A Colónia Penal do Tarrafal
O Campo do Tarrafal
«O campo de concentração do Tarrafal é um rectângulo de arame farpado, exteriormente contornado por uma vala de quatro metros de largura e três de profundidade. Tem duzentos metros de comprimento por cento e cinquenta de largo e está encravado numa planície que o mar limita pelo poente e uma cadeia de montes por norte, sul e nascente. Dista três quilómetros da vila do Tarrafal, na ilha de Santiago.
A falta de vegetação, os montes escarpados, o mar e o isolamento a que os presos estão submetidos, dão à vida, aí, uma monotonia que torna mais insuportável o cativeiro. Como únicos vestígios do mundo há o ar carrancudo dos guardas e das sentinelas negras que vigiam, as cartas das famílias que demoram meses achegar, e dias a ser distribuídos, os castigos e os enxovalhos, os trabalhos forçados, as doenças e a morte de alguns companheiros.
[...]
O fosso que circunda a Colónia Penal tem a configuração de rampa. Com aterra tirada daí formaram um talude que se eleva a três metros de altura acima do nível do campo. A cada canto desse talude, sobre o qual há uma plataforma por onde passeiam as sentinelas negras, foi construído um reduto, onde pode ser instalada uma metralhadora. Dum lado e outro do portão de entrada erguem-se dois poderosos fortins. Eles defenderão o campo dum assalto exterior ou de uma possível tentativa de fuga. Uma ponte de madeira atravessa o vale nesta direcção. É a única passagem que conduz à vida.
Lá dentro há apenas quatro barracões sem higiene, algumas barracas de madeira, nas quais estão instaladas as oficinas e o balneário, uma cozinha, sem condições de asseio, e algumas árvores.
Eis tudo o que forma este pequeno mundo.
A 29 de Outubro de 1936, na pequena baía do Tarrafal, desembarcámos 150 presos antifascistas, os primeiros que o fascismo português atirou para o campo de concentração de Cabo Verde.
Muitos de nós, como Manuel Alpedrinha, Júlio Fogaça, Fernando Quirino, Alfredo Caldeira, Militão Bessa Ribeiro, Américo de Sousa, Fernando Cruz, Pedro Soares, Sérgio Vilarigues, Carlos Sovela, Acácio José da Costa, Luís da Cunha Taborda, Jaime Francisco, José Tavares de Almeida, e outros, tinham concluído as suas penas; José Gilberto de Oliveira (Espartacus), Manuel Rodrigues da Silva, Edmundo Pedro, Adolfo Pais, José Soares, Carlos Ferreira, Patrício e Domingos Quintas, Armando Callet, não tinham sido julgados ou não tinham processos; outros eram presos sujeitos a pequenas condenações nas cadeias do continente.
Trazidos de outras prisões, do segredo, do Calejão da fortaleza de Angra e dos fortes de Caxias e Peniche, sujeitos ao brutal regime de terror, fomos metidos nos porões dum navio, num ambiente irrespirável, com as vigias tapadas e o cavername do barco cheirando a tinta, tal como os bois e os sacos de café que vêm das colónias.
Éramos camponeses, operários, soldados, os gloriosos marinheiros das revoltas dos navios Dão, Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque, estudantes, intelectuais, filhos do povo que lutávamos pela felicidade do nosso país.
A bordo foi-nos imposto um severíssimo comportamento. As metralhadoras estiveram assestadas durante toda a viagem, para abrirem fogo à primeira voz. Praças da GNR vigiavam-nos.
[...]
Quando chegámos ao campo de concentração, fomos alojados em doze barracas de lona, com sete metros de comprimento por quatro de largo. Aí deviam viver doze homens.
Durante quase dois anos, essas barracas, que o sol e a chuva depressa apodreceram, serviram para nos arruinar a saúde.
Os ventos que sopram continuamente, e por vezes com violência, durante a estação seca, que vai de Novembro a Julho, faziam-nas dançar, os ferros frágeis que as mantinham entortavam-se, partiam-se ou rangiam a noite inteira. E depois vinha a poeira cobrir a cara e o corpo, sujar a roupa, os livros e a loiça, emporcalhar o soalho das barracas, que raríssimas vezes foi lavado... porque não havia água.
Em noites de vento mais forte a poeira irritante invadia tudo, as lonas rasgavam-se, algumas barracas ficavam sem tecto, os suportes de madeira caíam e nós éramos obrigados a consertar as nossas moradias, para continuarmos a viver nelas.
Algumas vezes fazíamo-lo debaixo de chuva. Num destes dias de vento, um ferro de uma barraca partiu-se e quebrou a cabeça ao preso Manuel Miranda, que fazia a barba. Não havia médico nem enfermeiro que o curassem, e só depois de muito instado o director se resolveu mandar vir o médico que o tratou.
O único edifício construído com pedra era a cozinha, que não estava concluída. Com amplas aberturas para o lado donde sopra o vento, enchia-se de poeira, a comida também, e quase sempre no fundo dos pratos ficavam os seus resíduos.
Durante três anos, nas barracas onde vivemos, depois nos barracões, não havia luz de noite. Para que precisávamos nós ver? O vento entortava os ferros das barracas, a poeira turvava a água, o companheiro do lado gemia, necessitávamos fazer as camas, ou procurar um objecto, mas não tínhamos luz! Só em volta do campo ela não faltava, para que as sentinelas negras, selvagens e inconscientes, pudessem assassinar, em nome da «civilização» e da «ordem», o primeiro que se aproximasse.»
(Extractos do primeiro capítulo «O episódio começa» do livro de Pedro Soares Tarrafal – Campo da Morte Lenta, Edições «Avante!», Lisboa, 1975.)
Carta publicada no “Avante!”, nº. 34, Série II, 2º. Semana de Maio de 1937
«Após alguns dias de chegarmos aqui, fomos logo obrigados a trabalhar, isto em trabalhos humilhantes, pois tivemos de ir carregar pedra às costas, de uma pedreira que ficava bastante longe, para os pretos fazerem umas espécie de pocilgas para os soldados pretos habitarem, pedras estas que tinham de ser arrancadas por nós. Enquanto andamos na nossa triste faina somos guardados por soldados pretos, sempre de arma aperrada e baioneta calada. Mas não são só os soldados pretos que nos guardam; são também vários polícias da informação vindos de Lisboa, que nos acompanham para todos os lados, armados de pistolas e de cavalos-marinhos.
«Provocam-nos a todo o instante para ver se nós nos rebelamos contra as suas ordens, a fim de terem pé para nos massacrarem a todos.
«Não nos é fornecida água para bebermos e até mesmo para a confecção da comida a temos nós que ir buscar a um poço que dista daqui cerca de 600 metros. Mas para irmos buscar a água tivemos que comprar as latas onde fazemos o seu transporte.
«Ainda não te disse que também fomos obrigados a carregar umas barracas alemãs, que tinham um peso enorme, às costas, de uma distância de 3000 metros, barracas aquelas que foram para os senhores polícias e sargentos da força.
«Todos estes transportes são feitos debaixo de forma e com constantes ameaças.
«Passamos fome porque o comandante quer enriquecer à nossa custa. Este senhor manda a comida para 151 presos com meio litro de azeite e quando a gente lhe observa neste sentido a resposta é que está bom porque é assim que ele gosta. Em seguida diz-nos que tenhamos cuidado com os castigos que são terríveis.
«As cartas que escrevemos são retidas dois meses e mais. Mas o ódio e o rancor contra nós vai mais longe, vai até ao ponto de nos obrigarem a formar todos os domingos e dias feriados ao içar e hastear da bandeira. Obrigam-nos também a tirar o chapéu a todos os oficiais, sargentos, cabo e policias, tudo isto só com o fim de nos humilharem.»
Os que foram assassinados
A Colónia Penal do Tarrafal foi criada pelo Decreto nº. 26539 de 23 de Abril de 1936 e abriu portas em 29 de Outubro do mesmo ano - faz agora 70 anos! - com 152 presos políticos provenientes de prisões do Continente e da Fortaleza de Angra do Heroísmo. Foi extinta em 1954 por portaria do governo fascista, mas reaberta em 1963, aquando do início da luta de libertação dos povos das antigas colónias, com a reclusão de uma centena de nacionalistas angolanos e guineenses.
Ficou conhecida por “campo da morte lenta”, por onde passaram 340 cidadãos que fizeram da vida luta pela liberdade, pertencentes a diversos quadrantes políticos, anarquistas, democratas, comunistas e sem partido; onde foram assassinados outros 32 cidadãos, cujos restos mortais foram transladados para Portugal em 1978. A soma das penas dos condenados que por lá passaram atinge 2 mil anos, 11 meses e cinco dias.
Ficam para memória os nomes dos cidadãos assassinados pelo fascismo salazarista no campo de concentração do Tarrafal:
Francisco José Pereira, marinheiro, 1909-1937;
Pedro Matos Filipe, descarregador, 1905-1937;
Francisco Domingues Quintas, industrial, 1889-1937;
Rafael Tobias Pinto da Silva, relojoeiro, 1911-1937;
Augusto Costa, operário vidreiro, 1901-1937;
Cândido Alves Barja, marinheiro, 1910-1937;
Abílio Augusto Belchior, marmorista, 1897-1937;
Francisco do Nascimento Esteves, torneiro, 1914-1938;
Arnaldo Simões Januário, barbeiro, 1897-1938;
Alfredo Caldeira, pintor decorador, 1908-1938;
Fernando Alcobia, vendedor de jornais, 1914-1939;
Jaime da Fonseca e Sousa, impressor na Casa da Moeda, 1902-1940;
Albino António de Oliveira Coelho, motorista, 1897-1940;
Mário dos Santos Castelhano, empregado de escritório, 1896-1940;
Jacinto de Melo Faria Vilaça, marinheiro, 1914-1941;
Casimiro Júlio Ferreira, funileiro, 1909-1941;
Albino António de Oliveira de Carvalho, comerciante, 1884-1941;
António Guedes de Oliveira e Silva, motorista, 1901-1941;
Ernesto José Ribeiro, padeiro, 1911-1941;
João Lopes Dinis, canteiro, 1904-1941;
Henrique Vale Domingues Fernandes, marinheiro, 1913-1942;
Bento António Gonçalves, torneiro mecânico no Arsenal da Marinha, 1902-1942;
Damásio Martins Pereira, operário, dn-1942;
António de Jesus Branco, descarregador, 1906-1942;
Paulo José Dias, fogueiro-marítimo, 1904-1943;
Joaquim Montes, operário corticeiro, 1912-1943;
Manuel Alves dos reis, dn-1943;
Francisco Nascimento Gomes, condutor, 1909-1943;
Edmundo Gonçalves, 1900-1944;
Manuel Augusto da Costa, pedreiro, dn-1945;
Joaquim Marreiros, marinheiro, 1910-1948;
António Guerra, empregado do comércio, 1913-1948.
(Informação e imagens retiradas do livro “Dossier Tarrafal”. Edições Avante! 2006)
Fig.1: Entrada do Campo de Concentração do Tarrafal em 1947. Vêem-se os dois torreões com seteiras, a ponte de madeira sobre a vala e o arame farpado.
Fig. 2: A “Frigideira”, desenho de Rogério Amaral.
A Frigideira era um exíguo edifício de cimento em forma rectangular, dividido interiormente em duas celas quadradas, com portas de ferro onde, na parte de baixo, cinco orifícios não deixavam enfiar um dedo. O tecto era uma espessa placa de betão, perto do qual havia um postigo gradeado em forma de meia lua com menos de cinquenta centímetros de largura por uns trinta de altura. O sol tropical, abrasador, que lhe batia de manhã à noite, tornava-o num forno. Chegaram a estar 12 presos onde caberiam apenas dois ou três.