Brasil: 60 anos depois do golpe, país não aceitou o passado e convive com os legados da ditadura
Por Carolina Oliveira
As estruturas de segurança pública, as Forças Armadas e o capitalismo nacional cristalizaram-se no período
Militares durante manifestação estudantil contra a ditadura militar – Arquivo Nacional/Ministério da Gestão e Inovação Social
A transição da ditadura civil-militar para a Nova República na década de 1990 pode ter sido um período de revisão do autoritarismo enraizado na sociedade brasileira desde a sua formação. Porém, os traços autoritários, agravados ao longo da ditadura, são legados que o país carrega até hoje.
Por trás da validade destas características, existe uma sociedade e governos que se recusam a aceitar o passado. Recentemente, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), afirmou que não pode “insistir sempre” no passado ditatorial, quando questionado sobre o cancelamento da cerimônia dos 60 anos do golpe de 1964, marcada para o 1º Dia de abril deste ano.
“O que não posso é não saber avançar a história, ficar repetindo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil sobre a qual ainda não temos todas as informações, porque ainda há pessoas desaparecidas.” porque há pessoas que podem. Mas, sinceramente, não vou parar por aí e vou tentar fazer esse país avançar”, disse em entrevista ao programa É Notícia da RedeTV!
Estudantes e trabalhadores formaram uma das frentes de resistência durante a ditadura / Arquivo Nacional/Correio da Manhã
Ivo Lebauspin, detido e torturado durante a ditadura, afirma que “é um erro não trabalhar a memória da ditadura”. “Há uma narrativa de que é melhor reconciliar-se com o passado e esquecer o que aconteceu. Isso é impossível sem saber o que realmente aconteceu”, afirma o sociólogo.
“Algumas pessoas pensam que para avançar a nível político é necessário varrer estas coisas para debaixo do tapete, atirar uma pedra ao passado, avançar e chegar a acordos. Isso já foi feito. Isso já é feito há muito tempo. “Desde o fim da ditadura militar, a ditadura militar não foi analisada, nada foi julgado, nada foi feito”, argumenta.
Lebauspin associa, por exemplo, a presença militar na tentativa golpista de manter Jair Bolsonaro (PL) na Presidência como resquício da intervenção militar. “Tem tudo a ver com não lembrar da ditadura e não julgar. Na Alemanha há um esforço monumental para lembrar sempre tudo o que aconteceu. Existem museus do Holocausto em vários lugares e as pessoas sabem o que aconteceu. Houve julgamento, os fatos foram analisados e julgados. “Isso não aconteceu aqui.”
Na mesma linha, o professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Daniel Aarão Reis Filho, afirma que lembra de “líderes de partidos progressistas, como Tancredo Neves em 1985, convocando para não olhar para trás - Veja o espelhe, mas olhe para frente e não se preocupe com as feridas.” Isso mostra que o Brasil “dedicou pouca atenção à reflexão sobre a estrutura do Estado criada durante a ditadura e suas políticas”.
Forças Armadas
Com isso, os traços autoritários não só do período da ditadura militar, mas de outros governos, como o Estado Novo de Getúlio Vargas e o período da escravidão, continuam presentes na sociedade brasileira. Entre esses legados, o professor elenca a autonomia das Forças Armadas. “Eles são um verdadeiro Estado dentro do Estado. Possuem estrutura educacional própria e justiça específica. Isto tem permitido às Forças Armadas cultivar ideologias cada vez mais anacrónicas, mas muito válidas dentro das Forças Armadas.”
Estudantes detidos no Congresso da UNE em Ibiúna em 1968 / Arquivo Público do Estado de São Paulo
O professor explica que só depois do governo de Dilma Rousseff (PT) – e ainda de forma tímida – foram feitos esforços para rever essa estrutura militar, principalmente com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 18 de novembro de 2011. Aarão afirma que “houve uma espécie de pacto: a gente não mexe com você, você não mexe com a gente. Este pacto com a esperança ilusória de que, com o tempo, as feridas cicatrizariam.”
Um ano após o encerramento da comissão, ocorrido em 2014, o pesquisador e membro da CNV, Lucas Figueiredo, afirmou que o relatório final de 4.328 páginas era “muito fraco”.
“O pai da criança é Tancredo (Neves), que diz abertamente que não vai investigar. (José) Sarney chegou vendido porque estava muito fraco, dependia dos militares. Então Collor e Itamar fecham os olhos. FHC e Lula “Fazer com que o Sindicato combata a abertura de processos na Justiça, que é uma posição mais grave. E você tem a Dilma, que é absolutamente passiva, porque as Forças Armadas mentiram descaradamente para ela durante a CNV e ela não fez nada”, disse em entrevista, com a BBC na época.
Soldados nas ruas durante o período ditatorial / Memórias da Ditadura
Soma-se a essa passividade por parte dos sucessivos governos a articulação da extrema direita dentro dos quartéis, que ganhou espaço principalmente após a ditadura militar. O professor Daniel Aarão Reis Filho afirma que a tendência de extrema direita entre os militares “é muito forte”. “Nada nos diz que esta tendência foi neutralizada.”
“Houve um esforço geral para transformar as Forças Armadas brasileiras, que eram plurais, em verdadeiros monólitos. As escolas militares continuam a intoxicar-se com a Guerra Fria, com teorias anticomunistas que continuam a alimentar que os militares são os donos da civilidade e os salvadores da humanidade”, os guardiões da República. Criaram um sistema educacional extremamente unificado e monolítico, sem pluralismo e sem culto à legalidade. Esse é um dos legados da ditadura extremamente prejudicial à democracia”, afirma o professor da UFF.
Capitalismo
Outro legado que o professor elenca é o processo de desigualdades sociais e regionais. “A ditadura empurrou o capitalismo brasileiro para um patamar superior. Ao contrário da ditadura argentina, que empurrou para baixo o capitalismo argentino, aqui no Brasil o capitalismo deu um salto, mas à custa da desigualdade social.”
Ao longo da ditadura houve uma aproximação entre a burguesia industrial e agrária, somada à participação do capital estrangeiro na economia, seguida da dependência econômica dos países hegemônicos. Neste cenário, o Estado agiu para garantir as reivindicações e os lucros das elites em detrimento dos direitos da classe trabalhadora, aumentando a desigualdade económica.
Repressão policial aos trabalhadores que se manifestaram no ABC São Paulo durante a greve de 1979 / Arquivo Público do Estado de São Paulo
As perdas para a classe trabalhadora foram percebidas na diminuição dos salários; na perda de terras dos trabalhadores rurais devido ao aumento dos latifúndios; e repressão. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o salário mínimo caiu cerca de 40% entre 1964 e 1974, passando de R$ 2.142 para R$ 1.247, corrigido pela inflação e pelas diferentes moedas que o Brasil teve ao longo do ano. anos, ao longo do século. décadas.
Para o professor da UFF, desde então o Brasil não conseguiu “reverter radicalmente o curso das desigualdades sociais”.
“O capitalismo brasileiro continua fundamentalmente no padrão do modelo criado pela ditadura, na hegemonia do capital financeiro, que continua absorvendo nossas riquezas através dos interesses da dívida pública. Metade do orçamento brasileiro vai para o pagamento de juros. “Sobre a dívida pública. Há um processo de hegemonia do chamado mercado, fundamentalmente especulativo, que não se destaca pelos investimentos produtivos, e essa hegemonia foi estabelecida durante a ditadura”, afirma.
Segurança Pública
Entre outros legados, o professor cita a questão da segurança. “Sempre tivemos uma tradição aqui no Brasil de que a polícia, em vez de proteger os cidadãos, os reprime. Este esquema, que remonta a antes da ditadura, foi fortemente fortalecido durante ela e mantido posteriormente. Há autonomia da Polícia Militar, a criação desses batalhões de operações de choque, o famigerado BOPES [Batalhão de Operações Especiais de Polícia], que continuam barbarizando as populações mais pobres”, afirma.
Na mesma linha, Rodrigo Lentz, advogado, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisas, afirma que a segurança pública no país revela “a manutenção do terrorismo de Estado, em cooperação entre o Estado Ministério, Judiciário e Forças de Segurança, num amplo processo de criação de um crime de terror na periferia brasileira.”
Este processo implica que “a Polícia Militar atua de forma totalmente ilegal e viola sistematicamente os direitos humanos de um determinado grupo social, onde a democracia não chegou do ponto de vista das liberdades democráticas e das garantias individuais”.
María de Belém Souto, no funeral do filho, o estudante Edson Luís, assassinado pela ditadura militar / Arquivo Nacional/Correio da Manhã
A pesquisadora sustenta que registros de torturas, execuções sumárias, detenções arbitrárias ou falsificação de situações criminais como atos de legítima defesa têm legitimidade quando há execução pelo próprio Estado. “Tudo isso é um registro da nossa República. A tortura como mecanismo institucional, sobretudo, foi implementada durante a ditadura do Estado Novo, no governo Vargas.”
“A política de extermínio como política de segurança pública começou na década de 1950, quando Amaury Kruel era chefe do Departamento de Polícia da Capital Federal. Eram práticas que já existiam antes, foram mantidas durante a ditadura e hoje”, afirma.
Lentz ainda relaciona essa história violenta e autoritária com o que acontece hoje na Baixada Santista com a Operação Escudo, que matou 45 pessoas em 36 dias, entre 7 de fevereiro e 14 de março. “Há uma legitimação social, uma produção de consenso, que leva a sociedade a legitimar este tipo de práticas”, afirma.
O próprio governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicano), declarou que “não se importa” com as acusações de letalidade policial que foram feitas perante as Nações Unidas. Em 2023, a primeira fase da Operação Escudo matou 28 pessoas entre 28 de julho e 5 de setembro, em resposta à morte de um policial da Rota. A segunda fase da operação matou uma pessoa a cada 19,2 horas.
Democracia de baixa intensidade
Diante desta situação permeada por legados autoritários, é necessário questionar se o regime político brasileiro se constitui como uma democracia. “Nenhuma sociedade sai ilesa de 20 anos de regime autoritário, considerando toda a formação histórica brasileira. Algumas coisas estruturam o governo, o estado e a sociedade”, diz Lentz.
O pesquisador sustenta que o Brasil está “longe” da ideia de democracia no sentido etimológico da palavra, como governo do povo. “Está muito longe do que vivemos nas democracias liberais pluralistas, onde o Brasil se enquadra melhor, que são democracias governadas por elites, com competição eleitoral, com sistema de Estado sujeito a regras eleitorais majoritárias e com garantias de algumas liberdades individuais de forma seletiva”.
Civil detido por militares em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, em 1º de abril de 1964 / Arquivo Nacional/Correio da Manhã
A ideia de “democracia de baixa intensidade”, criada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, parece se adequar ao caso brasileiro, segundo o pesquisador. “A democracia de baixa intensidade é caracterizada, sobretudo, pela baixa participação social. É uma democracia representativa, mas não tem participação social e por isso tem baixa legitimidade”, afirma. “Quanto menor for a participação social nas instituições e na tomada de decisões do Estado, menor será o alcance das políticas desta democracia entre a sua população.”
O investigador destaca ainda que esta situação gera uma espécie de “desencanto social e legitimação de soluções e soluções autoritárias”, que exige urgentemente uma mudança estrutural. “Não diria que vivemos num regime autoritário, mas também vivemos numa democracia muito precária e selectiva. Esta é uma das razões pelas quais hoje está permanentemente ameaçada pela extrema direita.”
Pesquisa Datafolha de dezembro do ano passado mostrou que aumentou o número de pessoas que dizem que não importa se o país é uma democracia ou uma ditadura. Em outubro de 2022, o percentual era de 11% entre os entrevistados. No ano passado, aumentou para 15%. O número de entrevistados que consideram um regime ditatorial aceitável em determinadas circunstâncias também aumentou: de 5% para 7%.
Edição: Matheus Alves de Almeida