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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

A Guerra civil no Congo e o genocídio no Ruanda

21.10.23 | Manuel

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Na sequência da instalação de um regime cliente dos EUA no Ruanda, em 1994, forças do Ruanda e do Uganda treinadas nos EUA intervieram no antigo Zaire – uma praça-forte da influência francesa e belga sob a presidência de Mobutu Sese Seko. Tropas especiais dos EUA – principalmente Boinas Verdes do Terceiro Grupo de Forças Especiais, com base em Fort Bragg, N.C. – tinham-se envolvido activamente no treino do EPR, como se encontra amplamente documentado.

Este programa era uma continuação do apoio e assistência militares encapotados fornecidos ao EPR antes de 1994. Por sua vez, as trágicas consequências da guerra civil no Ruanda, incluindo a crise dos refugiados, tinham preparado as condições para a participação do Uganda e do EPR do Ruanda na guerra civil no Congo:

«Washington forneceu auxílio militar em grande escala ao exército de Kagame, e as Forças Especiais do Exército dos EUA e outro pessoal militar treinaram centenas de soldados do Ruanda. Mas Kagame e os seus colegas tinham os seus próprios objectivos pessoais. Enquanto os Boinas Verdes treinavam o Exército Patriótico Ruandês, este treinava secretamente rebeldes do Zaire... No Ruanda, as fontes oficiais dos EUA descreviam publicamente o seu envolvimento com o exército como sendo quase exclusivamente de sensibilização para os direitos humanos. Mas os exercícios das Forças Especiais abrangiam igualmente outras áreas, nas quais se incluíam técnicas de combate...

Centenas de soldados e oficiais inscreveram-se nos programas de treino dos EUA, tanto no Ruanda como nos Estados Unidos... conduzidos por Forças Especiais americanas, estudavam técnicas de camuflagem, movimentação de pequenas unidades, procedimentos para a liderança de tropas, desenvolvimento de equipas de soldados, etc. ... E, enquanto o treino prosseguia, enviados oficiais dos EUA avistavam-se regularmente com Kagame e outros líderes do Ruanda para debater a ameaça militar vinda do interior do Zaire com que o anterior governo no exílio do Ruanda continuava a defrontar-se... Claramente, o foco das discussões militares entre o Ruanda e os EUA tinha passado da consolidação dos direitos humanos para o combate contra uma insurreição... Com o apoio de Museveni (presidente do Uganda), Kagame concebeu um plano para apoiar um movimento rebelde no Leste do Zaire (encabeçado por Laurent Desiré Kabila)...

A operação foi lançada em Outubro de 1996, algumas semanas após a viagem de Kagame a Washington e a conclusão da missão de treino das Forças Especiais... Na sequência do início da guerra no Congo, os Estados Unidos forneceram «assistência política» ao Ruanda... Um funcionário da embaixada dos EUA em Kigali deslocou-se numerosas vezes ao Leste do Zaire para manter contactos com Kabila. Pouco depois, os rebeldes avançavam. Arredando o exército do Zaire com o auxílio das forças do Ruanda, atravessaram a terceira maior nação da África em sete meses, com apenas alguns confrontos militares significativos. Mobutu fugiu da capital, Kinshasa, em Maio de 1997, e Kabila tomou o poder, mudando o nome do país para Congo... Funcionários dos EUA negaram a presença de qualquer pessoal militar americano entre as tropas do Ruanda no Zaire durante a guerra, embora desde o início desta circulasse na região a informação de que os Estados Unidos se encontravam presentes como conselheiros militares».

Interesses mineiros americanos

Nestas operações militares no Congo estavam em jogo os extensos recursos mineiros do Leste e do Sul do Zaire, incluindo reservas estratégicas de cobalto de importância crucial para a indústria da defesa americana. Durante a guerra civil, vários meses antes da queda de Mobutu, Laurent Desiré Kabila, com base em Goma, no Leste do Zaire, renegociara os contratos mineiros com várias companhias mineiras dos EUA e do Reino Unido, entre as quais se contavam a American Mineral Fields (AMF), uma companhia com sede em Hope, no Arkansas, a cidade natal do presidente Bill Clinton.

Entretanto, em Washington, os funcionários do FMI atarefavam-se com a revisão da situação macroeconómica do Zaire. Não se perdeu tempo. O calendário económico pós-Mobutu já fora decidido. Num estudo divulgado em Abril de 1997, menos de um mês antes de o presidente Mobutu Sese Seko fugir do país, o FMI recomendara «a suspensão completa e imediata da emissão de moeda» como parte de um programa de recuperação económica. Alguns meses mais tarde, ao assumir o poder em Kinshasa, o novo governo de Laurent Kabila recebeu ordens do FMI para congelar os salários dos funcionários públicos, com vista a «restaurar a estabilidade macroeconómica». Em consequência da hiperinflação, o salário médio do sector público tinha descido de 30.000 novos Zaires (NZ) por mês para o equivalente a um dólar.

As exigências do FMI equivaliam a manter a totalidade da população numa situação de pobreza abissal. Excluíam à partida uma reconstrução económica significativa no pós-guerra, contribuindo assim para alimentar a continuação da guerra civil congolesa, na qual morreram cerca de 2 milhões de pessoas.

Guerra não declarada entre a França e a América

A guerra civil no Ruanda foi uma luta brutal pelo poder político entre o governo hutu de Habyarimana, apoiado pela França, e a Frente Patriótica Ruandesa tutsi, com o apoio financeiro e militar de Washington. As rivalidades étnicas foram deliberadamente utilizadas na prossecução de objectivos geopolíticos. Tanto a CIA como os serviços de informação franceses estavam envolvidos.

Nas palavras de Bernard Debré, o ex-ministro da Cooperação no governo do primeiro-ministro Henri Balladur:

«O que se esquece é que, se a França estava de um dos lados, os Americanos estavam do outro, armando os tutsis que armaram os Ugandeses. Não é minha intenção sugerir um medir de forças entre os franceses e os anglo-saxões, mas a verdade é para ser dita».

Juntamente com o auxílio militar às facções inimigas, o influxo de empréstimos de desenvolvimento desempenhou um papel importante no «financiamento do conflito». Por outras palavras, tanto a dívida externa do Uganda como a do Ruanda foram canalizadas para apoiar as forças militares e paramilitares. A dívida externa do Uganda aumentou mais de 2.000 milhões de dólares – a um ritmo significativamente mais rápido do que a do Ruanda (que sofreu um aumento de cerca de 250 milhões de dólares entre 1990 e 1994). Retrospectivamente, o EPR – financiado tanto pela assistência militar dos EUA como pela dívida externa do Uganda – estava muito melhor equipado e treinado do que as « Forces Armées du Rwanda » (FAR), leais ao presidente Habyarimana. Desde o início, o EPR possuía uma distinta vantagem militar sobre as FAR.

Segundo o testemunho de Paul Mugabe, um ex-membro da Unidade de Alto Comando da FPR, o major-general Paul Kagame ordenara pessoalmente o abate do avião do presidente Habyarimana em Abril de 1994, com o objectivo de se apossar do controlo do país. Estava plenamente consciente de que o assassínio de Habyarimana desencadearia «um genocídio» contra a população civil tutsi. As forças do EPR estavam completamente colocadas em Kigali quando ocorreram os massacres étnicos e não intervieram para os evitar.

«A decisão do major-general Paul Kagame de mandar abater o avião do presidente Habyarimana, tomada em plena consciência, agiu como catalisador de um drama sem precedentes na história do Ruanda. A ambição de Kagame causou o extermínio de todas as nossas famílias: tutsis, hutus e twas. Todos perdemos. A tomada do poder por Kagame custou a vida a um grande número de tutsis e provocou o êxodo desnecessário de milhões de hutus, muitos dos quais eram instrumentos inocentes nas mãos dos líderes do genocídio».

«Alguns ruandeses ingénuos aclamaram Kagame como uma espécie de salvador, mas o tempo demonstrou que foi ele o causador do sofrimento e da desgraça... Será que Kagame pode explicar ao povo do Ruanda por que motivo enviou Claude Dusaidi e Charles Muligande a Nova lorque e Washington para suspender a intervenção militar das Nações Unidas que ia ser enviada para proteger o povo ruandês do genocídio? A razão por detrás da tentativa de evitar essa intervenção militar consistia em criar condições para a liderança da FPR tomar o poder em Kigali e mostrar ao mundo que tinham sido eles - a FPR - a evitar o genocídio. Nenhum de nós esquecerá que o genocídio ocorreu durante três meses, embora Kagame tenha dito que era capaz de lhe pôr fim na primeira semana após a queda do avião. Será que o major-general Paul Kagame pode explicar por que solicitou a retirada da MINUAR (Missão das Nações Unidas de Acompanhamento do Ruanda) do país numa questão de horas, enquanto a ONU estava a considerar a possibilidade de aumentar as suas tropas no Ruanda para pôr fim ao genocídio?»

O testemunho de Paul Mugabe referente ao abate do avião de Habyarimana está corroborado por documentos e informações provenientes dos serviços de informação e apresentados ao inquérito parlamentar francês. Um estudo recente de Wayne Madsen aponta para a cumplicidade de funcionários superiores das Nações Unidas:

«A revelação mais dramática diz respeito à localização do registo de voz da cabine, ou caixa negra, do Mystere-Falcon 50. Segundo funcionários ligados aos movimentos aéreos das Nações Unidas na região, a caixa negra foi transportada em segredo para a sede da ONU em Nova Iorque, onde se encontra ainda... Segundo as referidas fontes da ONU, os dados da caixa negra estão retidos por aquela organização, sob pressão do governo dos Estados Unidos... e a juíza canadiana Louise Arbour, procuradora especial no Tribunal Internacional de Crimes de Guerra que investigou o genocídio no Ruanda, ordenou a suspensão da investigação relativa aos acontecimentos que conduziram ao abate do avião em 6 de Abril de 1994. Os investigadores das Nações Unidas receberam instruções de Louise Arbour para se limitarem aos acontecimentos verificados na sequência da queda do aparelho. Arbour... deu ordens aos seus subordinados, entre os quais se contava Al Breau, ex-vice-comissário da Real Polícia Montada Canadiana, para suspenderem a investigação, quando se tornou evidente que esta apontava para a conclusão de que a FPR e os seus apoiantes americanos estavam implicados no planeamento do ataque ao avião. A investigação encontrou provas de que as forças da FPR controlavam as três principais vias de acesso ao Aeroporto Internacional de Kayibanda na tarde do ataque e que mercenários europeus a soldo … e aos serviços de informação dos EUA utilizaram armazéns nas imediações, alugados por uma companhia suíça, para planear o ataque e disparar o míssil sobre o Mystêre-Falcon. Acrescente-se ainda que os investigadores canadianos e da ONU descobriram provas de que, durante 1996 e 1997, a Agência de Desenvolvimento Internacional Canadiana  Canadian lnternational Development Agency -CIDA) forneceu assistência humanitária e para o desenvolvimento ao governo da FPR, que foi utilizada para a aquisição de armamento. Quando este facto chegou ao conhecimento dos auditores internos da CIDA, a investigação foi abruptamente suspensa pelo governo canadiano».

Segundo Madsen, estas actividades «secretas em nome dos Estados Unidos e do Canadá» foram apoiadas pelo então subsecretário-geral da ONU responsável pela Manutenção da Paz, Kofi Annan, que mantinha estreitos contactos com Madeleine Albright – na altura embaixadora dos EUA na ONU – e com funcionários do Conselho de Segurança Nacional dos EUA.

O secretário-geral da ONU, Boutros Boutros Ghali, foi propositadamente mantido às escuras pelos Estados Unidos, que conseguiram tirá-lo do posto em 1996, substituindo-o por Annan. 

Instalação de um protectorado anglo-americano

Apesar das boas relações diplomáticas entre Paris e Washington e da aparente unidade da aliança militar ocidental, tratava-se de uma guerra não declarada entre a França e os EUA. Ao apoiar o reforço das forças do Uganda e do Ruanda e ao intervir directamente na guerra civil congolesa, Washington é também directamente responsável pelos massacres étnicos cometidos no Leste do Congo, incluindo as centenas de milhares de pessoas que morreram em campos de refugiados. O major-general Paul Kagame foi um instrumento de Washington.

A perda de vidas africanas não tinha importância. A guerra civil no Ruanda e os massacres étnicos constituíam parte integrante da política externa americana, cuidadosamente encenada de acordo com objectivos estratégicos e económicos precisos.

Os decisores de políticas dos EUA tinham plena consciência de que estava iminente uma catástrofe. De facto, quatro meses antes de se verificar o genocídio, a CIA tinha informado o Departamento de Estado americano, num relatório confidencial, de que os Acordos de Arusha fracassariam e de que «se as hostilidades forem retomadas, mais de meio milhão de pessoas morrerá». Esta informação foi ocultada às Nações Unidas: «só depois do final do genocídio é que essa informação foi transmitida ao major-general Dallaire que comandava as forças da ONU no Ruanda».

O objectivo de Washington era afastar a França, desacreditar o governo francês (que apoiara o regime de Habyarimana) e instalar um protectorado anglo-americano no Ruanda sob a presidência do major-general Paul Kagame. Deliberadamente, Washington nada fez para evitar os massacres étnicos.

Quando foi proposta uma força da ONU, o major-general Paul Kagame procurou atrasar a sua implementação declarando que só aceitaria uma força de manutenção da paz depois de o EPR obter o controlo de Kigali. Kagame «receava que a força das Nações Unidas proposta, de mais de 5.000 soldados... pudesse intervir para privar o EPR da vitória». Entretanto, após deliberações e um relatório do secretário-geral Boutros Boutros Ghali, o Conselho de Segurança decidiu adiar a sua intervenção.

O «genocídio» de 1994 no Ruanda serviu objectivos estritamente estratégicos e geopolíticos. Os massacres étnicos desferiram um duro golpe na credibilidade da França, o que permitiu aos EUA estabelecerem uma base para os seus objectivos neocoloniais na África Central. De um cenário colonial distintamente franco-belga, a capital do Ruanda, Kigali, tornou-se – sob o governo da FPR liderado por expatriados tutsi – distintamente anglo-americana. O inglês passou a ser a língua dominante no governo e no sector privado. Muitas empresas privadas de hutus passaram para as mãos de expatriados tutsis que regressaram em 1994, vindos do exílio na África anglófona, nos EUA e no Reino Unido.

O Exército Patriótico Ruandês (EPR) funciona em inglês e em kinyarwanda; a Universidade, anteriormente com ligações à França e à Bélgica, funciona também em inglês. O inglês tornou-se uma das línguas oficiais, juntamente com o francês e o kinyarwanda, ao passo que a influência política e cultural francesa acabará por desaparecer completamente. Washington tornou-se o novo patrão colonial de um país francófono.

Vários outros países francófonos da África subsariana estabeleceram acordos de cooperação militar com os EUA. Estes países estão destinados por Washington a seguir o exemplo do Ruanda. Entretanto, na África Ocidental francófona o dólar americano está rapidamente a substituir o franco CFA, que está ligado, num conselho cambial ministerial, ao Tesouro francês.

(Retirado de “A Globalização da Pobreza e a Nova Ordem Mundial” de Michel Chossudovsky”, ed. Caminho. 2003)

Imagem de Sebastião Salgado in El País, Brasil