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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Cheias que mataram em 25 de Novembro de 1967 e a solidariedade estudantil

24.11.23 | Manuel

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Faz 56 anos que chuvas torrenciais mataram mais de 600 pessoas em Lisboa. O regime fascista reprimiu os operários e os estudantes que saíram em solidariedade com os moradores pobres, vítimas de uma situação social e material imposta pelo capitalismo retrógrado de Salazar. A imprensa foi censurada, o país não soube o que aconteceu naquele dia, e agora, a inefável imprensa democrática também pouco adianta sobre o assunto e não desmascara a atitude criminosa do fascismo português. Publica-se um excerto do notável livro “Grandes Planos – Oposição Estudantil à Ditadura 1956-1974” que relata o que foi a solidariedade dos estudantes revolucionários.

Uma calamidade destas é tudo menos natural

No dia 25 de Novembro desse ano, chuvas torrenciais abatem-se sobre a região de Lisboa. O regime censura todas as notícias sobre a dimensão dos estragos da intempérie. Mas a tragédia é demasiado grande para abafar.

Na JUC (Juventude Universitária Católica) o debate é aceso: devem ou não os católicos participar nos piquetes de ajuda que o movimento estudantil organiza? Sim, claro, respondem os jovens. «Comunistas» é o que ouvem quando a conversa com os padres azeda definitivamente.

O movimento estudantil espreita uma oportunidade de romper o cerco da repressão: a RIA decide partir para o trabalho de campo. A piscina da AE do Técnico é esvaziada e passa a ser o centro de recolha dos donativos.

Em Ciências a mobilização é quase total. A Associação, encerrada desde 1965, é gerida por uma comissão administrativa nomeada pela Reitoria. Mas os sectores oposicionistas não ficam parados. Escrevem comunicados, afixam cartazes. Numa primeira fase, pedem-se cobertores e comida para os desalojados. Mais tarde virão as listas de voluntários para brigadas de limpeza.

Também o recém-criado SCIP, o Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda, resultado das negociações entre militantes do PCP, os pró-chineses e os social-democratas, decide dar tréguas à RIA.

João Bernardo é um dos madrugadores que, antes do nascer do sol, já traçam planos de acção no Técnico. Carlos Marques também lá está. A resposta aos apelos estudantis é imediata: a piscina e todo o edifício transbordam de comida, cobertores, água potável, medicamentos.

Do Porto chega um grupo de liceais e universitários, do PCP Edgar Correia, Helena Medina e uma adolescente dos liceus, Zita Seabra, vão prestar apoio aos bombeiros que acodem às populações da região de Odivelas.

O principal problema é logístico. As associações já gastaram muito dinheiro na compra do indispensável, mantimentos, galochas para as brigadas de limpeza e salvamento, velas, medicamentos. Continuam a faltar meios eficientes para transportar pessoas e donativos para as regiões afectadas. Diana Andringa, vencendo as resistências iniciais que a ideia lhe provocou, roga ao pai o auxílio da poderosa Legião Portuguesa. À porta da Associação de Estudantes de Medicina, no dia seguinte, estão várias carrinhas e jipes da Legião, para auxiliar os estudantes. A ajuda não é logo bem recebida: ninguém quer aparecer nos bairros de lata abandonados pelo poder num carro da milícia do Estado Novo. Após alguma discussão, a dificuldade é contornada tapa-se o emblema da Legião com o das associações de estudantes.

Do Campo Grande e da Alameda saem centenas de estudante em direcção às zonas mais afectadas -Loures, Vila Franca de Xira, Amadora. Carlos Marques vai para Frielas, concelho de Loures. A tarefa é complicada. De um ponto mais elevado, Carlos vê que as barracas do vale estão completamente submersas pela lama e pelos troncos e pedregulhos que a enxurrada arrastou. Com as galochas que a Associação do Técnico comprou, os estudantes vão para o fundo daquele abismo, onde o cheiro inconfundível da morte os perturba.

João Bernardo está noutra zona do mesmo concelho. Assim que chega, vê o impensável: o senhorio das barracas destruídas anda no meio dos escombros a recolher as rendas daquele mês, temendo perder de vista os inquilinos. A GNR, que esteve sempre ausente das acções de salvamento, está lá para o proteger na cobrança. A população recebe o senhorio e os militares à pedrada. Olhando à volta, a região é um imenso buraco castanho, com lama e chapas de zinco.

O drama é constante. João não esquecerá um homem, em cima de uma mesa com a filha às cavalitas, a lama não pára de subir. Um operário, morador das casas vizinhas amarra um arame à porta de casa e vai preso por arame no meio da enxurrada tentar o salvamento.

A maioria dos universitários ainda não conhecia aquele Portugal, pobre e moribundo. Uma velha procura a foto dos netos, no meio da lama e dos cadáveres de animais. «Veja se ma encontra que eu perdi os meus netos todos», pede. João Bernardo tenta. Afunda-se e espeta um prego ferrugento no pé. Dirige-se à banca de vacinação que os estudantes de medicina montaram nas imediações, para receber uma injecção contra o tétano. Os estudantes fazem tudo: limpam, resgatam, salvam, vacinam, trazem comida. O regime acusa-os de estarem a montar uma operação de propaganda comunista.

Diana Andringa assiste incrédula ao esbracejar dos governantes. Está a acabar a primeira edição do Solidariedade Estudantil, o jornal que as associações criaram para relatar os acontecimentos produzidos pelas cheias. No dia 7 de Dezembro, os estudantes contam o que viram. Na ausência de informação na imprensa, chegam ao Técnico dezenas de homens e mulheres, trabalhadores, pedindo exemplares do jornal. A edição não chega para as encomendas.

No primeiro dia é preciso remover os mortos; ao mesmo tempo, retirar as lamas das casas, libertar os caminhos para as brigadas de salvamento. Junto às populações, os estudantes removem os destroços, desmantelam o que resta das barracas atingidas.

Entretanto, a cobertura sanitária: os cadáveres de animais são enterrados, depois de queimados com petróleo ou cal viva; solicitam-se exames bacteriológicos à água das nascentes; avisam-se as populações dos cuidados a tomar com a água e os vegetais.

Instalada a população desalojada nas casas que restam e em edifícios públicos, brigadas de vela prestam à noite assistência aos doentes e às crianças. Brigadas femininas, normalmente dirigidas por estudantes de medicina, organizam creches para que as mães possam trabalhar com as brigadas.

Munidos de salvo-condutos da Direcção Geral de Saúde, estudantes de medicina montam postos onde trabalham todo o dia na vacinação em massa da população; brigadas de finalistas andam de casa em casa no rastreio do tifo.

«Fizemos 44 000 horas de trabalho. Números aproximados por defeito:

– Máximo diário de participação: 13000 estudantes (1/12)

– Média diária aproximada: 600 estudantes

– Soma dos números de participação diária: 5760 estudantes (até 6/12)

– Média diária de horas de trabalho: 8 horas (entre as 12 horas e as 6 horas)

– Número total de horas de trabalho oferecidas: 44080»

Para além do trabalho prestado e da informação, os estudantes difundem também a mais certeira das conclusões políticas: uma calamidade destas é tudo menos natural. Comparando o nível de pluviosidade no Estoril, muito mais elevado que em Loures, afirmam que a verdadeira culpa da calamidade deve ser atribuída aos responsáveis políticos pela miséria em que vivem aquelas populações. No Estoril não houve inundações porque não há barracas. Em Frielas, como na Musgueira, no Relógio, no Prior Velho, nas Galinheiras, em Odivelas, as habitações são precárias. Como precária são as condições sanitárias daquelas pessoas. Como precários são os seus meios de subsistência.

Diana Andringa retira uma lição das cheias: decide abandonar medicina. Sente que é demasiado desigual a relação de forças entre o que ela pode fazer e a gravidade das situações que enfrenta. Escolhe a via que se abriu com o Solidariedade Estudantil. Quer ser jornalista, para denunciar as injustiças.

Imagem: Carcavelos, 27 de Novembro de 1967. As cheias devastaram a periferia de Lisboa. Censuradas (e destruídas) pelo regime foram as imagens dos estudantes ajudando a população.

(Extracto do livro “Grandes Planos – Oposição Estudantil à Ditadura 1956-1974” de Gabriela Lourenço, Jorge Costa, Paulo Pena. Âncora Editora. Lisboa, 2001)