A Revolta do Azeite
No dia 25 de Março de 1921, em pleno regime democrático, o povo da aldeia do Roxo, concelho de Penacova, localizada apenas a 10 quilómetros de Coimbra, na serra da Aveleira, revoltou-se contra a repressão da GNR. Esta fiscalizava uma jovem camponesa que levava um cântaro de azeite para venda na cidade, mas que não levava a, então denominada, “guia de trânsito”, o que significaria a fuga ao pagamento do imposto “ad valorem”, ficando com o cântaro de 20 litros de azeite apreendido.
Entretanto, a jovem, de seu nome Alexandrina, foi pedir ajuda ao namorado para reaver o que era seu, mas os militares da GNR, que ainda se encontravam junto ao cântaro, dão-lhes ordem de prisão; como defesa, o namorado manda tocar o sino a rebate e a população acode, juntando-se no largo e dando-lhes resposta adequada: foram corridos da aldeia, segundo relata um dos jornais da época, obrigando a patrulha da GNR a regressar ao posto de Penacova de onde era proveniente.
Mas a vingança não tardou e, “duas ou três horas depois”, veio outra força reforçada já com soldados de Vila Nova de Poiares, concelho vizinho, que terão entrado por outra via de acesso ao Roxo e, “sem meias medidas”, “dispararam sobre a população”, como conta Eduardo Ferreira, bisneto de uma das vítimas mortais, à publicação “Penacova Actual”.
A GNR justificou a acção com a hostilidade do povo, o comandante de posto de Poiares terá sido ferido na cabeça, os militares terão, então, atirado primeiro para o ar, mas como o povo não se amedrontou, então atiraram a matar sobre a população indefesa. Foram assassinados, nesse dia de Sexta-Feira Santa, José Luís da Fonte e Alípio Rodrigues Russo, tendo António Miguel, de 27 anos, sido ferido num braço e levado para o Hospital da Universidade de Coimbra, onde morreu algum tempo depois.
Ainda não satisfeita, no dia seguinte, a GNR aparece em força no Roxo, com 40 militares de infantaria e 60 de cavalaria “e varre a população toda”. “Entre 35 e 55 pessoas são levadas sob escolta para Coimbra onde são interrogadas, sendo depois libertas”, refere Eduardo Ferreira; 33 homens e duas mulheres diz a “Gazeta de Coimbra”. Seja como tenha sido, foi a sanha repressiva que atingiu toda a população de aldeia e de outros habitantes de aldeias vizinhas que terão respondido à chamada dos sinos.
Os representantes do governo e do poder local, com o auxílio da imprensa regional, logo trataram de denegrir o povo do Roxo, como povo de “de má raça”, estigma que parece ter perdurado no seio de alguma opinião pública mais moderada e influenciada pelo regime republicano em vigor. Foi um episódio de justa revolta contra os impostos lançados sobre uma população rural que simplesmente, como agora, lutava pela sua sobrevivência, e à semelhança do que acontecia nessa altura um pouco por todo o país contra a miséria e a reforma fiscal.
“Desde miúdo que conheço essa história e o Roxo sempre teve má fama. Lembro-me de ir trabalhar com 12 ou 13 anos para Coimbra e, quando dizia que era do Roxo, diziam logo: ‘Isso é má raça, isso é má terra, que até na Guarda batem’. Havia até uma lenda de que os canhões de Santa Clara, em Coimbra, estavam virados para o Roxo”, realçou Eduardo Ferreira ao “Penacova Actual”.
O episódio aconteceu a 25 de Março de 1921 foi comemorado no passado Sábado, dia 25 de Março de 2023, por iniciativa da própria população que desejou escrever a história tal como ela aconteceu e não a deixar ficar pela versão do poder, que é sempre a versão do vencedor. O momento, 102 anos passados, é de “solidariedade e de coragem”. “Passados mais de 100 anos, temos outra visão das coisas. Não estamos a pedir contas à GNR [os militares que mataram os três locais receberam louvores, na altura], mas sim comemorar um facto histórico e valorizar a solidariedade e a coragem que estas pessoas tiveram” (“Penacova Actual”).
Eduardo Ferreira: a aldeia tem de reclamar para si a história e orgulhar-se de “um ato espontâneo de revolta por ser dada ordem de prisão a uma rapariga pobre, que apenas queria vender o seu azeite para fazer face às necessidades”.
A GNR foi a primeira força policial a nível nacional, substituindo a antiga Guarda Municipal que só existia em Lisboa e era profundamente odiada devido aos desmandos e brutalidade exercidos sobre o povo, criada pela mão de Machado Santos, considerado “Herói da Rotunda” e “Fundador da República”, ministro do Interior do primeiro governo de Sidónio Pais, na I República.
Foi graças à GNR que a classe dominante conseguiu controlar a população, nomeadamente a rural, de norte a sul do país, e obrigar ao pagamento de impostos injustos e excessivos (Reforma Fiscal da I República), ao mesmo tempo que impunha a lei e a ordem republicanas – “Através da GNR que o Estado poderia abarcar todo o território e levar a República a cada aldeia” in Diego Palacios Cerezales, “Portugal à Coronhada – Protesto Popular e Ordem Pública nos Séculos XIX e XX”.
A GNR é uma força militar cuja principal missão consiste no policiamento e que, utilizada pelo regime fascista de Salazar, ficou tristemente célebre e, ao contrário do povo do Roxo, com inteira e justificada razão. Em relação à Monarquia, onde o exército levava a cabo operações de policiamento, a I República representa um “retrocesso” (Diego Palacios Cerezales) no que respeita à repressão sobre os trabalhadores, umas das razões que terá ajudado à sua queda em 1926, no golpe militar que veio a instaurar o Estado Novo.
Nesta II República que, em princípio, irá fazer no próximo ano meio século de existência, houve já tempo mais que suficiente para extinguir esta força repressiva e integrar os seus elementos, por exemplo, na PSP. Em democracia e em estado de direito não se compreende nem se justifica, só se for para manter a finalidade inicial, a existência de uma força militar com funções de polícia civil.
Nota: dados retirados de https://penacovactual.sapo.pt/2023/03/20/aldeia-do-roxo-recria-o-centenario-da-revolta-do-azeite/ e “O Progresso Lorvanense”, “Jornal de Penacova”, “Gazeta de Coimbra”, “Portugal à Coronhada – Protesto Popular e Ordem Pública nos Séculos XIX e XX” de Diego Palacios Cerezales.
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