava o popular destino de inverno. No contexto do festival de cinema, também foi realizada em Park City uma manifestação da organização Bring Them Home para a libertação de reféns pelo Hamas.

Atualmente, a atriz mantém sua posição. Ela disse que isso a fez “acordar”, que a levou a se tornar “quem ela deveria ser” na vida. Em resposta, a produtora Spyglass Media Group foi contundente na sua declaração: temos tolerância zero ao anti-semitismo ou ao discurso de ódio sob qualquer forma, incluindo falsas referências ao genocídio, à limpeza étnica, à distorção do Holocausto ou a qualquer coisa que ultrapasse flagrantemente os limites. do discurso de ódio.

Apesar de enfrentarem duras críticas por exercerem a sua opinião sobre Gaza, figuras importantes estão a manifestar-se. Por exemplo, Maha Dakhil, da agência de talentos CAA, postou nas redes sociais: “O que dói mais do que testemunhar um genocídio? Testemunhe a negação do genocídio que está ocorrendo.”

“Você está aprendendo agora quem apoia o genocídio.” Foram essas palavras que custaram a Maha Dakhil sua posição como uma das principais representantes atuantes de toda Hollywood (agência CAA). Dakhil foi escolhida há um ano entre as 50 mulheres mais eficazes na indústria do entretenimento.

Depois dos detratores, outras figuras artísticas saíram em defesa dos atingidos. Após a reunião de Dakhil com seu cliente Tom Cruise, ela escreveu: “Cometi um erro ao repassar minha história no Instagram, que usava linguagem ofensiva. Como muitos de nós, senti-me angustiado. Tenho orgulho de estar ao lado da humanidade e da paz. Sou muito grato aos amigos e colegas judeus, que apontaram as implicações e me educaram ainda mais. Excluí imediatamente a postagem. “Sinto muito pela dor que causei.”

Os ecos inconfundíveis da história

“Os ecos da história são inconfundíveis no nosso clima atual.” O canal Euronews publicou há um mês, na sua versão digital, as palavras do cineasta Steven Spielberg durante uma cerimónia da USC Shoah Foundation, organização por ele fundada há 30 anos.

A Fundação Shoah surgiu para coletar depoimentos de sobreviventes do massacre nazista. “Esses 56 mil testemunhos que registramos são de valor incalculável para ensinar às novas gerações o que os sobreviventes entoaram durante 80 anos. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais".

Porém, Spielberg, de ascendência judaica, foi duramente criticado em 2005 por grupos pró-Israel, que o chamaram de antissemita, após estrear sua produção na histórica cidade de Munique, na Alemanha.

Recentemente, o diretor de ‘A Lista de Schindler’ recebeu o Medalhão da USC, uma grande distinção da Universidade do Sul da Califórnia. Aliás, ele disse em seu discurso: “50% dos estudantes dizem ter sofrido algum tipo de discriminação por serem judeus. Isto também ocorre juntamente com a discriminação anti-muçulmana, árabe e sikh.” Falou sobre os preconceitos e a importância de travar o aumento do anti-semitismo e das opiniões extremistas no contexto actual.

Sobre o conflito de Gaza, afirmou: “Estou cada vez mais alarmado com o facto de podermos ser condenados a repetir a história, a ter de lutar mais uma vez pelo próprio direito de sermos judeus. Diante da brutalidade e da perseguição, sempre fomos um povo resiliente e compassivo que entende o poder da empatia.”

“Podemos enfurecer-nos contra os actos hediondos cometidos pelos terroristas do 7 de Outubro e também condenar o massacre de mulheres e crianças inocentes em Gaza”, disse Spielberg em Março passado. “Isto faz de nós uma força única para o bem no mundo e é por isso que estamos aqui hoje para celebrar o trabalho da Fundação Shoah, que é mais crucial agora do que em 1994.”

Por muitos anos tive muita sorte de passar grande parte da minha vida profissional contando histórias. As histórias são a base da história. As histórias podem ser mágicas. Eles podem ser inspiradores, aterrorizantes... podem ser inesquecíveis. E oferecem um retrato da humanidade em toda a sua beleza e tragédia. E são uma das nossas armas mais poderosas na luta contra o anti-semitismo e o ódio racial e religioso. O Holocausto, ou como os meus pais lhe chamavam “os grandes assassinatos”, é uma das histórias que ouvi enquanto crescia, comenta a Euronews sobre o três vezes vencedor do Óscar.

A Fundação Shoah, que o próprio Spielberg inaugurou um ano depois de dirigir 'A Lista de Schindler' na década de 1990, lançou um projeto, enfatizando a necessidade de paz, para documentar os acontecimentos de 7 de outubro e adicioná-los à coleção de depoimentos de testemunhas e sobreviventes de o Holocausto.

Naquele dia, mais de 1.400 pessoas morreram em território israelita, reconhece o seu exército. Enquanto outros 224 foram transferidos para Gaza, como reféns do movimento de resistência Hamas. Embora Spielberg não esteja diretamente envolvido no esforço de compilação dos testemunhos, ele expressou o seu apoio, afirma a fundação.

O eco seletivo

O mundo assiste com horror à forma como a população civil de Gaza é bombardeada impiedosamente. Um total de 36.280 palestinos morreram em ataques israelenses – a maioria mulheres e crianças – desde 7 de outubro de 2023 até o dia 239 do cerco pelas forças de ocupação em Gaza e na Cisjordânia. Os médicos escrevem em cadernos em frente aos necrotérios lotados e nos corredores dos hospitais. Eles contam os corpos que ficaram presos sob os escombros e amontoados em valas comuns, cavadas em antecipação a um novo bombardeio.

O Ministério da Saúde de Gaza regista milhares de feridos após a ofensiva israelita. “Mais de 13.000 crianças foram assassinadas”, confirmou em março o porta-voz da Unicef, James Elder, na rede social.

Fonte: Telesur

Imagem de destaque: Criança palestina de 13 anos morre de fome no centro da Faixa de Gaza após o fecho da passagem de fronteira de Rafah pelas forças israelitas (Aqui)

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