A saúde pelas horas da morte
A degradação do SNS é voluntária, é intencional, é dolosa, obedece a um plano e beneficia lóbis e interesses que já não se dão ao trabalho de disfarçar. São as queixas, por exemplo, na Ordem dos Médicos, que chegaram às 2027 só no ano de 2023; ou os enfermeiros que rejeitam abdicar de equiparação com carreira técnica superior, porque sentem que vão ser menorizados nas suas funções, autonomia e salários.
Nota: Texto datado de Junho de 2024
Em princípio poderíamos pensar que mudando o governo se passaria a falar menos do estado do SNS e as notícias alarmistas sobre o encerramento dos serviços de urgência de obstetrícia e de pediatria desapareceriam ou seriam mais discretas, embora saibamos à priori que a política do PSD pouco ou nada difere da do PS quanto à questão da saúde em Portugal. Mas não foi isso que aconteceu, o alarmismo, o denegrir constante do SNS por parte da comunicação social mainstream e o adiar da resolução dos problemas das carreiras dos profissionais de saúde continuarem, se não aumentaram de intensidade e de frequência. O propósito é claro: desqualificar e desacreditar o serviço público de saúde para facilitar a promoção do sector privado do negócio, não da saúde, mas da doença.
Os salvíficos ‘Plano de Emergência’ e ‘Plano de Verão’
O governo entrou, aparentemente a todo o vapor, com grande protagonismo da ministra, especialista em medicamentos, mas pouco conhecedora do que são e para que servem outros paradigmas de saúde para além do modelo curativo centrado no receituário de moléculas químicas. Entrou com um putativo Plano de Emergência da Saúde, depois de o demissionário director executivo do SNS ter dado o nega, e perante as críticas das diversas organizações profissionais e dos partidos da oposição quanto à vacuidade das medidas propostas, a ministra de imediato mostrou o mau caracter e a ignorância, não deixando de afirmar que a responsabilidade pelo Plano de Verão "é dos administradores hospitalares". E após a resposta adequada por parte daqueles últimos, veio redobrar a acusação de que as direcções hospitalares seriam “fracas”. Apercebendo-se da argolada, ou alguém a terá alertado para o perigo da escalada do confronto, e mostrando que a coragem política não é o seu forte, veio esclarecer que não era bem isso que queria dizer.
O chefe do principal partido da oposição verberou que, no governo PSD/CDS e em particular na ministra, “não há nenhuma visão para o SNS”. O que não é verdade, existe uma visão clara, ou obscura, conforme o ponto de vista, sobre o SNS, que é a sua rápida e eficiente liquidação. E as medidas para este Verão toda a gente ficou a conhecer: os mapas com urgências e blocos de parto abertos nas várias regiões do país serão publicados, mas os interessados devem ligar primeiro para a linha do SNS 24 para grávidas. Ou seja, mais do mesmo do governo PS. O que depressa se verificou com o record de encerramentos de serviços de urgência de obstetrícia e pediatria e blocos de partos neste último fim de semana: “Doze urgências fechadas no domingo; outras nove urgências estarão parcialmente abertas ou apenas reservadas aos doentes”. Nesta parte a ministra ultrapassou, mas pela direita, o seu antecessor, o famigerado e conhecido “cabeça de tartaruga”, que agora anda a promover a literatura woke sobre confusão de géneros.
Adiar as negociações com os sindicatos para nada resolver
Em relação à questão das carreiras dos profissionais do SNS a ministra não poderia ter sido mais clara quanto às suas reais intenções: “Ministério adiou reuniões da próxima semana com sindicatos médicos”. Os representantes dos médicos já perceberam, se não, então, devem rever a posição para não terem alguma desilusão, que este governo possui a mesma boa-fé que o anterior, que é nenhuma. A estratégia vai ser, como sempre foi, empurrar os problemas com a barriga, fazendo promessas vagas e adiantando propostas ínfimas e até provocadoras e simultaneamente criando o desalento e a divisão no seio dos médicos. É a estratégia do desgaste, entretanto, o tempo passa e a privatização da saúde será facto consumado. Esperamos que os médicos se insurjam contra esta política e que se ponham em luta dentro em breve, mas que saibam concitar o apoio de outras categorias profissionais e, fundamentalmente, o apoio dos cidadãos utentes do SNS.
Os médicos ainda são os que mais se queixam da sua situação, embora e repetimo-lo, nem todos poderão queixar-se na medida em que a classe é algo heterogénea. Os sindicatos acusam os hospitais de travarem adesão à dedicação plena, as administrações obedecem às directivas do governo, travar a dedicação exclusiva e permitir que todos os outros médicos possam, acumulando com o público, fazer concorrência desleal com o patrão estado. É assim desde as reformas das carreiras médicas de 2012, acabar com a dedicação exclusiva (agora, diz-se “plena”) e mandar os restantes para o privado onde trabalham na sua grande maioria como empresários, alguns deles, saindo do SNS, vendem-lhe depois os seus serviços. E é para aqui, para o privado que vai quase 40% do Orçamento destinado à Saúde.
Esta situação irá agravar-se com o grande número de médicos a atingir a idade da reforma, 45% dos médicos de família têm mais de 65 anos, mas o governo já encontrou uma fórmula milagrosa, vai contratar médicos reformados que podem juntar o vencimento à reforma. Mas contratar mais médicos novos, atraindo-os com melhores vencimentos, progressões e condições de trabalho, não é caminho a seguir, bem pelo contrário, sobrecarregar os que ainda ficam nos cuidados primário com mais trabalho, menos incentivos, estes serão apenas de natureza economicista, ou seja, degradação da qualidade dos cuidados médicos e outros. Para tapar o sol com a peneira, o governo veio, seguindo o mantra do anterior, prometer abertura de mais vagas, apesar da Ordem dos Médicos lembrar que 26% das vagas lançadas para especialistas ainda ficam por ocupar.
Quanto aos enfermeiros estes continuam a ser endrominados com o aparente prazer das direcções sindicais, da dos sindicatos afectos ao PSD e PS nada de estranhar, ora, quanto aos restantes, fica-nos a sensação de que o espírito de colaboração de continuarem a beber o chá das cinco com a ministra continua a ser a prioridade. Em relação a outras categorias profissionais importantes, sem as quais o SNS, ou outros serviços públicos, não conseguem funcionar, assistentes operacionais ou técnicos administrativos, laboratórios, imagiologia, etc., não se vislumbra sinal de vida. Os administradores hospitalares prevêem dificuldades nos hospitais neste Verão por manifesta falta de profissionais, no entanto, o governo vai despedindo enfermeiros que acabam o contrato de trabalho, como aconteceu com mais de vinte enfermeiros da ULS de Coimbra. O descontentamento também vai alastrando, os enfermeiros de centros de saúde da região de Lisboa em greve a 4 de julho.
Liquidar o SNS dizendo o contrário
A degradação do SNS é voluntária, é intencional, é dolosa, obedece a um plano e beneficia lóbis e interesses que já não se dão ao trabalho de disfarçar. São as queixas, por exemplo, na Ordem dos Médicos, que chegaram às 2027 só no ano de 2023; ou os enfermeiros que rejeitam abdicar de equiparação com carreira técnica superior, porque sentem que vão ser menorizados nas suas funções, autonomia e salários. Resultado: foram registados mais 36 mil utentes sem médico de família nos dois últimos meses; o Hospital de Penafiel colocou 80 doentes em isolamento contaminados por bactéria, fruto da deterioração das condições de trabalho e falta de investimento em material e equipamento. Situação semelhante no SNS24, considerada “situação explosiva”, ou no INEM. Por se sentirem prejudicados e sem condições de trabalho adequadas, mais de metade dos médicos ortopedistas do hospital de Évora demitiu-se, e a administração do hospital de Viseu seguiu o mesmo caminho, alegando "quebra de confiança política" da ministra. E poderíamos continuar.
As medidas que o governo já anunciou para salvar o SNS são medidas, para já as conhecidas, para o liquidar apesar de apresentadas como salvadoras do SNS e da saúde dos cidadãos. O governo diz que vai lançar até final do ano concurso público para a criação de 20 Unidades de Saúde Familiar, mas geridas pelos setores social e privado em regiões com falta de médicos de família. Pergunta-se onde vai o governo buscar os médicos, e outros profissionais, se 80% dos médicos que trabalham no privado acumulam com o público, embora muitos deles, especialmente directores e chefes de serviço, vão lá de vez em quando para colocar o dedo no biométrico? Diz que vai atribuir incentivos adicionais a hospitais públicos para cirurgias oncológicas, tendo a ministra enganado nos números de cirurgias em espera, em vez das 2.500 falou em 9 mil, dando bem a ideia da informação que possui, ou então gosta de ser alarmista, empolando os problemas de molde a responsabilizar os médicos, que são uns calões.
O que a ministra e o governo propõem como solução para o SNS é colocar o sector privado a substituir-se ao público, pagando-lhe principescamente, ou seja, financiar os privados, incluindo a Igreja Católica com as misericórdias e outras IPSS, para fazer o que o SNS vai deixar de fazer por intenção deliberada do governo. Para aliviar urgências, o governo diz que vai criar centros de atendimento abertos também a privados, claro que vão receber por isso, e os vales-cirurgia vão ser substituídos por “vouchers telefónicos”. Pretende também retirar 50 mil emigrantes das listas dos médicos de família, e enviá-los possivelmente para os privados, o problema é que estes não têm dinheiro para pagar, ficará o governo com novo encargo de financiamento. Parece que para enfiar nos bolsos dos negociantes da doença há dinheiro que nunca mais acaba, faltará, no entanto, para melhorar as grelhas salariais e as carreiras de médicos, enfermeiros, auxiliares e por aí fora. Para salários não há dinheiro, compreende-se, será para o público não fazer concorrências ao privado e obrigar de certa forma os profissionais de saúde a acumular vários empregos para melhorar o rendimento mensal.
A saúde é um negócio e os cidadãos pagam ou são abandonados
Os negócios com a saúde são muitos e nunca acabam. O Hospital da Misericórdia do Porto vai receber até 365 doentes não urgentes do SNS diariamente por 45 euros cada, no entanto, o Hospital Militar vai ser destinado a receber refugiados. As vacinas foram entregues às farmácias sem se ter passado informação aos centros de saúde, estes foram os últimos a saber e a receber os lotes de vacinas. Ficaram às moscas porque as vacinas passaram a ser administradas nas farmácias privadas. Ainda há pouco veio um estudo manhoso querer demonstrar que o negócio terá sido vantajoso para os cidadãos, porque lhes terá poupado 2,4 milhões de euros, só que “esqueceu-se” de referir que o governo gastou com o negócio 11,5 milhões de euros (2,5 euros por vacina covid ou da gripe), dinheiro que daria para contratar 639 enfermeiros que faltam no SNS. Primeiro o negócio, depois, ou jamais, os profissionais que fazem funcionar o SNS. Não é por acaso que a maioria dos médicos e enfermeiros, e não só, os que zelam pelo SNS, se sentem exaustos e desmotivados, com o aumento de queixas contra os serviços públicos, mas que se dirigem muitas vezes contra estes profissionais pela simples razão de que são eles que dão a cara pelo SNS. Enquanto os governantes e responsáveis políticos se escondem nos gabinetes e na mentira mediática.
A situação ao longo deste Verão vai ser caótica. As urgências continuarão a encerrar, abrangendo um número maior de hospitais; as escalas dos médicos das urgências continuarão a falhar, a maior prova de incúria e de incompetência foi a necessidade de o governo ter de republicar as escalas de urgência porque… o PDF estava errado; os utentes continuarão a queixar-se da qualidade dos serviços e tempos de espera no SNS que irão piorar; os sindicatos dos médicos continuarão a dizer que se “adivinha Verão caótico”, coisa fácil de prever; os negócios, e a corrupção, continuarão, olhe-se para o caso da consultora IQVIA (empresa privada) que terá participado na conceção do “plano de emergência da saúde”, mas que já tinha feito 55 contratos com o estado no tempo do governo PS, mas que a ex-ministra, agora com tacho bem cheio no Parlamento Europeu, diz desconhecer. Foi exactamente esta ex-comissária política para a Saúde que defendeu, durante a campanha eleitoral, uma "União Europeia da Saúde”, ou seja, um sistema europeu de negócio para os bancos e companhias de seguros e onde os dados dos utentes de cada país possam estar disponíveis. O Big Health Business agradece. Por outras palavras, eis o resultado de muitos cidadãos neste país insistirem no voto nos dois principais partidos do establishment, agora as queixas de pouco valerão.
Fonte: moves