A poligamia e a Natureza do Homem
Imperadores altamente sexuados
Em finais dos anos 70, Mildred Dickemann, antropóloga da Califórnia, decidiu aplicar algumas ideias darwinianas à história e à cultura humanas. Propôs-se simplesmente ver se os tipos de previsões que os biólogos evolutivos faziam para os outros animais também se aplicavam aos seres humanos. O que descobriu foi que nas sociedades orientais altamente estratificadas do passado as pessoas pareciam comportar-se exactamente como seria de esperar se soubessem que o seu objectivo na Terra era deixarem o maior número de descendentes possível. Por outras palavras, os homens tendiam a procurar a poligamia, enquanto as mulheres lutavam para casarem com os homens de uma classe social superior. E afirmou que muitos costumes culturais — os dotes, o infanticídio feminino, a clausura das mulheres, de modo que a sua virgindade não pudesse ser danificada — eram consistentes com este padrão. Por exemplo, na Índia as castas elevadas praticavam mais infanticídio feminino do que as mais baixas, porque existiam menos oportunidades para exportarem as filhas para castas ainda mais elevadas. Por outras palavras, o casamento era um negócio: poder masculino e recursos para o potencial reprodutivo da fêmea.
Na mesma altura dos estudos de Dickemann, John Hartung, da Universidade de Harvard, começou a observar os padrões das heranças. Colocou a hipótese de um homem (ou mulher) rico numa sociedade polígama ter tendência para deixar os seus bens a um filho, e não a uma filha, porque um filho rico poderia dar-lhe mais netos do que uma filha rica. Isto acontece porque o filho pode ter filhos com várias mulheres, enquanto a filha não pode aumentar o número de filhos mesmo que case com muitos maridos. Por isso, quanto mais polígama é uma sociedade, mais provável é que mostre um padrão enviesado de herança a favor dos machos. Uma pesquisa que envolvia quatrocentas sociedades encontrou evidências que apoiam fortemente esta hipótese.
É claro que isso não prova nada. Pode ser uma coincidência que os argumentos evolutivos prevejam o que acontece de facto. Existe uma história que aconselha a ter cuidado e que os cientistas contam uns aos outros sobre um homem que corta as patas de uma pulga para testar a sua ideia de que os ouvidos da pulga estão nas patas, Depois diz à pulga para saltar, e ela não salta, pelo que conclui que tinha razão: 0s ouvidos das pulgas estão nas patas.
Apesar disso, os darwinianos começaram a pensar que a história humana talvez possa ser iluminada por um raio de luz evolutivo. Em meados dos anos 80, Laura Betzig propôs-se testar a noção de as pessoas estarem sexualmente adaptadas para explorarem qualquer situação que encontrem. Não tinha grandes esperanças de ter sucesso, mas acreditava que a melhor maneira de testar a conjectura era simplesmente postular a previsão mais simples que podia fazer: que os homens tratariam o poder, não como um fim, mas como um meio para obterem sucesso sexual e reprodutivo. Ao olhar em redor para o mundo moderno, não se sentiu encorajada: de Hitler ao papa, frequentemente, os homens poderosos não tinham filhos. Eram tao consumidos pelas suas ambições que lhes ficava pouco tempo para namoriscarem.
Mas, quando examinou o registo da história, Betzig ficou surpreendida. A sua previsão simplista era confirmada uma e outra vez. Apenas falhou nos últimos séculos no que diz respeito ao Ocidente. E não só: na maioria das sociedades poligâmicas existiam mecanismos sociais complicados para garantirem que o polígamo poderoso deixava um herdeiro polígamo.
As seis «civilizações» independentes da história antiga — Babilónia, Egipto, Índia, China, Astecas e Incas — eram menos notáveis pelo seu grau de civilidade do que pela concentração de poder. Eram todas governadas por homens, um homem de cada vez cujo poder era arbitrário e absoluto. Estes homens eram déspotas, o que significa que podiam matar os súbditos sem temerem retaliações. Essa vasta acumulação de poder traduzia-se sempre, sem excepção, numa produtividade sexual prodigiosa. O rei da Babilónia Hammurabi tinha milhares de «mulheres» escravas à sua disposição. O faraó egípcio Akhenaten tinha trezentas e dezassete concubinas e «rebanhos» de consortes. O líder asteca Montezuma disponha de 4000 concubinas. O imperador indiano Udayama mantinha 16 000 consortes em apartamentos rodeados de fogo e guardados por eunucos. O imperador chinês Fei-ti tinha 10000 mulheres no seu harém. Os Incas, como já vimos, mantinham virgens à sua disposição por todo o reino.
Estes seis imperadores, cada um típico dos seus antecessores e sucessoras, não só tinham haréns igualmente grandes, mas empregavam técnicas semelhantes para os encherem e guardarem. Recrutavam jovens (geralmente em idade pré-menstrual), mantinham-nas em fortes altamente defensáveis e à prova de fuga, guardavam-nas utilizando eunucos, mimavam-nas e esperavam que dessem à luz os filhos do imperador. Eram comuns medidas para aumentar a fertilidade do harém. As amas de leite, que permitiam que as mulheres retomassem a ovulação ao diminuir o seu período de amamentação, datam de pelo menos do código de Hammurabi do século XVIII aC.: eram motivo de canções nas canções dc embalar sumérias. A dinastia Tang de imperadores da China mantinha registos cuidadosos das datas de menstruação e concepção no harém para ter a certeza de copular apenas com as concubinas mais férteis. Os imperadores chineses também eram ensinados a conservaram o esperma para manterem a sua quota de duas mulheres por dia e alguns chagavam a queixar-se dos seus deveres onerosos. Estes haréns dificilmente podiam ter sido concebidos mais cuidadosamente como máquinas de reprodução dedicadas ao alastramento dos genes do imperador.
Os imperadores não eram mais do que exemplos extremos. Laura Betzig examinou cento e quatro sociedades politicamente autónomas e descobriu que «em quase todos os casos o poder prevê o tamanho do harém de um homem». Os pequenos reis tinham cem mulheres; os grandes reis tinham mil e os imperadores 5000. A história convencional far-nos-ia acreditar que estes haréns eram apenas uma das muitas recompensas que esperavam os homens que procuravam obter poder e tinham sucesso, a par dc todas as outras vantagens do despotismo: criados, palácios, jardins, música, seda, muitos alimentos c desportos de massas. Mas as mulheres ocupam um lugar relativamente elevado na lista. O ponto dc vista de Betzig é o de que uma coisa é descobrir que os imperadores poderosos eram polígamos, mas outra muito diferente é descobrir que cada um adoptava medidas semelhantes para aumentar o seu sucesso reprodutor dentro do harém: amas de leite, monitorização da fertilidade, clausura das concubinas, etc. Estas não eram medidas de homens interessados em excessos sexuais, eram medidas de homens interessados em produzirem muitos filhos.
No entanto, se o sucesso reprodutor era uma das vantagens do poder despótico, salienta-se uma característica peculiar. Todos os seis imperadores destas sociedades antigas eram casados monogamicamente. Por outras palavras, todos elegiam uma parceira acima de todas as outras como «rainha». Isto é característico das sociedades humanas polígamas. Onde existem haréns existe uma mulher mais importante, tratada de modo diferente das outras mulheres. Geralmente, é de origem nobre e, o que é crucial, apenas ela dá à luz herdeiros legítimos. Salomão tinha um milhar de concubinas e uma única rainha.
Betzig investigou a Roma imperial e descobriu que a distinção entre o casamento monogâmico e a infidelidade polígama se estendia do topo a base da sociedade romana. Os imperadores romanos eram famosos pelas suas proezas sexuais, mesmo casando com uma única imperatriz. As aventuras amorosas de Júlio César com mulheres eram «geralmente descritas como extravagantes» (Suetónio). Suetónio escreveu sobre Augusto: «A acusação de ser um perseguidor de mulheres pegou, e diz-se mesmo que, já idoso, ainda detinha uma paixão por desflorar raparigas — que eram escolhidas pela mulher». As «luxúrias criminais» de Tibério «eram dignas de um tirano Oriental» (Tácito). Calígula «fez avanços a quase todas as mulheres de estatuto de Roma» (Dio), incluindo as suas próprias irmãs. Até mesmo Cláudio era fornecido pela mulher, que lhe arranjava «diversas criadas para ele dormir com elas» (Dio). Quando Nero flutuou ao longo do rio Tibre, «mandou construir uma fiada de bordéis temporários ao longo das margens» (Suetónio). Tal como no caso da China, embora não tão metodicamente, a reprodução parece ser a principal função das concubinas.
Mas os imperadores não eram especiais. Quando um patrício rico chamado Gordian morreu ao liderar uma revolta a favor do pai contra o imperador Maximino em 237 d.C., Gibbon comemorou-o deste modo:
Vinte e duas concubinas reconhecidas e uma biblioteca com 62 000 volumes testemunhavam a variedade dos seus gostos e das produções que deixou e, ao que parece, quer uma, quer outra, foram concebidas para utilização, e não para ostentação
Os nobres romanos «vulgares» mantinham centenas de escravos. No entanto, virtualmente, nenhuma das escravas tinha funções ao redor da casa; as escravas eram muito caras se fossem vendidas quando jovens. Os escravos, geralmente, eram forçados a permanecer celibatários; então por que é que 0s nobres romanos compravam tantas escravas jovens? Para gerarem novos escravos, dirão os historiadores. Mas isso faria com que as escravas grávidas fossem vendidas por preços elevados, o que, porém, não acontecia. Se uma escrava não fosse virgem, o comprador podia processar legalmente o vendedor. E porquê insistir na castidade entre escravos e escravas se a reprodução é a função das escravas? Existem poucas dúvidas de que aqueles escritores romanos que igualavam as escravas a concubinas diziam a verdade. A disponibilidade sexual sem restrições das escravas «é tratada como um lugar-comum na literatura greco-romana desde Homero; apenas os escritores modernos conseguiram ignorar esse facto».
Além disso, os nobres romanos libertavam muitos dos seus escravos em idades surpreendentemente jovens e com concessões de riqueza suspeitosamente grandes. Esta não p0de ter sido uma decisão sensata em termos económicos. Os escravos libertados tornavam-se ricos e numerosos, Narciso era o homem mais rico da sua época. A maioria dos escravos libertados nascia na casa dos donos, enquanto os escravos das minas ou de quintas raramente eram libertados. Parecem existir poucas dúvidas de que os nobres romanos estavam a libertar os filhos ilegítimos, nascidos de escravas.
Quando Betzig desviou a sua atenção para a cristandade medieval, descobriu que o fenómeno do casamento monogâmico e do acasalamento poligâmico estava tão escondido que era necessário desenterrá-lo. A poligamia tornou-se mais secreta, mas não acabou. Nos tempos medievais, o recenseamento mostra que no campo existia uma razão entre os sexos muito enviesada a favor dos homens, uma vez que havia tantas mulheres «empregadas» nos castelos e nos mosteiros. Os seus empregos eram de criadas de servir de vári0s tipos,mas formavam uma espécie de «harém» solto, cujo tamanho dependia claramente da riqueza e poder do dono do castelo. Em alguns casos, os historiadores e os escritores eram mais ou menos explícitos ao admitirem que os castelos continham «gineceus», onde o dono do harém vivia em retiro luxuoso.
O conde Baudouin, patrono de um clérigo literário chamado Lambert, «foi enterrado na presença de vinte e três bastardos, bem como de dez filhos legítimos». «O seu quarto de dormir tinha acesso aos aposentos das criadas e aos quartos das raparigas adolescentes no piso superior. Também tinha acesso ao quarto aquecedor, ‘uma verdadeira incubadora para bebés de peit0’». Entretanto, muitos camponeses medievais tinham sorte se conseguissem casar antes da meia-idade e tinham poucas oportunidades para praticarem sexo.
(A Rainha de Copas – O Sexo e a Evolução da Natureza Humana, Matt Ridley. Gradiva, 2004)
Iamgem de destaque: Ismail ibne Xarife, foi mulei e sultão de Marrocos da dinastia alauita, reinando entre 1672 a 1727. Teve, segundo os registos, 500 esposas e um total de 888 filhos (548 rapazes e 340 raparigas).