A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro
Antonio Tabucchi
Provou um pedaço do bacalhau e disse:
— Acho que este prato esta divino, e você, o que lhe parece?
— Muito bom, respondeu Firmino, mas estava-me a falar da sua infância.
— Pois bem, continuou o advogado, aquela casa está desabitada, com todas as recordações daquela senhora marquesa que à sua maneira fez de minha avó: os seus retratos, os seus móveis, as suas colchas de Castelo Branco e as suas árvores genealógicas. Digamos que é a minha infância que está fechada lá dentro como num cofre. Há uns anos ainda lá ia para consultar os arquivos de família, mas não sei se reparou bem na Rua do Ferraz, para chegar ao topo seria preciso um teleférico, com a minha corpulência não tenho hipótese, teria de chamar um táxi para percorrer quinhentos metros, por isso há sete anos que não ponho lá os pés. E portanto resolvi vendê-la, entreguei-a a uma imobiliária, é bom que as imobiliárias engulam as infâncias, é a maneira mais esterilizada de nos vermos livres delas, e você nem lhe passa pela cabeça a quantidade de burgueses endinheirados, daqueles que fizeram fortunas nos últimos tempos com os subsídios da comunidade europeia, que gostariam de ficar c0m aquela casa. Sabe, é um lugar que segundo a mentalidade deles lhes daria o status de que andam desesperadamente à procura, o construir uma vivenda moderna com piscina nas zonas residenciais esta ao alcance deles, mas um palacete do século XVIII esá uns largos degraus mais acima, capta a ideia?
— Capto a ideia, assentiu Firmino.
— De maneira que decidi vendê-la, disse advogado.
O pretendente mais sôfrego vem da província. É o típico representante da sociedade em que vivemos hoje em dia.
O pai dele era um modesto criador de gado. Ele começou com uma pequena actividade comercial no ramo do calçado ainda durante o salazarismo. Na realidade fabricava sobretudo sapatos de má qualidade com a ajuda de um par de operários. Depois em setenta e quatro veio a revolução e ele aderiu às ideias cooperativistas, deu até uma entrevista quase revolucionária num quotidiano inflamado. E depois, a seguir às ilusões revolucionárias, veio o neoliberalismo desenfreado, e ele fez a opção que lhe convinha. Resumindo, é um dos que se soube governar. Hoje, é dono de quatro Mercedes e de um campo de golf no Algarve, é um grande accionista da construção civil no Alentejo e se calhar também em Troia, é daqueles que se dão bem com todos os partidos da bancada constitucional, dos comunistas até à direita, e é evidente que a sua fábrica de sapatos está florescente, exporta principalmente para os Estados Unidos. Agora diga lá, faço ou não faço bem em vender-lha?
— A casa?, perguntou Firmino.
— Pois, a casa, respondeu o advogado. Se calhar vendo mesmo. Há uns dias, a mulher dele, que aliás me parece ser a única alfabeta da família, veio falar comigo. Poupo-lhe a descrição da elegância da senhora. Mas subi as cotações, porque disse que só vendia a casa com os móveis antigos e com os quadros nobres, e perguntei-lhe: o que é que uma família como a sua, estimada senhora, faria com uma casa destas sem os móveis antigos e os quadros nobres? Você o que é que acha, rapaz, acha quefiz bem?
— Acho que fez muito bem, respondeu Firmino, já que quer a minha opinião, digo-lhe que fez muito bem.
— Então, concluiu o advogado, informe o seu director que as despesas do caso do Damasceno Monteiro ficam mais que pagas por dois quadros do século XVIII da minha casa da Rua do Ferraz, e que por favor não me venha falar dos meus honorários.
Firmino não replicou e continuou a comer. Provara timidamente o arroz de feijão e tinha-o achado delicioso, e por isso servira-se doutra dose. Apetecia-lhe dizer uma coisa, mas não sabia como dizê-la. Por fim tentou formulá-la.
— O meu jornal, gaguejou, bem, o meu jornal é o que é, quero dizer, o senhor conhece bem o estilo dele, é o estilo com que procuramos captar os nossos leitores, enfim, é um jornal popular, talvez corajoso, mas é um jornal popular, tem de fazer as suas concessões para aumentar a tiragem, não sei se me faço entender.
O advogado parecia ocupado com os petiscos e não respondeu. Agora estava totalmente absorto a comer o bacalhau.
— Não sei se capta a ideia, disse Firmino recorrendo à fórmula do advogado.
— Não, não capto a ideia, respondeu o advogado.
— Enfim, continuou Firmino, o que eu quero dizer é que o meu jornal é aquilo que o senhor sabe, e o senhor, bem, o senhor é um advogado importante, tem o apelido que tem, enfim o que eu quero dizer é que o senhor tem uma reputação a defender, não sei se me faço entender.
— Ó rapaz, você continua a desiludir-me, respondeu o advogado, procura a todo o custo ser inferior a si próprio, nunca devemos ser inferiores a nós próprios, o que é que disse a meu respeito?
— Que tem uma reputação a defender, respondeu Firmino.
— Olhe, murmurou o advogado, acho que não nos estamos a entender, vou-lhe dizer uma coisa de uma vez por todas, mas abra bem esses ouvidos. Eu defendo os desgraçados porque sou igual a eles, a verdade é essa. Da minha nobre estirpe utilizo apenas o património material que me deixaram, mas tal como os desgraçados que defendo acho que conheci as misérias da vida, que as compreendi e que até as assumi, porque para perceber as misérias da vida é preciso meter as mãos na merda, desculpe o termo, e sobretudo ter consciência disso. E não me obrigue a ser retórico, porque é retórica barata.
— Mas o senhor em que é que acredita?, perguntou Firmino.
Não saberia dizer o que o levou a fazer aquela pergunta ingénua, e no preciso momento em que a formulava pareceu-lhe ser uma daquelas perguntas que se fazem na escola à colega de carteira e que fazem c0rar quem as faz e quem as ouve. O advogado ergueu a cabeça do prato e fixou-o c0m os seus olhinhos inquisitoriais.
— Está a fazer-me uma pergunta pessoal?, perguntou com evidente enfado.
— Estou, sim, respondeu Firmino corajosamente, é uma pergunta pessoal.
— Porque é que me faz essa pergunta?, insistiu o advogado.
—Porque o senhor não acredita em nada, exclamou Firmino, a impressão que eu tenho é que o senhor não acredita em nada.
O advogado sorriu. A Firmino pareceu-lhe um sorriso contrafeito.
— Poderia acreditar, por exemplo, numa coisa que talvez a si lhe pudesse parecer insignificante, respondeu.
— Explique-me, dê-me um exemplo, insistiu Firmino, uma coisa que seja convincente.
Agora que se tinha metido naquela embrulhada queria ir até ao fim.
—Um poema, por exemplo, respondeu o advogado, uns versos, pode parecer um disparate, mas também pode ser uma coisa fundamental, oiça: «Tudo aquilo que conheci / tu me escreverás para mo lembrares / com cartas. E assim também eu / te direi todo o passado».
O advogado calou-se. Tinha afastado o prato e a sua mão martirizava o guardanapo.
— Hölderlin, continuou. É uma poesia intitulada Wenn aus der Ferne, quer dizer "Se da lonjura", uma das suas últimas poesias. Digamos que pode haver pessoas que esperam cartas do passado, parece-lhe uma coisa plausível em que se possa acreditar?
— Talvez, respondeu Firmino, é possível que seja plausível, mas gostaria de perceber melhor.
— E simples, murmurou o advogado, cartas do passado que nos expliquem um momento da nossa vida que nunca compreendemos, que nos dêem uma explicação qualquer que nos faça entender o sentido de tantos anos passados, daquilo que então nos escapou, você é jovem, você espera cartas do futuro, mas suponha que haja pessoas que esperam cartas do passado, e que se calhar eu sou uma delas, e que até talvez me atreva a imaginar que um dia elas vão chegar.
Fez uma pausa, acendeu um dos seus charutos e perguntou:
— E sabe como imagino que vão chegar?, faça um esforço.
— Não faço a mínima ideia, respondeu Firmino.
— Pois bem, disse o advogado, num embrulhinho atado com uma fita cor-de-rosa, assim mesmo, e com perfume a violetas, como nos piores romances de cordel. E nesse dia vou aproximar o meu narigão ao embrulhinho, vou desatar a fita cor-de-rosa, vou abrir as cartas e vou perceber com uma clareza meridiana uma história que nunca antes tinha percebido, uma história única e fundamental, repito, única e fundamental, uma c0isa que só nos acontece uma vez na vida, que os deuses sé permitem que aconteça uma vez na vida, e à qual não prestamos a devida atenção, precisamente porque éramos uns idiotas presunçosos.
Fez outra pausa, desta vez mais prolongada. Firmino olhava para ele em silêncio, observava as suas bochechas gordas e descaídas, a boca carnuda quase repulsiva, aquela expressão perdida nas suas lembranças.
— Pois, continuou o advogado em voz baixa, que faites-vous des anciennes amours? Pois é, também eu pergunto, que faites-vous des anciennes amours? E um verso de um poema de Louise Colet que continua assim: les chassez-vous comme dcs ombres vaines? ils ont été ces fantômcs glacés, coeur contre coeur, une part de vous méme. E certamente dirigido a Flaubert. É preciso dizer que Louise Colet escrevia poemas lamentáveis, coitada, apesar de se achar uma grande poetisa e de querer fazer figura nos salões literários parisienses, os seus versos eram realmente medíocres, não há dúvida. Mas estes poucos versos são um espinho no flanco, parece-me, pois o que havemos de fazer com os amores passad0s?, vamos arrumá-los numa gaveta com as meias rotas?
*
Nota
As personagens, os lugares e as situações aqui descritas são fruto da fantasia romanesca. Mas real foi o episódio bem concreto que despoletou essa fantasia: na noite de 7 de Maio de 1996, Carlos Rosa, cidadão português, de vinte e cinco anos de idade, foi morto numa esquadra da Guarda Nacional Republicana de Sacavém e o seu corpo foi encontrado num jardim publico, decapitado e com sinais de sevícias.
No que se refere a alguns aspectos jurídicos deste livro, foram para mim fundamentais as conversas que tive com o meu amigo Antonio Cassese, Presidente do Tribunal Penal Internacional da Haia, bem como as reflexões que me suscitou o seu livro Umano—Disumano. Comissariati e perigioni nell’Europa di oggi, Laterza, 1994 1.
De certa maneira, este livro é também credor daquele a quem chamo Manolo o Cigano, personagem de ficção, ou melhor, entidade colectiva coagulada em entidade individual numa história a que ele pessoalmente é alheio, mas que participa de algumas histórias inesquecíveis que ouvi da boca de velhos ciganos numa tarde longínqua em Janas, durante a cerimonia da bênção do gado, quando o povo nómada ainda possuía cavalos.
Agradeço a Danilo Zolo todas as informações preciosas sobre Filosofia do Direito que generosamente me forneceu, e a Paola Spinesi e Massimo Marianetti o cuidado e a paciência com que transformaram o manuscrito original em texto dactilografado.
Resta-me dizer que Damasceno Monteiro é o nome de uma rua de um bairro popular de Lisboa onde morei por uns tempos, e que as primeiras frases do discurso do advogado Lóton pertencem ao filósofo Mario Rossi. O resto do seu discurso pertence apenas à cultura e as convicções da minha personagem.
1 Trad. inglesa: Inhuman States. Imprisonment, detention and torture in Europe today; Polity Press, Cambridge 1996.
A. T.
(“A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro”, Antonio Tabucchi. D. Quixote, 2022.)