Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

A MORTE DO ARRAIS

12.03.25 | Manuel

raul.jpg

por Raul Brandão

FOZ DO DOURO Dezembro - 1893

Chegam os dias de Inverno, e aquela voz colérica, que ouço desde pequeno, engrossa e mete medo. É um rebramir que acaba sempre na mesma nota profunda – u-uu – que entra pela terra e pelas almas dentro. Andam enrodilhados no ar farrapos de nuvens e espuma, que o vento cospe para o alto. Céu desordenado e negro como as águas. Os barcos da Foz, da Murada e da Póvoa vêm arribados e procuram recolher-se a toda a pressa. Dominando a ventania, o bramido do mar ecoa cada vez mais alto: é outra voz imensa e trágica, clamorosa e trágica... A barra cerrou-se de todo em novelos sobre novelos de espuma esverdeada. Lá fora, para além da arrebentação, vinte, trinta barcos esperam uma acalmia para entrar. Grandes nuvens desgrenhadas pela lufada dispersamse nos ares. A voz da tempestade e no céu a lividez da morte... Escurece mais: no horizonte fundo remexem cóleras indistintas, e quando a vaga se levanta, vêem-se os do mexoalho nos saveiros – quatro tábuas –algumas lanchas da Póvoa e as catraias da Foz esperando o momento decisivo. Durante alguns segundos aquela cólera aplaca-se: fica então um corredor estreito onde o mar não quebra, que é preciso atravessar a toda a pressa, à força de remo, num curto espaço de tempo, entre a vida e a morte. Tenho-os visto hesitar e desaparecer enovelados a cem passos de distância. O piloto-mor está no cais e o salva-vidas a postos. Pelas estradas acode o mulherio, com a saia pela cabeça, a correr, gemendo e chorando, cheias de angústia e de lágrimas. Algumas são muito velhas e trotam desengonçadas com gritos de desespero:

– Ai o meu rico filho, que o não torno a ver!...

E a voz sobe, a voz redobra e aumenta, vagalhão sobre vagalhão que se despedaça nas pedras, domina o vento e os gritos, e varre em catadupas cerradas o farolim, o cabedelo e o cais, coorte atrás de coorte monstruosa, alagando tudo de espuma, numa fúria que chega às nuvens.

– Ai Jesus! Ai Jesus!

Mais gritos, mais mulheres de todos estes sítios, com a boca torcida pela dor, salpicadas de espuma e amolgadas como trapos, com os pequenos agarrados às saias.

– Diz-me o coração que o não torno a ver.

– Não desespere, tiazinha. Talvez arribem a Leixões...

Vida de sobressalto, o coração retalhado, correndo sempre a costa, primeiro pelos homens, mais tarde pelos filhos e depois, pobres destroços sem serventia, pelos netos, mal podendo já com a carcaça, e vendo-os desaparecer um a um naquele mar profundo.

O piloto-mor mandou içar o camaroeiro, e, com a bandeira na mão, vai dar o sinal aos pobres seres, só angústia, perdidos na bruma, na cólera, na luz esfarrapada e lúgubre. O salva-vidas está a postos – mas quem se atreve?... Duns aos outros não medeiam talvez quinhentos metros – a morte. O cais está cheio de gente, todo o cais grita de dor. Estão aqui as mulheres, as mães, as velhas com a garganta sufocada, e que perguntam, numa ânsia:

– Viram-nos? Viram-nos?

– A lancha onde anda o seu homem não está na barra.

– Oh Jesus!

– Talvez não tivesse chegado ainda, talvez esteja já em Leixões.

E um velho pescador explica:

– Está aí a companha do Jacinto. Vem lá ao fundo outra com a vela rasgada. Esperem... esperem.

– E os da ti Ana?

– Por ora não se sabe deles. – O meu rico home! o meu rico home!

Reparo num grupo petrificado. Fixo uma mulher alta, ossuda, com cara de cavalo, toda vestida de escuro, que geme baixinho a meu lado. A roupa encharcada pega-se-lhe ao corpo, as mãos magras e tisnadas, de unhas roídas pelo trabalho, fincam-se-lhe no peito para conter os soluços que lho estalam. Geme sempre, e os olhos tem-nos presos ao longe no negro torvelinho de mar e céu que se confundem. É das poucas que não gritam, é das poucas, talvez, que compreendem... Mas não cessa de gemer, – não pode abafar de todo aquele rangido que lhe vem de dentro, e que é talvez o próprio coração esmigalhado pela desgraça... Mais adiante estão aquelas mulheres atarracadas e grosseiras da Póvoa, de saias pela cabeça e que exteriorizam a dor com espalhafato. Três homens, de sueste na cabeça e fisionomia grave, perscrutam e procuram adivinhar o momento em que o mar acalma, farto de violências. Na barra, para cá do cabedelo, o salva-vidas dança. Mais gritos. Um bando de mulheres chega à última hora, vindas de mais longe, com as mesmas lágrimas e os mesmos olhos de pasmo. Detenho-me em frente de outro grupo, com os pequenos agarrados às saias... Só aquela, acolá, é que não chora – como quem sabe que as lágrimas são inúteis, ou porque não tem mais lágrimas para deitar. Continua a gemer baixinho, na última trituração da dor.

– Senhor dos Navegantes, acudi-lhes! Meu rico Senhor!...

Mas o mar e o céu exigem tragédia. Alguns homens arriscaram-se a ir para o farolim e espreitam para longe.

Longe é uma barafunda turva, um esvurmar de cóleras, um redemoinho onde só se distinguem alguns mastros oscilando, e quando a vaga cresce, os barcos sacudidos no alto da vaga. Rolos formidáveis desabam sobre o penedo do Cão e galgam o cais cobrindo-o de água a referver. Depois as águas recuam verde-escuro, em placas movediças que deslizam sobre tons lívidos, babugens e riscos amarelados de areia que veio à tona.

Acolá ao fundo uma claridade turva, uma nódoa imóvel, talvez o sítio do sol; em baixo um movimento confuso de águas com pedaços de nuvens arrancadas ao céu fúnebre. Por fim, um largo espaço onde uma luz difusa incide e onde se passa uma tragédia maior. Não é a tempestade, é a ameaça; não é a desordem, é o pavor suspenso. Na barra as ondas avançam cada vez mais altas e mais cerradas, primeiro com uma crista lívida de espuma e depois a desabar em catadupas de água, em esguichos de água, em massas que se embatem revolvendo-se, enquanto outras se preparam lá para o largo. Varrem a costa, despedaçam-se nas pedras. Carreiros é um torvelinho esbranquiçado; no cabedelo, em Lavadores, até onde a vista alcança, o mesmo desabar infinito – toda a costa alastrada de espumas. E a voz imensa deste marulhar de água agitada sobe cada vez mais alto e enche todo o espaço dum clamor que mete medo – u-u-u...

 

É agora! É agora! O piloto-mor dá o sinal com a bandeira. Do seu olhar, do seu saber, da sua experiência, depende a vida daqueles homens. É agora! Os barcos, levantados no alto da onda ou arrastados para os abismos cavados entre vaga e vaga, avistaram-no lá de longe. Alguns mais atrevidos remam. No cais toda a gente sufocou numa rodilha de dor assombrada. As mulheres caem de joelhos.

 – Pedi por eles, Senhor Jesus Cristo!

– O meu home! O meu rico home!

E as da Póvoa arrastam os joelhos nas pedras, gritando:

– Ó coração de Maria, pidi ao Senhor por eles! Chagas abiertas, Coração ferido, sangue derramado de Nosso Senhor Jesus Cristo, ponde-vos entre eles e o perigo!

Uma bate punhadas no peito, outra rasga a cara com as unhas:

– Perdão para o meu filho nessas águas márditas!

Aquela horrível suspensão dura dois minutos, três minutos. Alguns barcos passam; outros hesitam retardados e apanha-os a vaga, que os sacode e despedaça entre cóleras e espumas. No cais um grito – um grito inútil. Má raios partam o mar!

Lá vem agora a nossa catraia. Conheço-a e quase distingo um a um os homens curvados sobre os remos. São dezasseis vidas, contando com o moço, são dezasseis corações diante da morte, a dois passos das mulheres que lhes estendem os braços. À volta as ondas redemoinham. Sufocados, curvam-se e endireitam-se, mãos nos remos, pés nos bancos, num último esforço desesperado, fazendo parte do barco, corpo e tábua tudo ligado e unido numa só peça. Alguns remos partem. De pé, à popa, meio nu, agarrado ao leme, o arrais injuria-os para lhes dar ânimo:

– Ah malandros! Ah ladrões! Ah filhos duma grande..., remem! Remem! Força agora!...

E a mão convulsa não larga o leme. Logo atrás do barco a vaga é monstruosa a desabar sobre eles – sempre maior! sempre mais perto!...

– Remem! remem! – berram de terra.

E os gritos no cais confundem-se num grito, e o rebramido ecoa nas almas. Um segundo, dois segundos, e estão salvos... Mas a onda quebra. Desaba em catadupas e outra enrodilha-os logo. O clamor das mulheres confunde-se com o eco da tempestade e é disperso pela lufada. O salva-vidas apanha um, outro acolá agarrado a um remo... O moço! O moço!... O vento cresce, do mar mais escuro avança o negro torvelinho...

– Já não entra mais nenhum. Vão arribar a Leixões.

E as mulheres lá correm outra vez pela estrada fora, as saias pela cabeça, encharcadas de água, com o mesmo anh! anh!... de aflição, gemendo, chorando, implorando. Algumas velhas têm o olhar fixo do espanto e as mãos enclavinhadas sobre o coração que já não pode mais. E rangem anh... ahn... Trôpegas, descalças, sob o aguaceiro que desaba, tão amolgadas pela vida que parecem farrapos molhados de lágrimas e cuspidos de espuma. E lá seguem... – Talvez entrem em Leixões – ... E lá seguem tendo caminhado léguas, rezando, suplicando, chorando, ou, pior, emudecidas pela dor, a tábua do peito apertada, a boca entreaberta e os olhos fixos no mar... – Ai Jesus! Ai Jesus!...

 

O arrais é encontrado ao outro dia morto no cabedelo. O mar partiu o barco pela quilha, enterrando na areia a carcaça intacta da ré, e torceu-lhe o braço como quem torce uma corda. Mas nem o mar nem a morte conseguiram arrancar-lhe o leme das mãos crispadas.

(Os Pescadores. Raul Brandão. Editorial Comunicação, 1986)