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TEMPOS DE CÓLERA

A Humanidade é uma revolta de escravos (Alberto Caeiro, Poemas)

Poesia

19.07.22 | Manuel

David-Mourão-Ferreira3.jpg

PRELÚDIO

Tombam secretas madrugadas
e rios densos de pavor
de tuas pernas devassadas
por meu instinto e meu amor.


Em teus joelhos levantados
tocam as pontas de uma estrela.
(Quaisquer receios de pecados
empalidecem à luz dela...)


E as tuas ancas repousadas,
pra que o meu corpo se concentre,
esperam, cativas, que as espadas
de amor se cravem no teu ventre.

*

RE(LI)GATA

Quando em lugar de feltro é de barro de Outubro
o calor interior das coxas habitadas
Quando a língua é um barco avançando no escuro
de um canal de Corinto entre pardas escarpas
Quando o cheiro do mar se desdobra em veludo
Quando rompe na boca o mistério das algas
Quando em baixo o teu pé a triturar-me o surdo
perímetro do sexo encontra a madrugada
Quando mais se aproxima a náutica do culto
Quando mais o altar se mostra navegável
Quando mais eu descubro e restauro e misturo
na crista litoral de súbito ampliada
o ritual do grito o ritual do cuspo
e vês que ninguém mais merece esta homenagem

é que enfim te possuo é que enfim te reduzo
a uma luva uma esponja uma deusa uma nave

*

NUDEZ

A pressa
com que te despes

Nem na alma te apetece
qualquer veste

A pressa
com que te despes

Até da carne e da pele
se pudesses



*

MÚSICA DE CAMA

X

Sobre mim cavalgas
cingindo-me os flancos
Colhes à passagem
a luz do instante

De dentes cerrados
ondulas avanças
retesas os braços
comprimes -as ancas

Depois para a frente
inclinas-te olhando
o que entre dois ventres
ocorre entretanto

e o próprio galope
em que vais lançada
Que lua te empolga
Que sol te embriaga

Lua e sol tu és
enquanto cavalgas
amazona e égua
de espora cravada

no centro do corpo
Centauresa alada
com os seios soltos
como feitos de água

Queria bebê-los
quando mais te dobras
Os cabelos esses
sorvê-los agora

Mas de cada vez
que o rosto aproximas
já é outra a sede
que me queima a língua

A de nos teus olhos
tão perto dos meus
descobrir o modo
de beber o céu

(Poemas retirados de vários sítios da net e do livro “Música de Cama” de David Mourão-Ferreira. Editorial Presença. Lisboa, 1994)