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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Almeida Garrett 

02.02.23 | Manuel

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Destino

Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta «Florece!»
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai!, não mo disse ninguém.

Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino .
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.

*

Este Inferno de Amar

Este inferno de amar - como eu amo! -
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'

Mais umas poucas Dúzias de Homens Ricos

Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu, tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. - No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? - Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já deve de andar orçado o número de almas que é preciso vender ao Diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro - seja o que for; cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.

Almeida Garrett, in 'Viagens na minha Terra'

('Folhas Caídas'. Círculo de Leitores, 1970 e 'Viagens na minha Terra'. Publicações Europa-América, 1972)

*

Nau Catrineta

Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.

Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.

Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.

- "Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal!"

- "Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar."

- "Acima, acima, gageiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal!"

- "Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal!"
Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar."

- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-se casar."

- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar."

- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar."

- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar."

- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."

- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."

- "Dar-te-ei a Nau Catrineta,
Para nela navegar."

- "Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar."

- "Que queres tu, meu gageiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?"

- "Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar!"

- "Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar."

Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;

E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.

(Almeida Garrett, ‘Romanceiro’)

Nota:

A Nau Catrineta é um poema romanceado por um anónimo, relativo às viagens para o Brasil ou para o Oriente. Segundo Almeida Garrett, o romance popular A Nau Catrineta terá sido baseado no episódio sobre o Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Coelho, vindo do Brasil, no ano de 1565, que integra a História Trágico-Marítima. Este poema, que Garrett incluiu no seu Romanceiro (1843-1851), foi bastante difundido pelos países setentrionais.
Diz a lenda que decorria o ano de 1565 quando saiu de Pernambuco a nau "Santo António" com destino a Lisboa, levando a bordo Jorge de Albuquerque Coelho, filho do fundador daquela cidade.

­­João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (Porto, 4 de Fevereiro de 1799; Lisboa, 9 de Dezembro de 1854) - Escritor e dramaturgo romântico, orador, par do reino, ministro e secretário de estado honorário português. Grande impulsionador do teatro em Portugal, uma das maiores figuras do romantismo português, foi ele quem propôs a edificação do Teatro Nacional de D. Maria II e a criação do Conservatório de Arte Dramática. (Infopedia)