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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

A guerra de Israel contra o jornalismo

28.10.24 | Manuel

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 Por Chris Hedges

Existem cerca de 4.000 repórteres estrangeiros  acreditados  em Israel para cobrir a guerra. Ficam em hotéis de luxo. Participam em  espetáculos de cães e póneis  orquestrados pelos militares israelitas. Podem, em raras ocasiões, ser escoltados por soldados israelitas em visitas relâmpago a Gaza, onde são mostrados alegados  esconderijos de armas  ou  túneis  que os militares dizem serem utilizados pelo Hamas. Assistem obedientemente às conferências de imprensa diárias. Recebem  instruções não oficiais de altos  funcionários israelitas que lhes fornecem informações que muitas vezes se revelam falsas. São os propagandistas involuntários e por vezes intencionais de Israel, estenógrafos dos arquitectos do apartheid e do genocídio, guerreiros de quartos de hotel. Bertolt Brecht chamou-lhes acidamente porta-vozes dos porta-vozes.

E quantos repórteres estrangeiros há em Gaza? Nenhum.

Os repórteres palestinianos  em  Gaza que preenchem o vazio pagam muitas vezes com as suas vidas. São  alvo, juntamente com as suas  famílias, de assassinato. Pelo menos 128 jornalistas e trabalhadores dos meios de comunicação social em Gaza, na Cisjordânia e no Líbano, foram mortos e 69 foram detidos,  de acordo  com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, marcando o período mais mortífero para os jornalistas desde que a organização começou a recolher dados em 1992. 

Israel bombardeou na sexta-feira um edifício no sul do Líbano que alberga sete órgãos de comunicação social,  matando  três jornalistas de Al Mayadeen e Al Manar e ferindo outros 15. Desde 7 de outubro, Israel matou 11 jornalistas no Líbano.  

O operador de câmara da Al Jazeera, Fadi al-Wahidi, que foi  baleado  no pescoço no campo de refugiados de Jabalia, no norte de Gaza, por um atirador israelita, no início deste mês, está em coma. Israel  recusou  permissão para que procurasse cuidados médicos fora de Gaza. Tal como a maioria dos jornalistas visados, incluindo o seu colega assassinado  Shireen Abu Akleh , ele usava um capacete e um colete à prova de bala que o identificava como jornalista.

Os militares israelitas qualificaram de “terroristas” seis jornalistas palestinianos em Gaza que trabalham para a Al Jazeera. 

“Estes 6 palestinianos estão entre os últimos jornalistas que sobreviveram ao ataque de Israel em Gaza”, afirmou a Relatora Especial das Nações Unidas para os Territórios Palestinianos Ocupados, Francesca Albanese. “Declará-los ‘terroristas’ parece uma sentença de morte.”

A  escala  e  a selvajaria  do  ataque israelita  aos meios de comunicação social superam tudo o que testemunhei durante as minhas duas décadas como correspondente de guerra, incluindo em Sarajevo, onde os franco-atiradores sérvios visavam regularmente os repórteres. Vinte e três jornalistas foram  mortos  na Croácia e na Bósnia-Herzegovina durante as Guerras Jugoslavas entre 1991 e 1995. Vinte e dois foram mortos quando cobri a guerra em El Salvador. Sessenta e oito jornalistas foram  mortos  na Segunda Guerra Mundial e 63 foram mortos no Vietname. Mas, ao contrário de Gaza, Bósnia e El Salvador, os jornalistas não eram geralmente alvos. 

O ataque de Israel à liberdade de imprensa é diferente de tudo o que temos experimentado desde que  William Howard Russell,  o padrinho da moderna reportagem de guerra, enviou despachos da Guerra da Crimeia. O seu ataque contra os jornalistas é uma categoria à parte.

O deputado James P. McGovern e 64 membros da Câmara enviaram uma carta ao Presidente Joseph Biden e ao Secretário de Estado Antony Blinken  apelando  aos Estados Unidos para que pressionem para que Israel permita o acesso desimpedido a jornalistas norte-americanos e internacionais. Em Julho, mais de 70 meios de comunicação social e organizações da sociedade civil assinaram uma carta aberta  apelando  a Israel para permitir a entrada de repórteres estrangeiros em Gaza. 

Israel não se mexeu. A proibição de jornalistas internacionais em Gaza continua em vigor. O seu genocídio avança. Centenas de civis palestinianos são mortos e feridos diariamente. Durante o mês de Outubro, Israel  matou  pelo menos  770   palestinianos no norte de Gaza. Israel  espalha as suas mentiras  e invenções, desde o Hamas que utiliza os palestinianos como  escudos humanos, à  violação em massa  e  à decapitação de bebés, até uma imprensa cativa que as amplifica servilmente. No momento em que as  mentiras  são  expostas, muitas vezes semanas ou meses depois, o ciclo mediático já mudou e poucos se apercebem.

A censura generalizada e o assassinato de jornalistas por parte de Israel terão consequências nefastas. Corrói ainda mais as poucas proteções que já tivemos como correspondentes de guerra. Envia uma mensagem inequívoca a qualquer governo, déspota ou ditador que procure mascarar os seus crimes. Anuncia, tal como o próprio genocídio, uma nova ordem mundial, onde o assassinato em massa é normalizado, a censura totalitária é permitida e os jornalistas que tentam expor a verdade têm  uma esperança de vida muito  curta. 

Israel, com o total apoio do governo dos EUA, está a esventrar os últimos resquícios de liberdade de imprensa. 

Aqueles que fazem a guerra, qualquer guerra, procuram moldar a opinião pública. Cortejam os repórteres que conseguem domesticar, aqueles que se prostram perante os generais e, embora não o admitam abertamente, procuram manter-se o mais longe possível do combate. Estes são os “bons” jornalistas. Gostam de “brincar” aos soldados. Auxiliam  com entusiasmo na divulgação  de propaganda sob o disfarce de reportagem. Querem fazer a sua parte no esforço de guerra, fazer parte do clube. Infelizmente, constituem a maioria dos meios de comunicação social nas guerras que cobri. 

Todos os jornalistas da CNN que reportem sobre Israel e a Palestina  devem submeter  o seu trabalho para revisão pelo escritório da rede em Jerusalém antes da publicação, um escritório que é obrigado a cumprir as regras estabelecidas pelos censores militares israelitas.

Estes jornalistas e organizações noticiosas domesticados são, como  salientou Robert Fisk, “prisioneiros da linguagem do poder”. Repetem obedientemente o léxico oficial – “terroristas”, “processo de paz”, “solução de dois Estados” e “o direito de Israel de se defender”. 

O New York Times,  escreve o Intercept, “instruiu os jornalistas que cobrem a guerra de Israel na Faixa de Gaza a restringir o uso dos termos ‘genocídio’ e ‘limpeza étnica’ e a ‘evitar’ o uso da frase ‘território ocupado’ ao descrever terras palestinianas, de acordo com uma cópia de um memorando interno obtido pelo The Intercept.”

“O memorando também instrui os repórteres a não usarem a palavra Palestina ‘exceto em casos muito raros’ e a evitarem o termo ‘campos de refugiados’ para descrever áreas de Gaza historicamente colonizadas por palestinianos deslocados, expulsos de outras partes da Palestina durante o período anterior. “As áreas são reconhecidas pelas Nações Unidas como campos de refugiados e albergam centenas de milhares de refugiados registados.”

“Não há batalha entre o poder e os media”, observou Fisk. “Através da linguagem, nós tornamo-nos eles.”

O general reformado David Petraeus, um dos autores do  Manual de Contra-insurgência dos EUA de 2006, usado pelas forças dos EUA e da NATO no Afeganistão, defende que persuadir o público de que se está a ganhar – mesmo que, como no Afeganistão, se esteja  preso num lamaçal  – é mais importante do que a superioridade militar. A comunicação social domesticada é vital para perpetrar este engano. 

Depois, há os verdadeiros jornalistas. Iluminam a maquinaria do poder. Dizem a verdade, pois, como  dizia o poeta Seamus Heaney: “Existe a verdade e ela pode ser contada”. Tornam pública a crueldade, a falsidade e a criminalidade dos poderosos. Expõem a colaboração dos media domesticados.

Para os poderosos, os criadores da guerra e os meios de comunicação social domesticados, estes verdadeiros jornalistas são o  inimigo. Esta é a razão pela qual Julian Assange foi impiedosamente perseguido e perseguido durante 14 anos. A WikiLeaks  publicou  um documento de 2.000 páginas do Ministério da Defesa onde funcionários do governo britânico  equiparavam  jornalistas de investigação a terroristas. A animosidade não é nova. O que é novo é a  dimensão  do ataque de Israel ao jornalismo.

Israel não derrotou o Hamas. Não derrotou o Hezbollah. Não derrotará o Irão. Mas tem de convencer o seu próprio público e o resto do mundo de que está a ganhar. A censura e o silenciamento dos jornalistas que expõem os crimes de guerra de Israel e o sofrimento que Israel inflige aos civis é uma prioridade israelita.  

Seria reconfortante chamar a Israel uma nação atípica, uma nação que não partilha os nossos valores, uma nação que apoiamos apesar das suas atrocidades. Mas é claro que Israel é uma extensão de nós próprios. 

Como disse o dramaturgo Harold Pinter: 

A política externa dos EUA poderia ser melhor definida da seguinte forma: beija-me o rabo ou dou-te um pontapé na cabeça. O que é interessante nisto é que é um sucesso incrível. Tem estruturas de desinformação, uso de retórica, distorção da linguagem, que são muito persuasivas, mas na verdade são um amontoado de mentiras. É uma publicidade de muito sucesso. Têm o dinheiro, têm a tecnologia, têm todos os meios para se safar, e conseguem.

Ao aceitar o Prémio Nobel da Literatura, Pinter  disse: “Os crimes dos Estados Unidos têm sido sistemáticos, constantes, cruéis, implacáveis, mas muito poucas pessoas falaram realmente sobre eles. É preciso reconhecer a América. Exerceu uma manipulação de poder bastante clínica em todo o mundo, ao mesmo tempo que se disfarçou de força para o bem universal. É um ato de hipnose brilhante, espirituoso e de grande sucesso.”

O obstáculo mais importante à hipnose em massa de Israel são os jornalistas palestinianos em Gaza. É por isso que a taxa de mortalidade é tão elevada. É por isso que as autoridades norte-americanas não dizem nada. Também odeiam jornalistas de verdade. Exigem também que os repórteres se domesticem para correr como ratos de um evento de imprensa coreografado para outro. 

O governo dos EUA diz e não faz nada para proteger a imprensa porque apoia a campanha de Israel contra os meios de comunicação social, tal como apoia o genocídio de Israel em Gaza. 

Os jornalistas, juntamente com os palestinianos, serão extintos. 

Imagem: Jornalismo Catch and Kill – por Mr. Fish

Fonte

O massacre da Baixa de Cassanje

26.10.24 | Manuel

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Em outubro de 1960, os camponeses da Baixa do Cassanje recusaram receber das empresas sementes de algodão para semearem em Janeiro, queimando muitas dessas sementes – as companhias distribuíam as sementes, mas as lavras eram feitas onde os seus capatazes indicavam, por vezes a muitos quilómetros das áreas de residência. Começa a revolta que culmina com os bombardeamentos aéreos com napalm e o massacre entre Janeiro e Fevereiro de 1961. São assassinadas cerca de cinco mil pessoas – entre homens, mulheres e crianças – que são enterradas em valas comuns. Em Teka dia Kinda existem túmulos à beira da estrada de pessoas massacradas e em Canzage existem várias valas comuns, onde foram enterradas mais de cem pessoas em cada uma delas.

A Companhia Geral dos Algodões de Angola (COTONANG)

A cultura obrigatória do algodão foi adotada em Angola em março de 1947, quando o governo português atribuiu à COTONANG (Companhia Geral dos Algodões de Angola), um consórcio luso-belga criado em 1926, uma concessão de cerca de 80.000 Km2 na Baixa do Cassanje. Mais tarde, uma outra empresa, Lagos & Irmão, tornou-se igualmente beneficiária de outra extensa concessão na mesma região algodoeira.

A Baixa de Cassanje compreende as aldeias de Cambo Sunginge, Zungue, Kanzage, Wholo dia Coxi, Santa Comba (?!), Mulundo, Teca dia Kinda, Xandel, Moma, Iongo Milando e Massango (Forte República) nos municípios de Cahombo, Marimba, Cunda dia Baze e Quela.

A “economia do algodão” estava baseada no seu cultivo obrigatório, organizado através do recrutamento forçado das populações, abrangendo cerca de 150.000 camponeses, agrupados em 35.000 famílias. As companhias não pagavam salários e, no final de cada colheita (cerca de 5.000 toneladas/ano), esses camponeses eram obrigados a vender o algodão à Cotonang e à Lagos & Irmão, a preços fixos, 5 ou 6 vezes abaixo dos valores de mercado. Deste modo, os camponeses assumiam integralmente o risco das colheitas, ficando quase sempre devedores das empresas monopolistas.

O sistema era ainda agravado pelo facto de as milícias ao serviço das companhias e os cipaios dos chefes de posto impedirem outros cultivos, obrigando os camponeses a ir procurar alimentos para as famílias em áreas cada vez mais afastadas das suas aldeias, tornando endémica a fome em toda a região.
Como escreveria, logo em 08-02-1961, o Brigadeiro Fernando Pinto de Resende, Comandante da 2ª Região Aérea, “a cultura do algodão é uma exploração infame dos indígenas e, portanto, geradora do maior antagonismo para com este tipo de trabalho obrigatório” – “quando têm o infortúnio e perdem a cultura toda (…) recebem zero por um ano de trabalho”.

Como testemunha o Bispo José Kipungo, natural de Xa-Muteba (Angola nos Trilhos da Independência, Associação Tchiweka de Documentação):

"Os chefes de posto tinham os cipaios, os capatazes, que eram os que dirigiam o cultivo de algodão e sempre que notassem que um determinado povo de uma sanzala não estava a cultivar o algodão tal como o governo gostaria que fosse ou que a Cotonang exigia, então o soba era queixado e chamado e repreendido.
… Se o povo incumprisse, quem pagava era o soba. E eu assisti algumas vezes o meu pai a apanhar palmatórias a mando do Chefe de Posto.”

No Luremo o agente da Cotonang informava que “os indígenas da região da fronteira com o Congo belga andam muito indisciplinados, não cumprindo com instruções mesmo do chefe de posto, ameaçando fugirem em massa para aquele território”. Aos padres da missão do Musuku “deixaram de ter respeito...Os indígenas negam-se a trabalhar nas estradas e até ao pagamento do imposto, afirmando que do outro lado da fronteira são livres, não tendo que cumprir ordens dos brancos”.

A Revolta

Em outubro de 1960, os camponeses da Baixa do Cassanje recusaram receber das empresas sementes de algodão para semearem em janeiro, queimando muitas dessas sementes – as companhias distribuíam as sementes, mas as lavras eram feitas onde os seus capatazes indicavam, por vezes a muitos quilómetros das áreas de residência.

A população da Baixa do Cassanje era na sua maioria constituída por elementos das etnias dos Maholos e dos Bangalas, que se estendiam para lá da zona fronteiriça do rio Cuango e que, naturalmente, seguiram de perto a independência do Congo belga, em 30 de junho de 1960, partilhando aspirações e também cultos messiânicos, como o do Quimbangismo, religião sincrética fundada por Simon Kimbangu, que defendia o renascimento de África e o resgate da identidade africana.

Aparece, aliás, referido o papel destacado de um certo António Mariano – que alguns ligam às referências (messiânicas?) a “Maria”, ficando mesmo o massacre conhecido por vezes como “A Guerra da Maria”.

Em simultâneo, aparece também aludida a influência do PSA (Parti Solidaire African), dirigido por Antoine Gisenga, cujos enviados teriam inspirado e apoiado a revolta da Baixa do Cassanje. 

E aparecem referências diretas a Lúcio Lara e Mário Pinto de Andrade como “elementos que ao serviço do comunismo internacional” espalham “ensinamentos tácticos de ordem subversiva”, numa curiosa mistura da UPA, FRAIN e MPLA – tudo referido na Circular n.º 4285/61, de 21 de fevereiro de 1961, mandada distribuir pelo Comandante-Chefe das Forças Armadas de Angola, general António Miguel Monteiro Libório, que anteriormente comandara a repressão em Goa.

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Episódios

Contam os mais velhos e sobreviventes da chacina que tudo começou às primeiras horas da manhã de 4 de janeiro, 5, 6 horas, quando camponeses se rebelaram contra o esquema de escravidão implantado pelas empresas algodoeiras. Os soldados que dispararam as balas mortíferas naquela manhã tinham acampado desde as 17 horas do dia 3 de janeiro, na sede municipal do Quela e saíram de lá às primeiras horas de 4 de Janeiro”.

Na Regedoria de Kunda Dya Base, eles perguntavam (Angola nos Trilhos da Independência, ATD): «Soba Kunda, vai se apresentar?». E respondíamos: «Ninguém vai se apresentar. Já cumprimos muito. Desde os nossos bisavós, quando veio o colono, até agora, connosco. Estamos cansados. Sempre com o mesmo sofrimento. Hoje é nosso tempo. Ninguém mais vai cumprir estes mandatos. Se morrermos, mais vale a pena morrer do que ficar na escravatura».
Eles mandaram abrir fogo, dia 5 de Fevereiro. 

No dia 11 de janeiro, a 3ª Companhia de Caçadores Especiais, sedeada em Malange, destacou para Milando uma patrulha, que ali chegou na madrugada do dia 12, encontrando a população branca bastante alarmada: o chefe de posto informou, então, que os nativos das sanzalas de Ganga-Mexita e Quivota, respetivamente a 5 e 9 quilómetros da povoação, se tinham recusado a trabalhar. Na manhã do dia seguinte soube-se que fora assassinado um capataz mestiço da Cotonang. No dia 22, ocorreu idêntica rebelião em Tembo Aluma, por parte de 300 nativos.

A rebelião manifestou-se depois em Cunda-Ria-Baza, Quela, Marimba, longo e Xamuteba. Em pouco tempo a sublevação estendeu-se a toda a Baixa do Cassanje, com a adesão dos bangalas e dos maholos, sobre os quais o PSA (Parti Solidaire African) exercia forte influência e teria convencido os indígenas de que as balas dos brancos eram “Maza” (água) - perante as "nuvens de amotinados", como se escreveu nos relatórios militares, não havia "outra forma de os convencer senão mostrar-lhes que as balas dos militares não eram água (...) À custa de baixas, os povos foram acalmando e recomeçaram os trabalhos".

No dia 1 de fevereiro mais de mil nativos concentraram-se próximo de Cunda-Ria-Baza e, no dia 2, os europeus desta povoação fugiram para Malange.

No Relatório Especial de Informações de 2 de fevereiro, o Comando Militar de Angola informa o Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, em Lisboa, que “cerca de 600 trabalhadores voluntários das prospecções mineiras ao longo do rio Cuango abandonaram o trabalho".

A 4ª Companhia de Caçadores Especiais, entretanto, iniciou a "Operação Cassanje", partindo de Malange em direção a Quela, mas as tropas portuguesas foram "constantemente desprestigiadas pelas atitudes dos revoltosos que as desafiavam e insultavam, dançando em frente às viaturas, o que exigiu muito sangue frio e uma rigorosa disciplina". 

Uma das primeiras ações dos grevistas/revoltados foi, também, rasgar e queimar as Cadernetas Indígenas (ver imagem da capa), que controlavam a vida, o trabalho e quaisquer movimentações dos “indígenas”.

As populações "passaram à acção violenta, tendo saqueado, destruído e queimado as instalações da Cotonang, as casas comerciais e os edifícios dos postos administrativos de algumas localidades (Marimba, Tembo-Aluma)”. Em Quela, segundo um relatório de 6 de fevereiro, a 4ª CCE “viu-se obrigada a abrir fogo, para defesa própria": "a bazuca abriu no meio deles uma grande clareira e, sob continuação da intensa metralha, o grupo foi caindo sempre a cantar (...) 71 mortos e 41 feridos entre os indígenas revoltados”.

A tropa mandada reprimir a revolta viu as suas viaturas ficarem atascadas nas picadas, tanto mais que as populações tinham destruído pontes e pontões sobre os variados cursos de água, isolando as forças militares. E deparou-se com muitas sanzalas abandonadas e, noutros locais, com enormes concentrações populares, que foram violentamente atacadas. 

Algumas passagens dos relatórios portugueses:
• "verifiquei que junto à casa do soba estavam reunidos cerca de 10.000 indígenas, homens, mulheres e crianças, encontrando-se os homens armados";
• "esbofeteei o soba grande que caiu para o chão, mandando-o amarrar com os seus sobas e sobetas";
• "resultou a morte de 8 amotinados e muitos feridos, num total de 50 baixas”
• terão sido mortos em Teka dya Kinda 680 pessoas;
• Operação ‘Truta’ (região de Monte Papo) – resultados da ação aérea: foram confirmados 11 mortos e 21 feridos”;
• Operação ‘Raia’ (região de Muanha): Mandei abrir fogo, indicando como alvos principais o soba e os agitadores que estavam com ele; caíram todos e os outros, querendo reagir, foram abatidos também (…).resultado: 60 mortos e 80 espingardas e 150 catanas apreendidas"

A aldeia de Teca dia Kinda foi invadida por mais de cem viaturas cheias de tropas, que iam em direcção à Cunda dia Base. Encontraram a estrada obstruída por troncos de árvores e o então capitão Teles Grilo mandou abrir fogo de artilharia.

Morreram centenas de pessoas que estão enterradas em valas comuns. Em Teka dia Kinda existem túmulos à beira da estrada de pessoas massacradas. Em Canzage existem várias valas comuns, onde em cada uma foram enterradas mais de cem pessoas.

E o certo é que, depois do massacre da Baixa de Cassanje, a PIDE/DGS intensificou as acções de busca contra os negros que tinham frequentado a escola.

Utilização da Força Aérea

O exército colonialista recorreu intensivamente à força aérea para dominar a greve e a revolta na Baixa de Cassanje. 

Para o efeito, utilizou, designadamente, dois tipos de aeronave (ver imagens):
•    Auster D-5/160 (Auster Aircraft Co., Grã-Bretanha, também construídos sob licença nas OGMA - Oficinas Gerais de Material Aeronáutico)
•    PV-2 Harpoon (Lockheed Aircraft Corp., EUA), que foram sujeitos, nas OGMA, a diversas modificações para a nova missão de bombardeiro tático e apoio próximo, armados com metralhadoras de 12.7mm, bem como para operar em Angola e Moçambique, num clima tropical.

A situação na Baixa do Cassange piorava de dia para dia. A 1 de fevereiro mais de um milhar de africanos concentraram-se na área de Cunda-Ria-Baza e no dia seguinte os europeus fugiram para Malange. 

No dia 6 de fevereiro, a Força Aérea interveio pela primeira vez, com um PV-2 Harpoon que bombardeou em redor da picada em que tentava progredir uma coluna militar de Quela para Montalegre.

A 9 de fevereiro, um dos PV2 atacou “uma concentração hostil” na zona de Marimba, lançando uma bomba de 45 Kg a cerca de 150m de altitude, aparentemente sem espoleta de retardamento, o que originou perfurações em diferentes áreas do avião.

Oa aviões Auster começaram a utilizar oficiais do Exército como “bombardeiros” para dispersar grupos hostis. O oficial levava uma caixa de granadas defensivas entre os pés, que eram lançadas, uma a uma, sobre os bandos hostis. Em três dias, 18, 23 e 24 de fevereiro, foram realizados destes “bombardeamentos” causando baixas e pânico entre os bandos rebeldes.

As granadas eram também lançadas tirando-lhes a cavilha e metendo-as dentro de um jarro de vidro que, partindo-se no impacto com o chão, libertava a alavanca. Desta forma, artesanal, os aviões, relativamente lentos, não eram atingidos pela explosão, mas causavam ferimentos graves entre os grupos visados.

Frequentemente “as bombas enterravam-se na lama e não explodiam, frustrando os pilotos”.

Inicialmente, os pilotos avistavam concentrações das populações locais, mas não as viam como inimigas. A “situação foi corrigida” e os pilotos dos PV-2 passaram a fazer “demonstrações de fogo, lançamento de bombas e passagens a baixa altitude de maneira a dispersar os grupos”.

Durante a “Operação Cassange”, os PV-2 Harpoons realizaram 28 saídas da BA9 em Luanda e os Auster voaram muitas mais a partir de Malange.

Conclusões

Esta utilização de meios aéreos para esmagar a revolta da Baixa do Cassange constitui, seguramente, um dos maiores crimes do colonialismo português na segunda metade do século XX, desconhecendo-se, ainda hoje, o número de vítimas provocadas quer pelos meios terrestres, quer pelos meios aéreos.
As autoridades portuguesas admitem centenas de mortos mas nunca vão longe no detalhe, ignorando sempre os resultados dos bombardeamentos e preferindo desmentir os testemunhos existentes.

O major piloto-aviador José Ervedosa, que participou nas ações aéreas na Baixa de Cassanje, vindo a desertar, referiu que 17 aldeias foram destruídas e cerca de 5.000 homens, mulheres e crianças terão sido mortas na Baixa de Cassanje, designadamente pelo uso de bombas de napalm.

Quatro meses depois, a 2 maio de 1961, o ministro do Ultramar, Adriano Moreira, assinou o Decreto-Lei 43.639, que acabou com a cultura obrigatória do algodão nas actuais zonas algodoeiras, devendo decorrer "sob a orientação técnica da Junta de Exportação do Algodão" e, "fora das actuais zonas algodoeiras a cultura do algodão depende de autorização do governador da província, ouvida a Junta". 
A 17 de junho, o mesmo ministro assinaria a Portaria n.º 18.539, que reabriu o Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde.

Ver, em especial:
- Dossier Baixa de Kassanje, 1961, publicado no Novo Jornal, Luanda, 18 de janeiro de 2013;
Site http://4cce.org/index.html. da 4.ª Companhia de Caçadores Especiais, Angola, 1960-1962.

Foto de destaque: Pessoas relembram os seus mártires – 4 de Janeiro, Dia  dos Mártires da Repressão Colonial.

Fonte

Por que razão é negado à Palestina o direito de resistir? Empatia e tristeza apenas pelos judeus?

23.10.24 | Manuel

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Comentário de Hochblauen

Por Evelyn Hecht-Galinski

É chocante ver como a Alemanha ignora o sofrimento dos palestinianos. Um ano de cumplicidade alemã e de persistente unilateralidade mediática culminou na recordação unilateral da Alemanha. Quando o Bundestag celebrou as “vítimas do ataque do Hamas” a 10 de outubro de 2024, foi um acontecimento triste e unilateral apresentado aos cidadãos. O lado israelita foi retratado unilateralmente como uma vítima; nem a história que levou ao 7 de Outubro, nem a ocupação que violou o direito internacional, nem o colonato ilegal e a expulsão dos palestinianos foram discutidos. Mas quando o Chanceler Scholz se levantou para ficar ao lado do líder do grupo parlamentar do SPD, Mützenich, e defendê-lo após os ataques do líder da oposição Merz e rapidamente assegurou: “As armas continuarão a ser e têm sido entregues”, então a Alemanha finalmente decidiu-se pelo apresentado o lado errado da história e deixou claro que não está disposto a levar a sério o hipócrita “nunca mais”, mas continua a ser cúmplice. (1)(2)

Empatia pelo genocídio?

O que se espera realmente de um Presidente do Conselho Central dos Judeus, tendo em conta os mais de 42.010 palestinianos mortos e 97.720 (9 de Outubro de 2024) feridos em Gaza desde 7 de Outubro, incluindo 16.756 crianças e 11.946 mulheres (juntas 69 por cento)? Empatia! Mas nenhum! A principal revista médica do mundo, The Lancet, acredita que é plausível que tenham ocorrido 186 mil mortes na actual guerra em Gaza. São números inimagináveis ​​e destruição em Gaza, que foi em grande parte arrasada. Nenhuma palavra dos representantes oficiais sobre isso. É quase um escárnio quando o Presidente Schuster se sente no limite e não tem empatia pelos judeus e por Israel. Como se pode sentir empatia pelo genocídio, pelos massacres cruéis e pelos soldados israelitas desinibidos que, por vezes, matam por “tédio” ou “disparam livremente” (3). – Apoiado por “acima” – está a tomar medidas contra os palestinianos em Gaza ou agora no Líbano – com já 2.119 mortos e 1,2 milhões de pessoas deslocadas em fuga.

O verdadeiro problema não é o anti-semitismo, mas sim a difamação de qualquer crítica a Israel como “ódio a Israel” ou pior, como ódio aos Judeus. O facto é que o “Estado Judeu de Israel”, que tem como objectivo expulsar, limpar etnicamente ou matar palestinianos desde a fundação do Estado, sempre teve como objectivo conscientemente manter o estatuto de vítima, que não quer nada excepto com uma “mão estendida ”. Para viver a paz com os seus vizinhos. Nada disto é verdade, pode-se e deve repetir-se uma e outra vez, Israel foi e é sempre o ocupante e governante absoluto sobre os palestinianos, com o “objectivo final” da judaização. Era previsível e planeado que esta abordagem não pudesse ser aceite sem contestação a longo prazo. Ah, sim, quando se fala de trauma, provavelmente aplica-se mais aos palestinianos, que têm vivido o seu trauma sionista durante décadas. Enquanto os israelitas traumatizados, quando têm de deixar as suas casas de ocupação, têm bunkers onde podem cuidar do trauma de forma descontraída. A ocupação e a opressão cobram um preço e os israelitas também tiveram de o viver dolorosamente. Lembre-se, não é a ocupação e a opressão que cria a coexistência pacífica, mas sim a convivência em pé de igualdade entre iguais.

Condenação do grito desesperado na luta pela liberdade?

O 7 de Outubro tem como pano de fundo a fuga da prisão a céu aberto, da total vigilância, controlo e isolamento, o grito desesperado e a fuga na luta pela liberdade. Imediatamente o coro ocidental, liderado por Israel, ressoou: “Terroristas” e o pior assassinato de judeus desde o Holocausto. O dia 7 de outubro não foi tão surpreendente como parece. A estação de televisão israelita KAN TV informou sobre um documento que a Divisão de Gaza tinha preparado e que descrevia a sequência planeada de acontecimentos em que o Hamas faria reféns e citou uma fonte de segurança israelita dizendo que o documento era também conhecido pelos serviços secretos israelitas . O número de israelitas capturados na operação foi quase exatamente o previsto no documento publicado. No dia 7 de Outubro, centenas de pessoas foram também mortas pela mortífera “Diretiva Aníbal” ou “fogo amigo”. (4)(5) Nada sobre isto nos media alemães, muito menos “ficar ao lado de Israel” nas celebrações hipócritas. Sim, há de facto uma conflagração que está agora a espalhar-se desde Gaza, na Cisjordânia, até às profundezas do Líbano. (6) Pode parecer que tudo foi cuidadosamente planeado com antecedência. Do Hamas ao Hezbollah, e ainda por cima vem o ataque contra o Irão. Que plano de destruição! Também aí, mais de 2.000 libaneses foram mortos e mais de um milhão fugiram. É como uma cópia de Gaza, pois parece ter como modelo Gaza sob a direcção mortal de Netanyahu. Assassinatos seletivos, desenfreados, quase desencadeados num “frenesim de eliminação”. Netanyahu parece tão seguro no seu poder que governa longe da justiça e do castigo, como o “Melech Israel” sem coroa num “Grande Israel” do mar ao rio sem os palestinianos. Afinal, ele está mais longe do que nunca de um Estado palestiniano;

Uma escritora israelita que admiro muito, Lizzie Doron, disse exatamente as palavras da FAZ de 7 de outubro de 2024 que também me emocionam aqui. “Sou um inimigo no meu próprio país.” Passo a citar: Quando questionada sobre a responsabilidade do governo federal, Lizzie Doron afirmou: “Gostaria que o governo alemão fosse mais crítico em relação às ações do governo israelita. Penso que a Alemanha está comprometida com os valores morais por causa do seu passado e não com o governo israelita. Deveria trabalhar contra a guerra, contra a ocupação, contra a desumanização, deveria trabalhar para garantir que todas as pessoas usufruíam dos mesmos valores. É errado que a Alemanha coloque Israel no papel de vítima para toda a eternidade. Os sentimentos de culpa pelo passado não devem determinar as suas ações hoje. A responsabilidade deve surgir deles. Gostaria que o governo alemão falasse em nome dos liberais israelitas, que hoje estão completamente isolados.” Fim de citação (7)

Empatia por um regime fascista, profundamente racista e violento?

Os reféns também não parecem particularmente importantes para Netanyahu; Entretanto, os familiares dos reféns não só sentem que não estão a ser muito bem tratados pelo governo, como também sentem que estão a ser enganados com “banhões”. Netanyahu coloca a sua sobrevivência política acima de tudo, por isso os reféns não estão na linha de prioridade. Será ainda compreensível que os países de “valores” ocidentais, que se descrevem como defensores da democracia e dos direitos humanos, estejam a apoiar activamente o genocídio em Gaza, os assassinatos selectivos e a agressão militar por parte do regime sionista com entregas de armas?

Este Estado sionista - surgido da Nakba, fundado com o mito da "única democracia no Médio Oriente", do "farol moral e social", da "luz entre os povos", bíblico (Isaías) - abusa do destino universal da Israelitas como mentores de liderança moral para o mundo inteiro. Este “Estado judaico” degenerou num estado colonial ocidental obscuro com um regime de terror estatal sionista-fascista, profundamente racista e violento – num estado genocida e de apartheid completamente dependente da misericórdia dos EUA. Um Estado só tem o direito de existir se for um Estado dentro das suas fronteiras para todos os grupos étnicos e religiões com direitos e obrigações iguais. Só tal estado pode encontrar apoio. Esta cumplicidade ocidental, que tornou possível este genocídio e judaização impunemente e que os acompanhou através dos meios de comunicação social durante décadas, deve finalmente chegar ao fim. Porque é que todas as resistências, como a do Gueto de Varsóvia ou da antiga RDA, são celebradas, enquanto a resistência muçulmana e palestiniana é combatida e condenada como terror?

Direito a resistir!

O direito à resistência também se aplica aos palestinianos! Os milhares de palestinianos que morreram inocentemente como civis ou na resistência por uma vida livre na Palestina têm a minha empatia e lamento por eles. Para mim, estas são as lições que aprendi no dia 7 de outubro. (8) Apelo a todos os que ainda têm sentido de justiça e humanidade que coloquem uma vela à janela todas as noites.

Os Seus Mortos – Dos Palestinianos aos Sionistas

Por Erich Fried

Você está morto

os seus pais e avós mortos

os seus irmãos e irmãs mortos

que sempre se refere

os seus mortos quem são o seu trunfo

os seus mortos pelos quais se deixou receber dinheiro

como compensação

já não são os seus mortos

Você perdeu os seus mortos

porque está morto

estas foram as vítimas dos assassinos

os justos os oprimidos:

Os impotentes, os perseguidos

os combatentes da resistência assassinados

e os seus filhos

esses foram os seus mortos

Mas agora vocês tornaram-se adoradores do poder e assassinos

e lançar bombas às suas vítimas se elas resistirem

Expulsas os impotentes das suas cabanas humildes

Você vem chacoalhando em tanques de corrida

Deixa-se o veneno em spray

chovendo dos seus aviões

nos nossos campos

e o seu napalm nas nossas mulheres e crianças

Acha que os seus mortos o reconheceriam?

escondido nos seus tanques e aviões de combate?

Os seus mortos passaram para nós

Vítima para vítima

Perseguido para perseguido

pois os assassinados são irmãos e irmãs dos assassinados

e não a dos assassinos

Os teus mortos não querem mais te conhecer

É por isso que é melhor parar de se referir aos seus mortos

deixar o mundo em silêncio cada vez que mata

É por isso que é melhor não fazer mais nada

como se fossem o que você é

como se ainda fossem os seus verdadeiros filhos e netos

pois cometeste traição contra a vida e a morte deles

quando entrou no serviço do mesmo pedido

que atormentou e matou os seus mortos

Os seus mortos são agora convidados dos nossos mortos

Estão a tentar garantir que talvez esteja apenas

faça o que faz por ignorância e estupidez

Mas os seus mortos dizem que sempre foi tão inteligente

as crianças mais inteligentes do mundo

e já não te conseguem entender

E querem confortar os nossos mortos e dizer

que só o poder dos poderosos o tentou e confundiu tanto

e que talvez ainda o veja e ainda assim volte

em vez de morreres de tal maneira que os teus mortos já não te conheçam.

Notas de rodapé:

https://www.sueddeutsche.de/politik/ruestungsexporte-scholz-kuendigt-weitere-Waffenlieferen-an-israel-an-dpa.urn-newsml-dpa-com-20090101-241010-930-256665

https://www.zeit.de/politik/deutschland/2024-10/bundestag-gedenken-7-oktober-hamas-attack-israel-antisemitismus

https://www.972mag.com/israeli-soldiers-gaza-firing-regulations/

https://www.palestinechronicle.com/israeli-army-intelligence-knew-of-october-7-plan-kan/

https://electronicintifada.net/content/how-israel-killed-hundreds-its-own-people-7-october/49216

https://www.aljazeera.com/news/2024/10/8/israels-netanyahu-warns-lebanon-could-face-destruction-like-gaza

https://www.faz.net/aktuell/feuilleton/debatten/lizzie-doron-ueber-ein-jahr-krieg-in-israel-und-ihre-verlorene-identitaet-110029242.html

https://www.aljazeera.com/news/longform/2024/10/8/know-their-names-palestinian-families-killed-in-israeli-attacks-on-gaza

Evelyn Hecht-Galinski, filha do antigo presidente do Conselho Central dos Judeus da Alemanha, Heinz Galinski, é jornalista e autora. Escreve regularmente os seus comentários para o NRhZ de “Hochblauen”, a “montanha local” de 1.165 m de altura em Baden, onde vive com o seu marido Benjamin Hecht. (http://sicht-vom-hochblauen.de/) Em 2012 foi publicado o seu livro “O Décimo Primeiro Mandamento: Israel tem permissão para fazer tudo”. Editado por tz-Verlag, ISBN 978-3940456-51-9 (impresso), preço 17,89 euros. A 28 de setembro de 2014, foi galardoada com o quarto “Prémio Colónia Karls de Literatura e Jornalismo Comprometidos” do NRhZ.

Publicado no Neue Rheinische Zeitung (NRhZ), edição 837, 11 de Outubro 2024.

Quando o Rio Sena se encheu de sangue: o massacre dos argelinos em Paris

21.10.24 | Manuel

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Centenas de imigrantes argelinos foram massacradas pela polícia francesa durante a manifestação da Frente de Libertação Nacional, que lutava contra o projeto colonial do país e pela independência da Argélia

Estevam Silva

Há 63 anos, em 17 de outubro de 1961, a Polícia Nacional Francesa iniciava o assassinato em massa de imigrantes argelinos que viviam em Paris. Os imigrantes foram atacados durante uma manifestação organizada pela Frente de Libertação Nacional — movimento que lutava pela independência da Argélia. Centenas de argelinos foram espancados até a morte ou jogados no Rio Sena com os braços amarrados, para que morressem afogados. Estima-se que até 300 pessoas foram assassinadas durante o Massacre de Paris. As autoridades francesas levaram décadas para reconhecer oficialmente a matança.

Invadida pela França em 1830, a Argélia foi submetida a um projeto colonial dos mais opressivos. O governo francês confiscou as terras dos nativos e as redistribuiu entre os colonos europeus, levando ao empobrecimento e à marginalização do campesinato. O regime de segregação étnica imposto pela França destituiu a população autóctone de seus direitos civis e políticos, ao mesmo tempo em que as tradições culturais e religiosas dos nativos foram fortemente reprimidas.

A crescente insatisfação dos argelinos insuflou o surgimento de um movimento nacionalista nos anos 30, levando à criação do Partido do Povo Argelino. O movimento emancipacionista se intensificou após o início da Segunda Guerra Mundial. Em 1943, Ferhat Abbas publicou o Manifesto do Povo Argelino, conclamando a população à rebelião. Dois anos depois, um grande movimento insurrecional eclodiu nas cidades de Sétif e Constantina. E em 1954, as organizações autonomistas se uniram para criar a Frente de Libertação Nacional da Argélia (FLN), que logo se tornaria o principal movimento ativo na luta pela independência.

A Guerra de Independência Argelina teve início ainda em 1954, quando a FLN lançou uma série de ataques contra postos militares e administrativos franceses. A resposta francesa foi brutal, com a mobilização de centenas de milhares de soldados e o estímulo à formação de milícias de colonos. O conflito foi caracterizado pela violência extrema, com a ocorrência de sucessivos massacres contra a população argelina. Os soldados franceses fizeram uso abundante de tortura, estupro e assassinato em massa de civis. A fim de limitar o recrutamento de combatentes pela FLN, os franceses confinaram a população rural argelina em campos de concentração.

A guerra dividiu a população francesa, com setores progressistas condenando o colonialismo e a brutalidade das operações militares e os conservadores exigindo que a Argélia permanecesse como uma colônia. O conflito político em torno da guerra levaria ao colapso da Quarta República Francesa e ao retorno de Charles de Gaulle ao poder. A princípio, de Gaulle tentou manter a Argélia sob controle francês, prometendo a concessão de certo nível de autonomia aos argelinos, mas a proposta foi prontamente rechaçada pela FLN. Sob crescente pressão internacional e doméstica, o líder francês seria forçado a reconhecer o direito dos argelinos à autodeterminação.

A mudança de postura de de Gaulle enfureceu setores do exército e os colonos franceses, levando à criação da Organização do Exército Secreto (OAS) — um grupo paramilitar de extrema-direita, que tentou assassinar de Gaulle e realizou uma série de chacinas e ataques terroristas contra a população argelina. Os combates entre franceses e argelinos também seriam travados em solo francês. Em 1955, foi fundada a Federação Francesa — um destacamento da FLN atuante na própria França, destinado a mobilizar a comunidade de imigrantes argelinos na luta pela independência.

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A manifestação mobilizou cerca de 40 mil pessoas — homens, mulheres e crianças, vindos dos subúrbios e dos bairros de lata, desarmados e marchando pacificamente

Em 1958, após a realização de uma ofensiva da FLN que matou três policiais em Paris, as autoridades francesas iniciaram uma campanha de repressão à comunidade argelina da cidade. Mais de 5.000 argelinos foram encarcerados em campos de concentração e outros milhares foram submetidos à prisão domiciliar.

A Polícia Nacional Francesa era particularmente violenta com os imigrantes. A corporação abrigava um grande número de agentes egressos do regime de Vichy, que colaboraram ativamente com a Gestapo e as demais organizações nazistas — a começar pelo chefe da polícia parisiense, Maurice Papon. Simpatizante do ideário nazista, Papon seria futuramente condenado por crimes contra a humanidade, por ter auxiliado no envio de judeus para campos de extermínio durante a Segunda Guerra.

Os agentes franceses iniciaram uma verdadeira caçada aos argelinos, aterrorizando os bairros de imigrantes durante as batidas e patrulhas policiais. Prisões arbitrárias, espancamentos, torturas, desaparecimentos e execuções sumárias tornaram-se comuns. Iniciou-se nessa época o hábito dos policiais jogarem imigrantes com as mãos amarradas no Rio Sena, para que morressem afogados. Os abusos não se limitavam aos argelinos — outros imigrantes oriundos do Magreb, sobretudo tunisianos e marroquinos, também eram alvos da polícia.

A repressão à comunidade argelina se intensificou a partir de agosto de 1961, quando a FLN realizou uma campanha de bombardeios contra instalações policiais. Na ocasião, o chefe da polícia, Maurice Papon, prometeu que para cada agente francês tombado, dez argelinos seriam mortos. Pouco tempo depois, Papon impôs um toque de recolher específico para os argelinos e muçulmanos, proibindo-os de saírem às ruas das 20h30 às 5h30 da manhã.

Reagindo à crescente violência policial e ao cerceamento dos direitos dos imigrantes argelinos, a FLN conclamou toda a comunidade argelina a comparecer a uma grande manifestação para protestar contra o toque de recolher e exigir o fim da repressão. O protesto foi marcado para o dia 17 de outubro de 1961. As autoridades francesas não autorizaram a realização do ato, mas os argelinos compareceram em peso mesmo assim. A manifestação mobilizou cerca de 40 mil pessoas — homens, mulheres e crianças, vindos dos subúrbios e dos bairros de lata, desarmados e marchando pacificamente pelas ruas da região central de Paris.

A reação policial foi bestial. Papon instigou abertamente os policiais a matarem os argelinos, garantindo imunidade processual aos agentes. A operação foi informalmente apelidada de “Ratonnade”, ou “caça aos ratos”. Os policiais arquitetaram emboscadas, bloqueando estações de metrô e trem e fechando as ruas e avenidas que serviam de acesso para os locais dos atos. Quando se deparavam com os bloqueios, os manifestantes argelinos eram violentamente espancados — em muitos casos, até à morte. Dezenas de pessoas, incluindo crianças, foram mortas a coronhadas e a golpes com objetos perfurantes. Houve até mesmo registro de argelinos sendo enforcados em árvores.

As forças policiais atacaram as colunas de manifestantes que marchavam pelo Quartier Latin e pela Champs-Élysées. Um grupo com aproximadamente cinco mil manifestantes conseguiu furar o bloqueio e marchar rumo à Ópera Garnier. Eles foram interceptados pelos policiais, que abriram fogo contra a multidão, matando várias pessoas.

Uma das cenas mais tétricas ocorreu junto à Ponte de Neuilly, onde os policiais encurralaram um grupo de manifestantes. Todos os argelinos capturados na ponte foram nocauteados ou amarrados para serem atirados no Rio Sena. O mesmo ocorreria com os argelinos levados à sede da polícia parisiense. Após passarem por longas sessões de tortura, onde sofreram mutilações e todo tipo de abuso, as vítimas foram jogadas no rio.

Cerca de 14 mil argelinos foram presos e levados para o Parc des Expositions e para o Estádio Pierre de Coubertin. Nesses locais, os imigrantes foram novamente torturados e espancados. Muitos tiveram seus dedos cortados por um “comitê de boas-vindas” ao chegarem nas instalações. Outros foram sumariamente executados ou morreram em função dos maus-tratos.

Inúmeros cadáveres foram encontrados boiando nas águas do Sena nas semanas seguintes. A repressão aos argelinos continuou ao longo de todo o mês de outubro. Os imigrantes eram interceptados no transporte público ou em suas próprias residências e levados aos centros de detenção. Alguns foram deportados para a Argélia e jogados em campos de concentração, administrados pelas autoridades coloniais.

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Deportação ilegal de cidadãos franco-argelinos

Não se sabe o número exato de vítimas do Massacre de Paris. Estima-se que entre 200 e 300 imigrantes argelinos foram assassinados. O governo francês se esforçou para ocultar os registros documentais da matança. No relatório policial divulgado no dia 18 de outubro, a polícia francesa afirmou que apenas três pessoas morreram durante os protestos — dois argelinos e um francês. Essa versão seria incorporada pela historiografia oficial francesa e imposta pelos órgãos de censura. Todos os documentos sobre o massacre foram postos sob sigilo. A imprensa francesa também contribuiu para ocultar os acontecimentos, corroborando o relato oficial do governo e apontando os argelinos como os incitadores da violência.

Foi somente na década de 1990 que o massacre voltou a ser discutido, quando documentos policiais perderam a classificação de confidencialidade e historiadores como Jean-Luc Einaudi e Jean-Paul Brunet trouxeram à tona as atrocidades. O livro “La Bataille de Paris”, publicado por Einaudi em 1991, despertou grande interesse pelo massacre, forçando a reabertura dos registros originais, que, por sua vez, derrubaram a versão oficial sustentada pelo governo francês.

Em outubro de 2001, a prefeitura de Paris reconheceu oficialmente a existência do massacre e instalou uma placa memorial em homenagem às vítimas junto à Pont Saint-Michel. Em 2012, no 51º aniversário do massacre, o presidente François Hollande reconheceu a responsabilidade do Estado francês pelas mortes. Mais recentemente, em 2021, Emmanuel Macron também condenou formalmente o massacre, mas se recusou a emitir um pedido formal de desculpas em nome do Estado francês. Nenhuma investigação ou punição foi aberta contra os responsáveis — todos protegidos pelo decreto de anistia emitido após a Guerra de Independência Argelina.

O massacre foi rememorado pelos atletas da Argélia em julho de 2024, durante a abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Enquanto navegavam pelo Sena, os argelinos atiravam rosas, homenageando seus compatriotas que foram jogados para a morte no rio.

Imagem de destaque: “Aqui nós afogamos os argelinos”; grafite na Pont Saint-Michel - Wikimedia Commons/L’Humanité.

Imagens: BBC: News

Fonte: Aqu

Reflexões sobre a vida e obra de António José da Silva, o Judeu

18.10.24 | Manuel

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Por João Paulo Seara Cardoso

Há na Glória Padecer

Tão alegres que viemos,
E tão tristes que nos tornamos.

(Vida do Grande D.Quixote de La Mancha e do Gordo D. Quixote)

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Princípio

António José da Silva, O Judeu, constitui um caso singular na história do teatro português. Luís de Freitas Branco apelida-o de fundador da ópera nacional. Teófilo Braga considera-o um mártir da Inquisição. Há, por outro lado, uma evidente constatação: sem o Judeu, teriam decorrido trezentos anos da nossa história teatral (entre Gil Vicente e Garrett) sem dramaturgos com obra digna de relevo.

O Judeu vive num particular período (primeira metade do séc. XVIII) político social, que corresponde ao reinado de D. João V, monarca Magnânimo que, vivendo no pleno dos ideais barrocos, em tudo o que estes representavam de luxúria, de ostentação e de prazeres do espírito, se fazia rodear de uma faustosa corte, que se alimentava dos fabulosos lucros do ouro do Brasil. Este bem-estar da realeza e da nobreza protegida ofuscava, na verdade, as misérias de uma sociedade desestruturada do ponto de vista social e economicamente degradada. A Igreja constituía-se como um segundo poder dentro do estado e a Inquisição atuava impiedosamente sobre a heresia religiosa, perseguindo nomeadamente judeus e cristãos-novos.

A família de António José mantinha residência no Brasil desde que os seus trisavós maternos haviam emigrado para a colónia, fugidos do Santo Ofício, por práticas judaizantes. Durante algum tempo milhares de judeus tinham vivido em paz em terras brasileiras. Mas, em 1711, tinha António José seis anos, toda a sua família é obrigada a abandonar o Rio de Janeiro e a regressar a Portugal na sequência de uma intensificação da atividade inquisitorial na colónia.

Fixam residência em Lisboa e João Mendes da Silva, seu pai, retoma a sua atividade de advogado. António José estuda, ao que parece, no Colégio de Santo Antão e, em 1722, inscreve-se no curso de Direito da Universidade de Coimbra.

É José Oliveira Barata, o maior e mais sério estudioso do Judeu, que descobre as assinaturas, pela mão do Judeu, nos Livros de Matrículas no Curso de Cânones, entre 1722 e 1725.

Em 1726 é obrigado a interromper os seus estudos, que ao que se pensa não viria a retomar, regressando a Lisboa onde o aguardava o seu primeiro processo inquisitorial. Entretanto, o Santo Ofício já prendera a sua mãe, Lourença Coutinho, e os seus dois irmãos, André e Baltasar. Em 13 de outubro de 1726 António José é encarcerado nos Estais (sede da Inquisição, ao Rossio, onde hoje existe o Teatro Nacional D. Maria II) e duramente torturado. Do seu processo (Inquisição de Lisboa, processo nº 3464), consta que “o réu, despojado dos vestidos que podiam servir de embaraço ao dito tormento, foi lançado no potro, e começado a atar, lhe foi notificado por mim, notário, em nome dos senhores inquisidores, que se naquele momento morresse, quebrasse algum membro, perdesse algum sentido, a culpa seria sua e não dos senhores inquisidores e mais ministros que foram na sua causa”. Sai ao fim de dez dias de tortura impiedosa, os seus bens confiscados e condenado a pena de cárcere e hábito penitencial perpétuo e ainda a ser instruído nos mistérios da fé.

Aos vinte e um anos, o curso de Direito interrompido, enredado nas malhas da brutal Inquisição, António José terá encontrado a sua forma de viver e sobreviver trabalhando nos escritórios de advocacia do pai e do irmão Baltasar. Passando ao lado da polémica acerca do facto do Judeu ter ou não terminado o curso de Coimbra, não há dados factuais que nos permitam reconstituir a sua vida até 1733 (“seis anos enigmáticos”, diz Barata), quando abre o Teatro do Bairro Alto e nele se representa a sua primeira ópera, A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança. Sabe-se apenas que morava no Socorro, paredes meias com o local mais movimentado, em termos teatrais, da Lisboa Joanina, o Pátio das Arcas. É por demais evidente que este terá sido um dos factos determinantes para que o homem de direito se tornasse num dos mais importantes dramaturgos portugueses.

(*) Mote que glosou de repente Antº José da Silva qdo estava na Relação para hir a queimar de Garrote em 18 de outubro de 1739. Diz a lenda que o Judeu terá composto umas décimas com o mote há glória no padecer, há na glória padecer, às portas da Relação, a meio do percurso que o conduziria à fogueira. Mais crível que tenham sido escritas pelos seus amigos da companhia do Teatro do Bairro Alto, que o acompanharam.

Meio

Desde o período da dominação castelhana, que o pujante teatro espanhol do Siglo de Oro se impusera em Portugal, aliás, um pouco por toda a Europa, e a produção teatral de raiz nacional era insignificante e muito influenciada pelo modelo espanhol. Há mais de um século que, pelos pátios das comédias, (recintos teatrais encaixados em espaços interiores do casario da cidade, em forma de ferradura, nos quais o público se posicionava no chão, em frente do palco, ou em galerias dispostas à volta do espaço) passavam as companhias do país vizinho apresentando um reportório que fazia grande sucesso junto do público popular, da burguesia e da nobreza arruinada que frequentavam o Bairro-Alto.

O teatro de A.J. da Silva não podia, pois, deixar de refletir influências notórias da comédia espanhola do séc. XVII, nomeadamente dos seus maiores expoentes, Lope de Vega e Calderon. Do primeiro, adota o Judeu o rigor formal da obra poética. Aliás, a arte de escrever comédias encontrava-se muito influenciada pela Arte Nuevo, um conjunto detalhado de cânones, redigidos por Lope, que pretendiam normalizar ou aconselhar o trabalho do escritor de comédias. De Calderon bebe o Judeu o espírito revolucionário mais de acordo com os ideais do Barroco, nomeadamente no que se refere à influência do melodrama e posteriormente da ópera que, surgida em Itália, rapidamente alastrava pelos palcos europeus.

António José é, pois, um homem do Barroco, que como criador vive em pleno o espírito dos tempos e, assim, aspira a uma nova arte teatral, menos vinculada à retórica e mais voltada para o deleite dos sentidos, que marcará definitivamente o teatro português. É na forma e na estrutura dramática que o Judeu inova. Por um lado escrevendo em prosa, uma novidade, já que “a prosa deixara de se usar no teatro desde Sá de Miranda, Camões e António Ferreira”; por outro, incorporando a música na intriga dramática, criando um modelo original de transição entre a comédia espanhola e o melodrama italiano e dando início, de forma incipiente, ao projeto da ópera nacional. Curiosamente, um regresso às grandes origens, já que os elementos: representação, recitativos em verso e canto, constituem uma espécie de síntese dos elementos da tragédia grega.

O Barroco, cuja génese se encontra fortemente associada à contrarreforma, constitui-se como um movimento de consciência que pretende reintroduzir a espiritualidade na criação humana, como reação ao classicismo, ao racionalismo pagão renascentista. A arte barroca já não repousa no equilíbrio, na simetria, na linha reta e na perspetiva, mas numa certa desordem, no desenho curvilínio, numa sensualidade exuberante que apela aos sentidos.

De que forma se refletem esses ideais no teatro? Através de uma representação exuberante, do recurso ao maravilhoso, de diálogos engenhosos ao serviço de intrigas que propiciam malabarismos de ilusão que deleitam os espectadores e os surpreendem a cada passo. Surgem as cenografias ilusórias, as tramoias espetaculares com frequentes mutações de cena garantidas por sofisticados mecanismos. Animam-se as ondas do mar, as nuvens do céu, as trovoadas e os raios, constroem-se máquinas sonoras poderosas, fazem-se descer ao palco os deuses do Olimpo, na cena irrompem sereias e dragões, e tudo se funde ao serviço de uma arte espetacular, de um grande teatro da ilusão.

“A “comedia de teatro”… apresentava-se triunfante e capaz de conquistar as plateias do espaço ibérico barroco. Oferecia um mundo tridimensional, composto de texto poético , efeitos visuais, sonoros e musicais, tudo enriquecido por uma forte componente visual (edifício, cena, vestuário, atores, mutações). Assim se procurava combinar numa mesma arte- antecipando Wagner! - o fónico e o visual, ou se se preferir, a combinação simbiótica entre o corporal e o espacial.”
José Oliveira Barata, História do Teatro em Portugal (séc. XVIII), António José da Silva (o Judeu) no Palco Joanino

É no Teatro do Bairro Alto, uma sala do Conde de Soure, na rua da Rosa, adaptada às lides teatrais, e também chamada Casa dos Bonecos, que António José faz representar entre 1733 e 1739 as oito óperas que lhe são atribuídas: D. Quixote (1733), Esopaida ou Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e O Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona e As Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738), esta última quando já se encontra encerrado nos cárceres da Inquisição.

Na Dedicatória à mui Nobre Senhora Pecúnia Argentina, que surge nas páginas do Teatro Cómico Português, existe uma deliciosa descrição do ambiente do Teatro do Bairro Alto, em dias de representação:

“… tudo anda num corropio, o porteiro se ataranta, o arrumador se titubeia, o chocolate se derrama, o doce desaparece; as luzes parecem estrelas, as arquiteturas dóricas, as vozes harmoniosas, os instrumentos mais se apuram, os cantores mais se afinam, os duos mais se ajustam, os bastidores não necessitam de sabão para correr; e finalmente até parece que a alma do arame no corpo da cortiça lhe infunde verdadeiro espírito e novo alento.”

As comédias do Judeu, que ele denomina de óperas joco-sérias, correm ao longo de dois planos e de uma dupla intriga: o fantástico e a realidade, o discurso sério e o gracioso, os poderosos e os criados, o amor nobre e o amor prosaico, o mundo sobrenatural e o mundo dos humanos. Assim se desenvolve uma estratégia dramatúrgica que permite um constante zapping entre espaços e situações, contribuindo para o progresso da intriga e para a comicidade da peça.

Seis das obras do Judeu inspiram-se em episódios da mitologia grega bem conhecidos do público setecentista e exaustivamente explorados pelos poetas dramáticos. Note-se que, à época, o conceito de plágio era bem diferente daquele que hoje conhecemos. E os autores escreviam quase sempre a partir de temas e mitos bem conhecidos do público e não de assuntos originais.

“Não surpreende, pois, o encontrarmos a cada passo, em qualquer reportório de obras ibéricas deste período, um quase infindável rol de títulos repetidos, apesar de variarem os seus autores.”
Barata, idem

Em muitos casos, estes limitavam-se apenas a reescrever as obras de outros acrescentando tiradas de gosto pessoal adaptadas ao público a que se destinavam. É neste ponto que o Judeu se distingue dos seus contemporâneos ao criar uma linguagem muito característica e ao dotar as suas obras de uma grande perfeição dramática. No caso de Os Encantos de Medeia, o tema dos argonautas e da grande epopeia de Jasão em busca do Velo de Ouro era um tema regularmente tratado na literatura dramática (por exemplo, Lope de Vega havia publicado muitos anos antes o Vellocino de Oro ). Mas o mais surpreendente foi ter o Judeu conseguido escrever uma comédia tomando como assunto uma das mais impressionantes tragédias do teatro grego, a Medeia, de Eurípides. Claro que, ao contrário da obra prima de Eurípides, tudo acaba bem, e os episódios terríveis da tragédia, como o da morte dos filhos de Medeia, são omitidos, até porque fora do tempo de ação, que aqui se limita à estadia de Jasão e dos Argonautas na ilha de Colcos, com o fim de roubar o Velo de Ouro.

É evidente, também, que escrever sobre assuntos mitológicos era para o autor uma forma de se defender da censura eclesiástica a que se deviam submeter todas as obras que eram editadas ou representadas. Porque os deuses do Olimpo eram outros que não os que pairavam nos céus de Lisboa… Assim, a ação, aparentemente, decorria em lugares fabulosos e longínquos, nos quais, de forma subtil, o Judeu fazia um jogo de espelhos que refletiam as questões fundamentais do seu tempo, da sua sociedade e da sua condição.

Apesar dos locais cénicos onde decorre a intriga das peças do Judeu serem sempre retirados de fábulas míticas (à exceção das Guerras do Alecrim e Manjerona), o que o espectador do Bairro Alto tinha perante si quando via Creta, Parnaso, Flegra, Atenas ou Colcos, era a realidade lisboeta em pleno domínio joanino.
Barata, idem

Curiosa e reveladora era também a Protestação do Collector, de menção obrigatória no final de cada obra que saísse do prelo, na qual o editor explicitava que:

“As palavras Deoses, Numen, Fado, Divindade, Omnipotência e Soberania se devem somente entender no sentido poético e não com intenção de ofender em cousa alguma os dogmas da Santa Madre Igreja, a quem, como obediente filho, me sujeito em tudo o que ela determina.”

Estranhamente, ou talvez não, surgem escassas referências à atividade teatral do Judeu nos processos inquisitoriais, embora, naturalmente o Teatro do Bairro Alto fosse um local de grande afluência de público e o autor das óperas um homem sobejamente conhecido no meio lisboeta. Tanto mais que de uma forma mais ou menos explicita se revela uma forte crítica à sociedade portuguesa setecentista. É recorrente a crítica aos desvarios da aristocracia , ao fidalgo bem falante e amaneirado cuja atitude sucumbe perante a esperteza e o bom senso do criado, à justiça dos poderosos, a liberdade é enaltecida por oposição à escravidão, ridiculariza-se a lógica formal escolástica e a vazia retórica barroca.

“As cabeleiras de todos os fradalhões, desembargadores, e poetastros de todas as academias de Obscuros, Anónimos, Singulares, Generosos, Aplicados, estremeceram, eriçaram-se ao ver exposta ao ridículo das gargalhadas da plateia do Bairro Alto a sabedoria que acobertavam com tanto respeito. O catafalco carunchoso da Escolástica da idade média, levou aqui o seu primeiro solavanco…António José deixou a nu este ridículo do seu século, mas foi este ato de heroicidade um dos que mais contribuiu para a sua morte.”
Teófilo Braga, História do Teatro Portuguez

Pensa-se que António José era autor-ensaiador das peças que fazia representar com a sua companhia no Teatro do Bairro Alto. A produção é intensíssima. O Judeu escreve e faz representar oito óperas em apenas sete anos. A companhia seria formada por cerca de 8 atores, número adequado ao desempenho de todos os personagens tipo que surgem em cada peça. Na verdade, os personagens da comédia da época correspondem a clichés herdados da tipologia de personagens da commedia dell’arte e “as companhias espanholas acabavam por se reduzirem a uma estrutura fixa de personagens principais, repartidas entre damas, galãs, graciosos, e ainda o bem conhecido vejete, velho ridículo que tanto sucesso fazia”. Quanto ao acompanhamento musical, Freitas Branco estima que “a orquestra do Teatro do Bairro Alto, na época em que o Judeu estreou as suas óperas, constava em geral de: dois oboés, duas trompas, tímbales e instrumentos de arco”. Havia ainda os cantores (em número que rondaria os oito) e os tramoistas, nome que na época se dava aos que faziam as tramoias, isto é, os efeitos cénicos espetaculares que tanto deliciavam os espectadores do Bairro Alto. Como se pode ver, não era uma companhia pequena, e se juntarmos aos intervenientes no espetáculo os que contribuíam para o preparar, por vezes em tempo recorde ( apenas três meses separam, por exemplo, a estreia de Guerras do Alecrim e Manjerona- Carnaval 1737, da de Variedades de Proteu- maio de 1737) como os construtores das marionetas e dos adereços, os carpinteiros e os pintores dos cenários, os alfaiates, etc, podemos facilmente chegar a um número que se aproxima das quatro dezenas.

O êxito alcançado pelas óperas foi enorme. Um público entusiasmado enchia a sala do Teatro do Bairro Alto e aclamava as representações. Ainda em vida do autor seriam publicadas, por Isidoro da Fonseca, o Labirinto de Creta (1736), as Variedades de Proteu e as Guerras de Alecrim e Manjerona, ambas em 1737. Após a sua morte, o editor Francisco Luís Ameno, homem culto da Lisboa setecentista, poeta, conhecedor de línguas e tradutor de Goldoni e Metastásio, viria a fazer justiça à grandeza de António José, reunindo, em 1744, toda a sua obra em dois volumes intitulados Teatro Cómico Português. A publicação alcançou tal sucesso que viria a ser reeditada cinco vezes até ao final do século, isto para além das cópias piratas que corriam pela cidade…

“…foi tão grande o aplauso e aceitação com que foram ouvidas as Óperas que no Theatro do Bairro Alto de Lisboa se representaram desde o ano de 1733 até o de 1738, que não satisfeitos muitos dos curiosos com as ouvirem quotidianamente repetir, passavam a copiá-las, conservando ao depois estas cópias com tal avareza, que se faziam invisíveis para aqueles que desejavam na leitura delas, uns apagar o desejo de as lerem, pelas não terem ouvido, outros renovar a recreação com que no mesmo theatro as viram representadas.”
Simão Tadeu Ferreira, prefácio à 4ª reedição do Theatro Cómico Portuguez

Refira-se que as obras são publicadas anonimamente, de modo a precaver o editor do facto de António José ter sido um homem aniquilado pela Inquisição. Parece ter sido Francisco da Silva Inocêncio, autor do Dicionário Bibliográfico Português, quem descobriu, nas Décimas finais do prefácio Ao leitor desapaixonado, a assinatura em acróstico (composição na qual as primeiras letras de cada verso, lidas na vertical, formam um nome) do verdadeiro autor da obra: António Joseph da Silva. Uma subtileza do editor que não permitiria que, para a posteridade, restassem dúvidas quanto à autoria das óperas.

Um facto de grande importância no estudo do Judeu que nos vem possibilitar ter, hoje, uma ideia mais rigorosa da distância que separava a obra original destinada à representação, da obra publicada, sabendo-se que, à época, os editores retocavam os textos que se destinavam a publicação, por temor da censura secular e eclesiástica, foi a extraordinária descoberta, nos anos setenta, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, por Barata, do manuscrito original de A Vida de Esopo. Conclusão evidente que se tira da comparação do manuscrito com o texto editado é a de que, na verdade, existem diferenças notórias entre o que o autor escrevia (e fazia representar) e a obra que chegava ao leitor. Há censura de bons costumes, omitindo-se deliciosas expressões mais licenciosas, vulgo asneirada, que deveriam deliciar os espectadores do Teatro do Bairro Alto, censura religiosa, suprimindo-se passagens suscetíveis de condenação pelos censores, corte de indicações cénicas e um sem número de adaptações que tinham sobretudo a ver com a necessidade de fazer chegar aos potenciais leitores um texto que tinha especificamente sido escrito para o palco.

Não deixa de ser extraordinário que o Judeu tenha escrito as suas óperas para marionetas. Como se teria apaixonado por elas, como terá entendido que seriam os melhores protagonistas para o seu teatro, como terá adquirido os conhecimentos técnicos que lhe permitiriam realizar os espetáculos? Já se viu que o Judeu era um espectador atento e assíduo do teatro que passava em Lisboa, tanto mais que vivia no coração da movida teatral lisboeta. E nessa época, numerosas trupes oriundas da europa, sobretudo de Espanha e Itália, representavam os seus espetáculos nos diversos pátios da capital. Há muitas referências, nem sempre elogiosas, à atividade dos titereiros:

A estes se podem ajuntar os manejadores de títeres, ministros de particular entendimento, e que fazem dizer, e obrar, o que querem, metendo-os em campanha, aonde pelejando se vencem uns aos outros: industrias todas que são como gazuas universais para abrir as bolsas.

E numa época de censura, um ano antes do auto de fé que haveria de conduzir o Judeu às fogueiras do Santo Ofício, nem os espetáculos de marionetas parecem terem escapado à vigilância inquisitorial:

Lisboa 29 de julho de 1738. Já se trabalha no Theatro da Opera… e acabando-se os Bolantins, que tiveram grande concurso, o qual continua a ver umas figuras artificiosas que os ignorantes não podem crer que são naturais e tem sem dúvida curiosos movimentos que já se examinaram na Inquisição.

Sem dúvida deliciosa a expressão “figuras artificiosas que os ignorantes não podem crer que são naturais”. É de crer, pois, que António José tenha visto espetáculos de marionetas e que tenha sentido que elas poderiam ser os protagonistas ideais dos textos que tinha em mente escrever. Relativamente à técnica usada na representação, não pode haver dúvidas de que se tratavam de marionetas de varão, já que eram as únicas que se adaptavam a um tipo de teatro que pretendia reproduzir, de forma miniaturizada e fiel, a cena à italiana. Os materiais de construção usados seriam a madeira, para a escultura das cabeças, mãos e pés, o arame para o esqueleto e articulações e a cortiça (material equivalente em peso e facilidade de modelação à esferovite que hoje se usa com a mesma finalidade) para a reprodução das formas do corpo (“a alma do arame no corpo da cortiça”). São frequentes, ao longo do texto das óperas as alusões graciosas à materialidade dos atores:

Quem se não há de enamorar dessa carinha que parece mesmo pintada a óleo de linhaça? (Vida de Esopo)

Cala-te, tola mecânica!(O Labirinto de Creta)

Quando frates sunt boni, sunt bonifrates. (Variedades de Proteu)

E, pensando num público menos familiarizado com este género teatral, na advertência ao leitor desapaixonado, que precede o texto teatral do Teatro Cómico Português, o editor pede benevolência ao espectador:

…saberá discernir a dificuldade da cómica em um teatro onde os representantes se animam de espírito alheio, donde os afetos e acidentes estão sepultados nas sombras do inanimado, escurecendo estas muita parte da perfeição que nos teatros se requer, por cuja causa se faz incomparável o trabalho de compor para semelhantes interlocutores; que, como nenhum seja senhor das suas ações, não se podem executar com a perfeição que devia ser. Por este motivo, surpreendido muitas vezes o discurso de quem compõe estas obras, deixa de escrever muitos lances, por se não poderem executar.

No que à musica se refere, por que razão teria o Judeu decidido incluir nas suas obras trechos cantados, de uma forma nunca antes tentada no teatro português?. Além da evidente influência da zarzuela espanhola e do melodrama é bom lembrar que a ópera era a grande moda que nesse momento chegava aos palcos portugueses, embora numa primeira fase a ela só tivessem acesso a nobreza e a realeza. A primeira ópera é apresentada em Portugal em 1720. Em 1735 inaugura-se o Teatro da Trindade e até ao fim do século abrirão mais quatro, entre os quais o Teatro São Carlos e o S. João do Porto (destruído por incêndio em 1908 e sobre as ruínas do qual se erigiu o atual, da autoria de Marques da Silva). Na corte e nos palácios faustosos da família real a ópera delicia a aristocracia ávida dos prazeres do espírito. A operática família Paghetti estabelece-se em Portugal e as famosas Paquetas, como eram conhecidas, põem os galãs lisboetas de cabeça perdida. Nem o rei escapa aos encantos de uma tal deslumbrante Petronilla. E nesta tarefa renovadora da arte teatral, António José mais não faz do que adotar os preceitos do seu mestre, Calderon:

No es comedia sino solo
Una fabula pequena
Em que, a imitación de Italia,
Se canta e se representa

Freitas Branco é de opinião que o Judeu seria poeta-compositor, facto nunca provado (O Judeu deve ser considerado como autor da primeira ópera sobre texto português, e portanto da primeira ópera verdadeiramente portuguesa). Sabe-se sim que, D. João V, tomado pelo entusiasmo da ópera, tinha mandado estudar em Roma, na qualidade de bolseiro da coroa, o compositor António Teixeira que, posteriormente, viria a fazer parte do círculo restrito de colaboradores de António José. É de supor que António Teixeira tenha sido a alma gémea criativa do dramaturgo e que tenha composto todas as árias das suas peças, pois, pelo menos, tem-se hoje a certeza ser da sua autoria a música das Guerras do Alecrim e Manjerona e das Variedades de Proteu, da qual se encontraram nos arquivos do Paço Ducal de Vila Viçosa cópias das partituras originais. Também recentemente, pela mesma mão do compositor Filipe de Sousa, foi descoberta na Biblioteca da Universidade de Coimbra a música da ultima obra do Judeu, o Precipício de Faetonte.

Escrevendo em prosa, é a música que lhe permite criar composições poéticas destinadas a serem cantadas, as árias. Pois, como bom português, António José é um arrebatado lírico. Além de escrever magníficos poemas de amor, é o amor, sempre, o grande motor de todas as suas peças, que constituem autênticos manuais das humanas variações amorosas. O amor em todas as suas condições: amores desencontrados, amores não correspondidos, amores platónicos, amores prosaicos, amores interesseiros, amores de ricos e amores de pobres, de príncipes e de reis, de criados e criadas, amores de velho e amores de juventude, amores impossíveis e necessáriamente, o contraponto do amor, essencial para a abordagem da dialética dos sentimentos, sempre presente na obra, o ciúme, ou na linguagem da época, os zelos. Vale a pena ler o maior monólogo existente nas obras do Judeu, a magistral definição do amor que é dada por Esopo, o grande escravo filósofo. E não se pense que, embora tratando-se de um escritor de teatro, seja pequena a sua produção poética: ao longo das oito óperas surgem 174 composições poéticas, entre árias, coros e sonetos. É nesta condição de poeta dramático que o Judeu se torna numa figura ímpar da cultura portuguesa, pois contrariando a tendência geral da criação literária de um país que sempre gerou grandes poetas e medianos dramaturgos, concilia brilhantemente as duas expressões da alma.

Fim

Na manhã outonal de 18 de outubro de 1739, o majestoso cortejo do Auto de Fé sai ordenadamente do Palácio da Inquisição e serpenteia pelo Rossio, até entrar na Igreja do Convento de S.Domingos, do outro lado da praça. Atrás do flamejante estandarte do Santo Ofício vêm dezenas de guardas e inquisidores conferindo a necessária pompa ao cortejo dos 56 penitenciados. O povo, que há já quinze dias ouve apregoar o Auto, enche a praça e exubera: “Grande misericórdia, bendito o Santo Ofício”, esperando que o grande espetáculo da morte lhe espie os pecados. António José é o número sete da lista dos hereges. Tem 34 anos. Vem desfigurado da tortura e com dificuldade encara a luz do dia, após dois anos e treze dias de cárcere escuro. Veste uma aviltante túnica branca com a sua cara toscamente pintada no meio de labaredas e diabinhos a mordê-lo. No rol dos penitenciados vêm também a sua mãe Lourença, o irmão André e a mulher Leonor. Já dentro da igreja, os réus ouvem penosamente a leitura das culpas e longos sermões que invocam a implacável ira divina para com os hereges.

Ó infelizes despojos de Israel, desgraçadas relíquias do hebraísmo […] na estimação de Deus sois a gente mais abominável do mundo.

O ritual termina já noite dentro e o cortejo dos relaxados (condenados à morte) sai da igreja dirigindo-se, pelas ruas estreitas da velha Lisboa, ao tribunal da Relação, lá para os lados da Sé. Aí, o Inquisidor-mor lava as mãos do pecado e remete para a justiça secular a execução da pena, que o tribunal se limita a confirmar.

Declaram o réu António José da Silva por convicto, negativo, pertinaz e relapso… e como herege apóstata de nossa Santa Fé Católica o condenam e relaxam em carne…

Nova viagem descendo a encosta até ao queimadeiro, no Campo da Lã, junto ao Tejo, onde se encontra montada a improvisada cenografia da morte: tablados de madeira, para que o público tenha boa visibilidade, espessos mastros equipados de garrotes para que se proceda à morte sem efusão de sangue e monumentais pilhas de lenha.

Adverti que os Deuses não permitem, nem as leis ordenam, que sem culpa morra um inocente.
(Anfitrião ou Júpiter e Alcmena)

O sol já brilha nas águas do Tejo quando o corpo de António José é lançado nas chamas da fogueira.

Morrer como valorosos, que maior afronta é cair nas mãos do vencedor.
(Os Encantos de Medeia)

(Post scriptum- Em época de fundamentalismos religiosos,a Oriente e a Ocidente, a história deste homem que, fiel à sua fé encarou com grande dignidade a morte, poderia servir de exemplo e memória para que barbáries semelhantes à Inquisição não voltassem a existir nesta Terra e para que a liberdade que a todos os homens assiste ,na sua fé e no seu pensamento, fosse o bem mais precioso)

Imagem de destaque: Procissão de auto-da-fé, saindo dos Estaus e desfilando pelo Rossio (J. A. Colmenar, 1707)

Texto: Fonte

Descolonizar “12 de outubro, nada a comemorar, exceto a resistência dos povos indígenas”

14.10.24 | Manuel

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Manifesto Vamos Descolonizar: 12 de outubro
Nada para comemorar 2019

Todos os dias 12 de outubro, parece que estamos num sonho estranho. Vemos aviões de combate no céu, desfiles militares nas avenidas, bandeiras nas varandas, gritos nas ruas, programas na televisão a celebrar o Dia de Colombo, e não nos sentimos parte deste filme obsoleto que parece uma nova edição do Big Brother ou o conto da serva .

Lamentamos porque não nos esquecemos que o dia 12 de outubro de 1492 representa o início do maior genocídio da história, com mais de 80 milhões de seres humanos assassinados e pelo menos 20 milhões escravizados. 527 anos depois, continuamos a reivindicar os nossos antepassados, afirmando diariamente a resistência, a vida e o amor face às políticas de morte e de ódio produzidas pela colonização. Levantar a ação comunitária coletiva como forma de nos organizarmos; aprendizagem e dando continuidade ao legado das pessoas que se reconhecem como parte da Mãe Terra.

E perguntam-nos, porquê continuar a insistir se já passaram 5 séculos!? A resposta é simples, porque se mantém este modo de colonização que coloca a Europa como centro e modelo.

O saque continua com a cumplicidade das empresas extractivas e dos Estados derivados da colonização. Enquanto isso, os povos originários mantêm vivo o seu modo de estar no mundo e resistem, protegendo a natureza, sendo encurralados, exterminados, criminalizados, ignorados e silenciados. Nem mesmo os alarmes sobre o ecocídio na Amazónia, em África e na Oceânia parecem servir para travar o avanço deste suposto desenvolvimento.

Por seu lado, a Europa fecha as suas fronteiras racistas, impondo leis de imigração desumanas, mantendo as nossas irmãs que trabalham como trabalhadoras domésticas em regimes de escravatura, aumentando os campos de concentração erroneamente denominados Centros de Internamento Estrangeiros, transformando o Mediterrâneo na maior vala comum da história. Tudo isto no quadro de uma ideologia sexista, transfóbica e homofóbica, que demoniza a diversidade sexual presente nos povos indígenas.

Neste 12 de outubro pode fingir que nada se passa ou até celebrar o Dia de Colombo, deixando de lado a nossa história e a nossa dignidade. A partir daqui, convidamo-lo a aproximar-se do seu povo, de quem sentimos que este é um dia em que podemos transformar a dor em memória, num abraço coletivo e em rebelião, celebrando as nossas raízes e o nosso amor pela Mãe Terra . Apelamos a cada pessoa para que se junte à resistência da fraternidade, da comunidade e da vida.

Vamos descolonizar! 12 de outubro, nada para celebrar!
Kachkaniraqmi! Marichiwew!

Por tudo isto exigimos:
– Revogar a Lei 18/87 que estabelece o dia 12 de Outubro como Feriado Nacional.
– Retirada definitiva das estátuas de Colombo e de todos os símbolos que exaltam a colonização.
– Revisão da política e dos mecanismos de controlo das empresas espanholas a nível internacional, especialmente quando operam em territórios de povos indígenas.
– Revogação da Lei da Imigração e de todo o conjunto de regulamentos racistas, com especial atenção para o actual genocídio no Mediterrâneo.
– Revisão de manuais escolares de História onde o genocídio e a tragédia dos povos indígenas da América Latina, Ásia, Médio Oriente e África são narrados como um feito heróico.
– Encerramento definitivo de todos os Centros de Detenção de Estrangeiros e de todos os espaços institucionais que ameacem a dignidade e a vida dos migrantes.
– Tratamento digno dos trabalhadores domésticos, assinatura e aplicação da Convenção 189 da OIT.
– Revogação do Real Decreto 7/2018, de 27 de julho, que limita o acesso aos cuidados de saúde universais para os migrantes.
– Fim dos Tratados de Comércio Internacional que favorecem a pilhagem das terras e dos povos indígenas.
– Que a Organização das Nações Unidas (ONU) tome medidas que acabem com o assassinato de líderes e membros dos povos indígenas que defendem a terra e a biodiversidade do planeta.
– Respeitar e escutar o pensamento e o legado dos povos originários, as suas formas de explicar os mundos e a sua espiritualidade.
– Fim do sistema patriarcal capitalista eurocêntrico e extrativista que destrói os recursos naturais e a vida.
– Dignidade para todos os corpos e territórios, respeito pelas diferentes expressões de ser e sentir no mundo, de amor e energia vital face às políticas de morte e de ódio.
– Um futuro de dignidade e paz para todas as pessoas em todo o mundo.

ASSEMBLEIA PREPARATÓRIA DO ARTEVENT DECOLONIZA-NOS: 12 DE OUTUBRO NADA HÁ A CELEBRAR

FonteLEBRAR

Fonte

 

O fascismo e a aristocracia tecnológica global

10.10.24 | Manuel

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Por Rocco Carbone

O fascismo que nos governa é uma ferramenta do capitalismo que ajuda a perpetuar a dominação de uma nova classe social com características globais: a aristocracia financeira e tecnológica configurada por figuras como Elon Musk e Mark Zuckerberg.

O fascismo é um poder antipolítico porque a lógica que o anima é antipolítica porque é de natureza destrutiva. É uma lógica bélica, típica da guerra. Destruir para entregar o Estado social, o público. Onde o fascismo identifica um emergente do público, onde vê um dos seus sinais vitais, vê um negócio. Destrói vender o património social do Estado ao pior licitante, ou seja: a um preço vil. O fascismo furtivo do século XXI é então um projecto de entrega do Estado social ao mercado de capitais: monopólios corporativos globais absolutistas.

Se isto for aceite, poderemos compreender o fascismo que nos governa como uma ferramenta do capitalismo. E, como tal, ajuda a perpetuar a dominação de uma nova classe social. É uma elite que tem características globais e que tem o seu epicentro num conceito, que é o conceito de “Ocidente”; que é uma palavrinha que aparece muito ao estilo do Presidente Milei. Esta elite é uma nova classe dominante, que é na verdade um novo poder dominante habitado por capitalistas de plataforma. Para ser um pouco mais claro: é uma aristocracia financeira e tecnológica composta por figuras como Elon Musk, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos, Larry Ellison, Bernard Arnault... O fascismo furtivo do século XXI é um poder extremista, totalitário, ligado aos interesses desta nova aristocracia financeira e tecnológica, que opera ao lado de think tanks, organizações multilaterais, ONG, corporações militares, paramilitares e também com organizações mafiosas e cartéis de tráfico de droga.

Para dar um pouco de dimensão a esta elite global, para imaginar o poder que este capitalismo de plataforma tem, vale a pena uma breve revisão dos seus membros mais conspícuos. O mais conhecido, mas não o mais rico, é Elon Musk, que é uma espécie de santo. O presidente Milei é um devoto de Elon Musk, mas Giorgia Meloni, Nayib Bukele e Bolsonaro também o são. Assim, para reconhecer um fascista do século XXI é preciso ver se ele tira uma  selfie  com o Sr.  Ah, dá-me Musk . Foi cofundador de seis empresas. Uma delas é a fabricante automóvel Tesla, que precisa de lítio. Outra empresa é a empresa aeroespacial SpaceX. E comprou em outubro de 2022 a rede social Twitter (renomeada X). Comprou-o para organizar operações de manipulação em massa. Os seus ativos: 195 mil milhões de dólares.

Bernard Arnault é outro membro desta nova oligarquia. É francês e proprietário da LVMH (Louis Vuitton Moët Hennessy), que é um conglomerado multinacional francês, que detém 76 marcas de renome em todo o mundo; marcas da indústria da moda e da indústria cosmética. O património líquido de Arnault é de 233 mil milhões de dólares. Outro membro desta elite global é Jeff Bezos, fundador do seu próprio gigante do comércio eletrónico, que é a Amazon. Bezos é a versão global de Marcos Galperin, director executivo do MercadoLibre, que detém também uma fábrica de curtumes chamada SADESA. Galperin é a pessoa mais rica da Argentina, mas para evitar impostos fugiu para o Uruguai como Pepín Rodríguez Simón. Voltando a Bezos: também é dono de um jornal: The  Washington Post ; e também da Blue Origin, uma empresa aeroespacial que desenvolve foguetões. Ativos: 194 mil milhões de dólares. Depois, há o pobre Mark Zuckerberg, dono da Meta. Cada um de nós tem Meta no telemóvel. É uma grande plataforma de fusão entre o Facebook, Instagram e Whatsapp, entre outros. Ativos: 177 mil milhões de dólares. Mais um e não vamos brincar mais: Larry Ellison, é presidente, diretor de tecnologia e cofundador de uma gigante de software, que é a Oracle. Ativos: 141 mil milhões de dólares.

O fascismo furtivo do século XXI protege estes senhores, e também cuida dos interesses dos aristocratas nacionais, que além de Galperin são Rocca, Bulgheroni, Pérez Companc, Eurnekian  e o Calabresa. O fascismo como potência é um factor consciente na história, mas a experiência política que organiza é desprovida de ideias e é animada por uma imobilidade espiritual. É por isso que coloca a Argentina na competição dos gigantes capitalistas (que são hoje os monopólios corporativos globais absolutistas) à maneira de um Cerro Rico del Potosí.

O fascismo é uma potência colonial. E no coração da colónia está a sua libertação, que começou a concretizar-se nas conquistas da Universidade Pública.

Fonte: La Tecla Eñe/Fonte 2

Reflexões sobre o genocídio

06.10.24 | Manuel

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Por Sérgio Rodríguez Gelfenstein

A morte não é verdade

quando o trabalho da vida foi bem realizado.”

José Martí

Magoar se quiser magoar

que o golpe esperava serenamente

Bem, em vez disso condeno-te

ao tormento de viver

Para onde pode fugir?

que o castigo não lhe chega?

Procurará em vão por abrigo

outras montanhas, outras praias

e onde quer que vá

o seu crime irá consigo

Epígrafe

Jesus Orta Ruiz

O índio Naborí

Mataram José Martí e a luta do povo cubano não parou, mataram o general Augusto C. Sandino e anos mais tarde o comandante Carlos Fonseca e a luta do povo nicaraguense não parou, mataram Yasser Arafat e a luta do povo palestiniano não parou, não está provado, mas coloca-se a hipótese de o comandante Hugo Chávez ter sido morto e a luta do povo venezuelano não ter parado. Acha que porque Hasan Nasrallah foi morto, a luta da resistência anti-sionista na Ásia Ocidental vai parar? Assumir isso é subestimar o povo, acreditar que a luta depende de uma personalidade ou até de um líder. É claro que a perda de um líder é difícil e dolorosa, mas a história da luta pela independência e pela liberdade nunca parou por causa disso.

Está provado que Israel é uma monstruosidade imperialista e que o sionismo se sustenta no apoio que os Estados Unidos e a Europa lhe dão para cometer os seus crimes. Mas também é verdade que o maior triunfo do imperialismo e do sionismo – e é aí que reside a causa fundamental do seu sucesso – é ter conseguido manter o mundo islâmico e muçulmano dividido e impedir a unidade necessária para combater o inimigo sionista. Até 7 de Outubro do ano passado, alguns países árabes tinham mesmo assinado os Acordos de Abraham e iniciado a “normalização” das relações com Israel. Antes, os acordos de Camp David foram assinados em 1978 e os acordos de Oslo em 1993. Mais recentemente, ao desencadear a chamada “Primavera Árabe”, ao atingir o eixo da resistência para a destruir, o imperialismo e o sionismo visaram a desunião

Foram mais de 45 anos de esforços dos Estados Unidos para procurar acordos parciais que paralisassem a luta do povo palestiniano e dos países que resistem. Nunca um povo firme e tenaz e os seus dirigentes assinaram qualquer acordo com a entidade sionista. Hoje, mais uma vez é claro que a identidade religiosa e nacional tem um carácter subalterno quando se trata de defender os interesses de classe. Por esta razão, alguns países e líderes árabes e muçulmanos mantêm a retórica de “regressar a Al Quds” e de “rejeitar” os massacres sionistas, quando na realidade procuram aliar-se – e até fazer negócios com eles – através de Estados que procuram unificá-los para travar o impulso libertador da resistência.

300 milhões de árabes e 1,5 mil milhões de muçulmanos não conseguiram unir-se para enfrentar o sionismo, que em Israel constitui uma população de 6,9 ​​milhões de judeus (e nem todos são sionistas). A divisão, os interesses das monarquias medievais corruptas e o seu desejo de subordinar e servir os Estados Unidos e o Ocidente permitem esta situação em que Israel pode agir livremente, violando o direito internacional e a Carta das Nações Unidas. Chegará o dia em que o povo da região exigirá que as suas elites hesitem e duvidem quando confrontarem o sionismo. E quando esse dia chegar, tudo mudará.

O n.º 1 do artigo 1.º da Carta das Nações Unidas estabelece como primeiro propósito da organização: “Manter a paz e a segurança internacionais, e para este fim: tomar medidas coletivas eficazes para prevenir e eliminar as ameaças à paz, e reprimir atos de agressão ou outras violações da paz; e alcançar, por meios pacíficos, e de acordo com os princípios da justiça e do direito internacional, o ajustamento ou a resolução de litígios ou situações internacionais susceptíveis de conduzir a violações da paz.”

O preâmbulo da Carta refere que a ONU está determinada a “preservar as gerações futuras do flagelo da guerra que por duas vezes no nosso tempo de vida infligiu um sofrimento indescritível à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e na dignidade”. valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e das grandes e pequenas nações, para criar condições sob as quais a justiça e o respeito pelas obrigações decorrentes dos tratados e dos tratados possam ser mantidos a partir de outras fontes do direito internacional, para promover.

À luz destes preceitos, é evidente que a ONU falhou, deve desaparecer e dar lugar a uma entidade que seja capaz de cumprir estes objectivos. Para o conseguir, é básico, fundamental e necessário que o direito de veto desapareça. O direito de veto é um instrumento ditatorial que fornece as ferramentas que garantem o genocídio sionista na Ásia Ocidental.

A ONU já não é um instrumento de paz, a tal ponto que o líder sionista – de Nova Iorque – e sem se importar que o mundo não o ouvisse, ordenou o ataque ao Líbano e o assassinato do líder da resistência Hasan Nasrallah. Quando se tornou evidente que a ONU já não é um fórum para promover a paz, mas para estimular a guerra, o seu desaparecimento deveria ser natural.

Tudo isto pode ser feito porque os Estados Unidos permitem, endossam, apoiam, financiam e armam a causa da guerra, mesmo quando é evidente que o crime de genocídio estabelecido na “Convenção para a Prevenção e Punição do Crime “foi estabelecido o crime de genocídio ”, aprovado em 1948 e posto em vigor em 1951. A ONU é de tal forma ineficaz que não foi capaz de fazer cumprir esta convenção que pretendia prevenir “um crime perpetrado com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

Quando terminou a Segunda Guerra Mundial, para punir os culpados de um ato tão abominável que provocou a morte de 60 milhões de pessoas (2,5% da população do planeta naquela época), realizou-se o julgamento de Nuremberga. Um dos seus principais objetivos era realizar um julgamento justo e ter um papel concreto na prevenção de genocídios no futuro. Apesar dos esforços dos procuradores soviéticos, os seus colegas ocidentais tiveram o cuidado de “suavizar” as sentenças e salvaguardar muitos criminosos.

Graças ao apoio dos Estados Unidos, do Vaticano, da Cruz Vermelha Internacional, da Espanha de Franco e da Itália derrotada, mas com uma forte presença das forças de Mussolini, o nazismo e o fascismo sobreviveram e hoje tomam forma na Europa (as eleições do passado domingo na Áustria são um claro reflexo desta situação), na América Latina e noutras regiões do mundo. Ontem, na Áustria, tal como Hitler, os fascistas chegaram ao poder através de eleições.

A erradicação inacabada do nazismo está a afectar o mundo de hoje. O sionismo enquanto corrente nacionalista reacionária e expressão da extrema direita racista surgida no final do século XIX na Europa baseia a sua atuação no mito da superioridade racial e da exclusividade dos judeus. Tal como os Estados Unidos, o sionismo considera o território ocupado uma terra prometida por Deus. Baseia-se no chauvinismo exacerbado, no anticomunismo e no nacionalismo extremo. Isto permite-lhes justificar o extermínio de palestinianos e árabes.

Perguntou-me se teremos de esperar que a guerra na Ásia Ocidental termine com a derrota de Israel para organizar um novo Nuremberga, ou se será necessário que a Rússia, outro país ou aliança de países, leve a cabo uma nova Conferência Especial Operação Militar. , para que ao mesmo tempo na Ucrânia o desenvolvimento do genocídio em curso possa ser paralisado.

E o que dirão os europeus “civilizados”, as social-democracias e a esquerda cobarde quando isso acontecer? Ou será que devemos continuar a olhar, a partir da tranquilidade das nossas casas e das nossas vidas, para como o mundo não é capaz de se organizar nem mesmo para evitar a morte em massa de dezenas de milhares de pessoas? O peso da incapacidade e da cumplicidade com este genocídio pesará na consciência dos habitantes deste planeta.

As declarações de rejeição e repúdio já não bastam, temos de agir e há múltiplas formas de o fazer em termos políticos, jurídicos, económicos e militares, mas repito mais uma vez, a iniciativa deve partir do mundo árabe e muçulmano porque esperar que o Ocidente e, em primeiro lugar, a Europa façam alguma coisa não passa de uma quimera. Mais do que mais, são os executores dos piores genocídios da história da humanidade. Foi assim que se tornaram ricos e poderosos: através da morte, da usurpação, do roubo, da pirataria, do roubo, da predação, do saque e do saque. Foram estes instrumentos que permitiram que se transformasse num “jardim”, recorde-se… o resto de nós somos apenas “selva”.

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Tribunal Militar Internacional de Nuremberga

01.10.24 | Manuel

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No início do inverno de 1942, os governos das Forças Aliadas anunciaram sua intenção de punir os criminosos de guerra nazistas.

Em 17 de dezembro de 1942, os líderes dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Soviética emitiram a primeira declaração conjunta registrando oficialmente os assassinatos em massa de judeus europeus, e decidindo processar os responsáveis por crimes contra populações civis. Embora alguns líderes políticos defendessem execuções sumárias ao invéz de julgamentos, eventualmente os Aliados decidiram criar um Tribunal Militar Internacional para efetuar o processo legal adequado. Nas palavras de Cordell Hull [ex-Secretário de Estado dos EUA], "a condenação após um processo como este satisfará o julgamento da História, de modo tal que os alemães não poderão reivindicar que a admissão de sua culpa na guerra foi deles extraída sob coação."

Em outubro de 1943, o Presidente dos EUA Franklin D. Roosevelt, o Primeiro-Ministro britânico Winston Churchill, e o líder soviético Josef Stalin assinaram a Declaração de Moscou. A declaração especificava que no momento do armistício as pessoas consideradas responsáveis por crimes de guerra deveriam ser enviadas de volta aos países nos quais os crimes haviam sido cometidos, e julgadas de acordo com as leis do país em questão. Os principais criminosos de guerra, cujos crimes não poderiam ser circunscritos a uma região geográfica específica, seriam punidos de acordo com decisões conjuntas dos governos dos países Aliados.

O TRIBUNAL MILITAR INTERNACIONAL

O julgamento dos principais oficiais alemães pelo Tribunal Militar Internacional (TMI), o mais conhecido dos tribunais de crimes de guerra, foi iniciado formalmente na cidade de Nuremberg, na Alemanha, no dia 20 de novembro de 1945, seis meses e meio após a rendição alemã. Em 18 de outubro de 1945, os principais promotores do TMI já tinham lido as acusações contra vinte e quatro altos oficiais nazistas. As quatro acusações feitas contra eles eram:

Conspiração para cometer crimes de paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade

Crimes contra a paz

Crimes de guerra

Crimes contra a humanidade

Cada uma das quatro nações aliadas – Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética e França – forneceu um juiz e uma equipe de promotores. Geoffrey Lawrence, Presidente do Supremo Tribunal da Grã-Bretanha, foi o juiz que presidiu os trabalhos da corte. As regras do tribunal foram o resultado de uma delicada reconciliação entre os sistemas judiciais [europeu] continental e anglo-americano.

Uma equipe de tradutores fazia traduções simultâneas de todos os procedimentos nos quatro idiomas do processo: inglês, francês, alemão e russo.

OS RÉUS

Após longos debates, 24 réus foram selecionados como representantes da liderança diplomática, econômica, política e militar nazista.

Adolf Hitler, Heinrich Himmler e Joseph Goebbels nunca foram julgados porque cometeram suicídio antes do final da Guerra. O TMI decidiu não julgá-los póstumamente para não dar a impressão de que eles talvez ainda pudessem estar vivos.

Na verdade, apenas 21 réus compareceram ao tribunal. O industrial alemão Gustav Krupp foi incluído na acusação original, mas era idoso e tinha a saúde debilitada, sendo decidido nas audiências preliminares que ele seria excluído do processo. O secretário do Partido Nazista Martin Bormann foi julgado e condenado à revelia. Robert Ley suicidou-se na véspera do julgamento.

AS ACUSAÇÕES

O TMI indiciou os réus mediante acusações de crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. O TMI definiu crimes contra a humanidade como "assassinato, extermínio, escravidão, deportação... ou perseguições com bases políticas, raciais ou religiosas".

Uma quarta acusação de conspiração foi acrescentada (1) para cobrir os crimes cometidos sob a lei doméstica nazista antes do início da Segunda Guerra Mundial, e (2) para que os tribunais subsequentes tivessem jurisdição para processar quaisquer indivíduos pertencentes a organizações criminosas comprovadas. Portanto, o TMI também indiciou várias organizações nazistas consideradas como criminosas, a saber: o Conselho de Ministros do Reich, o Corpo de Liderança do Partido Nazista, a Tropa de Elite (SS), o Serviço de Segurança (SD), a Polícia Secreta de Estado (Gestapo), a Tropa de Assalto (SA), o Estado Maior, e o Alto Comando das Forças Armadas alemãs.

Os réus tiveram direito a um advogado-de-defesa de sua própria escolha.

O VEREDITO

O promotor-chefe dos EUA Robert Jackson decidiu julgar o caso utilizando como base, principalmente, documentos escritos pelos próprios nazistas e não testemunhas oculares, para evitar acusações de que o julgamento havia utilizado seletivamente testemunhos tendenciosos ou parciais. Os testemunhos apresentados em Nuremberg revelaram grande parte do que sabemos sobre o Holocausto, incluindo os detalhes da máquina da morte de Auschwitz, a destruição do gueto de Varsóvia, e a estimativa de 6 milhões de vítimas entre os judeus.

Os juízes proferiram seu veredito no dia 1º de outubro de 1946. Para efetuar uma condenação, era necessária uma maioria de três quartos dos juízes.

Doze réus foram condenados à morte, entre eles Joachim von Ribbentrop, Hans Frank, Alfred Rosenberg e Julius Streicher. Eles foram enforcados, cremados em Dachau, e suas cinzas espalhadas no rio Isar. Hermann Goering escapou da forca cometendo suicídio na noite anterior. O TMI sentenciou três réus à prisão perpétua, e quatro deles a períodos de reclusão que variavam entre 10 e 20 anos. O tribunal absolveu três réus.

OUTROS JULGAMENTOS

O julgamento do TMI em Nuremberg foi apenas um dos primeiros e mais famosos entre os diversos tribunais de crimes de guerra subsequentes. Mais de 400 pessoas participaram das acusações todos os dias, além de 325 correspondentes representando 23 países.

A maioria esmagadora dos julgamentos dos crimes de guerra efetuados após 1945, envolveu suboficiais e funcionários subalternos. Entre eles estavam comandantes e guardas de campos de concentração, policiais, membros das Einsatzgruppen (unidades móveis de extermínio), e médicos que participaram dos assim chamados “experimentos científicos” com os prisioneiros. Esses criminosos de guerra foram julgados por tribunais militares nas zonas de ocupação britânica, americana, francesa e soviética da Alemanha e Áustria, e também na Itália nos anos que se seguiram ao final da Guerra.

Em 17 de outubro de 1946, apenas um dia após a execução dos réus do TMI, o presidente Harry Truman designou Telford Taylor como o novo promotor-chefe dos EUA para crimes de guerra. Ele então se encarregou do processo de 183 oficiais alemães de alto escalão em 12 julgamentos separados. Estes tribunais militares dos EUA são, em geral, chamados coletivamente de “Processos Subsequentes a Nuremberg. Membros da Gestapo e das SS, assim como industriais alemães, foram julgados por seus papéis na implementação das Leis de Nuremberg, na "arianização", nos fuzilamentos em massa de judeus em campos de concentração, nas execuções a tiro pelos Einsatzgruppen, e nas deportações.

Outros criminosos de guerra foram julgados pelos tribunais dos países onde seus crimes foram cometidos. Em 1947, um tribunal da Polônia condenou à morte o comandante do campo de Auschwitz, Rudolf Hoess. Nos tribunais da Alemanha Ocidental, muitos ex-nazistas não receberam sentenças severas sob a alegação de estarem “apenas” seguindo ordens superiores, o que muitas vezes era considerado como circunstância atenuante. Portanto, alguns criminosos nazistas retornaram à sua vida normal na sociedade alemã, especialmente no mundo dos negócios.

Os esforços dos caçadores de nazistas (como Simon Wiesenthal e Beate Klarsfeld) levaram à captura, extradição e julgamento de diversos nazistas que fugiram da Alemanha após a Guerra. O julgamento de Adolf Eichmann, realizado em Jerusalém no ano de 1961, chamou a atenção do mundo inteiro.

No entanto, muitos criminosos de guerra jamais foram levados a julgamento ou punidos.

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