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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

A Igreja Católica, a riqueza e a monogamia

27.05.22 | Manuel

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A monogamia e a concentração da riqueza em sociedades altamente estratificadas ou como a Igreja Católica manipulava o sexo para aumentar o seu poder:

O biólogo Matt Ridley, no seu livro “A Rainha de Copas”, ensaia entender a natureza humana enquadrada na evolução da sua sexualidade. Neste texto do capítulo “A monogamia e a natureza das mulheres”, o autor fala da manipulação exercida pelos humanos para aumentar o seu sucesso reprodutivo em função da acumulação da riqueza e, em particular, das limitações impostas pela Igreja Católica à vida sexual dos nobres a fim de aumentar o seu poderio económico.

A análise de Betzig sobre a história medieval inclui a ideia de que obter herdeiros ricos era a principal causa das controvérsias entre a Igreja e o Estado. No século X ocorreu uma série de eventos correlacionados. O poder dos reis diminuiu e o poder dos lordes feudais locais aumentou. Como consequência, à medida que ia sendo estabelecido o sistema senhorial de progenitura, os nobres iam ficando gradualmente mais preocupados com a produção de herdeiros legítimos para lhes sucederem nos títulos. Divorciavam-se de mulheres estéreis e deixavam tudo ao primeiro filho que nascesse. Entretanto, o cristianismo ressurgente conquistou os seus rivais e tornou-se a religião dominante no Norte da Europa. A Igreja antiga estava obcecadamente interessada nos assuntos relacionados com o casamento, o divórcio, a poligamia, o adultério e o incesto. Além disso, no século X a Igreja começou a recrutar os seus monges e padres dentro das famílias aristocráticas.

A obsessão da Igreja com os assuntos sexuais era muito diferente da de S. Paulo. Tinha pouco a ver com a poligamia ou ter muitos filhos ilegítimos, embora ambos fossem comuns e contra a doutrina. Em vez disso, concentrava-se em três coisas. Em primeiro lugar, o divórcio, voltar a casar e a adopção. Em segundo, as amas de leite e o sexo durante os períodos em que a liturgia exigia abstinência. Em terceiro, o «incesto» entre pessoas casadas até sete graus canónicos. Em todos os três casos, a Igreja parece ter tentado impedir que os nobres tivessem herdeiros legítimos. Se um homem obedecesse às doutrinas da Igreja no ano 1100, não podia divorciar-se de uma mulher estéril, certamente não podia voltar a casar enquanto ela fosse viva, não podia adoptar um herdeiro, a mulher não podia dar a filha a uma ama de leite e ficar pronta para gerar outra criança na esperança de que fosse um filho, não podia fazer amor com a mulher «durante três semanas na Páscoa, quatro semanas no Natal e de uma a sete semanas no Pentecostes, para além dos domingos, das quartas-feiras, sextas-feiras e sábados – dias de penitência ou de sermões – e de mais uma miscelânea de feriados», e não podia ter um herdeiro legítimo com qualquer mulher mais aparentada do que uma prima em sétimo grau – o que excluía a maioria das mulheres nobres numa distância de cerca de 500 quilómetros.

Resume-se tudo a um ataque da Igreja contra a obtenção de herdeiros. E «foi apenas quando a Igreja começou encher-se com os irmãos mais novos de homens de Estado que entre eles começou a luta pela herança – pelo casamento». Os indivíduos na Igreja (filhos mais novos deserdados) manipulavam as moratórias sexuais de modo a aumentarem a riqueza da própria Igreja e até ganhavam propriedades e títulos para eles próprios. A dissolução dos mosteiros realizada por Henrique VIII, que se seguiu à sua ruptura com Roma, em resultado da desaprovação de Roma em relação ao seu divórcio de Catarina de Aragão, que não lhe deu filhos, é uma espécie de parábola para toda a história das relações entre a Igreja e o Estado.

A controvérsia Igreja-Estado é apenas uma de muitas instâncias históricas das disputas sobre a concentração de riqueza. A prática da primogenitura* é um dos principais meios de manter a riqueza – e o seu potencial de poligamia – intacta ao longo das gerações. Mas também existem outras maneiras. A primeira entre elas era o próprio casamento. Casar com uma herdeira sempre foi a maneira mais rápida de obter riqueza. É claro que o casamento estratégico e a primogenitura trabalham uma contra a outra: se as mulheres não herdarem a riqueza, então nada há a ganhar em casar com a filha de um homem rico. Entre as dinastias reais da Europa, embora na maioria delas as mulheres pudessem herdar os tronos (na falta de herdeiros masculinos), eram frequentemente possíveis casamentos convenientes. Leonor de Aquitânia levou para os reis britânicos uma grande porção da França. A guerra da sucessão espanhola foi travada apenas para impedir que um rei francês herdasse o trono de Espanha como resultado de um casamento estratégico. Desde a prática eduardina de os aristocratas britânicos casarem com as filhas dos novos-ricos americanos, as alianças das grandes famílias têm sido uma força para concentrar a riqueza.

Outra maneira, praticada de um modo comum entre as dinastias detentoras de escravos no Sul dos Estados Unidos, era manter o casamento dentro da família. Nancy Wilmsen Thomhill, da Universidade do Novo México, demonstrou como, nessas famílias, os homens casavam mais frequentemente com primas em primeiro grau do que com outras mulheres. Seguindo as genealogias de quatro famílias do Sul, descobriu que metade de todos os casamentos envolvia parentes ou troca de irmãs (dois irmãos casarem com duas irmãs). Pelo contrário, nas famílias dos estados do Norte, na mesma altura, apenas 6% dos casamentos envolviam parentes. O que toma este resultado especialmente intrigante é que Thornhill tinha-o previsto antes de o encontrar. A concentração de riqueza funciona melhor para a terra, cujo valor depende da sua raridade, do que para as fortunas relacionadas com os negócios, que são ganhas e perdidas em muitas famílias em paralelo.

Thornhill continuou argumentando que, tal como algumas pessoas têm um incentivo para utilizarem o casamento para concentrarem a riqueza, também as outras pessoas têm um incentivo para as impedirem de o fazerem. E os reis, em particular, têm o incentivo e o poder de conseguirem os seus objectivos. Isto explica um facto, que de outro modo é intrigante, que é o de as proibições de casamentos «incestuosos» entre primos serem fortes e inúmeras em algumas sociedades e estarem ausentes noutras. Em todos os casos é a sociedade mais altamente estratificada que mais regulamenta o casamento. Entre os Trumai, do Brasil, um povo igualitário, o casamento entre primos merece apenas um ar de desaprovação. Entre os Maasai, da Africa oriental, que têm disparidades de riqueza consideráveis, esse tipo de casamento é punido com «chicoteamento severo». Entre o povo inca, qualquer pessoa que tivesse a temeridade de casar com uma parente (vagamente definida) seria punida, sendo-lhe retirados os olhos e sendo esquartejada. É claro que o imperador era uma excepção: a rainha era sua irmã, e Pachacuti começou uma tradição de também casar com todas as meias-irmãs. Thornhill conclui que estas regras nada tinham a ver com o incesto, mas tinham tudo a ver com o facto de os governantas quererem impedir a concentração de riqueza por outras famílias, para além da sua; geralmente, excluíam-se a si próprios dessas leis.

* Em Portugal o morgadio instituiu a primogenitura, pelo qual o morgado, isto é, o filho varão mais velho herdava os títulos e as principais propriedades e riquezas, no topo das quais se encontrava a casa familiar, castelo, mansão, etc., e as jóias. Foi instituída em Portugal em meados do século XIII e vigorou até ao século XVIII, quando o marquês de Pombal impôs fortes restrições em 1770, embora tivesse sido formalmente abolido só em 1863, por Carta de Lei do governo de Duque de Loulé.

(Retirado de “Rainha de Copas”, capítulo A monogamia e a natureza das mulheres, de Matt Ridley. Ed. Gradiva, 2004)

Imagem: "sem título" de Bernhard Willem Holtrop, in Libération, 1/10/05