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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

A lista dos bufos

16.04.24 | Manuel

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Permanece controverso o conteúdo do dossier em poder da Maçonaria. Lista de agentes e informadores da PIDE, lista de informadores da Legião ou mera lista de endereços de personalidades do Estado

Novo, são as várias versões que por ai circulam. Unânime mesmo só o silêncio sepulcral com que a nossa classe política acolheu a bombástica revelação do grão-mestre António Arnaut. Unânime e surpreendente, diremos nós, tendo em conta que decorrem as comemorações de mais um aniversário do 25 de Abril.

O problema não é certamente os agentes da PIDE. Em 1975, o Ministério da Administração Interna (MAI) editou uma relação completa dos funcionários da PIDE/DGS, mais tarde reeditada pela Bertrand, com a obra de Nuno Vasco, Vigiados e Perseguidos. Mesmo sabendo que a publicação do MAI teve uma tiragem limitada (e que as sobras foram destruídas!), não acreditamos que, durante estes 31 anos, algum membro da antiga policia politica tenha conseguido ocupar lugares de destaque em instituições ou empresas públicas portuguesas.

O risco de denúncia era demasiado grande, quer para o pide, quer para o empregador. Além disso, a generalidade dos funcionários da PIDE tinha habilitações literárias bastante modestas. Mas então porquê falar em ameaça à paz social, a propósito da hipotética divulgação deste dossier? Temos a impressão que, acima de tudo, se temia que fosse levantada uma ponta do véu que continua a encobrir o grande tema-tabu da nossa democracia; o vasto e odioso exército de informadores, os bufos. É que, se os pides foram denunciados, presos e até julgados, embora com muita discrição, o novo regime passou uma esponja sobre o papel dos bufos, Talvez porque tenham sido muito mais numerosos que os pides - refere Nuno Vasco, que, nos últimos 12 anos do fascismo, actuou um total de 15 mil informadores que, por razões ideológicas, a troco de dinheiro ou simplesmente por inimizade pessoal ou vingança, denunciavam colegas de trabalho, vizinhos, amigos. Talvez porque, contrariamente aos pides, os bufos tinham geralmente estatuto social elevado, condição indispensável para serem úteis na vigilância dos movimentos oposicionistas dos anos 60 e 70, que tiveram a universidade como palco privilegiado.

Será que a grande preocupação dos nossos "democratas" é a preservação do bom nome de alguns desses bufos? Achamos que não, o problema poderá ser outro, a revelação do papel que os bufos continuaram a desempenhar nas estruturas do regime inaugurado com o 25 de Abril.

Vêm-nos à memória os escândalos que estalaram na ex-RDA, após a queda do muro, quando a abertura dos arquivos da Stasi obrigou à demissão de alguns dos dirigentes políticos reciclados para a Alemanha reunificada. Ocorrem-nos também as denúncias de Alfredo Caldeira, um antigo membro da Comissão de Extinção da PIDE/DGS e Legião, que na citada obra de Nuno Vasco falava da oposição de alguns partidos políticos à divulgação dos nomes dos bufos e da tentativa de os reutilizar, logo a seguir ao 25 de Abril.

É um segredo de polichinelo que os arquivos da PIDE foram devassados por todo o tipo de gente nos dias que se seguiram à revolução. Sendo assim, haverá alguém ingénuo ao ponto de acreditar que não existam listas com os nomes de informadores, na posse das mais variadas forças políticas ou instituições, e não apenas da Maçonaria? E, no entanto, alguém se recorda de algum - ao menos, um - desses 15 mil bufos ter sido alguma vez denunciado publicamente por aqueles que conhecem a sua identidade? Apetece perguntar então: que preciosos serviços terá o prestado esses indivíduos (muitos deles, estamos em crer, altamente colocados nos escalões do poder) aos seus novos patrões, para que estes se tenham mostrado tão reconhecidos, a ponto de terem zelosamente protegido o seu bom nome durante mais de 30 anos?

Finalmente, caro leitor, não lhe parece que as óbvias respostas a estas óbvias perguntas não são razão suficiente para pôr em causa a paz social? Dificilmente algum partido, instituição ou individuo vai alguma vez admitir na sua posse ou ter utilizado - com o intuito de fazer chantagem - listas com informadores da PIDE, Não apenas porque isso é punido por lei, mas pelo medo de levantar o tapete para debaixo do qual foi varrido o lixo acumulado em três décadas de democracia. Mas uma democracia só se consolida com a verdade, nunca com encobrimentos.

É por nunca se terem ajustado as contas com o passado que continuamos a ver aquelas personagens cinzentas que nunca abrem a boca, mas tudo escutam, para depois poderem relatar (ou será delatar) aos ouvidos do chefe. Os dignos herdeiros de gerações e gerações de bufos portugueses...

Ana Paula da Silva Correia e José Rodrigues Ribeiro

(“Público”, 30/04/05)

Imagem de destaque: Caricatura de José Vilhena.