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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

“A primeira exportação da Europa foi a violência”

04.12.23 | Manuel

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Sven Lindqvist

Auschwitz foi a aplicação industrial moderna de uma política de extermínio sobre a qual há muito assentava o domínio europeu no mundo.

Quando Adolf Hitler entrou na política, uma das oportunidades de expansão da Alemanha fechara-se. A Marinha Britânica dominava os mares e travava todas as tentativas de conquistar novas terras nas colónias.

Restava o continente. Em Mein Kampf (1925-1927) Hitler descreve como a Alemanha e a Inglaterra dividirão o mundo entre si. A Alemanha expandir-se-á para leste, tal como a Inglaterra já se expandiu para ocidente na América e para sul na Índia e em África. O culminar da política hitleriana de expansão para leste foi a invasão da União Soviética em Junho de 1941.

Na propaganda alemã a guerra era retratada como uma cruzada anticomunista. Dessa forma Hitler contava obter a aprovação de todos os que, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, detestavam o comunismo. Mas a cruzada jamais se teria realizado se não existissem também razões económicas.

A curto prazo, com a conquista de zonas agrícolas da parte ocidental da União Soviética, Hitler pretendia melhorar a situação alimentar na Alemanha em guerra. Assim, um número indeterminado de milhões de pessoas (zig Millionen Menschen) na União Soviética deveriam morrer à fome, o que, a longo prazo, constituiria também uma vantagem.

A longo prazo, Hitler tencionava incorporar estas zonas agrícolas no Lebensraum alemão. A terra, «que, através da morte e deslocação dos habitantes se toma terra desabitada» (vide Ratzel), passaria a pertencer à Alemanha. A população eslava dizimada, tal como os hereros no Sudoeste Africano, seria os servos e trabalhadores dos seus amos alemães.

Na noite de 18 de Setembro de 1941 Hitler descreveu aos seus colaboradores um futuro cor-de-rosa no qual a Ucrânia e a bacia do Volga se transformariam no celeiro da Europa. Aí a indústria alemã trocaria produtos baratos por cereais. Enviaremos para a Ucrânia lenços, contas de vidro e outras coisas de que os povos coloniais gostam.»

É claro que ele estava a gracejar. No entanto, para compreender a campanha de Hitler para leste é importante apercebermo-nos de que ele considerava estar a travar uma guerra colonial. Às guerras desse tipo aplicavam-se regras especiais – as já definidas em Politik (1898) pelo cientista político mais querido da extrema-direita, Heinrich von Treitschke: «O direito internacional transforma-se em meras palavras quando os seus padrões são também aplicados a povos bárbaros. Para punir uma tribo de negros têm de ser incendiadas aldeias, e sem dar exemplos desse tipo nada se conseguirá. Se o Reich alemão aplicasse o direito internacional em tais casos não demonstraria assim humanidade ou justiça, mas uma fraqueza vergonhosa.»

Treitschke estava apenas a pôr em palavras a prática que os Estados europeus há muito aplicavam e que Hitler utilizava agora contra os seus futuros «povos coloniais» do Leste.

Na guerra contra as potências ocidentais, os alemães respeitavam as leis da guerra. Apenas 3,5% dos prisioneiros de guerra ingleses e americanos morreram em cativeiro, contra 57% de prisioneiros de guerra soviéticos.

No total, 3,3 milhões de prisioneiros de guerra russos perderam a vida, dois milhões dos quais no primeiro ano da guerra, através de uma combinação de fome, frio, doença, execuções e gazeamento. Os primeiros prisioneiros a serem gaseados em Auschwitz foram russos.

Existe uma diferença crucial entre estas mortes e o assassínio dos judeus. Dos russos não judeus, apenas certas categorias - em primeiro lugar intelectuais e comunistas - foram totalmente exterminadas. Dos outros russos, segundo os planos, cerca de dez milhões seriam eliminados, mas os restantes continuariam a viver, como força de trabalho escrava sob comando alemão. Por outro lado, a totalidade do povo judeu deveria ser exterminada.

Nisso o Holocausto foi único – na Europa. Mas a história da expansão ocidental noutras partes do mundo dá-nos muitos exemplos de extermínio total de povos inteiros.

(“Exterminem todas as bestas”, Sven Lindqvist. Editorial Caminho. 2005)

Nota: Frase do título (Sven Lindqvist, in Público, 10/12/05)

A ver também: Apreciação do livro de Sven Lindqvist na sua edição brasileira

“Exterminem todos os malditos – Uma viagem a Coração das trevas e a origem do genocídio europeu”