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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Argélia: O uso de gases tóxicos e o massacre de Ghar Ben Chattouh

24.03.25 | Manuel

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 A France 5 censurou a transmissão do documentário “Argélia, Secção de Armas Especiais”, que denuncia a utilização de armas químicas pelo exército francês durante a guerra de independência da colónia do Norte de África (1954-1962).

A transmissão estava originalmente programada para 16 de março. O documentário, dirigido por Claire Billet e baseado na pesquisa do historiador Christophe Lafaye, revela o uso sistemático de gases tóxicos (como CN2D, uma mistura de cloroacetofenona e adamsita) contra combatentes da FLN e civis em cavernas durante o conflito.

O documentário estava programado para ir ao ar no último domingo, mas em 11 de março, a France Télévisions anunciou seu cancelamento. Em vez disso, a rede optou por exibir dois documentários sobre a Rússia e os Estados Unidos, justificando a mudança por "imperativos geopolíticos atuais".

A France Télévisions prometeu remarcar o documentário antes de junho e o disponibilizou online em sua plataforma France.tv em 12 de março, embora o acesso seja restrito em alguns países.

A censura é uma consequência das relações tensas entre a França e sua antiga colônia, exacerbadas pelos debates sobre a memória histórica. As redes públicas argelinas exibiram o documentário em 12 de março e criticaram a rede por tentar esconder crimes coloniais. A indignação aumentou depois que o filme foi transmitido com antecedência pela Rádio e Televisão Suíça (RTS) em 9 de março.

Recentemente, um conhecido jornalista francês, Jean Michel Aphatie, foi suspenso de seu emprego e salário pela estação de rádio RTL de Luxemburgo porque, durante um programa matinal em fevereiro, ele comparou os crimes coloniais franceses aos dos nazistas.

Aphatie acabou deixando a estação e mantém sua postura crítica sobre os crimes coloniais cometidos pela França no Norte da África.

Terrorismo colonial, terrorismo de estado

A história da colonização francesa na Argélia é marcada pelo terrorismo de Estado que vai muito além de uma simples guerra. O terror não se limitava a confrontos armados, mas fazia parte de um sistema organizado de repressão e desapropriação, projetado para aniquilar toda resistência e manter a dominação colonial.

Esses atos não foram excepcionais, mas parte de uma estratégia militar sistemática. O objetivo era quebrar física e moralmente aqueles que se opunham à ordem colonial. Desde o início da conquista da Argélia em 1830, o exército francês impôs métodos extremamente brutais de repressão, visando tanto esmagar toda a resistência quanto aterrorizar a população civil para impor seu domínio.

Um exemplo dessa violência planejada é a asfixia por fumaça, que consistia em apagar a fumaça das cavernas onde famílias inteiras se refugiavam. Um dos casos mais famosos é o das Cavernas de Dahra, em 1845, onde o Coronel Pélissier ordenou que centenas de civis, homens, mulheres e crianças, fossem trancados em cavidades naturais, antes de incendiá-las para sufocá-los. Relatos de testemunhas descrevem os gritos das vítimas e o cheiro insuportável dos corpos queimados. Esses atos, longe de serem isolados, foram repetidos diversas vezes.

Os campos de concentração

Desde a colonização e ainda mais durante a Guerra de Libertação (1954-1962), a administração colonial criou campos de concentração, uma ferramenta de controle e desorganização social, destinada a isolar as populações rurais dos resistentes. Esses campos, onde milhares de argelinos foram confinados à força, lembram os campos nazistas em sua operação. As condições de vida eram desastrosas: fome, doenças, falta de água e assistência médica causavam estragos. O objetivo era dificultar a logística do Exército de Libertação Nacional (ELN) e destruir a estrutura social e econômica de aldeias suspeitas de apoiar a luta pela independência.

A repressão colonial também se manifestou em execuções sumárias, muitas vezes em retaliação após um ataque ao exército francês. Desde as primeiras décadas da invasão, os generais Bugeaud, Cavaignac e Lamoricière executaram prisioneiros ou suspeitos de fazer parte da resistência sem julgamento. Essa prática continuou durante a Guerra da Independência, onde o uso de pelotões de fuzilamento e execuções extrajudiciais era comum.

O uso da tortura não era apenas tolerado pelo Estado francês; Foi sistematizado e promovido como um método de interrogatório. Na década de 1950, o General Massu e os paraquedistas estabeleceram um sistema de tortura em Argel que usava eletrodos ("gégène" no jargão militar francês), banheiras e abuso físico e sexual para extrair confissões dos prisioneiros. Jean-Marie Le Pen se destacou nesse trabalho sujo, que geralmente acontecia à vista de mulheres e crianças nos pátios das casas da casbá de Argel. A prática não se limitou aos combatentes do ELN, mas se estendeu a civis, intelectuais e militantes.

Esses métodos não foram resultado de iniciativas individuais, mas de políticas coloniais. O arcabouço legal garantiu impunidade aos responsáveis ​​pelos crimes. As leis excepcionais permitiam a prisão sem julgamento, a introdução da censura e a supressão de toda dissidência. O exército francês desfrutava de um alto grau de autonomia, e sucessivos governos encobriram suas práticas terroristas.

Até o fim da Guerra de Libertação, em 1962, esses métodos persistiram, demonstrando que a repressão colonial era uma política que perdurou ao longo do tempo. Elas nunca foram o resultado de simples "deslizes", mas sim a expressão de um sistema baseado no terror e na negação dos direitos do povo argelino.

O uso de gases tóxicos

O uso de armas químicas durante a Guerra da Argélia continua sendo um tabu, apesar de diversas fontes e testemunhos históricos mencionarem o uso de gases tóxicos pelo exército francês para reprimir a resistência argelina.

O exército francês fez uso extensivo de napalm, uma arma incendiária já usada durante a Guerra da Indochina. Bombardeios de napalm foram realizados em diversas áreas montanhosas onde os combatentes do ELN estavam entrincheirados. Testemunhos de antigos combatentes e civis descrevem incêndios terríveis e a destruição maciça de aldeias.

Alguns historiadores confirmaram o uso de napalm, embora os militares franceses tenham negado ou minimizado seu uso por muito tempo. Documentos militares desclassificados mostram que havia de fato grandes reservas de napalm disponíveis na Argélia.

Vários depoimentos relatam o uso de gases tóxicos em cavernas onde combatentes do ELN e civis estavam escondidos, enquanto os franceses também travavam uma guerra aérea. Segundo fontes locais e alguns veteranos franceses, o exército usou bombas de fumaça e gases asfixiantes para expulsar os combatentes da resistência ou exterminá-los em seus abrigos.

Um memorando do exército datado de 1957 recomenda “o uso de granadas de gás ou bombas de fumaça” para neutralizar insurgentes entrincheirados.

O exército francês também envenenou poços em algumas regiões, particularmente no Saara e áreas montanhosas, para privar o ELN de recursos hídricos. Essa tática lembra os métodos usados ​​pelo exército colonial britânico na África do Sul durante a Guerra dos Bôeres.

Os militares franceses sempre negaram oficialmente o uso de armas químicas na Argélia, embora inúmeros depoimentos e pistas apontem para práticas clandestinas. O acesso aos arquivos militares continua limitado, e o reconhecimento oficial desses eventos pelo Estado francês continua inexistente.

A Guerra da Caverna

O uso de armas químicas na Argélia foi parte de uma estratégia de guerra total na qual o exército francês usou todos os meios disponíveis para esmagar a insurreição. Embora o uso do napalm tenha sido comprovado, os repetidos apelos de historiadores e pesquisadores pela divulgação completa dos arquivos militares não foram atendidos.

Na França, certos documentos, particularmente aqueles relacionados a armas de destruição em massa, podem ser declarados "incomunicáveis" por um período indeterminado. Documentos relacionados ao uso de armas químicas, como a CN2D, durante a guerra da Argélia são particularmente sensíveis. Apesar da abertura de alguns arquivos, o acesso à documentação continua limitado, dificultando a pesquisa histórica.

Sabe-se que houve seções especializadas do exército que usaram gases tóxicos para desalojar combatentes argelinos que se refugiaram em cavernas. O documentário de Claire Billet oferece uma visão valiosa sobre essa questão. O uso de gases tóxicos foi direcionado principalmente para áreas montanhosas, onde os combatentes do ELN se refugiaram em cavernas, que também serviam como depósitos de armas, centros de logística e centros de tratamento para os feridos.

Essas ações faziam parte da "guerra das cavernas", uma estratégia militar que visava eliminar combatentes do ELN que usavam armas químicas em ambientes fechados. As montanhas ofereciam terreno ideal para os combatentes argelinos, que usavam as cavernas como refúgios estratégicos para escapar de bombardeios e ofensivas terrestres.

Diante da resistência dos combatentes, o exército francês adotou a estratégia de atacar as cavernas com meios químicos e explosivos para aniquilar quem estivesse lá dentro.

O massacre de Ghar Ben Chattouh

O massacre de Ghar Ben Chattouh, ocorrido em 22 de março de 1959, na região de Aurés, foi um dos episódios mais trágicos da Guerra da Argélia. Cerca de 150 pessoas, incluindo muitos civis, morreram em consequência do uso de gás venenoso pelo exército francês em um complexo de cavernas inacessível.

Este evento ilustra a brutalidade da repressão e a confusão que muitas vezes persiste entre combatentes e civis. As cavernas de Ghar Ben Chattouh serviram de refúgio para combatentes do ELN, bem como para civis que tentavam escapar dos combates. Apesar das proibições internacionais, o exército francês usou armas químicas em sua estratégia de contrainsurgência para neutralizar esses refúgios naturais.

O massacre permaneceu desconhecido do público em geral por muito tempo. Somente recentemente, graças ao trabalho de historiadores e ao documentário de Claire Billet, mais luz foi lançada sobre essas práticas criminosas.

Quando era impossível tomar o controle de uma caverna, o exército francês usava cargas explosivas para selar as entradas e enterrar os combatentes vivos lá dentro. Escavadeiras também foram usadas para bloquear o acesso com pedras e detritos.

Em alguns casos, eles encheram as cavernas com água para afogar os combatentes da resistência.

Fonte