A Arte de Amar
Ovídio
Se gostas de caçar,
é sobretudo nos anfiteatros
que a caça é abundante.
Oferecem-te os teatros
muito mais do que possas desejar.
Aí encontrarás
desde o divertimento inconsequente
à mulher a quem amas realmente,
desde a amada que desejas conservar
àquela a quem apalpas fugazmente.
Assim como as formigas vão e vêm
em compridos carreiros na boca carregando
o grão que lhes serve de alimento,
assim como as abelhas que encontrando
seus bosques e pastagens odoríferas
voam por entre as flores e o rosmaninho,
são as mulheres elegantes atraídas
pelos jogos onde ocorre a multidão.
Muitas vezes ao vê-las (tantas são!)
a abundância retarda a nossa escolha.
Porque se vêm gozar o espectáculo
também gozam o espectáculo que dão.
Neste lugar vos digo que o mais casto pudor está sempre em perigo.
*
Onde escolher a eleita?
Onde lançar as redes?
Eis os ensinamentos que até aqui colheste
de Tália conduzida por rodas desiguais.
Agora o estratagema aprenderás
para enfim cativar aquela que te agrada.
Onde quer que estiveres e sejas tu quem fores
escuta docilmente esta lição.
Sejam minhas promessas dirigidas
a uma favorável audiência!
Para começar, convence o teu espírito
que todas as mulheres sem excepção
há-de atraí-las a tua sedução.
Basta que lances a rede irresistível.
Na primavera hão-de calar-se os pássaros
e as cigarras no verão
e da lebre no Némalo há-de fugir o cão
antes que uma mulher resista ao homem
que ternamente a solicita.
Mesmo essa de quem pensas «não me quer»
não julgues que te nega.
Se o amor clandestino agrada ao homem
não é menos simpático à mulher.
São os homens porém mais desastrados na arte de fingir.
É refinada a mulher no fingimento
de alimentar um secreto sentimento.
Se os machos combinassem
do amor não tomar a iniciativa
quanta mulher rendida
e nosso amor viria suplicar!
Nos verdejantes prados
com seus gemidos a fêmea chama o touro
e é também com relinchos amorosos
que a fêmea atrai o cornípedo cavalo.
A paixão dos humanos
é mais contida e menos furiosa;
nossa chama viril
das leis da natureza é respeitosa.
De Biblis que direi
que um criminoso amor por seu irmão
um dia alimentou
e corajosamente para o seu crime
o castigo na forca procurou?
Amou Mirra seu pai
Não com amor de filha
E eis que jaz escondida
sob a casca da árvore que a encobre.
As lágrimas que verte
A arvóre odorífera
Espalham o perfume
que o nome tem de Mirra.
Vénus na sua Concha - Pompeia
Nos vales umbrosos do selvático Ida
Vivia um touro branco, ó glória da manada!
Entre os cornos um pequeno sinal preto
Era, no corpo branco como o leite,
a mancha que a brancura maculava.
As novilhas de Cnossos e de Sídon
anseiam por senti-lo sobre o dorso.
Alegremente, Pasifa
do touro imaginava-se a amante
e presa de um ciúme delirante
as formosas bezerras odiava.
A história que canto é conhecida.
Nem mesmo Creta com suas cem cidades,
fosse ela mentirosa, o negaria.
De Pasifa cortava a mão inábil
para o branco touro, dizem,
a folhagem mais verde
e as ervas mais tenras que encontrava.
Amorosa, a manada acompanhava
e do marido o espírito afastava.
Minos vencido era por um boi.
Por que vestes, ó Pasifa, magníficos vestidos?
Aquele que tu amas, ó adúltera!
para as riquezas tem cegos os sentidos.
Por que te vês ao espelho quando vais
reunir-te à manada nas montanhas?
Por que penteias, ó louca! tantas vezes
a tua cabeleira?
Acredita porém no teu espelho
quando te diz que não és uma novilha...
Oh, o grande prazer que sentirias
se em tua fronte nascessem dois chavelhos!
Se amas Minos amante não procures;
e se queres enganar o teu marido
engana-o com um homem.
Abandonas a alcova conjugal;
como a Bacante que o deus Aónio arrasta
vais através dos bosques, das florestas.
Ah, quantas vezes numa vaca puseste
os olhos ciumentos e disseste:
«Por que agrada esta vaca ao meu senhor?
Vejam com ela salta;
na frente dele revolve a erva tenra!
A estúpida é capaz de acreditar
que a cobiçada sorte a favorece.»
Assim diz a rainha e logo ordena
que a tirem da manada
e que ao peso da canga
seja a vaca inocente condenada
ou impiedosamente a sacrifica
diante de um altar
e alegra na ciumenta mão sustém
as entranhas sangrentas da rival.
Sempre que as divindades pacifica
as rivais imolando
as vísceras segura assim gritando
«Ide agora agradar ao meu amado!»
Umas vezes deseja ser Europa,
outras vezes de Io a sorte inveja:
uma porque é novilha, a outra por que um touro
no seu dorso a levou.
Entretanto, o chefe da manada,
iludido pela imagem de uma vaca,
a ansiosa rainha engravidou.
Quem era o pai
O parto o revelou.
*
O pudor impede a mulher
De provocar certas carícias
Mas se é 0 homem a começar;
Elas recebe-as com delicia.
Ah! tens excessiva confiança.
nas tuas qualidades físicas
se esperas que seja a mulher
a tomar a iniciativa.
É ao homem que compete começar
e dizer palavras suplicantes.
À mulher cabe acolher suavemente
essas brandas palavras amorosas.
Queres possuí-la? Pede.
Ser rogada é tudo o que deseja.
Dá-lhe um motivo para se entregar.
Às velhas heroínas
dirigia-se Júpiter com um ar suplicante;
não eram elas que o vinham provocar.
Porém se as tuas preces
se quebram no rochedo de .um orgulho distante,
desiste e volta para trás.
Desejam as mulheres o que lhes foge
e detestam o que está ao seu alcance.
Se insistires com mais moderação,
maior será a sua aceitação.
Nem sempre transpareça em teus pedidos
o ímpeto da paixão.
Quantas vezes sob o nome de amizade
num coração fechado entra o amor.
Muitas mulheres esquivas vi cair
na armadilha desta sedução:
o que era apenas admirador
volvera-se em amante.
*
Ninguém diria que as mulheres
também aprendem a rir
e têm assim mais um encanto.
Modera contudo o teu riso
que ele não afaste demais
da tua boca os róseos cantos,
que os bordos dos lábios não deixem
ver os dentes completamente
e com um riso interminável
não se fatigue o teu ventre.
Deve o teu riso soar
com um toque leve e feminino.
Mulheres há que a boca torcem
num geito desagradável
quando soltam grandes risadas.
Outras parece que choram
quando expulsam gargalhadas
e outras ainda que riem
num tom rouco e detestável
qual zurro de burra idosa
que custosamente empurra
à volta a mó rugosa.
Onde é que a arte não penetra?
A arte aprendem de chorar
as mulheres que lágrimas vertem
quando e como lhes convém.
Que direi daquelas que alteram
de uma letra a pronúncia normal
e que a língua forçam como
se um som quisessem balbuciar?
O defeito de articular
com custo certas palavras
é nelas uma sedução.
Aprendem a falar menos
do que na verdade poderão.
Artifícios que vos são úteis:
dedicai-lhe a vossa atenção.
Aprendei a andar com o passo
que à mulher melhor convém.
Na marcha também reside
uma parte do teu encanto
e não é motivo de desdém.
Ela atrai ou afugenta
o homem que não te conhece.
Esta, por um movimento
estudado das suas ancas
faz flutuar a túnica ao vento
e o grácil pé para diante
lança majestosamente;
aquela, afastando as pernas
e em largos passos caminhando,
à vermelha raposa dum Umbrio
os homens a vão comparando.
Mas nisto como em tudo o mais
há uma medida a respeitar.
Uma é rústica em sua marcha,
a outra é mais pretensiosa
do que convém aparentar.
De qualquer maneira deixai,
de preferência no lado esquerdo,
a extremidade da espádua
e o nascer do braço a descoberto.
Numa pele branca como a neve
este detalhe é impressionante.
Nunca tal vi que não sentisse
o desejo de cobrir com beijos
a descoberta superfície.
(Ovídio e A “Arte de Amar”. Edição Galeria Panorama, 1969)
Imagem de destaque: Primavera – Stabiae. Museu Nacional de Nápoles.