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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Cesário Verde

25.02.23 | Manuel

cesario.jpg

Ecos do Realismo – Proh Pudor

Todas as noites ela me cingia
Nos braços, com brandura gasalhosa;
Todas as noites eu adormecia,
Sentindo-a desleixada a langorosa.

Todas as noites uma fantasia
Lhe emanava da fronte imaginosa;
Todas as noites tinha uma mania,
Aquela concepção vertiginosa.

Agora, há quase um mês, modernamente,
Ela tinha um furor dos mais soturnos,
Furor original, impertinente...

Todas as noites ela, ah! sordidez!
Descalçava-me as botas, os coturnos,
E fazia-me cócegas nos pés...

22 de Janeiro de 1874

(Poesias Dispersas)

*

Lúbrica

Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

3 de Dezembro de 1873

(Poesias Dispersas)

*

Desastre

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.

A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: «Homem não desfaleça!»
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.

Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,

Corriam char-à bancs cheiros de passageiros

E ouviam-se canções e estalos de chicotes,

Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.

 

Viam-se os quarteirões da Baixa. Um bom poeta,

A rir e a conversar numa cervejaria,

Gritava para alguns: «Que cena tão faceta!

Reparem! Que episódio!» Ele já não gemia.

Findara honrosamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
«Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!»

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!

Um fidalgote brada e duas prostitutas:
«Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!»
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.

Depois da cesta, um pouco estonteado e fraco,

Sentira a exaltação da tarde abafadiça;

Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco

E o fato remedado e sujo da caliça.

 

Gastara o seu salário – oito vinténs ou menos –

Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!

«Os vultos, lá em baixo, oh!, como são pequenos!»

E estremeceu, rolou nas atracções da queda.

O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir - ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.

Anoitecia então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: «Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio?»

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
– Conservador, que esmaga o povo com impostos –
Mandava arremessar – que gozo! estar solteiro! –
Os filhos naturais à roda dos expostos...

 

Mas não, não pode ser… Deite-se um grande véu…

De resto, a dignidade e a corrupção… que sonhos!

Todos os figurões cortejam-no risonhos

E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.

 

E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,

Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:

Isto porque o patrão negou-lhes a licença,

O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.

 

E antes, ao soletrar a narração do facto.,

Vinda numa local hipócrita e ligeira,

Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:

«Morreu! Pois não caísse! Alguma bebedeira!»

 30 de Outubro de 1875

(Poesias Dispersas)

*

O Sentimento dum Ocidental

A Guerra Junqueiro

I - Avé Marias

     Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

     O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

     Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

     Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

     Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

     E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

     E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

     Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

     Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

     Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

     Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

10 de Junho de 1880

(Naturais)

Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde', Círculo de Leitores, 1986.