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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

A Revisão da História: Terá Existido Fascismo em Portugal?

26.03.24 | Manuel

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 Fascismo? Estado Novo? Terceira Via? Ou será que o Regime, vigente em Portugal desde 1933-74, foi simplesmente democrático, e o conceito fascista é incompatível, indissociável, e não passa de uma esquizofrenia colectiva?

A questão "será que houve fascismo em Portugal?" está muito em voga no meio universitário, nomeadamente, na Universidade de Coimbra.

Dispensando os argumentos retóricos, os ilustres doutores, chegam à seguinte conclusão: em primeiro lugar, o regime vigente em Portugal desde, sensivelmente, 1933 a 1974, denomina-se Estado Novo ou Terceira Via (relativamente ao capitalismo e ao comunismo).

Relativamente ao conceito “Fascismo”, a relutância na sua utilização é evidente. Por conseguinte, atrevo-me a afirmar que, unanimemente, atribui-se a denominação exclusivamente ao caso italiano. Ouvindo alegações do tipo: os autores que enfrentam directamente o assunto são unânimes em afirmar que a denominação fascista não se aplica ao caso português, apenas devemos considerar o fascismo italiano como tal; outros, como o Fernando Rosas, não abordam directamente o problema; por fim, não existe uma posição consistente, clara, de um número de historiadores que afirmem e sustentem o contrário.

Porém, a polémica na utilização do conceito é-me incompreensível. Se considerámos que em Portugal houve Feudalismo, Renascimento, Humanismo (estes dois últimos, muito incipientes, relativamente ao caso italiano) …, não compreendo a não aceitação do conceito, no caso português (ou talvez compreenda, tendo em consideração de que se trata de um período «quente», onde muitos envolvidos estão vivos, daí a necessidade de branquear a história para limpar o bom nome das famílias e salvaguardar as actuais posições profissionais, sociais e políticas dos mesmos).

Eu, enquanto cidadã, até compreendo a posição daqueles historiadores, que são da opinião (e, obviamente, constroem grandes teses corroboradas e bem sustentadas sobre a respectiva posição) da não existência de fascismo em Portugal. Não admira, vivendo actualmente o hipotético fim do refluxo da Revolução dos Cravos, há uma extrema necessidade de limpar o bom nome dos novos democratas reciclados: um Adriano Moreira – “ um pilar na democracia portuguesa”; um Veiga Simão, aquele que foi ministro da Educação e mandou os gorilas para as universidades, nas quais os alunos faziam os exames com G3 apontadas à cabeça, em momentos acesos de luta estudantil; um Pinto Balsemão ou um Sá Carneiro (estes provenientes do hall de entrada do fascismo) enfim um inúmero número de personalidades, nomeadamente a nata da sociedade portuguesa (já para não falar de muitos anónimos, hoje em dia, estimados democratas, encaixados por vezes num PS, que foram PIDES e Bufos, alguns actualmente professores universitários, por favor não vale a pena nomear nomes porque pode ferir algumas susceptibilidades).

Eu entendo perfeitamente a opinião dos historiadores que abordam frontalmente o assunto. Mas, há um facto muito importante, e esse não pode ser escamoteado, é a Memória de todos aqueles que viveram durante o regime, memórias traumáticas, de guerra, de fome, de miséria, de pobreza muito generalizada entre o povo, de falta de Liberdade, de um enorme analfabetismo, de uma arbitrariedade judicial gigantesca…E, enquanto os cidadãos, que pertenceram à realidade histórica, continuarem vivos e as suas histórias passarem na oralidade, é extremamente difícil contornarem e deturparem a história. Peço desculpa, mas este assunto ainda é muito sentido e difícil para todos aqueles que viveram durante a ditadura.

Enquanto aluna de história, interpreto esta teoria com alguma tristeza, porque entendo-a como um puro revisionismo, uma tentativa clara e aberta de branquear a História. Agora questiono-me, onde é que está a tal objectividade? O distanciamento do sujeito com o objecto de análise? A transparência, o não ocultar os acontecimentos históricos? Uma tentativa e procura de uma história total, sem omissão dos factos, das vivências da população portuguesa da época em questão?

E, sabem o que é que mais me entristece? É só ouvir nas aulas os programas políticos, as constituições, toda a ideologia que envolve o Estado Novo e nunca, mas nunca ouvir o impacto que todas as medidas, promulgadas pelo o regime, tiveram na vida dos cidadãos. Ás vezes, até parece que o Estado Novo foi o paraíso, sinónimo de bem-estar e qualidade de vida para todos os portugueses.

Não querendo fazer uma abordagem histórica e científica do assunto, entendo que o regime foi de cariz fascista.

Como qualquer sistema político, há adaptações à realidade socioeconómica de cada país. Vejamos bem. Actualmente, os países europeus, como uma Alemanha, uma França, uma Inglaterra, têm regimes democráticos. No entanto, o primeiro é parlamentarista, o segundo é semi-presidencialista e a Inglaterra é uma monarquia (constitucional e parlamentarista) e os dois primeiros são repúblicas. Se alegarmos que o fascismo só existiu na Itália, por conseguinte podemos ser falaciosos e dizer que não existe nenhum país que viva em Democracia, pois ela surgiu na Grécia Antiga, com uma estrutura institucional própria e uma «ideologia» peculiar (muito distinta das actuais).

Se analisarmos a base ideológica do fascismo (apesar do conceito “ideológico” não ser o mais correcto, porque tal regime é conduzido para a praxis , esta limita-se a um pequeno número de princípios que dizem respeito à acção, como um factor de mobilização de massas), podemos verificar algumas semelhanças:

A necessidade de um Império – no caso português, não houve a necessidade de conquistar porque havia um vasto Império, não houve conquista mas, numa altura de descolonização, já há muito iniciada pelos países europeus, nós resistimos belicamente pela permanência do mesmo - «Portugal vai do Minho a Timor»; a função histórica de possuir e colonizar os domínios ultramarinos e de civilizar as «populações indígenas» (superioridade da raça branca);

A não existência de partidos políticos, a sua existência era fictícia (partido único), basta lembrarmos as eleições de 1958, culminando com a perseguição e assassinato do General Humberto Delgado;

A organização totalitária do Estado e da Sociedade, a procura de controlar tudo e perseguir aqueles que almejavam liberdade de expressão e condições de trabalho minimamente humanas;

A mística da Nação, do chefe carismático: «Tudo pela Nação, nada fora da Nação, nada contra a Nação»;

As tendências autoritárias antiparlamentares e anti-socialistas - a recusa do liberalismo democrático, cito apenas duas expressões do artigo 8º do Título II, os «direitos e garantias individuais dos cidadãos portugueses», nomeadamente as «liberdades fundamentais», embora sujeitas à regulamentação de «leis especiais»;

«Um Estado com uma doutrina totalitária», visando a conquista e vinculação a uma moral dominante, através de uma forte orientação ideológica do ensino e de um enquadramento ideológico da juventude (quer na Mocidade Portuguesa, quer na Legião portuguesa), da família, do trabalho (FNAT) e da cultura, no quadro da organização corporativa;

Nacionalista, corporativo e autoritário, o Estado Novo instituiu mecanismos de repressão, nomeadamente a censura à imprensa, à rádio, ao cinema, ao teatro, à literatura, e sobretudo, uma polícia política PIDE-DGS; o recurso sistemático à coacção, à tortura, à prisão preventiva, à violação da correspondência e ás escutas telefónicas, bem como à prisão por tempo indefinido, de opositores ao regime, procuravam impedir as ideias subversivas, nomeadamente as comunistas;

A criação de prisões, como o Tarrafal, Peniche, para torturar os presos, na sua maioria, considerados perniciosos para o regime, cuja ideologia era diferente do fascismo;

A existência do Secretariado de Propaganda Nacional, para doutrinar a população, na sua maioria analfabeta, sem consciência política.

A emergência de um regime fascista não pode ser encarada como um fenómeno puramente italiano, e, sobretudo, como uma “ideologia” nascente na década de 20, do século passado. Temos de ter em consideração as teorias filosóficas da Modernidade, que conduzem para um Super-homem, para um Estado totalitário; a acção de grandes Homens, como condutores da História; a emergência dos nacionalismos do séc. XIX, com as consequências psicológicas colectivas, geográficas, políticas, económicas e sociais da 1ª Guerra Mundial; no caso português, a experiência “sanguinolenta” e de instabilidade da 1ª República, o estado deficitário das finanças; as influências literárias que tiveram um Mourras e um Émile Demolins na formação intelectual de Salazar (protótipo de um intelectual, conservador e católico da época).

Por muito que se esforcem os revisionistas da história, o fascismo existiu em Portugal dêem-lhe o nome que quiserem.

Coimbra, 21 Janeiro 2005

Marlene Matos

Em www.osbarbraos.org