Quadras da mentira e da verdade
P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.
Mentiu com habilidade,
fez quantas mentiras quis;
agora fala verdade
ninguém crê no que ele diz.
Gosto do preto no branco,
como costumam dizer:
antes perder por ser franco
que ganhar por não ser.
Julgando um dever cumprir,
Sem descer no meu critério,
- Digo verdades a rir
Aos que me mentem a sério!
*
Porque o Povo Diz Verdades
Porque o povo diz verdades,
Tremem de medo os tiranos,
Pressentindo a derrocada
Da grande prisão sem grades
Onde há já milhares de anos
A razão vive enjaulada.
Vem perto o fim do capricho
Dessa nobreza postiça,
Irmã gémea da preguiça,
Mais asquerosa que o lixo.
Já o escravo se convence
A lutar por sua prol
Já sabe que lhe pertence
No mundo um lugar ao sol.
Do céu não se quer lembrar,
Já não se deixa roubar,
Por medo ao tal satanás,
Já não adora bonecos
Que, se os fazem em canecos,
Nem dão estrume capaz.
Mostra-lhe o saber moderno
Que levou a vida inteira
Preso àquela ratoeira
Que há entre o céu e o inferno.
*
QUADRAS:
Ao sentir tremer o trono,
P'ra o mundo não fez segredo:
Prometeu, talvez por medo,
Que dava o seu a seu dono...
Este sujeito é capaz
De nos fazer mil promessas...
Mas faz-nos tudo às avessas
Das promessas que nos faz!
Mas eu não sou quem procuras...
Sei, contra tua vontade,
Que me mentes, quando juras
Que me dizes a verdade.
Prometem ao Zé Povinho
Liberdade, Lar e Pão...
Como se o mundo inteirinho
Não soubesse o que eles são1!
1 A Salazar, quando este, em 1945, hipocritamente prometeu eleições «tão livres como na livre Inglaterra».
*
A fome, a dor, a tristeza
São — por nossa inf'licidade —
O preço por que a pobreza
Paga a sua honestidade.
A fartura ao pé da fome,
Raramente se dá bem:
Quase sempre quem tem come
À custa de quem não tem!
Quem tem «massa» é cavalheiro,
Por isso a vida anda torta.
O que importa é ter dinheiro,
Donde ele vem não importa.
Metade do mundo come
À custa de outra metade;
Viver com honestidade
É abrir portas à fome...
Ai daquele que precisa
Ser vigarista forçado!...
Mesmo quando vigariza
Sai sempre vigarizado.
*
GLOSAS:
MOTE
Fui uma noite pintar
Com um caneco emprestado;
Eu pintei sem reparar,
Pintei e fiquei pintado.
GLOSAS
Eu comecei com jeitinho
A compor o ramalhete;
Primeiro foi com azeite
E depois foi com cuspinho.
No começo era estreitinho,
Custava o pincel a entrar...
Começa a dona a gritar:
«Não me parta a tigelinha»,
Mas que coisa engraçadinha,
Fui uma noite pintar...
Comecei devagarinho...
Quando fui ao outro mundo
Meti o pincel ao fundo
E parti o canequinho.
Até mesmo o pincelinho
Veio de lá todo pintado,
Eu já estava desmaiado,
Perdendo as cores do rosto;
Mas pintei com muito gosto
Com um caneco emprestado.
Vem a mãe toda zangada:
«Tem que pagar-me a vasilha...
No caneco da minha filha
Não pinta você mais nada...
... Lá isto, a moça deitada,
Sem poder-se levantar,
Com tanta tinta a pingar
No lugar da rachadela!...»
«Diga lá, que desculpe ela,
Eu pintei sem reparar!»...
P'ra que vejam que sou pintor
E meu pincel nunca deixo;
P'ra que saibam que o Aleixo
Não é somente cantor...
Também pinto qualquer flor
E faço qualquer bordado;
Mas aqui o ano passado
Perdi, de pintar, o tino...
Fui pintar, fiz um menino,
Pintei e fiquei pintado.
*
MOTE
— Primo, que medo, que horror!...
Que bicho é que tem na mão?
— Ó prima, eu sou caçador,
Este bicho é um furão!...
GLOSAS
... Ande cá, pegue-lhe aqui
Co'a sua mãozinha linda;
Talvez ele cace ainda
Um coelhinho para si
— Quando seus olhos eu vi,
Seu rosto mudou de cor,
E não perdeu o rubor
Ao tocar-lhe só c'um dedo...
— Então já não diz com medo:
«Primo, que medo, que horror!?...»
— Mas o bicho há-de morder...
— Não, não morde em moças novas,
Isto é p'ra meter nas covas
Onde caça grossa houver;
Talvez me saiba dizer
Onde alguns coelhos estão...
Disfarce a má impressão,
Venha-me já ensinar,
E não torne a perguntar:
«Que bicho é que tem na mão?»
— Eu cá sei onde estão três
Metidos num só buraco...
— Este bicho é tão velhaco
Que os tira só de uma vez...
Ainda há bem pouco ele fez
Coisa pior, o estupor:
Tirou-os com tal furor
Que, prima, chorei com pena,
E, se por tal me condena...
Ó prima, eu sou caçador.
Não me devia condenar...
Se foi Deus quem criou tudo,
Criou um bicho cabeludo
Para noutro bicho entrar...
— Primo, vamos começar
Da melhor maneira então...
Ai, primo, é como um travão
Que chega à maior fundura...
Bem diz você que ele fura,
Este bicho é um furão!
SOBRE SI PRÓPRIO
Fui polícia, fui soldado,
Estive fora da Nação,
vendo jogo, guardo gado,
Só me falta ser ladrão!...
Em resposta a algumas provocações de meninos mal-criados:
Não sou esperto nem bruto
Nem bem nem mal educado;
Sou simplesmente o produto
Do meio em que fui criado.
Mas a mais célebre é sem dúvida a quadra de improviso com que respondeu a quem pôs em causa a sua honestidade ou se referiu à forma andrajosa como se vestia:
Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que, sem parecer o que são,
São aquilo que eu pareço.
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António Fernandes Aleixo (Vila Real de Santo António, 18 de Fevereiro de 1899 – Loulé, 16 de Novembro de 1949) é talvez o maior poeta popular português. Em tempo de mentiras, fake news, intimidações e manipulações, de toda a sua poesia oral estas quadras serão as mais oportunas.
Como os antigos bardos e aedos, o poeta popular português António Aleixo nunca teve a preocupação de registar suas composições, mesmo porque era quase analfabeto. Mas graças ao trabalho de Joaquim de Magalhães, compilador dos versos ditados pelo poeta, surgiu um primeiro volume de quadras em 1943, isto é, apenas seis anos antes da morte do autor. Intitulava-se Quando Começo a Cantar. Ainda surgiriam mais dois livros em sua vida: Intencionais, em 1945 e Auto da Vida e da Morte, em 1948. Depois, o resto da obra, publicada postumamente, e só reunida na íntegra em 1969, sob o título "Este livro que vos deixo".