Poemas

POEMA
(Dedicado a Mário Cesariny)
Moveu-se o automóvel – mas não devia mover-se
não devia!
Ontem à meia-noite três relógios distintos bateram:
primeiro um, depois outro e outro:
o eco do primeiro, o eco do segundo, eu sou o eco do terceiro
Eu sou a terceira meia-noite dos dias que começam
Pregões de varina sem peixe
– o peixe morreu ao sair da água
e assim já não é peixe
Assim como eu que vivo uma VIDA EXTREMA.
*
PROJECTO DE SUCESSÃO
(Dedicado a Mário Henriques)
Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra
Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos
Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
por-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina
deixar fumar um cigarro só até meio
Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias!
*
RECUSA
I
É muito possível durante os primeiros meses
uma importante viagem à Ásia - essa
é uma das consequências
secretas
em que não se tomaram quaisquer resoluções finais
e ambas chegaram igualmente.
II
ainda um cu marinho de agonia onde eu
sou um copo de aguardente francesa e tu
uma gaivota que passa rente ao barco que me leva
III
- Eu sou uma coisa qualquer
Eu sou uma qualquer coisa
sou uma qualquer coisa eu
uma qualquer coisa eu sou
qualquer coisa eu sou uma
coisa eu sou uma qualquer
EU NÃO SOU UMA COISA QUALQUER
- eu sou uma cidade
- eu sou ZANONI de Bulwer Lyton
- eu sou uma errata
- onde está a minha vida deve-se ver a nossa vida
- onde está Deus deve-se ver o Diabo
- onde está o Amor deve estar o Grande Amor
Mágico Amor Meu
- onde estou Eu deves estar Tu
- onde estão os lábios da nossa vida HÁ
uma porta secreta minúscula
O-AMOR
MEU AMOR
*
ANTÓNIO MARIA LISBOA:
Nasceu e morreu em Lisboa. Pode ser considerado um dos nossos maiores (se não o maior!) poetas surrealistas. Mas mantém-se o esquecimento. O surrealismo foi, de certa forma, fugaz entre nós. Ficam as palavras de Mário Cezariny, outro dos surrealistas: “Partido da liberdade surrealista, o pensamento poético de António Maria Lisboa aprisionou a ave hierática com que, até hoje, só os asiáticos e certos primitivos tem modulado a chamada vida prática. (Mas não foram os poetas chineses os criadores, há 2062 anos, do jogo poético colectivo «inventado» pelos surrealistas, há dois dias? Os termos da obra de António Maria Lisboa, de um desenvolvimento extra-individual de aferição da Verdade, da Justiça e do Bem, não inquirem, impõem as condições da sua perenidade” (1958).
(Poesia, António Maria Lisboa. Assírio & Alvim, 1995)