A matança da noite de S. Bartolomeu
Agosto de 1572 - A matança de São Bartolomeu foi um acontecimento sangrento na repressão dos protestantes em França pela monarquia católica, começou em 24 de Agosto de 1572, durou alguns meses, com o resultado de mais de 70 mil huguenotes assassinados. Prevaleceu a intolerância católica aliada aos interesses de Catarina de Médicis e de largo sector da aristocracia francesa. Quando a notícia do massacre chegou a Roma, a alegria do clero não teve limites, o cardeal de Lorena recompensou o mensageiro com mil coroas, o canhão de Santo Ângelo reboou em alegre salva, os sinos tocaram em todos os campanários e o Papa Gregório XIII foi em longa procissão à Igreja de S. Luís, onde o cardeal de Lorena cantou o Te Deum. Uma medalha foi cunhada em honra da ocasião e o papa encarregou o artista Ciorgio Vasari da pintura de um mural celebrando o massacre. (Maurício Lachatre, “História dos Papas”)
«Há uma perseguição injusta, que é aquela que os sem-Deus movem contra a Igreja de Cristo; e uma perseguição justa que é a que as Igrejas de Cristo movem contra os sem-Deus… A Igreja persegue por amor, os sem-Deus por crueldade.»
Santo Agostinho (354-430)
Guerra religiosa e nacionalismo
Até agora temos considerado a tolerância como o produto da heterodoxia da Reforma e da aceitação da separação entre a Igreja e o Estado. O aspecto radical e proletário do protestantismo desempenhou um papel importante neste processo. Mas o papel desempenhado pelo desenvolvimento do agressivo calvinismo não foi menos importante, porque foi como resultado do conflito armado provocado na Europa ocidental pela Igreja Reformada (como era geralmente denominado o calvinismo) que se conseguiu obter em vários países, e por necessidade política, um grau moderado de liberdade religiosa.
Não será necessário sublinhar que as chamadas guerras religiosas do fim do século XVI e do principio do século XVII não foram unicamente e muito menos substancialmente religiosas, pois elas foram causadas, por um lado, pelo aparecimento dos interesses das facções, e, por outro lado, pelos problemas políticos inerentes à formação de um forte Estado nacional. Nestas querelas a religião foi o laço essencial e vital da unidade, mas a maioria das vezes não passou de apenas um motivo secundário para a acção. Por consequência, quando se discutiam os acordos para a paz civil, a tonalidade da discussão era muitíssimo mais política que religiosa. Na França, na Alemanha e na Holanda, os adeptos da tolerância mútua como base para a paz começaram a discutir a partir da necessidade política, mudando assim o debate sobre a liberdade religiosa para um terreno mais secular. Isto poder-se-á talvez discutir melhor examinando cada país por sua vez.
O conflito religioso na França
O primitivo movimento da Reforma na França foi luterano na influência e erasmista quanto às personalidades. Surgindo dum mal-estar semelhante ao que foi sentido na Alemanha, contou entre os seus primeiros simpatizantes com grandes humanistas como Lefèvre d'Étaples e a rainha Margarida de Navarra. Na segunda década do século XVI a relativa moderação das medidas tomadas contra o luteranismo podem ser atribuídas à influência de Margarida. Como aconteceu na Alemanha, havia em França um partido erasmista reformista que incluía os irmãos du Bellay e Guillaume Budé, proponentes duma política pacifista como solução para as provocações mútuas da esquerda e da direita. Graças a conselheiros como estes, Francisco I desejou abster-se de medidas extremas de repressão. A provocação pelos Luteranos no caso dos Placards em 1534, quando placards inflamatoriamente anticatólicos foram exibidos em público, levou ao início de uma aberta e sangrenta repressão.
Em 29 de Janeiro de 1535, foi publicado um decreto ordenando a exterminação dos hereges. Cinco anos mais tarde, em 1 de Julho de 1540, o Edicto de Fontainebleau iniciou o grande período de perseguição dos Protestantes, perseguição tanto mais repreensível quanto a jurisdição sobre a heresia estava largamente entregue aos tribunais laicos, os parlements . Entre aqueles que pereceram nesses anos selvagens conta-se o infeliz Vaudois da Provença: só no ano de 1545, pela acção de repressão das forças armadas, mais de mil foram chacinados e as suas casas destruídas.
Calvino aparecia agora em cena. Em 1536 a primeira edição da sua Institution foi publicada em Basileia. Em 1544 os seus livros foram queimados por ordem da Sorbonne. Um ano depois, o ano dos morticínios de Vaudois, testemunhou a abertura do Concílio de Trento. Encontravam-se agora em presença todos os elementos do vigoroso conflito. Henrique II, que sucedeu a Francisco I em 1547, tencionava não tolerar a existência da heresia na França católica. Foi então desencadeada a mais feroz perseguição, auxiliada pelo estabelecimento em 1547 da Câmara Ardente.
Apesar do derramamento de sangue, ou talvez por causa dele, a Reforma aumentou de força e o calvinismo começou a suplantar o luteranismo não só entre as classes inferiores, onde se encontravam os adeptos de Calvino e onde, afinal, a Câmara Ardente foi buscar a maioria das suas vítimas, mas também entre a mais alta nobreza, o mais eminente dos quais foi António de Bourbon, rei de Navarra. Quase imperceptivelmente, a Reforma em França tornou-se muito menos popular entre a gente comum, cujos adeptos quase todos tinham desaparecido pela fogueira, do que entre a burguesia e a nobreza, classes estas que eram as únicas capazes de conseguir para o calvinismo a protecção de que desesperadamente necessitava. Em 1559, no ano seguinte ao da conversão do Bourbon, Francisco II subiu ao trono. E pode dizer-se que é com ele que começam verdadeiramente as guerras religiosas.
Os conflitos sangrentos dos 40 anos seguintes só superficialmente podem ser considerados religiosos, mas o alinhamento dos partidos segundo linhas dinásticas com os Bourbons e os Châtillons pelo lado dos Huguenotes e os Guises pelo lado católico tornaram cada vez mais irrealistas as ligações de carácter confessional. A difícil posição da Coroa, em particular, que sob a notável influência da rainha mãe Catarina de Médicis tentou obter uma pacificação civil satisfatória que não permitiria a qualquer dos partidos supremacia sobre o outro, trouxe claramente o aspecto político das guerras para o primeiro plano que lhe competia. Já na década 60 do século XVI apareceu aquilo a que se chamou um terceiro partido que consistia de membros de ambas as religiões que acreditavam que o conflito entre as fés era de menor importância de que o perigo que adviria para o Estado resultante de uma guerra civil: colocando a estabilidade política à cabeça do seu programa, ganharam por isso o direito ao nome por que passaram a ser designados: politiques. (…)
A tragédia de S. Bartolomeu
Desde o princípio Catarina aceitara como base da sua política uma espécie de coexistência tolerante entre os católicos e protestantes, sendo, todavia, o seu objectivo não propriamente a manutenção da paz civil mas a da autoridade da Coroa. O moderado Edicto de Amboise (1560) constituiu o início dessa política, assim como o facto de ela ter nomeado L'Hospital chanceler. Em Setembro de 1561 realizou-se o famoso Colóquio de Poissy entre as duas religiões. Foi esta a tentativa de Catarina para um concílio nacional cujo objectivo fosse obter a concórdia. Mas passadas que eram apenas quatro semanas o colóquio acabava em malogro. Como aconteceu na Alemanha, os colóquios eram inspirados pelos humanistas e foram destruídos pelo surto do calvinismo.
Daí em diante, a rainha foi obrigada ou a lançar os partidos uns contra os outros ou a apoiar apenas um partido; a terceira alternativa, que seria a de conceder alguma autonomia aos príncipes protestantes, ameaçaria a unidade da França e a autoridade do rei. Infelizmente, a política de conciliação usada para com os Protestantes, adoptada por Catarina e animada por L 'Hospital conduziu a um aumento no poder do partido reformado. O édito da tolerância publicado em Janeiro de 1562 por Carlos IX deu mais força ao protestantismo e intensificou as guerras de religião. Um ano depois disto, o Governo introduziu uma pacificação temporária pelo 2º Edicto de Amboise (1563). Este garantia a liberdade de consciência, mas restringia o exercício do culto livre às principais famílias do país.
Como já tinha acontecido na Alemanha, a tolerância na França aceitava a divisão de classes e as classes inferiores eram excluídas dessa regalia. Ao aceitarem o compromisso em tais termos, a Reforma e os chefes aristocráticos começaram a perder o apoio das massas que lhes poderia ter garantido a conquista da França. Os Huguenotes também perderam a simpatia de Catarina em 1567 quando Condé tentou asperamente promover a causa reformada prendendo a rainha mãe e o seu filho Carlos IX. Condé falhou e assim se precipitou uma outra guerra. A partir deste momento Catarina parece ter desesperado: da sua política de reconciliação e, apesar da tolerância momentânea revelada pelo Edicto de S. Germain (1570), convenceu-se cada vez mais de que só a destruição dos chefes protestantes podia restaurar a paz e proteger a Coroa. O resultado inevitável foi a chacina de S. Bartolomeu em 1572.
O sangrento morticínio dos protestantes assinala o malogro da política de Catarina, tendo desde aí passado para outras mãos a iniciativa para um acordo. Claro que, entretanto, não haviam faltado apelos à tolerância, provenientes em particular do lado católico. Eminentes prelados como Carlos de Marilac, arcebispo de Vienne, avisou em 1560 o Conselho Real de que só os extremistas aproveitariam das divisões religiosas e que seriam necessárias reformas oportunas e a organização dum conselho nacional para restaurar a paz e a unidade. João de Montluc, bispo de Valence, afirmava que as perseguições só agravavam e não curavam a situação.
Depois das Cortes Gerais, realizadas em Orleães em 1560-9, o abade de Bois-Aubry falou a favor de se tolerar duas religiões num único reino, não por causa dos motivos que tinham sido apresentados pelos politiques , ou seja preservar a paz no Estado, mas pela razão humanista do respeito pelas consciências: «não faz qualquer sentido desejar usar-se a força em matéria de consciência e religião, porque a consciência é como a palma da mão, quanto mais pressão se exerce nela mais ela resiste». Adoptando uma posição francamente tolerante, o abade continuou dizendo que «é melhor que um homem seja cristão duma forma ou doutra, bom ou mau, do que ser ateu, isto é, um homem sem Deus, sem religião e sem consciência». Tal discurso é extremamente moderno nas suas premissas e nos seus argumentos, e honra aqueles membros da Igreja francesa que sentiam que as razões éticas, muito mais do que as políticas, exigiam a prática da tolerância como um requisito prévio para se conseguir a ordem no Estado.
Do lado protestante levantaram-se algumas vozes a favor duma política mais liberal. Nas Cortes de S. Germain de 1561 o orador do Terceiro Estado lago Bretagne, calvinista e presidente da Câmara de Autun, pediu aos seus correligionários que fossem tolerantes até que um conselho nacional pudesse decidir o estado da religião. Ainda que o pedido favorecesse a sua própria religião, o princípio que foi expresso por Bretagne poderia muito bem ter sido aplicado a todas as minorias: «O Eterno exige de todas as criaturas nacionais o coração e a afeição interna acima de tudo, o que ninguém pode oferecer quando se sente constrangido».
Imagem de destaque: Retirado de “O Amanhecer da Tolerância” de Henry Kamen. World University Library.
Imagem 2: Gravura de um manuscrito do século XV que mostra João Huss a ser justiçado pela fogueira no ano de 1415, em Constança. Huss, que foi reitor da Universidade de Praga, chefiou uma revolta simultaneamente nacional e religiosa. Não deixa de ser curioso que as autoridades de Constança que ordenaram a sua execução foram as mesmas que obtiveram o maior sucesso na reconciliação da dividida Cristandade ocidental.
(Retirado de “O Amanhecer da Tolerância” de Henry Kamen. World University Library.)