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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

AL BERTO

18.05.22 | Manuel

 

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CHEGARAM AS MÁQUINAS para talhar a cidade que vem
das águas cresce a obra do homem, ouve-se um lento grito d'espuma e suor
na memória ficaram os sinais dos bosques ceifados, as dunas desfeitas e algumas casas abandonadas
estenderam-se tubos prateados, onde escorre o negro líquido
levantaram-se imensas chaminés, serpenteiam auto-estradas na paisagem irreconhecível do teu rosto

onde estarão as tâmaras maduras de tuas palmeiras?
e o perfume intenso das flores debruçando-se ao sol?
que murmúrio terão as pedras do teu silêncio?

a memória é hoje uma ferida onde lateja a Pedra do Homem, hirta como uma sombra num sonho
e as aves? frágeis quando aperta a tempestade... migraram como eu?
aonde caminhas, Doce Moura Encantada?

ouço o ciciar dos canaviais dentro do sono, adivinho teu caminhar de beijos no rumor das águas
tuas mãos de neve recolhem conchas, estrelas secretas, luas incendiadas... que o mar esconde na

respiração das marés

estremecem-me nas mãos os insectos cortantes do medo, em meu
peito doído ergue-se esta raiva dos mares-de-leva

"Trabalho de Olhar", 1976/82


RETRATO DE UM AMIGO ENQUANTO BEBE

íamos por noites de ciclone largar a tristeza
à porta marítima das tabernas... éramos a sombra
que mancha o tampo da mesa oscilante
falávamos alto como fazem os marinheiros
bebíamos até cair

conheço este homem
debruçado para o rosto indeciso do rapaz
perguntava se havia algum mal no que fazia
eu olhava a televisão pedia mais vinho
interrogava-me
que secretos desejos teriam singrado
com aquele navio carregado de morte?

e a cidade crescia noite adiante sob a tempestade
os passos ecoavam apressados pelo cais
– Como te chamas? perguntou
mas o rapaz não respondeu... e nada em redor
tremeluzia

o homem levantou-se
indiferente à revelação da alba titubeou tossiu
apoiado no magro ombro do rapaz
desapareceram pelas ruas estreitas do mar
entre redes cordas quilhas e remos
onde se embarca para o medo esquecido de mais um dia

"Alguns Poemas da Rua do Forte", 1983


A DOENÇA LANÇA nas veias um insecto negro
calcinado pela excessiva luz da memória

tenho repentinamente fome
não consigo mexer-me
sacudo os lençóis com os pés concentro-me
na dor que me percorre desmancho a cama
onde me ataram há quinze anos fixo o olhar
para lá das paredes e do tecto

a casa está envenenada
exala vibrações de ferrugem subterrânea
desenha-se uma porta de cânhamo à altura da boca
e um movimento remoto dos dedos fustiga
as raízes graníticas dos alicerces

a doença enumera inventaria
necessita de esvaziar completamente a memória
para que se cure o corpo
e o sonho de novo desça e construa
magníficos refúgios luminosos jardins

de mim amontoar-se-ão os ossos
escombros de veias usadas sob pesadas chuvas
comigo morrerão os rumores de deus e das madeiras

o arrumo cauteloso dos livros o segredo
das fechaduras e dos envelhecidos espelhos
que gemem e vibram à passagem dos mortos
e das sombras

"Uma Existência de Papel", 1984/5

“Vigílias” de Al Berto. Ed. Assírio & Alvim. Lisboa, 2004