Amílcar Cabral no seu centenário
Por Óscar Oramas Oliva
Cada vez que falo deste grande herói da independência africana e do chamado Terceiro Mundo, vêm-me à memória os últimos momentos que estivemos juntos, na residência do embaixador polaco Tadeuz Matisiak, em Conacri.
Que já estadista e hábil diplomata, guerrilheiro, teórico, pensador se multiplicou e falou com cada um dos presentes, para quem tinha uma frase nas respectivas línguas, na sua recorrente campanha de conquista de seguidores para a causa libertadora. Nesse dia 20 de Janeiro de 1973, numa emboscada organizada pela sinistra PIDE e executada por alguns membros traidores do PAIGC, assassinaram-no pelas costas e recusaram-se primeiro a falar com ele.
Nasceu em Bafatá, Guiné Portuguesa, a 12 de Setembro de 1924. Estudou Agronomia em Portugal, mas a situação do seu país levou-o a procurar soluções para além desse campo, em alternativa à soberania do seu povo. Em Portugal junta-se à infinidade de estudantes africanos, troca com eles, desenvolve ideias, instrumentos de luta e faz crescer neles o desejo de lutar para verem as respetivas terras independentes. Já mostrou as suas capacidades como líder e líder de homens. Cabral viveu um breve período na ilha de São Tomé, e mais tarde em Angola, onde realizou estudos de solos. Nessa colónia viveu o processo de formação do principal movimento independentista, o MPLA (Movimento de Libertação de Angola), e apoia-o, porque os seus dirigentes já foram companheiros de ideias e de lutas em Portugal. Desde 1954 que considerou a necessidade de estruturar os conflitos na Guiné e em Cabo Verde contra o colonialismo português, alcançando esse objectivo com a fundação, em 19 de Setembro de 1956, do Partido Africano para a Independência da Guiné Bissau e Cabo Verde. Líder de uma clareza cristalina, elogiou a unidade como força motriz para a luta contra o colonialismo e o imperialismo, que mantêm o povo africano e os povos do mundo atrasados. Vemos a delicadeza e a profundidade do seu pensamento quando disse:
“Para nós, a revolução africana significa transformação da vida económica actual no sentido de progresso”. “O que exige a liquidação prévia da dominação económica estrangeira, da qual depende qualquer outro tipo de dominação”, afirmou o líder africano, que afirmou ainda que “a unidade virá ao serviço de África, ao serviço da humanidade”.
Cabral, grande expoente da era da independência em África e agrónomo que dedicou a sua vida à conquista da liberdade do seu povo, o da Guiné-Bissau, geminado com o de Cabo Verde (os seus pais eram de lá). Procurou unir os dois territórios na luta pela independência e, uma vez alcançada a independência, juntar-se a eles como nações soberanas, embora a morte o tenha impedido de concretizar o seu sonho de ver eliminado o colonialismo português. As lutas de libertação nacional são obra de muitos, mas há sempre homens que as inspiram e impulsionam, é o caso de Amílcar Cabral na Guiné Bissau, em Cabo Verde e para além das fronteiras de ambos. Foi um farol e guia deste processo.
Amílcar Cabral, como todos os homens cultos do seu tempo, estudou o pensamento de Karl Marx e de Federico Engels, e adaptou-o às condições históricas específicas da luta travada, de forma criativa, sem traçar ou copiar como dizia José Carlos Mariátegui. Passou parte da sua adolescência nas ilhas e desenvolveu no continente o seu trabalho profissional e a sua práxis revolucionária, o que lhe permitiu identificar-se com a história e a cultura das duas regiões da colónia. Abandonou a agronomia e a poesia para se dedicar à criação de um novo tipo de partido que lhe permitisse alcançar o precioso dom da liberdade e da independência.
Manteve sempre uma confiança e uma fé quase mística na vitória do PAIGC sobre o colonialismo português, que incutiu nos seus subordinados. Uma das suas características essenciais é que estudou tudo, cada passo que planeou dar, cada luta que teve de empreender e posso afirmar que nada foi improvisado nas suas ações. A forma como planeou e trabalhou para proclamar o Estado é um testemunho vivo desta afirmação. Concebeu este projeto, meditou pacientemente sobre ele, consultou pormenores com alguns, sem considerar o plano como acabado, mas como algo em processo de desenvolvimento. Para isso contou com o apoio incondicional e criativo do embaixador tanzaniano Salim Ahmad Salim, destacado membro e presidente do Comité de Descolonização entre 1972 e 1980, que o aconselhou em cada passo.
O Comandante Che ficou impressionado, de forma positiva, com Amílcar e depois de conhecer a realidade da luta travada pelo PAIGC, no decurso das conversas mantidas em Brazzaville e Conacri, considerou e expressou que, aquele era o movimento mais revolucionário sério no continente. Na Biografia fac-similada do Che, página 148, o comandante escreveu: “Pereira, o segundo, é como o Cabral, muito modesto, são trabalhadores, entram na zona de combate”. Amílcar estimou que todos os caminhos para uma solução pacífica estavam fechados, devido à obstinação do governo português, e por isso, o único caminho que restava ao povo era a luta armada, e com seriedade e vigor dedicou-se a preparar a guerra necessária na Guiné Bissau e Cabo Verde. No primeiro cenário tudo seria relativamente mais fácil, devido à topografia do terreno e no segundo, as condições naturais tornariam o processo mais complexo, mas aí prevaleceria a criatividade de quem ama a liberdade.
Memorável foi o encontro com o Comandante-Chefe Fidel Castro e o Comandante Manuel Piñeiro nas montanhas de Escambray. Nessa ocasião questionava constantemente muitos aspectos da luta da guerrilha cubana, saltando para aspectos da educação ou outro tema relacionado com a construção de uma nova sociedade. Queria absorver tudo, sentia-se satisfeito com o diálogo com o líder da revolução cubana. Falaram muito sobre África, os seus problemas económicos e sociais, as suas peculiaridades e a necessidade de ter em conta os grupos tribais, e todo o legado deixado pela noite colonial. Fidel ouviu-o com muita atenção e, como sempre, fez-lhe uma pergunta atrás de outra. Concordaram no imperativo da troca de experiências entre os revolucionários. A admiração foi mútua e Fidel já o tinha descrito como brilhante no encerramento da Conferência Tricontinental. Amílcar aliou um profundo conhecimento do seu povo, a determinação de lutar de armas nas mãos contra o colonialismo português, uma personalidade forte, uma visão muito ampla de África no seu todo e informação actualizada sobre os acontecimentos internacionais. Era já uma personalidade respeitada pelos seus pares africanos, pelos dirigentes dos países africanos, pelas mais altas autoridades dos países e partidos socialistas, bem como pelo mundo do pensamento progressista da época e por determinada imprensa.
Na referida reunião, Cuba decidiu reforçar a ajuda ao PAIGC constituída por especialistas de vários ramos militares, médicos, material de guerra e outros materiais. A nossa solidariedade e presença militante para com estes combatentes pela liberdade durou cerca de uma década e, uma vez alcançada a independência em 1975, Cuba continuou a apoiar, na medida das suas possibilidades. E quando Fidel viajou pela primeira vez para África, em Maio de 1972, em Conacri conversou com Sekou Touré e Amílcar, para reforçar o esforço de solidariedade e acelerar o fim da guerra.
Do cérebro fértil de Cabral emergiu uma sólida reflexão sobre o papel da pequena burguesia na luta de libertação nacional, que hoje exige um estudo muito cuidadoso para extrair lições para o actual momento das lutas sociais.
Ao mencionar pormenores da vida de Amílcar, recordo com alegria que em cada aniversário cubano ele aparecia na nossa embaixada com uma mensagem para o Comandante-Chefe, mas esta prática estendia-se a cada um dos países ou pessoas que o ajudaram na luta. Ele estava genuinamente consciente de cada data significativa e que denotava organização e também a relevância que dava ao factor humano ou psicológico.
O Líder e o PAIGC sempre demonstraram um grande interesse em ser cuidadosos com os líderes vizinhos, mas ao mesmo tempo agiram de forma a serem respeitados. O amor pela independência prevaleceu neles. Este factor deve ser ponderado pelo seu justo valor, tendo em conta as diferenças de todos os tipos entre os presidentes Sekou Touré da Guiné e Leopoldo Sedar Senghor do Senegal e que não afectaram as actividades do PAIGC e a luta de libertação. Mostraram sempre igual cuidado nas contradições sino-soviéticas, quando cada um tentava aproximar a brasa da sua sardinha.
A firmeza do seu carácter foi também outra característica e recordo-me que numa ocasião teve uma forte discussão com um colega cubano e não só foi forte, como depois me disse que só examinaria comigo as questões políticas. Entenda-se bem, não é que Amílcar tenha rejeitado a polémica, não; mas não aceitou que o interlocutor lhe tentasse impor uma ideia. Era uma pessoa muito autoconfiante e para quem a melhor defesa era o ataque.
Muitas vezes, ao chegar à sede do secretariado do PAIGC, encontrei o líder, sentado em frente ao seu humilde gabinete, vestido com o seu inseparável safari, com os óculos à altura da cabeça e os olhos imersos em algo que escrevia. Pode ser de manhã cedo ou à noite. O fumo do cigarro Malboro encheu a pequena sala. Nunca descansava, ou melhor, divertia-se de outra forma, lia um jornal ou um texto e a sua concentração afastava-o, por momentos, dos problemas do quotidiano. Quando se tem nas costas a luta de libertação de um país, com as complexidades que isso acarreta, a vida torna-se complexa e tensa, mas nunca a vimos como amarga, mas sim optimista e à procura de soluções para as vicissitudes da luta. Não houve nenhum livro da editora francesa Maspero, dedicado à obra dos revolucionários, que Amílcar não conhecesse. Imagino-o a lê-lo nos aviões, com aquela avidez de quem sabe que cada minuto da sua existência é precioso e obrigatório. a causa que ele abraçou.
Homem muito discreto, divertia-se, mas manejava as palavras com habilidade e não pronunciava muitas. Amigos e embaixadores ou diplomatas muito experientes mencionam frequentemente estas facetas do líder do PAIGC. Nunca o vi exagerar na recepção, foi extremamente cuidadoso.
Sim, quando os patriotas do PAIGC liquidaram um colonialista estavam a mostrar que eram capazes de derrotar o inimigo, de obter a vitória e, ao mesmo tempo, de libertar o Portugal fascista de um dos regimes mais cruéis que um país europeu alguma vez conheceu. Esta foi uma grande contribuição para o processo de formação da consciência do homem africano, das suas capacidades e da natureza ignóbil e não científica de muitas das concepções de supostos pensadores dos países coloniais sobre a inferioridade dos seres humanos no mundo colonizado. Esta profunda admiradora do psiquiatra e filósofo Frantz Fanon pensou e trabalhou arduamente para garantir que as mulheres desempenhassem um papel de liderança na luta de libertação. A sua pena e ações foram totalmente comprometidas nesse sentido, com resultados positivos.
Nenhum aspecto do futuro do seu país escapou à sua reflexão. Amílcar Cabral insistiu na primazia da cultura, “fundamento do movimento de libertação”, e na prioridade que deve ser dada à educação na luta pela independência. “São as flores da nossa luta.” Combinando o pensamento com a acção, fundou escolas nas zonas libertadas e uma escola piloto em Conacri, de onde surgiram muitos quadros, formados em Cuba, universitários e que hoje têm nas mãos sectores importantes da vida do país.
O seu verbo claro e preciso, o manejo dos conceitos, a sua prática revolucionária e o prestígio alcançado levaram-no a ser porta-voz dos restantes Movimentos de Libertação das colónias portuguesas em diversos cenários, como ocorreu na já referida Conferência Tricontinental, em Janeiro de 1965, em Havana. Uma missão do Conselho de Descolonização da ONU visitou as zonas libertadas da Guiné Bissau, e uma delegação do PAIGC, chefiada por Cabral, visitou a China, a Coreia do Norte, o Japão e a Suécia na consolidação do grupo de países que reconheceriam o novo Estado que iria proclamar. Numa reunião sobre as noções de raça, identidade e dignidade que a UNESCO organizou em Julho de 1972, apresentou um estudo substancial. Com paciência, tacto, perseverança e coragem teceu o pedestal sobre o qual se ergueria a Pátria, como Estado soberano.
O seu trabalho incansável fez-se sentir também no desenvolvimento das Forças Armadas e procurou incessantemente os meios militares e a sua formação com a ajuda de Cuba, da União Soviética, da Argélia e de outros países. Amílcar, que proclamou de forma contundente, durante a Conferência Tricontinental de Havana, “A luta de libertação nacional é um acto de cultura”, considerou que nela e com ela contribuímos para o desenvolvimento civilizacional do ser humano.
O seu calcanhar de Aquiles foi não ter prestado a devida atenção à sua segurança pessoal, aos conselhos, sugestões e informações que os líderes amigos lhe transmitiram sobre os planos para o assassinar, a fim de desferir um golpe mortal na luta de libertação.
A história e o contributo para a luta revolucionária de um homem emblemático da envergadura histórica de Amílcar Cabral não podem ser apagados nem minimizados. As ideias não morrem e Amílcar brilhará com a luz do amanhecer em cada cidade que realmente decidir lutar pela sua independência.
Até à vitória sempre!