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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

A insurreição de Maio – «Diário» de um marginal»

18.05.24 | Manuel

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António José Saraiva

 23 de Maio de 1968

Na reunião de ontem no grande anfiteatro da Sorbonne nota-se que qualquer coisa «ne va pas». O ambiente mudou insensivelmente. Há um presidente severo, que quer impor a disciplina à assembleia. Há um velhote que dá espectáculo, parodiando o próximo discurso de De Gaulle. Pode ser um velho anarquista ou um leitor do Canard Enchainé . Risos, mas frieza. A assembleia é mais organizada, tecnicamente, mas a sala parece mais vazia. Os oradores revelam o que se está passando: Séguy, secretário-geral da CGT, anunciou que está pronto a encetar negociações com o Governo. «C'est un SALAUD!», grita um moço titubeante e pálido, com um murro na mesa, ao micro. Outro, mais universitário, diz: «Há palavras que um revolucionário deve banir do seu vocabulário: uma delas é 'revendication' . Não se trata de reivindicar, mas de fazer a revolução.» Outro, ainda, quer que os estudantes e operários adoptem um «serment», jurando solenemente lutar pela revolução até ao fim, e que a este documento se associe J.-P. Sartre. Mas há oradores do lado oposto. Não ousam falar claramente dos sindicatos e das «reivindicações», mas um deles previne a assembleia contra as provocações que poderiam indispor a população contra os estudantes – como seria uma tentativa de ocupação da ORTF para evitar a difusão do discurso do general De Gaulle.

Na rua, a manifestação contra o «interdit de séjour» de Cohn-Bendit foi a primeira vitória do Governo. Alguns milhares de manifestantes – menos do que se poderia esperar – detêm-se diante da barragem dos CRS que fecha o acesso à Assembleia Nacional. Ordem de dispersar às 10:30. Este resultado dá os limites do movimento puramente estudantil, porque foi desautorizado pelos sindicatos. CGT e UNEF estão à beira da ruptura. Esta manhã, o L 'Humanité dá só algumas linhas à manifestação de ontem, que o France-Soir relata em várias colunas, com fotos. A CGT anulou, em resultado do anúncio da manifestação, um encontro com a UNEF e publicou um comunicado onde se lê: «Organisation sérieuse et responsable, la CGT ne saurait discuter qu' avec des interlocuteurs également sérieux et responsables.» Alguns postos do correio reabriram, é o princípio do fim da greve. O Governo, o PC e os sindicatos concertam-se para pôr termo à anarquia. O L 'Humanité nem sequer dá uma notícia própria à «interdiction de séjour» contra Cohn-Bendit.

Durante dias pareceu que a sociedade industrial moderna, tal como aparece nos países capitalistas, ia estalar. A famosa «sociedade de consumo», que é na realidade uma sociedade de «produção pela produção» e que parecia irremediável, dançava estranhamente. Pelo menos assim o sentia quem ouvia os oradores da Sorbonne e lia o Action Française . Era a primeira revolução numa sociedade industrial avançada. Mas o que se passa realmente?

Há de um lado os que contestam essa sociedade, cujo nome próprio é «tecnocracia», por terem consciência da alienação dos homens a uma estrutura tecnocrática cujo fim é a multiplicação do capital. Abaixo o sacrifício dos homens à Produção! Abaixo a arregimentação carneiral! Abaixo o ensino que visa a produzir produtores cegos! Viva a autodeterminação de todas as formas! Viva a espontaneidade! Abaixo a cultura, que é l'inversion de la vie! Viva a imaginação! A imaginação no poder! Abaixo as academias, os institutos, os sindicatos, os partidos! Abaixo a obra de arte como objecto imóvel, como capital! Viva a criação, na Sorbonne, no Odéon ocupado, na rua! Viva a espontaneidade, viva o homem, vivam os homens, e as crianças e os adolescentes – tudo quanto está vivo!

Mas os operários, que ganham na maioria menos de mil francos por mês, ainda esperam muito da sociedade de abundância. Eles querem antes de mais participar nos bens que se produzem. O tempo da contestação da sociedade industrial não chegou para eles. A abolição do capitalismo só lhes é útil se lhes trouxer rapidamente uma maior soma de bens de consumo, o que de modo algum é certo. O operário americano consome mais que o soviético ou o chinês.

Há, desta forma, dois movimentos: o da contestação espiritual da sociedade tecnocrática – que é o dos jovens de cultura mais avançada; e o que pretende uma participação maior nos benefícios da mesma sociedade, que é o dos operários, para quem a expressão «sociedade de consumo» não tem sentido.

É por isso que o secretário-geral da CGT pode declarar que a «autogestão» não passa de um engano. De facto, não é só o arremedo de autogestão introduzido pelo gaullismo que ele recusa, mas o próprio princípio da autogestão. Deixa estar o sistema, beneficiemos o mais possível, tal é no fundo a directriz cegetista. Modifiquemos a repartição da produção: é tudo. O princípio da insurreição operária que se deu a partir do dia 15 de Maio, e que alastrou até nove milhões de grevistas (número dado hoje pelo L'Humanité ), começou sob o impulso dos estudantes, mas está acabando sob a direcção dos sindicatos. Os operários imitaram dos estudantes formas de acção – a ocupação das fábricas –, mas apenas isso. Eles são apenas candidatos a um lugar mais cómodo na sociedade estabelecida. O que os aliena é justamente o futuro possível nessa sociedade. E o Marcuse tem certamente razão em dizer que a sociedade capitalista digere as suas contradições e que, finalmente, só é contestada no seu próprio princípio pelos grupos marginais. Só que isso é verdade tanto para as sociedades capitalistas como para as sociedades de colectivismo burocrático, chamadas «socialistas». Os grupos marginais, tradicionalmente contestadores, são os intelectuais, os estudantes, as minorias raciais (como os negros da América), que não foram integrados.

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24 de Maio

Hoje será a decisão. Tudo depende de os sindicatos e o Governo terem o controlo da «rua». O jornal Action Française, nº. 2, diz «La rue vaincera»; não é esse o sentimento dos sindicatos, porque na rua, ao contacto com os estudantes, os jovens operários escapam ao controlo dos dirigentes sindicais. Estes resolveram também descer à rua, enquadrando as suas tropas, que manifestarão ao mesmo tempo que as dos movimentos estudantis e intelectuais. O poder está sob a pressão das massas, que avançam à frente dos dirigentes, como sucedeu na revolução russa de 1917. Mas há um chefe que os sinta e defina? Um Lenine? É evidente que um Séguy e um Waldeck Rochet não estão à altura da situação. Um movimento revolucionário é para eles coisa absolutamente nova. Vão a reboque de Cohn-Bendit, apesar de o atacarem. O pretexto para as manifestações estudantis nas noites de 22 e 23 foi a «interdiction de séjour» de Cohn-Bendit. A CGT condenou essas manifestações, mas elas desencadearam outras a que a CGT se associa de mau grado.

A massa está na rua. Enviados dos estudantes espalham-se pelos bairros a explicar aos passantes do que se trata. À esquina da Rua dos Gobelins vi um moço muito jovem explicando a teoria da mais-valia a um grupo de pequenos burgueses. Um moço rosado e loiro, olhos azuis, «bem-educado», iluminado como um apóstolo, que acreditava no paraíso do mundo «socialista» já existente. Um dos argumentos dos passantes era a inflação: de que serve aumentar os salários se a moeda valer menos? Mas o jovem queria levar a discussão para outro nível. A um cadre que falava com eloquência lembrou o problema do desemprego dos cadres a partir dos 35-40 anos, depois de sugados pela máquina capitalista produtiva. Aí o homem não teve resposta. Mas uma mulher de 35 anos não se deu por vencida e falou na falta de liberdade nos países «socialistas». O moço invocou o que conhecia pessoalmente desses países, de uma visita que fez a um deles que não quis nomear.

Paris é um vasto comício disperso. Os estudantes tentam romper o cerco em que a CGT quer isolá-los, e é bem provável que o consigam. É uma questão de luta contra o relógio. Há ou não há negociações antes da hora H? Tudo depende disto. Mas hoje a polícia vai perder o pé. O Eliseu, a radiotelevisão, a Prefeitura, tudo vai ficar à mercê dos manifestantes. Só se a CGT mantiver a «ordem» haverá governo amanhã.

Entretanto começa a haver provas do poder obreiro. O Paris Presse-Intransigeant, jornal de grande informação da direita, que sai à mesma hora do L 'Humanité, mas tem dez ou vinte vezes mais leitores em tempo normal, não saiu por decisão do sindicato dos impressores. Começa a censura do novo poder, Que pode fazer o De Gaulle? Sair em beleza, se tiver tempo. As horas para ele estão contadas, e não é certo que possa falar esta noite às 20 horas.

Os estudantes procuram desde já definir o «novo poder». Um manifesto que apanhei em frente do Odéon Pour le pouvoir des conseils ouvriers, redigido por mão evidentemente universitária e assinado pelo «Conseil pour le maintien dês occupations», tenta explicar como se pode formar uma democracia de conselhos operários federados, que serão «le seul pouvoir délibératif et exécutif pour tout le pays». Basta que, por força da necessidade urgente, certos sectores essenciais da economia recomecem o trabalho sob o contrôle dos operários que ocupam as usinas. Será preciso pôr em marcha os caminhos-de-ferro e as tipografias, distribuir os víveres, fazer moeda. Através deste processus pratique desenha-se o novo poder. Outro manifesto distribuído hoje declara: «Posons dês maintenant les jalons de notre pouvoir de demain (ravitaillement direct, organisation des services publics: transports, information, logement, etc.).» Nestes documentos falta a assinatura dos sindicatos e quase todos os signatários são movimentos estudantis e intelectuais: «Comités d'action» do 22 de Março, dos liceus, do Odéon, do CNRS, e vários comités de acção ditos «estudantes-operários».

 

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 25 de Maio

Tudo está débordé, extravasando-se. Eu, que escrevo, estou assim também, contraditório comigo mesmo. Que pensar das últimas barricadas, as da última madrugada? Que pensar da reunião da assembleia geral do CNRS, que votou por maioria uma moção solidarizando-se com o Cohn-Bendit e tudo o que aconteceu na noite e madrugada de 24 para 25? Será que todos igualmente – os que votaram – estavam nesse sentimento? Será que alguns aderiram apenas porque temos tendência a dizer sim, numa situação destas, aos mais extremistas, ou, melhor, temos receio de dizer não, ou porque a pressão psicológica é muito forte, ou porque receamos o nosso próprio medo? Há uma lei segundo a qual, dada uma inclinação de plano numa assembleia, todas as atitudes obedecem a essa inclinação. Quantos foram condenados por um grupo em que cada um consultado separadamente votaria a absolvição? A inclinação faz que quando um diz «mata» o outro acrescenta «esfola».

Transbordando, sinto-me sem pé nesta questão. Mas tentemos pontos de referência:

Ontem, entre as 23.30 e as 2.30, vi uma barricada na Rua Victor Cousin, relativamente estreita. Cada lado tocava numa livraria. Alguns moços, rodeados por mirones e passantes, acumulavam rapidamente caixas de papelão, tábuas, molduras para anúncios. Um automóvel é deitado de lado; e em seguida, mesmo junto, outro, trazido de mais longe, um belo carro de oito lugares. Imediatamente um dos moços tenta inutilmente incendiar o primeiro carro. Depois, com um ferro pontiagudo, fura o reservatório de gasolina do carro maior. A gasolina escorre para o lado do hotel onde estou. Nova tentativa para acender o fogo. Em seguida, o papel acumulado e as madeiras são metodicamente regados de gasolina ou outro líquido inflamável. Perto há um ataque ao posto de polícia de Panthéon. Estalam bombas. Os flics sobem pela Rua Soufflot em direcção ao posto. Há no ar gás lacrimogéneo, e os ocupantes dos prédios deitam água para a rua. Os de baixo gritam «merci!» (a água é uma defesa contra estes gases). Há também quem deite lenços ensopados em água que protegem como máscaras antigás. Tudo se passa com calma. Os rapazes são metódicos neste trabalho. Há pares sentados na borda do passeio, curiosos. Passam ambulâncias pela Rua Cujas. Mas outra barricada aparece, num abrir e fechar de olhos, ao cimo da Rua Cujas, junto à Faculdade de Direito. Há sempre carros para ir buscar. Atrás desta, na Praça do Panthéon, mostra-se, de súbito, uma massa de CRS, entre o Panthéon e a Biblioteca de Ste. Geneviève. Os carros da Cruz Vermelha, que transportam feridos para o posto de socorros montado pelos estudantes na Sorbonne, já não podem passar; desesperados, buzinando, buscam outras saídas.

Dentro do quarto onde estou há nervosismo, sobretudo quando começa a crescer o lume na barricada. Insisto com a gerente para ir chamar os bombeiros. Chegam dentro de minutos pela Rua Victor Cousin; os homens saltam diante da barricada. Mas na barricada gritam: «Foutez le camp! Allez-vous en!» Isso com pedras na mão, prestes a atirar. Os bombeiros fazem marcha atrás, e o incêndio cresce. Já o prédio da livraria está todo chamuscado: é daquele lado que está o amontoado de papel. Mas foi do lado do hotel que escorreu a gasolina. Magda tira os seus papéis para o interior do quarto. Eu começo a atirar jarros de água, seguido pela Alfreda. Mas os rapazes respondem debaixo atirando com pavés às janelas. Todos dentro do quarto ficam amedrontados. Fecha-se a janela precipitadamente e há uma discussão. Eu vejo nisto uma imposição de força e não percebo como é possível expor dois prédios e duas livrarias a um risco de incêndio. Sinto que, em tal situação, são os menos escrupulosos e os mais violentos que impõem a lei aos outros. Mas, à excepção da Alfreda, ninguém quer ouvir isto. Têm medo dos próprios ouvidos. Alguém murmura: «Eu cá não digo nada.» A dona do hotel, aterrorizada, grita da janela, antes de saltar da rua o pavé : «Oui, les barricades c'est bien! Mais ça!». Sinto-me à beira de um regime de terror, eu, que sou um marginal permanente. Sinto que este domínio dos violentos não acontece só nas revoluções: o nacional-socialismo alemão foi possível graças a bandoleiros sem escrúpulos, como o foi a cena da carruagem do metro dominada por dois voyous , contada nesse filme soberbo que é L 'Incident . Não, não vou nisto.

Por fim, os CRS avançam pelo alto da Rua Cujas. Os da barricada dispersam-se e chegam os bombeiros. O fogo apaga-se. Um alívio.

Mas isto é o imediato e o particular. Tentemos uma perspectiva mais ampla. Os estudantes foram ou não extravasados pelos «barricadeiros»? O que é que está na origem dos incêndios das barricadas, que esta noite se levantaram na Rua de Lyon, nas Halles e em todo o Quartier Latin, desde a Praça Maubert, a Praça St. Michel e a Praça Denfert?

Distingamos: há os «revolucionários» que praticam a guerrilha urbana com convicção. Trata-se de destruir a sociedade dita burguesa. Incêndios, mesmo que seja de prédios ou de bibliotecas, são um meio de acção. São coerentes. E há todo um mundo obscuro que aqui se «desrecalca». O fogo foi sempre uma atracção; os pirómanos são os exagerados de um sentimento geral. Há zonas profundas que se movimentam. A violência jaz adormecida, mas não morta, em cada um de nós. Eu estava no hotel; mas se estivesse na rua talvez tivesse ganas de incendiar tudo. Somente estou, apesar de tudo, demasiado instalado, e o desabamento geral, o desencadeamento das forças recalcadas, sobretudo à escala de uma multidão, inquieta-me. Mas não é só isto. A violência deixa-nos desarmados, sem meio para tomar a nossa própria decisão; em certo momento só nos resta associarmo-nos à violência, de um lado ou de outro. O indivíduo é impossível nestas situações. É esse indivíduo que em nós resiste, que em mim, pelo menos, resiste. Não quero ser violado.

Diante disto, a discussão sobre a responsabilidade do que se passa esta noite é perfeitamente fútil. Há força pura; não há razões. Segundo a UNEF, a provocação veio da polícia, porque não deixou sair da Rua de Lyon em relação à Bastilha o cortejo organizado, sobretudo, pelo Movimento 22 de Março. Mas é evidente que os participantes neste cortejo, anarquistas, trotsquistas, maoistas, são os que preconizam a acção violenta contra o conjunto «burguês». É absurdo, portanto, acusar o dito conjunto e a sua polícia, de agir pela força. Desde o momento em que se escolhe a violência, aceita-se a violência. Acho por isso idiotas as discussões (por vezes hipócritas) sobre a responsabilidade das consequências de uma guerra de guerrilha e as lamentações sobre a sorte das vítimas. A justiça, neste caso, deixa de existir dentro de nós. Torna-se uma espécie de justiça objectiva, transcendente, que sanciona um resultado de facto. Quem ganhou, ganhou.

Resta-nos, aos que sentimos a justiça dentro, confrontar o resultado com um critério que só tem existência na consciência individual.

É injusto todo o resultado que anule a nossa autodeterminação individual – e quando digo nossa digo a de todo e qualquer. É injusta a máquina que, mexendo-se-lhe num botão, esmaga a gente que passa e que grita. É injusta essa espécie de máquina humana, a centopeia negra, de milhares de botas, inumanamente mascarada como os cavaleiros teutónicos, que avança ritmicamente, mecanicamente. É injusta a maioria que se impõe numericamente, inumanamente cilindrando e apagando como bulldozers o lume de alma que temos cada um. Somos nós que determinamos afinal o que é justo e injusto, nós e não as máquinas, nós e não os números. E basta dizer isto para se ver que essa «justiça objectiva», «histórica», «revolucionária», etc., é uma palavra sem sentido. Justiça, como sentimento, é interioridade. Rebela-se contra toda a imposição exterior. Rebela-se contra os factos, e os incêndios e as multidões.

Será isto o fundo do que sinto?

É um dos fundos, pelo menos. Porque também sei o que é ser violento e gregário. Mas a alternativa que se me põe é existir ou não existir como indivíduo .

A reunião da assembleia geral do CNRS é interrompida para ouvir uma notícia. Corre que haverá esta noite um coup de force do exército para ocupar a Sorbonne, o CNRS, etc. Pede-se à assistência que apresente voluntários para ocupar o CNRS esta noite e resistir «symboliquement», claro. Levanta-se uma voz de mulher perguntando se não será preciso procurar antes saber se a notícia é verdadeira, porque numa noite anterior também constou que a Sorbonne ia ser ocupada pela polícia. Risos acolhem este comentário.

Alguma coisa se prepara de um lado ou de outro. Só é possível que o governo ocupe a Sorbonne quando as negociações com os sindicatos estiverem mais adiantadas. De outra forma seria o prolongamento da greve geral. Quanto ao Movimento 22 de Março e outros movimentos revolucionários, é evidente que vão continuar a guerrilha urbana.

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26 de Maio

O dia 24 era decisivo, e foi, pelo menos para já. O De Gaulle falou, o governo não caiu. As duas manifestações, a da CGT e a dos estudantes, não se juntaram. As insurreições dos estudantes em Paris, Lyon e Nantes acabaram como incêndios que se extinguem. No dia seguinte começaram as negociações entre o governo, os sindicatos e os patrões. Ontem, o Quartier Latin estava defendido por barreiras de estudantes, no Bulevar St. Michel só se viam alguns guardas. Hoje, todo o Bulevar está guardado por polícias. Nunca julguei que o referendo anunciado pelo De Gaulle pudesse realizar-se. Começo agora a admiti-lo. A revolução não foi quebrada, decerto, mas o desabamento do Estado foi evitado; o momento em que «tudo era possível» passou. O De Gaulle não é o czar Nicolau II, nem Luís XVI. Limitou-se a aguentar. Mas teve uma grande ajuda no PC, que recuou perante uma revolução que não era a sua.

Previsões: dentro de dois meses o referendo responderá NÃO. Queda do governo. Novas eleições. Governo Federação-PC. Início de uma social-democracia à sueca. Mas os estudantes e o 22 de Março não desaparecerão da cena. A «contestação» irá para a frente. Uma elaboração teórica precisará o contorno de uma sociedade futura, sem ditadura do proletariado, uma espécie de liberalismo levado ao extremo. Então este ideal será o de toda a Europa e dos EUA.

Perspectiva para a Universidade: o problema principal é o da relação entre estudantes e professores. Numa sociedade que não pode dispensar a técnica, é evidente que tem de haver professores. Não é possível substitui-los por estudantes, sobretudo se supusermos que estes nada aprenderam. Mas os professores devem integrar-se na comunidade estudantil, viver dentro dela. Daqui resulta, evidentemente, o reforço da corporação universitária, auto-determinada. A Universidade será um todo de estudantes-e-professores, professores formados na corporação estudantil, tendo o espírito da corporação estudantil. É por isso que me parece um tanto mítico (além de demagógico) o projecto, que parece dominar no CNRS, de unir a investigação científica e a Universidade. A pesquisa científica encontra o seu fim em si mesma, na busca da objectividade. O ensino encontrará o seu fim nos problemas humanos dos estudantes.

Se a corporação universitária se formar nos termos acima ditos, ela será o motor da história das sociedades industriais nos próximos anos. A ocupação da Sorbonne é o princípio de um processo que não mais acabará. Ela resulta já da existência de uma corporação estudantil embrionária, que tomou consciência de si mesma e que se vai institucionalizar e reforçar com a adesão dos professores ou a substituição dos actuais por outros capazes de se integrarem nessa corporação.

Que significa, neste contexto, a proclamada abertura da Universidade aos operários, segundo a expressão que, de repente, se espalhou: ouvrier-étudiant? Mais um mito? Mais uma demagogia?

Não. Talvez antes uma mistura que o tempo decantará. Haverá sempre, em qualquer sociedade que seja, estudos teóricos, susceptíveis de interessar só uma parte da gente, mesmo com sacrifício de facilidades sociais. O teórico puro é um marginal (com tanto direito a existir como os outros marginais). Por isso, haverá sempre universidades, diga o que disser o Sartre, que neste ponto repete o Cohn-Bendit.

Mas a relação da Universidade com o resto da colectividade é que pode vir a ser diferente. Por um lado (e é o mais superficialmente óbvio), a composição social variará se a sociedade se transformar de tal modo que a influência do meio familiar seja menos determinante do que é o da escola elementar e secundária. Nos países adiantados não é o problema económico que impede o acesso de filhos de operários à Universidade, mas o meio onde eles se formam na infância e na adolescência. A escolha do meio social transmite-se por família. Basta que a educação desde a infância seja igual para todos para este processo se transformar. Então a selecção se fará, mais livremente do que hoje, por vocação, isto é, por natureza. Haverá vocações universitárias e outras não universitárias.

Por outro lado, a corporação universitária atrás definida intervirá na sociedade com uma força multiplicada. Ela será um factor decisivo na Cidade («Polis», mas não é o momento de empregar nomes gregos).

Ao fim e ao cabo, a expressão «operário-estudante» é uma fórmula de conjuntura, que serve hoje a táctica da luta universitária para transformação do conjunto da sociedade. Ela vale contra a táctica da CGT e do PC, que tenta evitar a união revolucionária de operários e estudantes.

(in "Maio e a Crise da Civilização Burguesa" de António José Saraiva. Ed. Gradiva, 2005)