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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Abolição da Escravatura em Portugal?

05.12.22 | Manuel

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Acabou de se comemorar ou, melhor, passou-se alguns dias sobre o Dia Internacional para a Abolição da Escravatura, que se assinala em cada dia 2 de Dezembro. Será mais um formalismo oficial sem conteúdo de relevo, na justa medida em que a realidade da escravatura no mundo e em Portugal, em particular, é iniludível e não tem decrescido, bem pelo contrário. Se Portugal foi um dos pioneiros na abolição da escravatura, em 1761 por decreto do Marquês de Pombal, entretanto, foi o primeiro estado do mundo a fazer comércio global de escravos vindos de África, terá traficado cerca de 11 milhões de pessoas, entre 1450 e 1900. Em 1974, ano da revolução dos cravos, havia ainda trabalho forçado (eufemismo de escravo) nas ainda colónias africanas.

Portugal, nomeadamente o Portugal das elites, é pródigo na hipocrisia e nas medidas de faz de conta para dar uma boa imagem de uma realidade que nada tem de belo ou de humano. E quando as coisas vêm ao de cimo ou tentam-se esconder ou dizer que não é nada connosco, foi o que aconteceu com os trabalhadores imigrantes escravos na agricultura intensiva no Alentejo. As três mais altas figuras representativas, e de poder, de estado resolveram fazer turismo futebolístico no Qatar, conhecido paraíso dos direitos humanos, ao serem criticadas ou vieram com desculpas esfarrapadas ou assobiaram para o lado e mandaram “esquecer” o assunto.

Se as autoridades democráticas, da República/Estado democrático e de direito, escondem o problema para debaixo do tapete, a elite que beneficia directamente dessa mão-de-obra escrava ou quase escrava faz também de conta que não é responsável de nada e até, aonde vai o descaramento?, se vitimiza. Assim, segundo a proba opinião do presidente da Associação de Agricultores do Sul, "as associações de agricultores não têm nada a ver com isto, nem os agricultores em geral", reafirmando que estes trabalhadores imigrantes são “fundamentais” e que o problema se resolverá com mais fiscalização. Como se este assunto fosse apenas uma questão de polícia e não política.

Claro que a exploração de seres humanos, com o objectivo de lhes arrancar a maior taxa de mais-valia possível, coisa que não seria possível nem tão fácil se tratasse de mão-de-obra nacional, é aberta e inquestionavelmente um crime, mas por detrás encontram-se relações sociais de produção capitalista. A existência de agricultura intensiva no Alentejo, no Algarve, ou em outras partes do território nacional, maioritariamente nas mãos de empresas estrangeiras, nomeadamente de empresas britânicas, ou seja, fora da União Europeia, deve-se ao facto de Portugal se encontrar dentro do espaço comunitário e tendo-lhe cabido o papel de fornecimento de mão-de-obra barata e facilidades a nível fiscal e de ordem geral aos grandes grupos económicos capitalistas. Entretanto, a elite, incluindo a parte política, colhe a renda.

O governo do senhor Costa e do partido que se auto-denomina de “socialista” sabe do problema, melhor, conhece-o desde o primeiro dia de mandato e quando foi tema mediático, chegou a prometer contentores com ar condicionado e internet, só que passado que foram três anos e pós-reeleição, as palavras foram levadas pelo vento e a exploração continuou… para lucro acrescido dos empresários e terra-tenentes. Logo que passe a onda do futebol o tema será de novo relegado para o esquecimento, porque até as pessoas são mais escuras e nem são portuguesas, se ainda fossem, vamos lá!, louras e de olhos azuis e de preferência ucranianas, então iríamos ver, é que Bruxelas já enviou 60 milhões de euros para os refugiados da guerra da Ucrânia e talvez escorregasse com mais algum.

A elite nacional é entranhadamente racista e xenófoba e para aferir o seu espírito de humanismo e anti-esclavagista basta olhar para as sentenças proferidas pela Justiça nos últimos anos. Na maioria dos casos, as condenações ou são brandas, com absolvições ou com pena suspensa, e quando pena efectiva são poucos anos de prisão. Não se percebe que o código de justiça penal não preveja penas de 25 anos, pena máxima, para os casos mais graves e nem os empresários que empregam mão-de-obra escrava não sejam de igual modo penalizados, à semelhança dos traficantes por colaboradores activos do crime. Sabe-se inclusivamente que são estes empresários, quando os trabalhadores ousam protestar contra condições degradantes e humilhantes de trabalho, são eles próprios que os denunciam às autoridades.

A prova de que o tráfico de seres humanos tem aumentado exponencialmente entre nós é o número crescente das condenações que mais do que duplicaram nos últimos anos, segundo o relator nacional para o tráfico de seres humanos da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) da presidência do Conselho de Ministros, sendo realçada a importância de se aplicar “sentenças suficientemente dissuasivas” em Portugal, o que não tem suficientemente acontecido. Não podemos deixar de realçar o facto de o Tribunal de Coimbra ter condenado cinco de seis arguidos, acusados de tráfico de seres humanos, entre 2013 e 2018, a penas efetivas de prisão, entre seis e sete anos, que serão na prática diminuídas para metade em caso de bom comportamento dos réus. Porque não o dobro e ficaram sem o património que deveria reverter para as vítimas e para o estado? Não é a pedagogia de dissuasão que se pretende? Ora, não é com penas brandas que se atinge esse objectivo.

Muitos dos traficantes são estrangeiros, o negócio compensa e está globalizado. Ficou-se a saber que muitos dos trabalhadores imigrantes, na recente operação policial em Beja, eram contratados e sequestrados por uma casal romeno que escravizava os próprios compatriotas, mas já em 2018 o tribunal de Santarém condenou a prisão efectiva cinco arguidos por tráfico humano para exploração laboral, sendo dois deles estrangeiros, um israelita, Aharon Rony Bargig, condenado a 10 anos de prisão, o outro nepalês, Sharad Gurunq, condenado a cinco anos e três meses, o tribunal determinou ainda a expulsão do país por oito e cinco anos, respetivamente. Depois de cumprida a pena poderão regressar, as portas estarão abertas.

Como o negócio é rentável e com um bocado de sorte as penas serão simbólicas ou quanto muito brandas, podendo retomar a actividade mais tarde, daí ser também um negócio familiar podendo envolver várias pessoas da mesma família. Em outra sentença, e estamos a recorrer a casos noticiados na imprensa, foram condenados quatros arguidos pertencentes à mesma família, residentes na área da Covilhã, três sofreram penas de prisão efectivas, o outro a pena de prisão suspensa. Em caso mais recente, já em este ano de 2022, o tribunal de Coimbra condenou um homem a cinco anos de prisão e a sua filha, também arguida, a três anos e meio, mas ambos com pena suspensa, o crime tinha sido a exploração de dois homens da Europa de Leste em trabalhos domésticos e na empresa de têxteis e de vestuário de sua propriedade, como se fossem pretos à moda antiga.

A atitude das autoridades perante a questão dos imigrantes e dos diversos casos de escravatura encontra-se bem patente no comportamento dos agentes de autoridade, que usam a força para lidar com o problema, chegando recorrer à tortura, à boa moda antiga da Pide, levando por vezes à morte dos torturados, como aconteceu com o trabalhador imigrante ucraniano, cujo assassínio foi bastante mediatizado, tendo ajudado a cozer em lume brando o ex-ministro da Administração Interna Cabrita e servido de pretexto para a reforma das polícias, antro de antiga e prodigiosa corrupção. Se Ihor Homenyuk fosse portador de um visto gold quase de certeza que os agentes que o torturaram lhe teriam estendido aos pés uma passadeira vermelha. Afinal, trata-se de uma questão de dinheiro e de posição social.

A questão é simples, trata-se de dinheiro: se se é mafioso com muito dinheiro para reciclar não se pergunta nem sobre o que faz nem ao que vem, se se é pobre e trabalhador, o interrogatório é feito a preceito, como aconteceu no caso do imigrante ucraniano. O racismo acaba por ser um racismo económico, é o ódio pelo pobre, que apenas procura um meio de melhorar a sua vida. A discriminação serve somente para justificar a maior exploração da parte da classe dos trabalhadores discriminadas. E facilmente se interligam os conceitos de racismo e de que a exploração dos trabalhadores pode ser levada ao extremo da escravatura pura e dura; conceitos que se encontram bem entranhados nas nossas elites, sejam elas políticas ou económicas, e aos seus instrumentos de controlo e repressão, tribunais e polícias. O resto da sociedade, como não se encontra separada por uma muralha da China, deixa-se facilmente contaminar, e mais fácil se houver ganhos directos ou secundários. E os casos são mais do que muitos e quase quotidianos.

O estado não é neutro, não está acima das classes, ele é na essência o instrumento de dominação de uma classe por outra, e resume em si toda a mentalidade da classe que se encontra no poder. E quando esse estado é herdado quase incólume de um regime autoritário, como era o anterior ao 25 de Abril, por um regime que se pretende democrático, então, esta democracia e este estado de direito são, na maioria das vezes, simplesmente formais. E os exemplos abundam. Mais recentemente, os sete militares da GNR que agrediram e sequestraram alguns imigrantes, chegando a filmar a proeza, e que se encontravam suspensos, voltaram ao activo ainda antes de serem condenados pela justiça. A sentença está para ser conhecida em breve, como será? Não será difícil de imaginar. Outro exemplo: os seis jovens que foram sequestrados, agredidos e humilhados na esquadra da PSP em Alfragide apelaram à Provedora de Justiça para que os oito agentes condenados fossem punidos disciplinarmente de forma a não "torturarem" mais ninguém, esperam há 21 meses pela resposta da Provedora da Justiça.

Como se constata, a escravatura, o racismo, a xenofobia, a discriminação e a exploração do ser humano, a nível laboral, sexual, psicológico ou outro (é notícia recente “Tráfico e exploração sexual de menores crescem na Europa”) estão inscritos no genoma da nossa sociedade burguesa e capitalista e que mais dificilmente se apagarão numa sociedade que, ainda por cima, não soube, não conseguiu ou não quis livrar-se das velhas chagas e maleitas do fascismo. Aliás, enquanto forem fonte de rendimento para as elites e para uns poucos mais, manter-se-ão.

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