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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

A Arte de Amar

20.03.25 | Manuel

primavera.jpg

Ovídio

Se gostas de caçar,

é sobretudo nos anfiteatros

que a caça é abundante.

Oferecem-te os teatros

muito mais do que possas desejar.

Aí encontrarás

desde o divertimento inconsequente

à mulher a quem amas realmente,

desde a amada que desejas conservar

àquela a quem apalpas fugazmente.

Assim como as formigas vão e vêm

em compridos carreiros na boca carregando

o grão que lhes serve de alimento,

assim como as abelhas que encontrando

seus bosques e pastagens odoríferas

voam por entre as flores e o rosmaninho,

são as mulheres elegantes atraídas

pelos jogos onde ocorre a multidão.

Muitas vezes ao vê-las (tantas são!)

a abundância retarda a nossa escolha.

Porque se vêm gozar o espectáculo

também gozam o espectáculo que dão.

Neste lugar vos digo que o mais casto pudor está sempre em perigo.

*

Onde escolher a eleita?

Onde lançar as redes?

Eis os ensinamentos que até aqui colheste

de Tália conduzida por rodas desiguais.

Agora o estratagema aprenderás

para enfim cativar aquela que te agrada.

Onde quer que estiveres e sejas tu quem fores

escuta docilmente esta lição.

Sejam minhas promessas dirigidas

a uma favorável audiência!

 

Para começar, convence o teu espírito

que todas as mulheres sem excepção

há-de atraí-las a tua sedução.

Basta que lances a rede irresistível.

Na primavera hão-de calar-se os pássaros

e as cigarras no verão

e da lebre no Némalo há-de fugir o cão

antes que uma mulher resista ao homem

que ternamente a solicita.

Mesmo essa de quem pensas «não me quer»

não julgues que te nega.

Se o amor clandestino agrada ao homem

não é menos simpático à mulher.

São os homens porém mais desastrados na arte de fingir.

É refinada a mulher no fingimento

de alimentar um secreto sentimento.

Se os machos combinassem

do amor não tomar a iniciativa

quanta mulher rendida

e nosso amor viria suplicar!

Nos verdejantes prados

com seus gemidos a fêmea chama o touro

e é também com relinchos amorosos

que a fêmea atrai o cornípedo cavalo.

A paixão dos humanos

é mais contida e menos furiosa;

nossa chama viril

das leis da natureza é respeitosa.

De Biblis que direi

que um criminoso amor por seu irmão

um dia alimentou

e corajosamente para o seu crime

o castigo na forca procurou?

Amou Mirra seu pai

Não com amor de filha

E eis que jaz escondida

sob a casca da árvore que a encobre.

As lágrimas que verte

A arvóre odorífera

Espalham o perfume

que o nome tem de Mirra.

venus.jpg

Vénus na sua Concha - Pompeia

Nos vales umbrosos do selvático Ida

Vivia um touro branco, ó glória da manada!

Entre os cornos um pequeno sinal preto

Era, no corpo branco como o leite,

a mancha que a brancura maculava.

As novilhas de Cnossos e de Sídon

anseiam por senti-lo sobre o dorso.

Alegremente, Pasifa

do touro imaginava-se a amante

e presa de um ciúme delirante

as formosas bezerras odiava.

A história que canto é conhecida.

Nem mesmo Creta com suas cem cidades,

fosse ela mentirosa, o negaria.

 

De Pasifa cortava a mão inábil

para o branco touro, dizem,

a folhagem mais verde

 e as ervas mais tenras que encontrava.

Amorosa, a manada acompanhava

e do marido o espírito afastava.

Minos vencido era por um boi.

Por que vestes, ó Pasifa, magníficos vestidos?

Aquele que tu amas, ó adúltera!

para as riquezas tem cegos os sentidos.

Por que te vês ao espelho quando vais

reunir-te à manada nas montanhas?

Por que penteias, ó louca! tantas vezes

a tua cabeleira?

Acredita porém no teu espelho

quando te diz que não és uma novilha...

Oh, o grande prazer que sentirias

se em tua fronte nascessem dois chavelhos!

Se amas Minos amante não procures;

e se queres enganar o teu marido

engana-o com um homem.

 

Abandonas a alcova conjugal;

como a Bacante que o deus Aónio arrasta

vais através dos bosques, das florestas.

Ah, quantas vezes numa vaca puseste

os olhos ciumentos e disseste:

«Por que agrada esta vaca ao meu senhor?

Vejam com ela salta;

na frente dele revolve a erva tenra!

A estúpida é capaz de acreditar

que a cobiçada sorte a favorece.»

Assim diz a rainha e logo ordena

que a tirem da manada

e que ao peso da canga

seja a vaca inocente condenada

ou impiedosamente a sacrifica

diante de um altar

e alegra na ciumenta mão sustém

as entranhas sangrentas da rival.

Sempre que as divindades pacifica

as rivais imolando

as vísceras segura assim gritando

«Ide agora agradar ao meu amado!»

Umas vezes deseja ser Europa,

outras vezes de Io a sorte inveja:

uma porque é novilha, a outra por que um touro

no seu dorso a levou.

 

Entretanto, o chefe da manada,

iludido pela imagem de uma vaca,

a ansiosa rainha engravidou.

Quem era o pai

O parto o revelou.

 

 

*

 

O pudor impede a mulher

De provocar certas carícias

Mas se é 0 homem a começar;

Elas recebe-as com delicia.

Ah! tens excessiva confiança.

nas tuas qualidades físicas

se esperas que seja a mulher

a tomar a iniciativa.

É ao homem que compete começar

e dizer palavras suplicantes.

À mulher cabe acolher suavemente

essas brandas palavras amorosas.

 

Queres possuí-la? Pede.

Ser rogada é tudo o que deseja.

Dá-lhe um motivo para se entregar.

Às velhas heroínas

dirigia-se Júpiter com um ar suplicante;

não eram elas que o vinham provocar.

Porém se as tuas preces

se quebram no rochedo de .um orgulho distante,

desiste e volta para trás.

Desejam as mulheres o que lhes foge

e detestam o que está ao seu alcance.

 

Se insistires com mais moderação,

maior será a sua aceitação.

Nem sempre transpareça em teus pedidos

o ímpeto da paixão.

Quantas vezes sob o nome de amizade

num coração fechado entra o amor.

Muitas mulheres esquivas vi cair

na armadilha desta sedução:

o que era apenas admirador

volvera-se em amante.

 

*

 

Ninguém diria que as mulheres

também aprendem a rir

e têm assim mais um encanto.

Modera contudo o teu riso

que ele não afaste demais

da tua boca os róseos cantos,

que os bordos dos lábios não deixem

ver os dentes completamente

e com um riso interminável

não se fatigue o teu ventre.

Deve o teu riso soar

com um toque leve e feminino.

Mulheres há que a boca torcem

num geito desagradável

quando soltam grandes risadas.

Outras parece que choram

quando expulsam gargalhadas

e outras ainda que riem

num tom rouco e detestável

qual zurro de burra idosa

que custosamente empurra

à volta a mó rugosa.

Onde é que a arte não penetra?

A arte aprendem de chorar

as mulheres que lágrimas vertem

quando e como lhes convém.

Que direi daquelas que alteram

de uma letra a pronúncia normal

e que a língua forçam como

se um som quisessem balbuciar?

O defeito de articular

com custo certas palavras

é nelas uma sedução.

Aprendem a falar menos

do que na verdade poderão.

Artifícios que vos são úteis:

dedicai-lhe a vossa atenção.

Aprendei a andar com o passo

que à mulher melhor convém.

Na marcha também reside

uma parte do teu encanto

e não é motivo de desdém.

Ela atrai ou afugenta

o homem que não te conhece.

Esta, por um movimento

estudado das suas ancas

faz flutuar a túnica ao vento

e o grácil pé para diante

lança majestosamente;

aquela, afastando as pernas

e em largos passos caminhando,

à vermelha raposa dum Umbrio

os homens a vão comparando.

Mas nisto como em tudo o mais

há uma medida a respeitar.

Uma é rústica em sua marcha,

a outra é mais pretensiosa

do que convém aparentar.

 

De qualquer maneira deixai,

de preferência no lado esquerdo,

a extremidade da espádua

e o nascer do braço a descoberto.

Numa pele branca como a neve

este detalhe é impressionante.

Nunca tal vi que não sentisse

o desejo de cobrir com beijos

a descoberta superfície.

(Ovídio e A “Arte de Amar”. Edição Galeria Panorama, 1969)

Imagem de destaque: Primavera – Stabiae. Museu Nacional de Nápoles.