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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

"ARAFAT, a pedra que os palestinianos lançaram ao mundo"

13.10.23 | Manuel

 

Yasser Arafat.jpg

Por Margarida Santos Lopes

Abu Ammar gostava de carros e Tom & Jerry.

No Kuwait, a riqueza crescente da Fatah contrastava com a vida modesta de Arafat. Escreveu o israelita Danny Rubinstein: "Quanto mais os dirigentes à sua volta pareciam homens de negócios com um estilo de vida corrupto, mais se evidenciava o seu ascetismo e modéstia. Ele parecia um símbolo de integridade, merecedor de superioridade moral sobre os colegas da liderança."

Às vezes, Arafat tirava partido desta disparidade. Em reuniões que se prolongavam durante a noite, antes de se instalar nos territórios ocupados, em 1994, quando muitos queriam pôr fim à discussão, ele fazia observações como esta: "Compreendo que tenham de ir para casa, para as vossas famílias e negócios. Eu não tenho nada disso e vou continuar a trabalhar, mas depois não venham queixar-se de que não vos consultei e tomei as decisões sozinho."

A casa de Arafat no Kuwait pertencia ao Ministério das Obras Públicas. Foi originalmente construída para oficiais britânicos. Quase desprovida de mobiliário (excepto equipamento de escritório, telefones, aparelhos de rádio e de televisão, ligados 24 horas por dia), tinha um jardim exterior e uma elevada vedação à volta, seguindo os preceitos islâmicos de preservar as mulheres da vizinhança de olhares indiscretos.

O que realmente distinguia a vivenda de Arafat das outras era os automóveis estacionados à porta. Mais tarde, numa entrevista com os biógrafos Janet e John Wallach, daria mais pormenores sobre o único luxo da sua extravagante juventude. "Sabe quantos carros eu tinha?", perguntou, e respondeu contando pelos dedos: "Entre seis e sete: um Thunderbird, no Líbano, um Volkswagen em Damasco, um Chevrolet e três ou quatro outros no Kuwait. O meu favorito era o Thunderbird."

Curiosamente, no Kuwait há quem se lembre de Arafat ao volante do seu Ford Thunderbird, descapotável e de duas cores. Conduzia-o a alta velocidade, sempre a buzinar e acenar aos transeuntes, de óculos escuros. Os amigos detestavam ir ao seu lado. Porque ele gesticulava muito enquanto falava e tirava frequentemente as mãos do volante.

Desde miúdo que Arafat estava habituado a ser um quase um eremita. Nunca frequentava festas, não ia à praia, nem ao cinema, nem a museus, nem sequer a jogos de futebol. Raramente comia em restaurantes. Tudo o que as pessoas normais fazem nos seus dias livres não tinha qualquer interesse para Arafat, à excepção talvez de passar alguns minutos em frente do televisor a ver desenhos animados, como

Bugs Bunny ou Tom & Jerry. Estes eram os seus favoritos. Adorava ver os bonecos à pancada, e ria-se muito quando o pequeno rato enganava o ardiloso gato.

Arafat sempre dormiu pouco - deitava-se (às vezes de pijama, quando não havia perigo) habitualmente às quatro ou cinco horas da madrugada. Levantava-se por volta das 10 da manhã. Quando podia, fazia uma sesta das quatro às seis da tarde. A sua cama era muitas vezes improvisada no chão dos seus múltiplos esconderijos. Para manter a forma, fazia ginástica numa bicicleta fixa ou jogging durante uns 20 minutos. Infatigável, caminhava cerca de meia hora por dia, para descomprimir das "18 a 19 horas diárias de trabalho, sete dias por semana, 365 dias por ano". Dizia com orgulho: "Nunca pensei em tirar férias." Para não perder tempo, o devoto muçulmano sunita concentrava as cinco orações obrigatórias do dia numa só. Do pescoço não tirava nunca um fio de ouro branco com uma inscrição corânica num pendente.

Antes de se instalar nos territórios ocupados em 1994 e ficar cercado em Março de 2002 pelo exército israelita no seu quartel-general em Ramallah (Cisjordânia), Arafat adorava viagens - fazia uma média de 10 por mês. Um dos seus colaboradores lembra-se até de, num só mês, o ter acompanhado a 45 países, ou seja, uma média de um país e meio por dia.Uma das suas mais longas tournées levou-o de Tunes a Pequim, a Pyongyang, ao Laos, a Hanói, ao Bangladesh e a Cabul. No avião dormia, de uma maneira geral, com um fato de treino (azul, amarelo ou verde) e uma máscara preta nos olhos. Repousava o pescoço numa pequena almofada especial, devido a problemas de coluna que também o forçavam a usar de quando em vez um colar cervical.

"Para o povo palestiniano, cuja liberdade de movimentos é tão restrita, e que em muitos casos não tem sequer passaportes para viajar, ter um líder que podia ir para qualquer lado e não precisar de passaporte era como um sonho tornado realidade", observou o jornalista Thomas Friedman. "Melhor ainda, quando Arafat chegava, nenhum agente da alfândega o encaminhava até um gabinete especial para ser revistado por ser palestiniano. Ele recebia salvas de 21 tiros de canhão, tinha batedores, bandas militares, passadeira vermelha e bandeiras palestinianas flutuando no ar. Arafat adorava estas chegadas, inspeccionar guardas de honra e ser tratado como um chefe de Estado igual aos outros."

Se gostava de viajar, Arafat também adorava banhos de multidão. Numa visita à Roménia, as antigas autoridades comunistas levaram-no um dia a passear pelo metropolitano de Bucareste, tendo ordenado uma única paragem numa estação sem passageiros. Arafat ficou desiludido por não haver ninguém para o adular. Insistiu em descer na estação seguinte repleta de gente, a uma hora de ponta, satisfazendo o seu ego por a maioria das pessoas o reconhecer. A vontade de aparecer e agradar foi sempre tão grande que, numa outra ocasião, em 1967, ao chegar ao Cairo, convenceu um amigo a ir às cerimónias fúnebres do chefe da igreja cristã copta egípcia. Ao chegar ao local deparou com um grupo de dignitários religiosos dispostos em círculo. Estava escuro, mas isso não impediu Arafat de andar às voltas a beijar todos.

De repente parou, como que petrificado, e perguntou ao amigo, Clóvis Maksoud: "O que é isto?" 0 amigo riu-se, e Arafat respondeu à sua própria pergunta: "Isto é o cadáver! "

Nas viagens, a bagagem de Arafat nunca era pesada – cinco uniformes militares quase idênticos, um blusão ao estilo do exército inglês, camisas de manga comprida (três verde-claras para o Verão e duas caqui para o Inverno). Chegou a usar um dos uniformes durante mais de 20 anos, sobretudo em ocasiões especiais. A última vez que envergou fato e gravata foi em 1968, quando fez uma escala nocturna em Paris, a caminho de Argel. Desde então quase nunca mais abandonou a farda medalhada (com os bolsos cheios de canetas de cor, um dos seus fétiches), sempre acompanhada do kaffiyeh ou boné militar e, claro, da sua pistola Smith & Wesson com seis balas expostas num carregador à cintura. A Fidel Castro prometeu que usaria smoking no dia da proclamação de um Estado palestiniano, mas recusou adornar-se com "roupas civis" para honrar a cerimónia de assinatura dos Acordos de Oslo, nos jardins da Casa Branca, em Washington, em 1992.

Arafat só possuía um relógio, um velho Rolex. Os óculos podiam mudar de lentes, mas não as antiquadas armações. A simplicidade não impedia, porém, a vaidade. Alan Hart conta que, uma tarde, no Iémen, assistiu a uma cena em que Arafat se pôs de pé para ajustar a farda. Queria ter a certeza que as bainhas das calças estavam certas. Não satisfeito, ainda sacudiu imaginários cabelos que estariam sobre a jaqueta. Tudo isto para falar com o rei Fahd da Arábia Saudita via rádio. Durante o cerco israelita de Beirute, em 1982, fazia questão de andar sempre com as botas engraxadas.

Janet e John Wallach aperceberam-se de que Arafat, não obstante andar sempre a correr de um lado para o outro, perdia a noção do tempo quando estava na banheira e demorava "mais de meia hora" a vestir-se. Compensava isso não fazendo a barba que muito contribuía para a sua fealdade. Arafat desmentia que os pêlos ralos no rosto serviam para ocultar uma doença de pele (tem manchas brancas devido a um problema de pigmentação), dizendo apenas que cortá-los "era um desperdício de tempo necessário à revolução". Só usava a lâmina ou máquina de barbear para iludir potenciais assassinos. Sempre que o inquiriam a este respeito a sua resposta favorita era a de que fazer a barba consumiria vários minutos do seu tempo como representante dos palestinianos. Às vezes, chegava a calcular quanto tempo demoraria a barbear-se e multiplicava isso por dias e meses concluindo que, no total, um homem gastava meio ano ou mais da sua vida a fazer a barba.

Arafat distinguia-se também da sua entourage pelas refeições simples e quase frugais. Preferia peixe e frango, legumes, arroz, cenouras e iogurte. À sobremesa, além de fruta fresca e tâmaras tunisinas, comia queijo e chocolates. O que mais adorava era mel - acreditava que "mantém a juventude das células humanas, por ser um produto natural". Comia-o às colheres ou em tostas ou com chá. Também apreciava chá misturado com flocos de cereais. Não consumia bebidas alcoólicas e não apreciava tabaco. "Nunca fumei um cigarro ou um cachimbo por prazer, mas noutros tempos cheguei, fazê-lo como parte dos meus disfarces", disse a Alan Hart."Considero-me um fumador passivo porque estou rodeado de gente que não pára de fumar." Abu Iyad, um dos seus mais próximos colaboradores, por exemplo, fumava por dia cinco a seis maços de cigarros, segundo ele próprio confessou.

A saúde era algo que preocupava Arafat. Ingeria enormes quantidades de vitaminas e de vários medicamentos - o que terá sido uma das causas das tremuras nas mãos e nos lábios. Os cuidados extremos não evitaram, porém, que lhe tivessem sido diagnosticados a doença de Parkinson, um cancro no estômago e uma leucemia.

Sob cerco em Ramallah, teve sempre autorização para ser consultado pelo médico particular de longa data. Quando o seu estado se agravou, em 26 de Outubro de 2004, uma equipa de 15 clínicos de vários países foi enviada de emergência para o socorrer. Os franceses, que sempre o consideraram mais solução do que problema e que por duas vezes escoltaram a sua segurança (em 1982 em Beirute e em 1983 em Tripoli), abriram-lhe as portas da melhor unidade de serviços hematológicos de Paris, o hospital militar Percy.

(Retirado de “ARAFAT, a pedra que os palestinianos lançaram ao mundo” de Margarida Santos Lopes, ed. Público , 2004)