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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Contos Proibidos – Memórias de um PS desconhecido

19.01.23 | Manuel

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Rui Mateus

Para além da ausência de regras que permitam, pela via individual, o acesso do cidadão à actividade politica, não existem regras idóneas de financiamento dos partidos nem de transparência para os políticos. Um pouco à semelhança dos "pilares morais" do regime, a Maçonaria e a Opus Dei, tudo se decide às escondidas, como se o direito dos cidadãos à informação completa e rigorosa de como são financiadas as suas instituições e dos rendimentos dos seus governantes e dos seus magistrados se tratasse de algo suspeito, de algo subversivo."

Rui Mateus

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O Partido Social-Democrata Sueco estava comprometido em apoiar a Conferência «Europa Connosco» e o responsável pela organização, Rolf Theorin, viria a Portugal em numerosas ocasiões para acertar os detalhes da primeira reunião cimeira internacional, realizada pelo Partido Socialista. Com uma peregrinação a várias capitais europeias para confirmar o convite de Olof Palme, eu próprio me encarregaria de pessoalmente garantir a presença dos participantes mais relevantes. A partir de meados de Fevereiro, instalaríamos o quartel-general da conferência no hotel Vermar em cujo último andar se realizaria, nos dias 13 e 14 de Março, a reunião. Preparámos o local e confirmámos todos os pormenores minuciosamente e com o experimentado know-how sueco. Era a primeira vez que um tão grande número de personalidades, que incluía vários chefes de governo, se reunia no nosso país. Mas, apesar da nossa inexperiência, tudo correu impecavelmente com excepção de um pequeno imprevisto, que nem aos suecos ocorreria. No domingo, no final da conferência e depois do grandioso comício realizado na noite da véspera no Palácio de Cristal, estava prevista uma conferência de imprensa no Palácio da Bolsa. Chovia então torrencialmente no Porto e chovia mesmo dentro da sala do Palácio da Bolsa. François Mitterrand recusou-se, assim, a tirar o seu sobretudo, protegendo-se dos pingos com o seu característico chapéu!

Os custos desta reunião seriam integralmente cobertos pelo Partido Social-Democrata Sueco, que contribuiu com cerca de meio milhão de coroas, e pelo Partido Socialista Austríaco de Bruno Kreisky, que contribuiu com 750 mil shillings austríacos. Para o efeito seria informado pelo banco PK da Suécia que o PSD sueco mandara abrir uma conta na Suíça em meu nome, através da qual aquelas verbas seriam movimentadas. Estas e outras verbas começariam contudo a expor o PS a sinais exteriores de riqueza e a dar lugar a todo o tipo de especulações e contra-informação. Grande parte do apoio vinha em notas e cheques em moedas estrangeiras e, apesar dos contactos que o PS detinha na banca, sempre que o tesoureiro, Fernando Barroso, procedia a operações cambiais saíam notícias e circulavam rumores. Para além da contra-informação do PCP e da extrema-esquerda, logo após a visita aos EUA seriam lançadas notícias em órgãos de comunicação social por dissidentes da CIA, como foi o caso de Philip Agee. As notícias inicialmente difundidas pelo New York Times de que o PS estaria a receber avultadas quantias da CIA e do estrangeiro «obrigariam» Mário Soares a veementes desmentidos e a uma conferência de imprensa, a 8 de Fevereiro, não só para desmentir o que era verdade mas, sobretudo, para camuflar esses apoios, anunciando o lançamento pelo PS de uma campanha nacional de angariação de fundos. Diria então que «o nosso partido é um partido de trabalhadores, é um partido de esquerda e, como tal, um partido pobre. Têm-nos sido dirigidas muitas calúnias por parte dos que nos acusam de recebermos fundos estrangeiros. Essas calúnias nunca foram provadas, nem o poderiam ser, porque são efectivamente calúnias. Estamos no início desta campanha [eleitoral], que vai ser extremamente dinâmica e esclarecedora para o País, com grandes dificuldades financeiras, porque a campanha eleitoral é efectivamente dispendiosa. Por isso resolvemos iniciar a nossa actuação, neste período pré-eleitoral em que nos encontramos, por uma campanha de recolha de fundos. Como lhes disse, amanhã vai aparecer a cidade coberta de grandes cartazes deste tipo: Com a tua vontade de Vencer. Por um amanhã a construir. Recolha de fundos para o Partido Socialista».

Nesse ano eleitoral de 1976, vários partidos e entidades estrangeiros entregariam avultadíssimas somas em dinheiro, por todos os meios, as quais a Administração Financeira ia classificando como campanha de «angariação de fundos». Só os recibos que me foram entregues ultrapassariam, então, os 40 mil contos, embora à medida que iam sendo entregues na Rua da Emenda a Fernando Barroso fossem, inadvertidamente, sendo classificados em moeda estrangeira e, às vezes, referindo mesmo a entidade doadora. O Partido Trabalhista Britânico, segundo me foi comunicado, tinha unicamente enviado, em 1975, para a conta da Holanda, a quantia de 4108 Libras o que equivalia a 240 contos na altura. Os «pacotes de biscoitos» do M16, «CH», o último dos quais seria entregue em 7 de Abril de 1976, representavam a extensão do conceito político da «Europa Connosco» ao outro lado do Atlântico!

Esta reunião do Porto consagraria Mário Soares perante o público português como um dos «grandes» da Internacional Socialista, para além de continuar o «espírito», e o apoio financeiro, do comité de solidariedade constituído meses antes em Estocolmo. Teria a presença de Willy Brandt, Bruno Kreisky, Joop den Uyl, François Mitterrand, Felipe González e, claro, Olof Palme. Teve um enorme impacto nacional. Não tanto pelo que ali foi dito mas, sobretudo, pelo significado da presença conjunta, no nosso país, dos principais protagonistas do socialismo democrático europeu. Finalmente os portugueses tinham oportunidade de conhecer os homens que iriam fazer entrar Portugal na Europa e que, por intermédio do PS, iriam transformar Portugal num país europeu igual àqueles onde trabalhavam os nossos vizinhos e os nossos familiares.

O secretário-geral do PS estava eufórico com a ocasião, ao lado dos «grandes» da social-democracia mundial. Estatuto que considerava não poder ser atribuído a Felipe González que, além de usar blusão de cabedal, na «cerimónia», não era reconhecido na Espanha pelo Partido Socialista Popular, chefiado por Tierno Galván. E, no que respeita a Espanha, em 1976, as preferências de Soares eram claramente a favor do partido dos seus amigos Raul Morodo e Fernando Morán, estando mesmo convencido de que, eleitoralmente, até o PCE de Santiago Carrillo teria mais votos do que o «grupo»

de González. Assim, numa das crises de enfant gaté que ocasionalmente o assaltavam, não queria que González discursasse no grande comício que teve lugar no Palácio de Cristal, no dia 13, encarregando-me a mim da desagradável tarefa de explicar a González que só um número restrito de oradores estava previsto. Um pequeno número que incluía só os «grandes» líderes. Tanto quanto me pude aperceber então, a ideia era a de excluir Zenha, cuja reputação nacional, popularidade e estatura moral lhe começavam a fazer sombra. E depois, quando já fosse tarde demais, seria eu responsabilizado, por ter sido eu a organizar a conferência... Ao fim de um ano de actividade dentro do PS, e sabendo como as culpas pelo desastre do primeiro Congresso, tinham caído em cima do Tito de Morais, estava perfeitamente ambientado na política de «sacudir a água do capote» dos dirigentes socialistas. Por isso recusar-me-ia, informando, pelo contrário, Zenha da «deselegância» que o secretário-geral pretendia cometer. Zenha que melhor que ninguém o conhecia de ginjeira, alteraria a situação. Zenha seria um dos grandes oradores da noite e González discursou mesmo, sendo vibrantemente aplaudido. Afinal ele estava ainda a lutar pelos direitos de existência do seu partido em Espanha e necessitava daquela publicidade, talvez mais que nós próprios que já a tínhamos adquirido.

Mas, como já tinha explicado anteriormente, as relações do PS com o PSOE não eram exactamente as melhores se bem que, da parte de Felipe González, todos os esforços fossem feitos para um bom relacionamento connosco. A situação em Espanha ainda estava longe de ser clara e, como acontecera connosco antes do 25 de Abril, aos socialistas espanhóis faltava quase tudo. Portugal era assim um ponto de referência fundamental. Um mês antes da reunião do Porto, a 12 de Fevereiro, o chanceler austríaco Bruno Kreisky organizara em Viena um grande «comício de luta contra o fascismo». Os convidados principais seriam Soares, que representava a vitória do regime democrático e González, que representava a luta pela democracia. O acontecimento, pese embora o então maior prestígio de Soares, destinava-se essencialmente a apoiar o PSOE mas Soares, no seu discurso, não faria uma única referência ao PSOE ou a González. Diria simplesmente que «conhecemos bem o valor da solidariedade internacional anti-fascista. É por isso que hoje estamos ao lado dos nossos companheiros espanhóis, vibrando com eles na esperança de que em breve a democracia estará restabelecida em Espanha». E no final daria vivas à amizade luso-austríaca, ao PS austríaco e ao socialismo. Ao PSOE nada!

Começa aqui a explicação da «deselegância» da cimeira do Porto. Soares não queria González nessa cimeira e seria o chanceler Bruno Kreisky (que aliás pagaria grande parte das despesas da «Europa Connosco») quem insistiria para que o jovem líder socialista espanhol estivesse presente. Após o êxito do Porto, González demonstraria também interesse em passar o dia das eleições legislativas, marcadas para o dia 25 de Abril, em Lisboa. Queria confraternizar com os seus camaradas portugueses e tirar partido, tanto quanto possível, da enorme cobertura mediática internacional, na esperança de poder beneficiar desse feedback no seu país. Só que Felipe González chegara no voo de Madrid na manhã de 25 de Abril, acompanhado do responsável pelas relações internacionais, Luis Yafies, mas o secretário-geral do PS disse-me «que não estava para o aturar» e eu que «tomasse conta dele como fizera no Porto». Eu fui esperá-los ao aeroporto e, após um aperitivo em casa de Bernadino Gomes, no Estoril, sendo este acompanhante da funcionária da Fundação Friedrich Ebert, Elke Esters, que representara os alemães na fundação do PS em Bad Munstereifel em 1973, almoçámos no hotel Albatroz em Cascais, tendo depois visitado vários locais de voto em Lisboa e arredores. Na noite das eleições, Mário Soares cumprimentaria sem grandes cerimónias os «convidados» espanhóis que nunca lhe perdoariam a «altivez» e a frieza da recepção. E apesar de todos os esforços que eu desenvolveria nos anos seguintes, as relações de Mário Soares com Felipe González, seriam sempre pouco calorosas.

Apesar do difícil relacionamento, Felipe González demonstraria grandes qualidades de estadista ao compreender quer a amizade pessoal de Soares com os dirigentes do Partido Socialista Popular, quer a diferença de pontos de vista derivada da diferença de idades entre ambos. Também sabia que dentro do PS português tinha inúmeros amigos e que as bases simpatizavam com ele, como a própria cimeira do Porto demonstrara. Estas delicadas questões tinham já sido abordadas numa reunião que tivera lugar em Lisboa, em Junho de 1975, entre o PS e uma delegação do PSOE chefiada por Nicolas Redondo. Quando então nos pediram para clarificar a situação, derivada do entusiástico apoio a Santiago Carrilho e da nossa tão ambígua posição, Mário Soares pediu a Nicolas Redondo que informasse o seu partido de que o PS «reconhecia o PSOE enquanto parceiro na Internacional Socialista, não obstante laços de amizade pessoal entre alguns socialistas portugueses e espanhóis não pertencentes ao PSOE».

O resultado eleitoral das primeiras eleições legislativas não corresponderia, contudo às expectativas. Nem às expectativas políticas dos dirigentes do PS, nem às dos amigos estrangeiros que tinham investido no PS. Apesar de terem sido gastos enormes meios financeiros na campanha, apesar de prestigiadas figuras internacionais terem vindo a Portugal exprimir solidariedade ao PS e, sobretudo, após o 25 de Novembro, a «gratidão» revelada pelo povo português neste acto eleitoral não seria aquilo que o futuro primeiro-ministro tinha esperado. O PS baixaria três pontos percentuais em relação às eleições para a Assembleia Constituinte e o PPD baixaria dois e meio. Os comunistas também perderiam terreno e como concluiria Freitas do Amaral «o CDS foi o único partido que subiu», de 7,5 % para 16% ! Qualquer analista poderia concluir que uma grande parte da direita, em 1975, utilizara o PS e até o PPD para travar o avanço do PCP. Mas também se compreenderia melhor a razão pela qual o PS, no dia 26 de Novembro de 1975, alinhara pela tese do major Melo Antunes em relação ao Partido Comunista. Não porque tivesse estado de acordo com aquele militar, quando afirmou ser o PCP necessário «para a construção do socialismo em Portugal», mas porque o secretário-geral do PS pretendera utilizar o PCP para meter medo à direita, convencido, como viria a estar a partir de então, que os socialistas só serviam para combater os comunistas. Esta análise, já viciada desde o acordo de governo assinado com o PCP em Paris, em 1973, motivaria os socialistas portugueses a tratar Sá Carneiro e o seu partido como «inimigos principais», cometendo um erro de estratégia que comprometeria para o futuro a sanidade política da sociedade portuguesa. O general Ramalho Eanes, que apesar de candidato do PS/PPD e CDS à Presidência da República era, até então, politicamente irrelevante, iria ter, graças aos resultados eleitorais, um papel determinante na vida política do País e, em especial, na vida interna do Partido Socialista. Muitos dirigentes socialistas, contudo, apesar de não possuírem os meios para alterar a situação que o secretário-geral decidira sem auscultar o partido, entendiam que o apoio à candidatura de um militar, «imposto» pelo Grupo dos Nove não fazia sentido no regime democrático que pretendiam construir. O próprio Sá Carneiro via o futuro do País no quadro de um pacto de regime entre o PS e o seu partido, estando mesmo preparado para, dentro de um tal acordo, apoiar a candidatura de Mário Soares à Presidência da República. O PS, que evidentemente se não poderia coligar com os seus ex-parceiros comunistas, após o 25 de Novembro, ou se coligava com o PPD, que se reclamava da mesma faln11ia política do Partido Socialista, ou teria que, com todos os riscos inerentes, governar sozinho. Uma coligação com o CDS, visto pela esmagadora maioria da opinião pública como um partido de extrema-direita e, ainda por cima, o único vencedor das eleições legislativas, seria impensável. Mas o secretário-geral do PS faria ouvidos de mercador aos conselhos de muitos dos seus amigos e, num acto de que se iria arrepender, escolheria a via do «PS sozinho». Estava então convencido, que o general Ramalho Eanes era um militar apolítico às suas ordens, que «estaria sempre, diante de si, como um aluno aplicado».

Sá Carneiro ficaria extremamente desiludido com a atitude de Mário Soares, que considerara irresponsável. Para ele a consolidação do regime democrático, então ainda tutelado pelos militares e sob enorme influência político-cultural do PCP, passava pela cooperação entre os dois partidos do centro, que se reclamavam da família social-democrata. Uma cooperação que poderia mesmo conduzir à fusão do PPD no PS. As bases de ambos, afinal, eram idênticas e os princípios semelhantes. Para Sá Carneiro seria difícil compreender a arrogância dos socialistas, convencidos que estavam de que Eanes era parte do seu património político. Acusaria então o PS de «tentação mexicana», o que não foi completamente destituído de razão, dada a sobranceria com que pretendia aliar-se a Ramalho Eanes para governar o País em minoria. Por outro lado, Soares considerava que «objectivamente, o regime do México não é de partido único». Da parte do PS não seriam invulgares as manifestações de grosseria para com Sá Carneiro. Desde referências à sua estatura física, à sua situação familiar e até à colaboração em campanhas pouco dignificantes que visavam atingir a sua honorabilidade. Entretanto, e apesar das muitas ofensas de que seria alvo, o seu pensamento político e a sua acção, nunca foi anti-socialista e, como se teria ocasião de verificar, seria até frequentes vezes favorável ao PS e ao seu secretário-geral, pesem embora normais diferenças que ocorreriam durante as campanhas eleitorais dos seus partidos. Já em 1976 oferecera a Soares «o apoio a uma eventual candidatura, pedindo em troca algo que Soares nunca lhe poderia conceder: a luz verde para que o PSD possa aderir à Internacional Socialista».

De facto, após o 25 de Abril Sá Carneiro declararia pretender que o seu partido aderisse à Internacional Socialista tendo, de imediato, Mário Soares desenvolvido todos os esforços no sentido de barrar qualquer pedido formal de adesão, que nunca chegaria a ser feito. O desconhecimento de como funcionava aquela organização era um reflexo do isolamento internacional em que o País se encontrava, que acabaria por ser desfavorável ao PSD. Na realidade, quando Sá Carneiro declarou a sua pretensão, em 1974, existiam na IS vários partidos do mesmo país. O PS e o PSDI de Itália, O PT e o MAPAM de Israel, o PS e o PSD do Japão, a AD e o MEP da Venezuela. Tivesse ele formalizado o pedido e a IS teria que o discutir e votar. Em 1974, após o 25 de Abril, o PS não possuía nenhumas garantias de que a IS negaria o acesso ao PPD. Mas só a partir de 1979, profundamente desiludido com Eanes e desejoso de o impedir de se recandidatar à Presidência da República, Mário Soares proporia ao Secretariado

Nacional que considerasse as virtualidades de um acordo com Sá Carneiro. Nesta altura, como em praticamente todas as decisões de fundo do PS, as posições políticas do secretário-geral seriam tomadas em função dos seus interesses pessoais. A sua «vontade» de um acordo com Sá Carneiro, que tinha que ver com uma vingança contra Eanes e com as suas próprias ambições políticas, chegava cinco anos tarde demais, quando a maioria do Secretariado Nacional do Partido Socialista já não seguia as suas orientações.

Atento à evolução política na Península Ibérica, o Presidente da República da Venezuela, Carlos Andrés Perez, cujo partido, Accion Democratica, era observador da Internacional Socialista, percebeu que a «Revolução Portuguesa» e a evolução democrática em Espanha iriam ter enorme impacto na América Latina, onde ele, chefe de Estado de um país produtor de petróleo, pretendia ter um papel de relevo. O presidente venezuelano, que tinha sido eleito em 1974, acompanhava de perto a crescente importância da Internacional Socialista e, como tal, desenvolveu todos os esforços para reunir em Caracas uma cimeira semelhante à que acabara de ocorrer em Portugal. Mas, enquanto em Portugal a iniciativa partira de Olof Palme, a ideia da reunião de Caracas partira de Klaus Lindenberg, representante da Fundação Friedrich Ebert naquele país. Esta fundação já na altura investia consideráveis meios naquele subcontinente e tinha escritórios e representantes alemães em quase todas as capitais latino-americanas. Editava aliás uma importante revista teórica sobre a social-democracia no contexto da América Latina, a partir da capital venezuelana, de nome Nueva Sociedad. Na reunião que teve lugar no hotel Tamanaco no dia 22 de Maio, para além dos anfitriões, que incluiriam o popular ex-presidente da República, Rómulo Betencourt, marcariam presença em Caracas Willy Brandt, Bruno Kreisky, Willy Claes e André Cools da Bélgica, Hernan Siles Suazo da Bolívia, Luis Albero Monge e Carlos Oscar Arias da Costa Rica, Anker Joergensen da Dinamarca, Rodrigo Borja do Equador, Felipe González e Luis Yafíez do PSOE e Raul Morodo do Partido Socialista Popular, Michel Rocard de França, o italiano Bettino Craxi, ainda então secretário-geral-adjunto de Francesco De Martino e Vitor Raul Haya de Ia Torre, do Peru. Os representantes do PS seriam Mário Soares, Medeiros Ferreira e eu. Foi uma reunião muito importante para Willy Brandt e para a Internacional Socialista, que marcaria o início de tensões ideológicas com os Estados Unidos da América e de uma crise na definição geo-estratégica ocidental entre a Europa e a América.

A Internacional Socialista sentia-se no papel dos «mencheviques», chamando a si ou louros pela vitória da democracia em Portugal. Uma vitória que todos sabiam iria trazer não só repercussões imediatas em Espanha mas, a médio prazo, também na América Latina. Era do interesse da Europa, ou pelo menos da Internacional Socialista europeia, «ignorar» o papel dos Estados Unidos e explorar os defeitos da linha Kissinger no caso português. Seria essa a linha que o próximo presidente da Internacional Socialista Willy Brandt, apoiado por poderosos meios financeiros canalizados por intermédio da Fundação Ebert, iria seguir. Para ele, que dois anos antes se vira alvo de investigações dos serviços de inteligência ocidentais, era extremamente importante marcar o seu decisivo papel em prol da democratização de Portugal, da Espanha e da América Latina. Na nova fase da sua carreira política, ter contribuído para derrotar os comunistas em Portugal, seria uma importante componente do seu currículo. A Internacional Socialista estava lançada nos «Processos de Democratização na Península Ibérica e na América Latina», em concorrência com os EUA. Uma disputa que os americanos iriam ganhar com a ajuda do PS português.

(Contos Proibidos – Memórias de PS Desconhecido, Rui Mateus. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996)