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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

26 de Abril de 1937: a tragédia de Guernica

26.04.25 | Manuel

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 Escrito pelo 80º aniversário do bombardeamento de Guernica

Era uma segunda-feira, dia de mercado. Havia muita gente nas ruazinhas da cidade de Guernica, que tinha 7.000 habitantes. Às quatro e meia da tarde os sinos da igreja começaram a repicar, e cinco minutos depois apareceu o primeiro avião, que soltou seis bombas explosivas de 450 quilos, seguidas de uma chuva de granadas. Minutos depois surgiu outro aparelho.

O inferno durou quatro horas. Quarenta e dois aviões no total bombardearam e metralharam a cidade e seus arredores, onde os moradores haviam se refugiado. Toda a cidade ardeu. O incêndio tardou a se apagar. Balanço: 70% dos edifícios queimados e um número indeterminado de mortos, entre 800 e 1.600. Setenta anos depois, os historiadores ainda não se puseram de acordo sobre o número de vítimas daquele dia negro, que converteu Guernica em uma cidade mártir e uma cidade símbolo, gravada para sempre em nossa memória coletiva. Os aviões pertenciam à Legião Condor alemã e à Aviação Legionária italiana. A palavra chave era Operação Rügen.

Dois homens contribuíram de modo decisivo para converter Guernica em símbolo: George Steer e Pablo Picasso.

O primeiro era um jovem jornalista de 27 anos, nascido na África do Sul, correspondente de guerra do diário londrino The Times e firme partidário da causa republicana e basca. A Espanha não era seu primeiro teatro de guerra. Em 1935 tinha sido enviado especial à Etiópia, então chamada Abissínia, submetida a uma feroz agressão italiana ordenada por Mussolini — o ditador com manias de grandeza —, que, assim, a golpes de crimes de guerra, tornava realidade seus sonhos imperiais. Na Etiópia já havia bombardeado a população civil inerte. Na Etiópia, o Ocidente democrático já traíra um povo agredido pelo fascismo.

George Steer chegou a Guernica horas depois do bombardeio, e nessa mesma noite telegrafou sua reportagem sobre a cidade mártir, que foi publicada na manhã seguinte no The Times e no The New York Times, e foi reproduzida pela imprensa de muitos países. Esse artigo foi o que alertou ao mundo e provocou manifestações de protesto nas ruas de Londres e Nova Iorque, o que resultou em uma contra-ofensiva propagandística dos franquistas e seus aliados, a Alemanha nazi e a Itália fascista. Nesses países, a imprensa e o rádio gritavam contra as “hordas bolcheviques” que, segundo eles, haviam incendiado Guernica antes de evacuá-la. Suas mentiras foram rapidamente refutadas. O relato que a História guardou foi o de George Steer, a quem foi dedicada uma rua em Guernica, onde, em abril de 2006, foi inaugurado um busto do repórter.

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“A pintura não é feita para decorar as paredes, é um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo” (Pablo Picasso).

O outro, com 56 anos, era um pintor famoso, estabelecido na França. Apoiava a causa republicana frente à rebelião franquista. Descrito pelos Renseignements Généraux (a polícia política francesa) como “um anarquista suspeito sob o ponto de vista nacional” e “um pintor supostamente moderno” — por tais razões lhe foi negada a naturalização francesa em abril de 1940 — se posiciona, de imediato, para a tarefa. O resultado é uma pintura monumental de oito metros de largura por três e meio de altura, em preto e branco, que foi exposta no pavilhão espanhol da Exposição Universal. Como disse Picasso: “A pintura não é feita para decorar as casas. É um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo”.

Guernica é uma lição pendente. Os autores daquele crime de guerra, começando pelo chefe da Legião Condor, tenente-coronel Wolfram von Richthofen, foram aclamados como heróis na Alemanha nazi, e os que ainda vivem desfrutam de uma aprazível aposentadoria e concedem entrevistas com um descaramento inusitado. O bombardeio da cidade santa dos bascos foi uma experiência de campo para avaliar a capacidade da aviação alemã em destruir eficazmente uma cidade. Como afirmou Hermann Göring no julgamento de Nuremberg: “A guerra civil espanhola me ofereceu a oportunidade de provar minha jovem aviação, e permitiu aos meus homens ganhar experiência”.

Esse crime de guerra não foi o primeiro nem o último do século XX. Em 1915, Winston Churchill ordenou os primeiros bombardeios com armas químicas contra populações civis no Iraque. Depois de Guernica, houve outras cidades mártires como Coventry, Hamburgo, Dresden, Hiroshima e Nagasaki. Depois da Espanha, toda a Europa. Depois da Europa, Ásia, da Palestina à Coréia, do Vietname ao Camboja.

As Guernicas de hoje se chamam Gaza, Tel Afar, Faluja, Samarra e Najaf, assim como Grosny ou Kandahar. Os aviões que cospem as bombas mortíferas já não levam a cruz de ferro, mas as insígnias dos países “democráticos”. O lugar dos “inimigos vermelhos de Deus” contra os quais diziam lutar Franco, Hitler e Mussolini para salvar o Ocidente, é ocupado hoje pelos “islamitas” e o “eixo do mal”, que, segundo Bush, autêntico Hitler de nossos dias, vai de Havana a Pyongyang, passando por Caracas, Beirute, Damasco, Cartum e Teerã. E a “comunidade internacional”, ontem paralisada diante do martírio da Etiópia e da Espanha, hoje em dia, frente ao martírio da Palestina, Iraque e Afeganistão, está pior que paralisada, é cúmplice das centenas de Guernicas que se repetem ante nossos olhos cansados, dia após dia.

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A tragédia de Guernica

George Steer

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Cidade destruída em ataque aéreo. Relato de uma testemunha ocular. De nosso correspondente especial, Bilbao, 27 de abril de 1937

Guernica, a cidade mais antiga dos bascos, centro de sua tradição cultural, foi completamente destruída na tarde de ontem por ataques aéreos de insurgentes. O bombardeio dessa cidade aberta, localizada muito além das linhas, durou precisamente três horas e um quarto, tempo em que uma poderosa frota de aviões composta por três modelos alemães, bombardeiros Junkers e Heinkel e aeronaves Heinkel não cessou de descarregar sobre a cidade bombas pesando 450 quilos e, calcula-se, mais de 3.000 projéteis incendiários de alumínio de um quilo.

Guernica logo ficou completamente em chamas, exceto a histórica Casa de Juntas, com seu rico arquivo da raça basca, onde o antigo parlamento basco funcionava. O famoso carvalho de Guernica, o velho e seco tronco de 600 anos e os novos galhos jovens deste século estavam igualmente intocados. Aqui os reis da Espanha costumavam prestar o juramento de respeitar os direitos democráticos (fueros) de Biscaia e, em retorno, recebiam a promessa de lealdade como suseranos com o democrático título de Senhor e não Rei de Biscaia. A nobre igreja paroquial de Santa Maria também foi preservada com exceção de sua bela capela, atingida por uma bomba incendiária.

Às duas horas da manhã de hoje, quando visitei a cidade, seu conjunto era uma visão horrível, ardendo de ponta a ponta. O reflexo das chamas podia ser visto nas nuvens de fumaça acima das montanhas a dez milhas de distância. Durante toda a noite, casas caíam até que as ruas se tornassem longas pilhas de destroços vermelhos impenetráveis. Muitos dos sobreviventes civis faziam a longa jornada de Guernica a Bilbao em antigas e sólidas carroças de fazendas bascas puxadas por bois. Essas carroças levando altas pilhas de todo o tipo de pertences domésticos que pudessem ser salvos da conflagração obstruíam as estradas noite adentro. Outros sobreviventes foram evacuados em caminhões do governo, mas muitos eram forçados a permanecer em torno da cidade incendiada deitados em colchões ou procurando por parentes e crianças perdidas, enquanto unidades dos bombeiros e da polícia basca motorizada, sob orientação pessoal do ministro do Interior, Senhor Monzon e sua esposa, continuavam o trabalho de resgate até o amanhecer.

O sino da igreja tocou o alarme

Em sua forma de execução e pela escala de destruição que causou, não menos que na escolha de seu objetivo, o ataque sobre Guernica não encontra paralelo na história militar. Guernica não era um alvo militar. Uma fábrica que produzia material bélico localizada fora da cidade ficou intocada. O mesmo ocorreu com duas instalações militares a alguma distância. A cidade estava muito além das linhas. O objetivo do bombardeio foi claramente a desmoralização da população civil e a destruição do berço da raça basca. Todos os fatos sustentam essa avaliação, começando pelo dia em que o ataque foi feito.

Segunda-feira era o tradicional dia de compras no mercado de Guernica para a região ao redor. Às 16h30min, quando o mercado estava lotado e as pessoas continuavam chegando, o sino da igreja tocou o alarme indicando aeronaves em aproximação e a população procurou refúgio em celeiros e nos abrigos preparados após o bombardeio da população civil de Durango, em 31 de março, que deflagrou a ofensiva do General Mola ao norte. Dizem que a população demonstrou coragem. Um padre católico tomou a liderança e a ordem foi perfeitamente mantida.

Cinco minutos mais tarde um único bombardeiro alemão apareceu, circulou sobre a cidade em baixa altitude, e então lançou seis bombas pesadas, aparentemente mirando para a estação. As bombas e uma chuva de granadas caíram em um antigo instituto e sobre casas e ruas do entorno. O avião foi embora. Dentro de outros cinco minutos veio um segundo bombardeiro, que jogou o mesmo número de bombas no meio da cidade. Cerca de um quarto de hora mais tarde, três Junkers chegaram para continuar o trabalho de demolição, e daí em diante o bombardeio cresceu em intensidade e foi contínuo, cessando somente com a aproximação do anoitecer, às 19h45min.

A cidade inteira, com 7.000 habitantes e mais 3.000 refugiados, foi lenta e sistematicamente esmagada em pedaços. Em um raio de cinco milhas ao redor, um detalhe da técnica dos atacantes consistia em bombardear casarios ou casas de fazenda em separado. À noite, essas queimavam como pequenas velas nas colinas. Todos os vilarejos em volta foram bombardeados com a mesma intensidade da cidade e, em Mujica, um pequeno grupo de casas na entrada Guernica, a população foi metralhada durante 15 minutos.

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Sobrevivente dos bombardeamentos (Foto de Robert Capa).

Ritmo de morte

Ainda é impossível afirmar o número de vítimas. Na imprensa de Bilbao hoje pela manhã ele foi avaliado como “felizmente pequeno”, mas teme-se que este seja um número subestimado para não alarmar a grande população de refugiados de Bilbao. No hospital de Josefinas, que foi um dos primeiros lugares bombardeados, todos os 42 milicianos feridos lá abrigados foram mortos. Em uma rua descendo a colina em direção a Casa de Juntas, eu vi um lugar onde dizem que 50 pessoas, quase todas mulheres e crianças, ficaram presas em um abrigo anti-aéreo sob uma montanha de destroços em chamas. Muitos foram mortos no campo, e, ao todo, as mortes podem chegar a centenas. Um padre idoso chamado Aronategui foi morto por uma bomba enquanto resgatava crianças de uma casa incendiada.

As táticas dos bombardeiros, que podem ser de interesse de estudantes da nova ciência militar, eram as seguintes: primeiro, pequenos grupos de aviões lançavam bombas pesadas e granadas por toda a cidade, escolhendo área por área de forma ordenada. Depois vinham as máquinas de combate que atacavam em baixa altitude para metralhar aqueles que fugissem em pânico dos abrigos, alguns dos quais já tinham sido atingidos por bombas de 450 quilos, que fazem um buraco com 30 metros de profundidade. Muitas dessas pessoas foram mortas enquanto corriam. Um grande rebanho de ovelhas que estava sendo trazido para o mercado também foi dizimado. O objetivo dessa ação era aparentemente conduzir a população aos subterrâneos, para que, após, cerca de 12 bombardeiros aparecessem ao mesmo tempo lançando bombas pesadas e incendiárias sobre as ruínas. O ritmo desse bombardeio de uma cidade aberta era, portanto, lógico: primeiro, granadas leves e bombas pesadas para dispersar a população, então metralhá-la para levá-la para baixo e, depois, lançar bombas pesadas e incendiárias para demolir as casas e queimá-las por cima das vítimas.

As únicas contramedidas que os bascos poderiam empregar, uma vez que não possuem aeronaves suficientes para enfrentar a esquadra insurgente, eram aquelas fornecidas pelo heroísmo dos seus padres. Estes abençoavam e rezavam pelas multidões de joelhos – socialistas, anarquistas e comunistas, assim como os que se declaravam seguidores – nos abrigos em frangalhos.

Quando entrei em Guernica depois da meia-noite, casas estavam desabando de ambos os lados e era totalmente impossível, até mesmo para os bombeiros, entrar no centro da cidade. Os hospitais de Josefinas e do Convento de Santa Clara eram ardentes amontoados de brasas, todas as igrejas exceto a de Santa Maria estavam destruídas, e as poucas casas que ainda restavam em pé estavam condenadas. Quando revisitei Guernica nesta tarde a maior parte da cidade ainda estava queimando e novos incêndios tinham iniciado. Cerca de 30 mortos estavam deitados em um hospital em ruínas.

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Um apelo aos bascos

O efeito do bombardeio de Guernica aqui, a cidade sagrada dos bascos, é profundo e levou o Presidente Aguirre a fazer a seguinte declaração na imprensa local pela manhã: “Os aviadores alemães a serviço dos rebeldes espanhóis bombardearam Guernica, queimando a cidade histórica que é tão venerada por todos os bascos. Eles procuraram nos ferir no mais sensível de nossos sentimentos patrióticos, uma vez mais deixando inteiramente claro o que Euzkadi pode esperar daqueles que não hesitam em destruir-nos no único santuário que guarda séculos de nossa liberdade e nossa democracia.”

“Frente a esse horror, nós todos, bascos, devemos reagir com violência, jurando, do fundo de nossos corações, defender os princípios de nosso povo com teimosia e heroísmo sem precedentes se a situação assim o exigir. Não podemos esconder a gravidade do momento; mas a vitória nunca poderá ser obtida pelo invasor se, elevando nossos espíritos às alturas da força e da determinação, nós nos empenharmos em sua derrota.”

“O inimigo avançou em muitas partes, em outros lugares, para que seja expulso mais tarde. Eu não hesito em afirmar que aqui a mesma coisa acontecerá. Que o terror de hoje seja mais um estímulo para fazer isso com toda a urgência.”

Imagem 1: Guernica - O inferno durou 4 horas: 70% dos edifícios foram destruídos e um número indeterminado de mortos, entre 800 a 1 600.

Fonte